REVISTA NORTE MINEIRA DE ENFERMAGEM
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INTRODUÇÃO
O
Diabetes Mellitus tipo 1 (DM1) acomete mais de um milhão de pessoas com até 19
anos de idade no mundo, sendo o Brasil o terceiro país com maior número de
novos casos/ano de DM1(1).
Sabe-se que a adolescência é a fase de transição da infância à idade adulta na
qual ocorrem intensas mudanças físicas, psicológicas e sociais na vida do
jovem. Para o jovem que tem DM1, a adolescência é a época em que se observa
piora do controle glicêmico e maior risco para desordens de saúde mental, como
o estresse, ansiedade e depressão(2-4).
O
controle glicêmico ineficaz pode expor os adolescentes a complicações agudas e
crônicas do DM1. As complicações agudas compreendem as hipoglicemias,
caracterizadas pela glicemia capilar < 70 mg/dl, e as hiperglicemias
(glicemia>180mg/dl)(5),
que, quando não são tratadas em tempo adequado, podem ocasionar convulsões,
coma e morte. Já as complicações crônicas decorrem da hiperglicemia sustentada
a longo prazo, que leva à lesão de órgãos alvo devido a glicotoxicidade
microvascular. São complicações crônicas do diabetes a retinopatia, a nefropatia e as neuropatias autonômicas e periféricas(6).
Na
ocorrência de complicações, agudas ou crônicas, a enfermeira deve estabelecer
comunicação adequada junto ao adolescente e sua família para resolver os problemas
encontrados no gerenciamento do DM1. É essencial que a enfermeira utilize
técnicas que ajudem o adolescente a relacionar o profissional não somente a
momentos de dor e desconforto, motivando-o a adotar comportamentos de vida
saudável e manter o seguimento no serviço de saúde(7). Neste contexto, as atividades recreacionais
podem ser implementadas na consulta de enfermagem para comunicação com esta
população.
O
Brinquedo Terapêutico Dramático (BTD) é uma intervenção em uso na enfermagem
desde a década de 90, respaldada pelo Conselho Federal de Enfermagem que tem
como finalidade promover o alívio da tensão e expressão de sentimentos,
propício em meio aos estressores que permeiam o adoecer(8, 9). A sessão de BTD dá voz à
população pediátrica e permite a enfermeira compreender o significado que o
jovem atribui a sua condição de saúde, auxiliando no planejamento do seu
cuidado(10).
Considerando
o potencial uso do BTD para comunicação com a população pediátrica, este artigo
descreve os achados de
sessões de BTD realizadas com adolescentes sobre o viver com diabetes, a
fim de subsidiar a utilização desta estratégia como cuidado de enfermagem.
MÉTODO
Estudo
de Caso de natureza qualitativa, método utilizado para propor técnicas capazes
de resolver os problemas da pesquisa em seu desenrolar(11), conduzido em um ambulatório de
diabetes na cidade de São Paulo – SP, Brasil. Os preceitos éticos foram
assegurados em cumprimento à
Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde(12) e o estudo aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa
sob parecer número 522.172 em fevereiro de 2014.
O convite às mães e adolescentes ocorreu na sala de espera do ambulatório,
antes da consulta médica. Todos as mães assinaram os termos de consentimento
livre e esclarecido e os adolescentes assinaram o termo de assentimento antes
do início da coleta de dados.
Uma estudante do quarto ano de graduação em
enfermagem, membro e presidente da Liga Acadêmica de Educação em Diabetes da
sua universidade, foi treinada por enfermeiras do Grupo de Estudos do Brinquedo
vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) para a coleta de dados.
O número de participantes foi definido no
desenvolvimento do estudo, atendendo ao modelo de amostragem por saturação
teórica(13) e às limitações de
tempo para coleta de dados da estudante. Os critérios de inclusão foram:
diagnóstico clínico de DM1; idade ≥ 13 e ≤18 anos; e possuir histórico de
complicações (agudas ou crônicas) do DM1.
A coleta de dados ocorreu em três etapas: consulta ao prontuário
do adolescente, entrevista semiestruturada com as mães e sessão de BTD. A consulta ao prontuário, primeira
etapa da coleta de dados, permitiu a caracterização do adolescente em relação a
sua doença, incluindo informações como tempo de diagnóstico de DM1, tempo de
seguimento no serviço e tipo de tratamento. A entrevista semiestruturada teve
como questão norteadora “Como é para a senhora conviver com um(a) filho(a) que
tem diabetes?” e possibilitou explorar a experiência das mães.
Na sessão de BTD, foram oferecidos aos
adolescentes materiais variados o suficiente para que o adolescente
dramatizasse situações referentes a seus sentimentos, expressões, conflitos e
situações do dia a dia, conforme preconizado na literatura(14) (Figura 1).
Figura 1. Brinquedos incluídos
utilizados na sessão de Brinquedo Terapêutico Dramático
O kit de brinquedos incluiu bonecos de pano representativos do pai,
mãe, filhos, avô, avó e profissional da saúde; brinquedos representativos do cotidiano
familiar, como utensílios de cozinha, mamadeira, carrinhos, celular e dinheiro
de papel. Outros brinquedos foram incluídos no kit a fim de permitir ao
adolescente a dramatização de cenas de violência, como um revólver e uma
granada de brinquedo. Foram disponibilizados materiais para desenho como
canetas hidrográficas coloridas, lápis de cor e papel sulfite. Além destes, o
kit continha materiais hospitalares diversos, ilustrados na Figura 2.
Figura 2. Materiais hospitalares
incluídos no kit de brinquedos
As sessões videogravadas de BTD duraram
cerca de 40 minutos e foram guiadas de acordo com os seguintes passos(14): 1. O adolescente foi convidado a
brincar a partir da questão norteadora “Vamos brincar de um(a) adolescente que
tem diabetes?”; 2. Foi informado ao adolescente o tempo aproximado de duração
da brincadeira (45 minutos) e a necessidade de devolver os brinquedos no final
da sessão; 3. A enfermeira ofereceu o kit de brinquedos sem identificá-los; 4.
A brincadeira não foi interrompida nem direcionada, deixando o adolescente
brincar à sua maneira; 5. A participação da entrevistadora e da mãe ocorreu
mediante solicitação do adolescente; 6. A enfermeira anotou os comportamentos e
as interações apresentadas na sessão de BTD.
A
análise dos dados foi executada por três pesquisadoras com experiência em
pesquisas qualitativas e seguiu as etapas preconizadas por Braun e Clarke(15): transcrição das entrevistas na
íntegra; transcrição, codificação, e categorização das sessões de BTD, na qual
cada código foi lido e agrupado de acordo com características conceituais
similares, determinando, assim, categorias temáticas.
RESULTADOS
Participaram do estudo de caso dois
adolescentes, de nomes fictícios Sophia e João.
Sophia, 13 anos de idade,
diagnosticada com DM1 aos oito, era filha única e morava com ambos os pais. Na
entrevista semiestruturada, a mãe relatou que os avós e a tia materna moravam
na mesma rua e ajudavam no cuidado da adolescente. Sophia estava em
acompanhamento no ambulatório há dois anos e aliava o tratamento oferecido
neste serviço a consultas trimestrais com o endocrinologista do convênio devido
à hipoglicemias frequentes (cerca de 20 episódios por mês). O diagnóstico de
DM1 ocorreu em uma internação hospitalar por sintomas de poliúria. Ainda no
hospital, a mãe aprendeu a administrar as injeções de insulina com apoio dos
médicos e enfermeiras. Desde o diagnóstico, a mãe de Sophia deixou seu emprego
para cuidar da filha em tempo integral, trabalhando em casa com artesanato.
Sophia e sua mãe foram convidadas a participar da pesquisa enquanto aguardavam
na sala de espera do ambulatório.
João, 16 anos, também foi diagnosticado com DM1
aos oito anos. A mãe relatou que o momento do diagnóstico foi muito difícil
para toda a família, que não sabia o que era diabetes. A mãe também contou em
detalhes a sua peregrinação nos últimos cinco anos em busca de um ambulatório
de diabetes que atendesse às necessidades do filho. Neste interim, João foi
internado 40 vezes com cetoacidose diabética na unidade de terapia intensiva
pediátrica. João teve diversos problemas de aceitação do tratamento e da dieta
imposta pelo tratamento do diabetes. A mãe deixou o emprego para cuidar de João
e evitar que ele ingerisse açúcar escondido. As múltiplas internações por cetoacidose
levaram a equipe de saúde a denunciá-los ao conselho tutelar, alegando que a
família negligenciava as injeções de insulina necessárias para o jovem. A mãe
de João finalizou a entrevista agradecendo a equipe multiprofissional
responsável pelo cuidado do filho no ambulatório, por darem ao jovem o acesso à
bomba de infusão contínua de insulina. Segundo a mãe, a bomba de insulina deu
autonomia ao adolescente no seu tratamento. João e sua mãe foram indicados pela
equipe para participar da pesquisa.
A análise das sessões de BTD
realizadas com Sophia e João originou quatro categorias temáticas: Brincando espontaneamente na presença da mãe,
Satisfazendo os desejos por meio da brincadeira, Vivenciando o processo de
adoecer, Revelando como cuidamos do meu diabetes. As
quatro categorias estão apresentadas a seguir, nas quais os excertos dos
adolescentes serão identificados pela A, as mães pela letra M e a pesquisadora
pela letra P.
Brincando
espontaneamente na presença da mãe
Ambos
adolescentes aceitam o convite em participar da sessão de BTD espontaneamente,
mesmo quando estavam entretidos com outra atividade. Sophia, por exemplo,
interrompe o jogo de celular e segue a pesquisadora. João senta-se no chão e
auxilia a pesquisadora a dispor os brinquedos. Ele dobra uma folha de papel
sulfite para simular uma cama, escolhe o boneco menino e retira algumas comidas
de brinquedo da sacola.
A
presença da mãe na sessão, como integrante da brincadeira, foi solicitada por
ambos adolescentes, hora pedindo que a mãe ajude cuidando do boneco-menino que
tem dor de estômago ou dramatizando situações de urgência que ilustram a
importância da presença de sua família durante as internações.
A: “Mãe, você é esse
boneco aqui. Então vem mexer ele aqui, porque eu vou acordar.” Segurando o boneco
na frente de sua mãe diz com voz gemente: “Mãe, mãe estou passando mal, tô com dor de estômago. M: E agora?” Diz com a
boneca-mulher na mão. M: “Filho, tem que pegar o medicamento. Cadê o
medicamento?” A: “Não, calma. Eu não tenho diabetes ainda!” Os dois riem.
(João)
A:
“Agora eu fui à consulta. Ai a médica disse: esse menino não está bem não. Aí
chamou a ambulância: Iôiôiô” [imita o som da sirene
enquanto dirige a ambulância de brinquedo]. “Desci na maca, subi o elevador e
aí entrei na UTI. Aí, eu não sabia onde que a mamãe tava: Cadê minha mãe?! Cadê
minha mãe? Aí minha mãe chegou e falou: Olha eu vou embora e seu pai está
vindo. Aí ela foi embora, e chegou meu pai: Ô Meu filho, que que você tem? Aí
ele foi embora. Aí meu irmão chegou. E ele tava com o videogame e ficou lá
jogando comigo.” (João)
Sophia
também brinca espontaneamente na presença da mãe e mostra ter necessidade de
auxílio de um adulto para manusear os equipamentos médico-hospitalares.
M:
“Filha, você tem que virar, se não, não vai sair nada.” Referindo-se ao frasco
de soro. A: Vira o frasco, aspira o soro com a agulha conectada à seringa e, em
seguida desconecta a seringa do frasco [...] Pega o estetoscópio e colocou-o em
seus ouvidos. A: “Não escuto!”, diz. Coloca o estetoscópio no coração da mãe e
olha para a pesquisadora, com expressão de interrogação. A: “Ih...” (Sophia)
Satisfazendo os desejos por
meio da brincadeira
As
sessões de BTD promoveram a catarse dos adolescentes, sobretudo nos assuntos
relacionados à alimentação e aos sentimentos de tensão, medo e raiva que
acompanham o viver com DM1 e ter complicações.
João
simula em sua brincadeira momentos em que o boneco menino consome doces. Sua
mãe insinua que esse era o comportamento de João durante a internação
hospitalar e o adolescente nega em tom irônico.
A:
“Você vai me dar esse monte de coisa aqui pra eu comer” M: “Ah, tá! Ainda bem
que é saudável”, diz irônica. A mãe estende a mão para pegar comida e João
aponta o biscoito de chocolate. M: “Vamos pegar o biscoito de chocolate. Vamos
comer um biscoito pra ver se melhora o vômito” João leva o boneco menino do
leito até a comida e faz barulho de comer rapidamente. Volta para o leito e
novamente vai até as comidas. M: “Roubava as coisas escondida no hospital, né?”
A: “Não sei disso não!”, diz sorrindo. (João)
Já
Sophia vinga-se da família e da enfermeira na brincadeira ao simular, com
entusiasmo, a realização de procedimentos invasivos, como a terapia intravenosa
e a coleta de exames.
Sophia
pega a seringa e aproxima do braço de sua mãe. M: “Mais um soro? Já estou com
um soro aqui.” A: Desconsidera a pergunta da mãe e empurra o êmbolo da seringa,
aplicando o soro no braço da mãe (Sophia)
P:
“O que você está fazendo?” A: “Tirando sangue”, diz sorrindo enquanto insere a
agulha na boneca enfermeira. P: “Para que ela está colhendo sangue?” A: “Para
saber se ela tem diabetes.” P: “Quando sai o resultado?” A: “Daqui 15 dias!”
diz rindo. (Sophia)
Vivenciando o processo de adoecer
Além da satisfação de desejos, a sessão de
BTD permitiu aos adolescentes revelar sentimentos decorrentes do processo de
adoecimento e contaram suas experiências no momento diagnóstico do diabetes e o
medo relacionado aos procedimentos invasivos.
João lembrou-se dos momentos de apreensão que
passou antes do diagnóstico, onde os episódios de êmese
eram recorrentes e o levaram ao atendimento hospitalar de emergência.
M: “Vamos para o
hospital então, né?” João pega o
boneco-menino e diz: “Vamos para o
médico?” M: “Vamos!” João dá várias voltas com o boneco, fazendo
barulho da sirene de ambulância. Vira o boneco fazendo barulho de vômito e diz
para a mãe: “E aí, você tá falando com o
médico?” Pega a boneca-mulher e entrega para a mãe. M: “Estou com a médica.” João entrega a boneca-criança para a mãe
colocando-a na frente da boneca-mulher. A mãe segura os dois bonecos e diz: “O João está com diabetes e vai ficar
internado.” (João)
Já
Sophia evidencia a morte como um possível resultado da doença, ao dramatizar,
durante a brincadeira, a morte de sua mãe e de seu cachorro, afirmando, por
fim, que todos os personagens estavam mortos.
Sophia
pega o estetoscópio e ausculta a mãe: “Ish, morreu!” P:
“Morreu? O que aconteceu?” A: “Não escuto nada”. Pega o estetoscópio e
ausculta o cachorro de brinquedo: “Morreu!”.
Dá uma gargalhada. Pega outro boneco homem e diz: “Tá todo mundo morto”. P: “Morreu do que?” Sophia não responde, só
dá risada. (Sophia)
A
cetoacidose diabética aparece na dramatização de João como um processo de idas
e vindas ao hospital. Na brincadeira, as múltiplas internações causam raiva na
equipe médica, que questiona o motivo do adolescente ter voltado ao hospital e
o violenta.
João faz barulho de vômito. M: “De novo, João? Tá com cetoacidose. Diabetes está alta, descompensada! Vamos lá de novo”. João fazendo
vai e vem com o boneco-menino, diz: “Aí
eu fui para a casa. E depois pro hospital. Fui para a casa e depois para o
hospital [...]. Coloca o boneco-menino na cama e pega o boneco-homem. A: “Aí, o médico gritou: por que você está
aqui???!!! Hein?”. Faz o boneco-homem batendo no boneco-menino.
Outro
aspecto do adoecer explorado nas sessões de BTD foi o uso do material
hospitalar. O material para terapia intravenosa remete lembranças nos
adolescentes sobre os procedimentos hospitalares os quais foram submetidos.
Sophia demonstra repulsa a ampola de glicose e ao garrote utilizado para punção
venosa. Já na brincadeira de João, o manuseio do cateter sobre agulha leva o
adolescente a expressar o pavor que tem do procedimento.
Sophia pega a ampola de glicose. M: “Isso é glicose, né?” A: Olha e cheira a ampola, franzindo a testa
com repulsa. [...] Sophia vasculha o kit de brinquedos e encontra o garrote
usado na punção venosa: “Ah, eu odeio
isso daqui!” (Sophia)
João posiciona o boneco-menino no colo e enrola o pescoço
dele com esparadrapo, dizendo “É o acesso
[venoso]. Tá doendo.”, com voz de
dor e em tom baixo. P: “O que é isso aí?”
A: “É um acesso”. Pega o cateter
sobre agulha, olha com os olhos arregalados e diz: “Esse não, não, não, não!!!”. (João)
Revelando
como cuidamos do meu diabetes
Por fim, a última categoria revela as
percepções dos adolescentes sobre o cuidado do diabetes e complicações,
destacando as suas escolhas diárias. Por exemplo, Sophia mostra conhecer os
princípios da alimentação saudável ao escolher, em sua brincadeira, os
alimentos que deveriam compor as refeições de sua mãe.
Sophia pega a sacola que contém utensílios domésticos,
coloca no seu colo, abre, sorri e começa a tirar as comidas, separando em uma
cesta o leite e uma xícara. Fica pensativa e pega um prato, coloca uma banana,
os cereais e a maçã. [...] Separa ovos e coloca-os na panela. Coloca um copo e
suco de uva em outra cesta, pega o molho de tomate e coloca na panela. Na cesta
junto ao suco coloca os ovos e uma maçã. Entrega novamente para sua mãe e diz:
“E este é seu almoço”. (Sophia)
Dentre os desafios diários no tratamento do
DM1, os procedimentos invasivos são recorrentes na vida do adolescente. A
injeção subcutânea e a glicemia capilar aparecem na brincadeira de João como um
momento de sofrimento associado a dor.
João limpa e fura o braço do boneco-menino, gritando “Ahhhh!!!” enquanto deixa a agulha no braço.
M: “Nossa! Nem fez isso, João!” A: “Eu sei que não fiz isso, mas ele fez!”
[...]. Rapidamente solta o dedo da mãe e fura a mão do boneco-menino dizendo: “Aaaaaii!! Doeu !!!” (João).
Por outro lado, durante as sessões de BTD, os
adolescentes demonstram familiaridade com a rotina de cuidados, como o uso de
refrigerante para correção de hipoglicemias e a facilidade na administração de
insulina por meio da bomba de infusão continua.
P: “O que ela tem
que está no hospital?” A: “A diabetes
está alta”. Coloca a boneca-enfermeira deitada. P: “Já saiu o resultado?” A: “Aham, ela tem
diabetes”. Pega uma lata de refrigerante e coloca ao lado da enfermeira e
diz: “Pronto”. (Sophia)
A mãe joga um walkie-talkie para João e diz: “Faz de conta que é uma bombinha!” João
diz para o boneco-menino: “É minha
bombinha! Éééé!”, diz em tom empolgado. (João)
DISCUSSÃO
Este artigo apresenta as percepções de mães
sobre o viver com o filho adolescente com DM1 e as manifestações de dois
adolescentes em uma sessão de BTD sobre o viver com DM1 e ter complicações.
O relato das mães sobre o viver com o filho descreve
como o DM1 e suas complicações afetaram a rotina da família. Ambas as mães
deixaram seus empregos para cuidar dos filhos e descreveram a migração em
serviços de saúde em busca de assistência frente a complicações do diabetes. O
DM1 impõe demandas de cuidado que impactam diretamente a dinâmica familiar,
seja no aspecto social como no financeiro(16,
17). A impossibilidade de atender a estas demandas com recursos
adequados expõe as famílias de crianças e adolescentes com DM1 a um maior risco
para descontinuidade do tratamento e complicações da doença.
Nesta pesquisa, ambos os adolescentes possuíam
histórico de complicações agudas (hipoglicemia e cetoacidose) recorrentes, o
que demanda o cuidado constante das mães. O relato obtido por meio do estudo de
caso serve como exemplo de como a equipe de enfermagem pode triar problemas
socioeconômicos da família do adolescente que já possui complicações do DM1
durante a consulta de enfermagem.
O brincar dos adolescentes por meio da sessão de BTD
revelou o processo de adoecer, as múltiplas hospitalizações e os cuidados
diários com o DM1. A hospitalização pelo diagnóstico do diabetes ou por suas
complicações, além de expor o jovem a dor devido aos procedimentos invasivos
como a terapia intravenosa, também leva ao distanciamento de familiares, de amigos
e da escola(18). A sessão de
BTD, portanto, foi o meio pelo qual os adolescentes contaram às mães e à
enfermeira pesquisadora suas percepções sobre o cuidado da doença crônica em
suas múltiplas demandas.
Os resultados desta pesquisa reforçam que o recurso
lúdico, além de um incentivo à diversão e ao entretenimento do adolescente com
diabetes, também é uma alternativa ao desenvolvimento social e emocional dos
jovens com DM1. Sabe-se que a pessoa com quem a criança brinca geralmente é a
mesma a quem ele recorre quando se sente assustado ou necessita de ajuda, como
na hospitalização(19, 20).
Neste estudo, as sessões de BTD favoreceram o brincar espontaneamente entre o
adolescente e suas mães, ressaltando a importância do recurso lúdico para
facilitar a comunicação do adolescente com DM1 e sua família.
Mais que brincar com as mães, a
sessão de BTD promoveu a catarse dos desejos dos adolescentes. A catarse é a
possibilidade de dramatizar papéis e conflitos que está enfrentando, com o
objetivo de aliviar a tensão emocional(21).
Tanto Sophia como João realizam seus desejos alimentares durante a sessão de
BTD, bem como realizaram procedimentos invasivos nos bonecos representativos da
família e do profissional de saúde. É fundamental que a enfermeira promova momentos
empáticos com a criança e adolescente além das situações estressantes que
permeiam o cuidado do DM1. A catarse, por meio da sessão de BTD assegura o
papel da “boa enfermeira” permitindo a criação de vínculo adolescente-adulto(22, 23).
Como limitações do estudo, indicamos a participação
de mães nas entrevistas e a indisponibilidade de realizar a coleta de dados com
outros membros da família. Pesquisas anteriores ressaltam a importância de
explorar as percepções dos pais, por exemplo, em relação ao cuidado da criança
e do adolescente com DM1(24, 25).
Outro ponto é a participação de apenas dois adolescentes, o que pode
comprometer a generalização dos resultados por refletir as manifestações de
adolescentes residentes da área urbana e em atendimento em serviço
especializado.
No entanto, dada a riqueza do método de pesquisa
escolhido, considerado um “modelo artesanal de ciência”(11), os resultados deste estudo oferecem
aos enfermeiros uma interpretação detalhada da comunicação por meio do brincar,
o que pode aprimorar o cuidado de enfermagem a essa população.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa apresenta o viver de adolescentes com
diabetes que tem complicações por meio dos relatos das suas mães e pela análise
das sessões de BTD. Viver com o diabetes do filho
representa, para as mães, o retorno ao lar e a transformação da rotina da
família devido ao itinerário terapêutico do DM1. Por meio do brincar, os
adolescentes revelaram sua interação positiva com as mães, mostraram a
satisfação de desejos, contaram o seu processo de adoecimento e sua rotina de
cuidados.
A
sessão de BTD permitiu o brincar espontâneo dos adolescentes, facilitou a
comunicação entre adolescente e sua mãe e pode ser utilizada na consulta de
enfermagem para compreensão das necessidades dessa população e criação de
vínculo entre jovem e enfermeira.
AGRADECIMENTOS
As autoras agradecem a participação dos adolescentes
com diabetes e suas mães nesta pesquisa, ao Grupo de Estudos do Brinquedo – GEBrinq pelo treinamento e apoio na discussão dos resultados
e ao Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento à pesquisa.
As autoras declaram que não possuem conflito de
interesse.
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