REVISTA NORTE MINEIRA DE ENFERMAGEM

ISSN: 2317-3092

 

 

Recebido em:

01/12/2019

Aprovado em:

16/03/2020

Como citar este artigo

 

La Banca RO, Filietáz CFT, Tavares VR, Borba RIH. Compreendendo o ser adolescente com complicações do diabetes por meio do brinquedo terapêutico. Rev Norte Mineira de enferm. 2020; 9(1):01-10.

Autor correspondente

 

Rebecca Ortiz La Banca.

Joslin Diabetes Center.

Correio eletrônico: rebecca.ortizlabanca@joslin.harvard.edu

 

 

 

ESTUDO DE CASO

COMPREENDENDO O SER ADOLESCENTE COM COMPLICAÇÕES DO DIABETES POR MEIO DO BRINQUEDO TERAPÊUTICO DRAMÁTICO

 

Understanding What It Is Like To Be An Adolescent With Diabetes Complications Through Dramatic Therapeutic Play

Rebecca Ortiz La Banca*1, Carla Francini Tasso Filietáz*2, Victória Rodrigues Tavares3, Regina Issuzu Hirooka de Borba4

 

* Atribui primeira autoria conjunta.

 

1. Doutora em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação de Doutoramento Interunidades em Enfermagem da Escola de Enfermagem e da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo. Research Fellow no Joslin Diabetes Center afiliado à Harvard Medical School. Boston, MA, Estados Unidos da América. E-mail: rebecca.ortizlabanca@joslin.harvard.edu. ORCID: 0000-0001-6084-3657

2. Especialista em Enfermagem Pediátrica e Neonatal pelo Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. Enfermeira pela Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: carla.filietaz@gmail.com. ORCID: 0000-0001-5360-7189

3. Residente do Programa de Residência Multiprofissional Cuidado ao Paciente Crítico do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Enfermeira pela Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: victoria.rtavares@hotmail.com. ORCID: 0000-0003-1399-5732

4. Doutora em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de Enfermagem Pediátrica da Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: rihborba@gmail.com. ORCID: 0000-0003-3542-6709

 

 

 

OBJETIVO: Descrever os achados de sessões de Brinquedo Terapêutico Dramático realizadas com adolescentes sobre o viver com diabetes. MÉTODO: Estudo de caso qualitativo, cuja coleta de dados ocorreu em um ambulatório de diabetes na cidade de São Paulo em três fases: consulta ao prontuário, entrevista semiestruturada com a família e sessão de Brinquedo Terapêutico Dramático. As sessões foram videogravadas e submetidas a seis etapas da análise de conteúdo de Braun e Clarke. RESULTADOS: Dois adolescentes (12 e 16 anos) com histórico de hipoglicemias e cetoacidose frequentes e suas mães participaram das sessões de BTD. A análise revelou quatro categorias: Brincando espontaneamente na presença da mãe; Satisfazendo os desejos por meio da brincadeira; Vivenciando o processo de adoecer; e Revelando como cuidamos do meu diabetes. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A sessão de Brinquedo Terapêutico Dramático permitiu a catarse e pode ser utilizada para compreensão das necessidades dos adolescentes e criação de vínculo entre o jovem/enfermeira.

Descritores: Jogos e brinquedos, Diabetes Mellitus tipo I, Adolescente, Enfermagem Pediátrica.

 

OBJECTIVE: To describe the findings of Dramatic Therapeutic Play sessions with adolescents about living with diabetes. METHOD: Qualitative case study, whose data collection took place in a diabetes clinic in the city of Sao Paulo in three phases: consultation of the medical record, semi-structured interview with the family and a session of Dramatic Therapeutic Play. The sessions were videotaped and submitted to six stages of content analysis by Braun and Clarke. RESULTS: Two adolescents (12 and 16 years old) with history of frequent hypoglycemia and ketoacidosis and their mothers participated in Dramatic Therapeutic Play sessions. The analysis revealed four categories: Playing spontaneously in the presence of the mother; Satisfying desires through play; Experiencing the process of becoming ill; and Revealing how we care for my diabetes. FINAL CONSIDERATIONS: The Dramatic Therapeutic Play session allowed catharsis, can be used to understand the needs of adolescents and create a bond between the young person/nurse.

Keywords: Play and Playthings, Type 1 Diabetes Mellitus, Adolescent, Pediatric Nursing.

 

Financiamento: Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

INTRODUÇÃO

 

O Diabetes Mellitus tipo 1 (DM1) acomete mais de um milhão de pessoas com até 19 anos de idade no mundo, sendo o Brasil o terceiro país com maior número de novos casos/ano de DM1(1). Sabe-se que a adolescência é a fase de transição da infância à idade adulta na qual ocorrem intensas mudanças físicas, psicológicas e sociais na vida do jovem. Para o jovem que tem DM1, a adolescência é a época em que se observa piora do controle glicêmico e maior risco para desordens de saúde mental, como o estresse, ansiedade e depressão(2-4).

 

O controle glicêmico ineficaz pode expor os adolescentes a complicações agudas e crônicas do DM1. As complicações agudas compreendem as hipoglicemias, caracterizadas pela glicemia capilar < 70 mg/dl, e as hiperglicemias (glicemia>180mg/dl)(5), que, quando não são tratadas em tempo adequado, podem ocasionar convulsões, coma e morte. Já as complicações crônicas decorrem da hiperglicemia sustentada a longo prazo, que leva à lesão de órgãos alvo devido a glicotoxicidade microvascular. São complicações crônicas do diabetes a retinopatia, a nefropatia e as neuropatias autonômicas e periféricas(6).

 

Na ocorrência de complicações, agudas ou crônicas, a enfermeira deve estabelecer comunicação adequada junto ao adolescente e sua família para resolver os problemas encontrados no gerenciamento do DM1. É essencial que a enfermeira utilize técnicas que ajudem o adolescente a relacionar o profissional não somente a momentos de dor e desconforto, motivando-o a adotar comportamentos de vida saudável e manter o seguimento no serviço de saúde(7). Neste contexto, as atividades recreacionais podem ser implementadas na consulta de enfermagem para comunicação com esta população.

 

O Brinquedo Terapêutico Dramático (BTD) é uma intervenção em uso na enfermagem desde a década de 90, respaldada pelo Conselho Federal de Enfermagem que tem como finalidade promover o alívio da tensão e expressão de sentimentos, propício em meio aos estressores que permeiam o adoecer(8, 9). A sessão de BTD dá voz à população pediátrica e permite a enfermeira compreender o significado que o jovem atribui a sua condição de saúde, auxiliando no planejamento do seu cuidado(10).

 

Considerando o potencial uso do BTD para comunicação com a população pediátrica, este artigo descreve os achados de sessões de BTD realizadas com adolescentes sobre o viver com diabetes, a fim de subsidiar a utilização desta estratégia como cuidado de enfermagem. 

 

 

 

 

MÉTODO

 

Estudo de Caso de natureza qualitativa, método utilizado para propor técnicas capazes de resolver os problemas da pesquisa em seu desenrolar(11), conduzido em um ambulatório de diabetes na cidade de São Paulo – SP, Brasil. Os preceitos éticos foram assegurados em cumprimento à Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde(12) e o estudo aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer número 522.172 em fevereiro de 2014. O convite às mães e adolescentes ocorreu na sala de espera do ambulatório, antes da consulta médica. Todos as mães assinaram os termos de consentimento livre e esclarecido e os adolescentes assinaram o termo de assentimento antes do início da coleta de dados.

 

Uma estudante do quarto ano de graduação em enfermagem, membro e presidente da Liga Acadêmica de Educação em Diabetes da sua universidade, foi treinada por enfermeiras do Grupo de Estudos do Brinquedo vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para a coleta de dados.

 

O número de participantes foi definido no desenvolvimento do estudo, atendendo ao modelo de amostragem por saturação teórica(13) e às limitações de tempo para coleta de dados da estudante. Os critérios de inclusão foram: diagnóstico clínico de DM1; idade ≥ 13 e ≤18 anos; e possuir histórico de complicações (agudas ou crônicas) do DM1.

 

A coleta de dados ocorreu em três etapas: consulta ao prontuário do adolescente, entrevista semiestruturada com as mães e sessão de BTD. A consulta ao prontuário, primeira etapa da coleta de dados, permitiu a caracterização do adolescente em relação a sua doença, incluindo informações como tempo de diagnóstico de DM1, tempo de seguimento no serviço e tipo de tratamento. A entrevista semiestruturada teve como questão norteadora “Como é para a senhora conviver com um(a) filho(a) que tem diabetes?” e possibilitou explorar a experiência das mães.

 

Na sessão de BTD, foram oferecidos aos adolescentes materiais variados o suficiente para que o adolescente dramatizasse situações referentes a seus sentimentos, expressões, conflitos e situações do dia a dia, conforme preconizado na literatura(14) (Figura 1). 

Figura 1. Brinquedos incluídos utilizados na sessão de Brinquedo Terapêutico Dramático

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O kit de brinquedos incluiu bonecos de pano representativos do pai, mãe, filhos, avô, avó e profissional da saúde; brinquedos representativos do cotidiano familiar, como utensílios de cozinha, mamadeira, carrinhos, celular e dinheiro de papel. Outros brinquedos foram incluídos no kit a fim de permitir ao adolescente a dramatização de cenas de violência, como um revólver e uma granada de brinquedo. Foram disponibilizados materiais para desenho como canetas hidrográficas coloridas, lápis de cor e papel sulfite. Além destes, o kit continha materiais hospitalares diversos, ilustrados na Figura 2.

 

Figura 2. Materiais hospitalares incluídos no kit de brinquedos

 

As sessões videogravadas de BTD duraram cerca de 40 minutos e foram guiadas de acordo com os seguintes passos(14): 1. O adolescente foi convidado a brincar a partir da questão norteadora “Vamos brincar de um(a) adolescente que tem diabetes?”; 2. Foi informado ao adolescente o tempo aproximado de duração da brincadeira (45 minutos) e a necessidade de devolver os brinquedos no final da sessão; 3. A enfermeira ofereceu o kit de brinquedos sem identificá-los; 4. A brincadeira não foi interrompida nem direcionada, deixando o adolescente brincar à sua maneira; 5. A participação da entrevistadora e da mãe ocorreu mediante solicitação do adolescente; 6. A enfermeira anotou os comportamentos e as interações apresentadas na sessão de BTD.

 

A análise dos dados foi executada por três pesquisadoras com experiência em pesquisas qualitativas e seguiu as etapas preconizadas por Braun e Clarke(15): transcrição das entrevistas na íntegra; transcrição, codificação, e categorização das sessões de BTD, na qual cada código foi lido e agrupado de acordo com características conceituais similares, determinando, assim, categorias temáticas.

 

RESULTADOS

 

Participaram do estudo de caso dois adolescentes, de nomes fictícios Sophia e João.

 

Sophia, 13 anos de idade, diagnosticada com DM1 aos oito, era filha única e morava com ambos os pais. Na entrevista semiestruturada, a mãe relatou que os avós e a tia materna moravam na mesma rua e ajudavam no cuidado da adolescente. Sophia estava em acompanhamento no ambulatório há dois anos e aliava o tratamento oferecido neste serviço a consultas trimestrais com o endocrinologista do convênio devido à hipoglicemias frequentes (cerca de 20 episódios por mês). O diagnóstico de DM1 ocorreu em uma internação hospitalar por sintomas de poliúria. Ainda no hospital, a mãe aprendeu a administrar as injeções de insulina com apoio dos médicos e enfermeiras. Desde o diagnóstico, a mãe de Sophia deixou seu emprego para cuidar da filha em tempo integral, trabalhando em casa com artesanato. Sophia e sua mãe foram convidadas a participar da pesquisa enquanto aguardavam na sala de espera do ambulatório.

 

João, 16 anos, também foi diagnosticado com DM1 aos oito anos. A mãe relatou que o momento do diagnóstico foi muito difícil para toda a família, que não sabia o que era diabetes. A mãe também contou em detalhes a sua peregrinação nos últimos cinco anos em busca de um ambulatório de diabetes que atendesse às necessidades do filho. Neste interim, João foi internado 40 vezes com cetoacidose diabética na unidade de terapia intensiva pediátrica. João teve diversos problemas de aceitação do tratamento e da dieta imposta pelo tratamento do diabetes. A mãe deixou o emprego para cuidar de João e evitar que ele ingerisse açúcar escondido. As múltiplas internações por cetoacidose levaram a equipe de saúde a denunciá-los ao conselho tutelar, alegando que a família negligenciava as injeções de insulina necessárias para o jovem. A mãe de João finalizou a entrevista agradecendo a equipe multiprofissional responsável pelo cuidado do filho no ambulatório, por darem ao jovem o acesso à bomba de infusão contínua de insulina. Segundo a mãe, a bomba de insulina deu autonomia ao adolescente no seu tratamento. João e sua mãe foram indicados pela equipe para participar da pesquisa. 

 

A análise das sessões de BTD realizadas com Sophia e João originou quatro categorias temáticas: Brincando espontaneamente na presença da mãe, Satisfazendo os desejos por meio da brincadeira, Vivenciando o processo de adoecer, Revelando como cuidamos do meu diabetes. As quatro categorias estão apresentadas a seguir, nas quais os excertos dos adolescentes serão identificados pela A, as mães pela letra M e a pesquisadora pela letra P.

 

Brincando espontaneamente na presença da mãe

 

Ambos adolescentes aceitam o convite em participar da sessão de BTD espontaneamente, mesmo quando estavam entretidos com outra atividade. Sophia, por exemplo, interrompe o jogo de celular e segue a pesquisadora. João senta-se no chão e auxilia a pesquisadora a dispor os brinquedos. Ele dobra uma folha de papel sulfite para simular uma cama, escolhe o boneco menino e retira algumas comidas de brinquedo da sacola.

 

A presença da mãe na sessão, como integrante da brincadeira, foi solicitada por ambos adolescentes, hora pedindo que a mãe ajude cuidando do boneco-menino que tem dor de estômago ou dramatizando situações de urgência que ilustram a importância da presença de sua família durante as internações.

 

A: “Mãe, você é esse boneco aqui. Então vem mexer ele aqui, porque eu vou acordar.” Segurando o boneco na frente de sua mãe diz com voz gemente: “Mãe, mãe estou passando mal, com dor de estômago. M: E agora?” Diz com a boneca-mulher na mão. M: “Filho, tem que pegar o medicamento. Cadê o medicamento?” A: “Não, calma. Eu não tenho diabetes ainda!” Os dois riem. (João)

A: “Agora eu fui à consulta. Ai a médica disse: esse menino não está bem não. Aí chamou a ambulância: Iôiôiô” [imita o som da sirene enquanto dirige a ambulância de brinquedo]. “Desci na maca, subi o elevador e aí entrei na UTI. Aí, eu não sabia onde que a mamãe tava: Cadê minha mãe?! Cadê minha mãe? Aí minha mãe chegou e falou: Olha eu vou embora e seu pai está vindo. Aí ela foi embora, e chegou meu pai: Ô Meu filho, que que você tem? Aí ele foi embora. Aí meu irmão chegou. E ele tava com o videogame e ficou lá jogando comigo.” (João)

 

Sophia também brinca espontaneamente na presença da mãe e mostra ter necessidade de auxílio de um adulto para manusear os equipamentos médico-hospitalares.

 

M: “Filha, você tem que virar, se não, não vai sair nada.” Referindo-se ao frasco de soro. A: Vira o frasco, aspira o soro com a agulha conectada à seringa e, em seguida desconecta a seringa do frasco [...] Pega o estetoscópio e colocou-o em seus ouvidos. A: “Não escuto!”, diz. Coloca o estetoscópio no coração da mãe e olha para a pesquisadora, com expressão de interrogação. A: “Ih...” (Sophia)

 

Satisfazendo os desejos por meio da brincadeira

 

As sessões de BTD promoveram a catarse dos adolescentes, sobretudo nos assuntos relacionados à alimentação e aos sentimentos de tensão, medo e raiva que acompanham o viver com DM1 e ter complicações.                

João simula em sua brincadeira momentos em que o boneco menino consome doces. Sua mãe insinua que esse era o comportamento de João durante a internação hospitalar e o adolescente nega em tom irônico.

 

A: “Você vai me dar esse monte de coisa aqui pra eu comer” M: “Ah, tá! Ainda bem que é saudável”, diz irônica. A mãe estende a mão para pegar comida e João aponta o biscoito de chocolate. M: “Vamos pegar o biscoito de chocolate. Vamos comer um biscoito pra ver se melhora o vômito” João leva o boneco menino do leito até a comida e faz barulho de comer rapidamente. Volta para o leito e novamente vai até as comidas. M: “Roubava as coisas escondida no hospital, né?” A: “Não sei disso não!”, diz sorrindo. (João)

 

Já Sophia vinga-se da família e da enfermeira na brincadeira ao simular, com entusiasmo, a realização de procedimentos invasivos, como a terapia intravenosa e a coleta de exames.

 

Sophia pega a seringa e aproxima do braço de sua mãe. M: “Mais um soro? Já estou com um soro aqui.” A: Desconsidera a pergunta da mãe e empurra o êmbolo da seringa, aplicando o soro no braço da mãe (Sophia)

P: “O que você está fazendo?” A: “Tirando sangue”, diz sorrindo enquanto insere a agulha na boneca enfermeira. P: “Para que ela está colhendo sangue?” A: “Para saber se ela tem diabetes.” P: “Quando sai o resultado?” A: “Daqui 15 dias!” diz rindo. (Sophia)

 

Vivenciando o processo de adoecer

 

Além da satisfação de desejos, a sessão de BTD permitiu aos adolescentes revelar sentimentos decorrentes do processo de adoecimento e contaram suas experiências no momento diagnóstico do diabetes e o medo relacionado aos procedimentos invasivos.

 

João lembrou-se dos momentos de apreensão que passou antes do diagnóstico, onde os episódios de êmese eram recorrentes e o levaram ao atendimento hospitalar de emergência.

 

M: “Vamos para o hospital então, né?” João pega o boneco-menino e diz: “Vamos para o médico?” M: “Vamos!” João dá várias voltas com o boneco, fazendo barulho da sirene de ambulância. Vira o boneco fazendo barulho de vômito e diz para a mãe: “E aí, você tá falando com o médico?” Pega a boneca-mulher e entrega para a mãe. M: “Estou com a médica.” João entrega a boneca-criança para a mãe colocando-a na frente da boneca-mulher. A mãe segura os dois bonecos e diz: “O João está com diabetes e vai ficar internado.” (João)

 

Já Sophia evidencia a morte como um possível resultado da doença, ao dramatizar, durante a brincadeira, a morte de sua mãe e de seu cachorro, afirmando, por fim, que todos os personagens estavam mortos.

 

Sophia pega o estetoscópio e ausculta a mãe: Ish, morreu!” P: “Morreu? O que aconteceu?” A: “Não escuto nada”. Pega o estetoscópio e ausculta o cachorro de brinquedo: “Morreu!”. Dá uma gargalhada. Pega outro boneco homem e diz: “Tá todo mundo morto”. P: “Morreu do que?” Sophia não responde, só dá risada. (Sophia)

 

A cetoacidose diabética aparece na dramatização de João como um processo de idas e vindas ao hospital. Na brincadeira, as múltiplas internações causam raiva na equipe médica, que questiona o motivo do adolescente ter voltado ao hospital e o violenta.

João faz barulho de vômito. M: “De novo, João? Tá com cetoacidose. Diabetes está alta, descompensada! Vamos lá de novo”. João fazendo vai e vem com o boneco-menino, diz: “Aí eu fui para a casa. E depois pro hospital. Fui para a casa e depois para o hospital [...]. Coloca o boneco-menino na cama e pega o boneco-homem. A: “Aí, o médico gritou: por que você está aqui???!!! Hein?”. Faz o boneco-homem batendo no boneco-menino.

 

Outro aspecto do adoecer explorado nas sessões de BTD foi o uso do material hospitalar. O material para terapia intravenosa remete lembranças nos adolescentes sobre os procedimentos hospitalares os quais foram submetidos. Sophia demonstra repulsa a ampola de glicose e ao garrote utilizado para punção venosa. Já na brincadeira de João, o manuseio do cateter sobre agulha leva o adolescente a expressar o pavor que tem do procedimento.

 

Sophia pega a ampola de glicose. M: “Isso é glicose, né?” A: Olha e cheira a ampola, franzindo a testa com repulsa. [...] Sophia vasculha o kit de brinquedos e encontra o garrote usado na punção venosa: “Ah, eu odeio isso daqui!” (Sophia)

João posiciona o boneco-menino no colo e enrola o pescoço dele com esparadrapo, dizendo “É o acesso [venoso]. Tá doendo.”, com voz de dor e em tom baixo. P: “O que é isso aí?” A: “É um acesso”. Pega o cateter sobre agulha, olha com os olhos arregalados e diz: “Esse não, não, não, não!!!”. (João)

 

 

Revelando como cuidamos do meu diabetes

 

Por fim, a última categoria revela as percepções dos adolescentes sobre o cuidado do diabetes e complicações, destacando as suas escolhas diárias. Por exemplo, Sophia mostra conhecer os princípios da alimentação saudável ao escolher, em sua brincadeira, os alimentos que deveriam compor as refeições de sua mãe.

 

Sophia pega a sacola que contém utensílios domésticos, coloca no seu colo, abre, sorri e começa a tirar as comidas, separando em uma cesta o leite e uma xícara. Fica pensativa e pega um prato, coloca uma banana, os cereais e a maçã. [...] Separa ovos e coloca-os na panela. Coloca um copo e suco de uva em outra cesta, pega o molho de tomate e coloca na panela. Na cesta junto ao suco coloca os ovos e uma maçã. Entrega novamente para sua mãe e diz: “E este é seu almoço”. (Sophia)

 

Dentre os desafios diários no tratamento do DM1, os procedimentos invasivos são recorrentes na vida do adolescente. A injeção subcutânea e a glicemia capilar aparecem na brincadeira de João como um momento de sofrimento associado a dor.

 

João limpa e fura o braço do boneco-menino, gritando “Ahhhh!!!” enquanto deixa a agulha no braço. M: “Nossa! Nem fez isso, João!” A: “Eu sei que não fiz isso, mas ele fez!” [...]. Rapidamente solta o dedo da mãe e fura a mão do boneco-menino dizendo: “Aaaaaii!! Doeu !!!” (João).

 

Por outro lado, durante as sessões de BTD, os adolescentes demonstram familiaridade com a rotina de cuidados, como o uso de refrigerante para correção de hipoglicemias e a facilidade na administração de insulina por meio da bomba de infusão continua.

P: “O que ela tem que está no hospital?” A: “A diabetes está alta”. Coloca a boneca-enfermeira deitada. P: “Já saiu o resultado?” A: “Aham, ela tem diabetes”. Pega uma lata de refrigerante e coloca ao lado da enfermeira e diz: “Pronto”. (Sophia)

A mãe joga um walkie-talkie para João e diz: “Faz de conta que é uma bombinha!” João diz para o boneco-menino: “É minha bombinha! Éééé!”, diz em tom empolgado. (João)

DISCUSSÃO

 

Este artigo apresenta as percepções de mães sobre o viver com o filho adolescente com DM1 e as manifestações de dois adolescentes em uma sessão de BTD sobre o viver com DM1 e ter complicações.

 

O relato das mães sobre o viver com o filho descreve como o DM1 e suas complicações afetaram a rotina da família. Ambas as mães deixaram seus empregos para cuidar dos filhos e descreveram a migração em serviços de saúde em busca de assistência frente a complicações do diabetes. O DM1 impõe demandas de cuidado que impactam diretamente a dinâmica familiar, seja no aspecto social como no financeiro(16, 17). A impossibilidade de atender a estas demandas com recursos adequados expõe as famílias de crianças e adolescentes com DM1 a um maior risco para descontinuidade do tratamento e complicações da doença.

 

Nesta pesquisa, ambos os adolescentes possuíam histórico de complicações agudas (hipoglicemia e cetoacidose) recorrentes, o que demanda o cuidado constante das mães. O relato obtido por meio do estudo de caso serve como exemplo de como a equipe de enfermagem pode triar problemas socioeconômicos da família do adolescente que já possui complicações do DM1 durante a consulta de enfermagem.

 

O brincar dos adolescentes por meio da sessão de BTD revelou o processo de adoecer, as múltiplas hospitalizações e os cuidados diários com o DM1. A hospitalização pelo diagnóstico do diabetes ou por suas complicações, além de expor o jovem a dor devido aos procedimentos invasivos como a terapia intravenosa, também leva ao distanciamento de familiares, de amigos e da escola(18). A sessão de BTD, portanto, foi o meio pelo qual os adolescentes contaram às mães e à enfermeira pesquisadora suas percepções sobre o cuidado da doença crônica em suas múltiplas demandas.

 

Os resultados desta pesquisa reforçam que o recurso lúdico, além de um incentivo à diversão e ao entretenimento do adolescente com diabetes, também é uma alternativa ao desenvolvimento social e emocional dos jovens com DM1. Sabe-se que a pessoa com quem a criança brinca geralmente é a mesma a quem ele recorre quando se sente assustado ou necessita de ajuda, como na hospitalização(19, 20). Neste estudo, as sessões de BTD favoreceram o brincar espontaneamente entre o adolescente e suas mães, ressaltando a importância do recurso lúdico para facilitar a comunicação do adolescente com DM1 e sua família.

 

Mais que brincar com as mães, a sessão de BTD promoveu a catarse dos desejos dos adolescentes. A catarse é a possibilidade de dramatizar papéis e conflitos que está enfrentando, com o objetivo de aliviar a tensão emocional(21). Tanto Sophia como João realizam seus desejos alimentares durante a sessão de BTD, bem como realizaram procedimentos invasivos nos bonecos representativos da família e do profissional de saúde. É fundamental que a enfermeira promova momentos empáticos com a criança e adolescente além das situações estressantes que permeiam o cuidado do DM1. A catarse, por meio da sessão de BTD assegura o papel da “boa enfermeira” permitindo a criação de vínculo adolescente-adulto(22, 23).

 

Como limitações do estudo, indicamos a participação de mães nas entrevistas e a indisponibilidade de realizar a coleta de dados com outros membros da família. Pesquisas anteriores ressaltam a importância de explorar as percepções dos pais, por exemplo, em relação ao cuidado da criança e do adolescente com DM1(24, 25). Outro ponto é a participação de apenas dois adolescentes, o que pode comprometer a generalização dos resultados por refletir as manifestações de adolescentes residentes da área urbana e em atendimento em serviço especializado.

 

No entanto, dada a riqueza do método de pesquisa escolhido, considerado um “modelo artesanal de ciência”(11), os resultados deste estudo oferecem aos enfermeiros uma interpretação detalhada da comunicação por meio do brincar, o que pode aprimorar o cuidado de enfermagem a essa população. 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Esta pesquisa apresenta o viver de adolescentes com diabetes que tem complicações por meio dos relatos das suas mães e pela análise das sessões de BTD. Viver com o diabetes do filho representa, para as mães, o retorno ao lar e a transformação da rotina da família devido ao itinerário terapêutico do DM1. Por meio do brincar, os adolescentes revelaram sua interação positiva com as mães, mostraram a satisfação de desejos, contaram o seu processo de adoecimento e sua rotina de cuidados.

 

A sessão de BTD permitiu o brincar espontâneo dos adolescentes, facilitou a comunicação entre adolescente e sua mãe e pode ser utilizada na consulta de enfermagem para compreensão das necessidades dessa população e criação de vínculo entre jovem e enfermeira.

 

AGRADECIMENTOS

 

As autoras agradecem a participação dos adolescentes com diabetes e suas mães nesta pesquisa, ao Grupo de Estudos do Brinquedo – GEBrinq pelo treinamento e apoio na discussão dos resultados e ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento à pesquisa.

 

As autoras declaram que não possuem conflito de interesse.

 

REFERÊNCIAS

 

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