ARTIGO ORIGINAL

MITO E CORPO: REFLEXÕES SOBRE O CÂNCER DE MAMA

MYTH AND BODY: REFLECTIONS ON BREAST CANCER

CARDOSO, Fernanda de Souza [1], FERREIRA, Eliana Lúcia [2]

 

Data de Submissão: 20/11/2019 Data de Publicação:18/06/2020

CARDOSO, F. de S.; FERREIRA, E. L. Mito e corpo: reflexões sobre o câncer de mama. Revista Eletrônica Nacional de Educação Física, v. 9, n. 14, p. 33 - 53, 18 jun. 2020.  Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/renef/article/view/2785.  Acesso em:

https://doi.org/10.46551/rn2019091400036

 

RESUMO

Identificar alguns mitos relacionados ao câncer, reconhecendo como isso se dá no contexto do corpo feminino acometido pelo câncer de mama. Pesquisa empírica, utilizando procedimentos qualitativos, tendo como suporte metodológico a Análise do Discurso (AD), em sua vertente francesa, representada no Brasil, por Eni Orlandi. Utilizamos como instrumento a entrevista semiestruturada, que foi feita com seis mulheres, participantes de grupo de apoio (Projeto Vida Presente), da cidade de Montes Claros, Minas Gerais. A idade das mulheres que representa a amostra do estudo varia dos 44 aos 66 anos, todas acometidas pelo câncer de mama, em processo de acompanhamento e que sofreram intervenção cirúrgica, ou seja, mastectomizadas. Tratamos desta maneira, pelos discursos (corpus) “das mulheres com câncer”, analisar para compreender o que realmente faz sentido para as mesmas e a mitificação, ou não, diante de tal posição, que se faz nova, que se constitui noutra. A partir dessas considerações e princípios é que buscamos compreender os sentidos postos pelas palavras, e aí não “somente palavras”, discursos, dentro de um contexto social específico, considerando as condições nas quais foram produzidos, fazendo significar-se. O câncer vem então acompanhado de um novo vivenciar, de uma certa “estranheza”, tanto por parte de quem se vê acometido pela doença, como por parte daqueles que diretamente estão envolvidos. Pela doença se toma consciência da morte. O olhar da sociedade, do outro, como coloca Hashigutti (2003) se faz primordialmente pelo corpo, que sobre ele tece opiniões, julgamentos, ações, provocando desta maneira reações, atitudes primeiramente de afastar estes olhares, de não precisar ser “visto”, ser “lembrado”, para então, ou não, buscar suportes no sentido de retomada de seus espaços. O câncer por ser uma doença ainda repleta de desconhecimentos continua por alguns sendo mitificada, sendo essa uma das maneiras de lidar com questões ainda não tão esclarecidas, complexas. Alguns aspectos referentes ao mito e o câncer de mama foram constatados pelos discursos das referidas mulheres como: a crença no caráter punitivo da doença, fruto da vontade de Deus, a ideia de que o doente de câncer é um “quase morto” ou de que o câncer pode é contagioso. Os enfrentamentos diante do olhar social influenciam a maneira de lidar com o adoecimento, porém pode ser uma via para a retificação a partir do conhecimento, do reconhecimento, da mudança de atitude, da desmistificação. Mas esse não é um processo imediato, para que uma nova realidade se instale é preciso fazer ecoar a voz, revelar, entender os sentidos, começar a trilhar o caminho. São passos primeiros, pequenos passos, de uma grande questão.

Palavras-chave: Mito. Corpo. Câncer de mama.

ABSTRACT

To identify some myths related to cancer, recognizing how it occurs in the context of the female body affected by breast cancer. Empirical search using qualitative procedures, supported methodologically by Discourse Analysis (DA), in his French side, represented in Brazil by Eni Orlandi. We used a semistructured interview, that was made with six women, participating in support groups (Present Life Project), the city of Montes Claros, Minas Gerais. The age of the women who represent the sample ranges from 44 to 66 years, all of them affected by breast cancer, in process of monitoring and that undergone surgical intervention, or mastectomy. We treated this way, for the discourse (corpus) "of women with cancer," to analyze to understand what really makes sense for them and mystification, or not, facing such a position, which is new, it is another. From these considerations and principles is that sought to understand the meanings made by the words. And then not only "words", but speech within a specific social context, considering the conditions under which they were produced, making them mean. The cancer is then accompanied by a new experience of living, a certain "strangeness", both by the person who finds herself affected by the disease, and those who are directly involved. The disease becomes aware of death. The look of society, the other, it is primarily by the body, that about it makes opinions, judgments, actions, thus causing reactions, attitudes first of leaving these looks away, not needing to be "seen", to be "remembered" for then, or not, seeking supports to resume their spaces. The cancer due to a disease still full of unknowns still is mythologized by some; and being this one of the ways to deal with issues not yet so clarified and complex, some aspects related to the myth and breast cancer were identified by the discourse of these women as the belief in the punitive nature of the disease, the result of God's will, the idea that the cancer patient is an "almost dead" or that the cancer can be contagious. The fightings under the social look influence the way of dealing with the illness, but can be a way to rectify from the knowledge, recognition, the change of attitude, demystification. But this is not an overnight process. So that a new reality is setting it is needed to echo the voice, reveal, understand the senses, and get on the path. These are the first steps, small steps, of a big question.

Key-words: Myth. Body. Breast cancer.

 

INTRODUÇÃO

O câncer enquanto patologia que cada vez mais invade nosso tempo e nossos espaços, está intensamente relacionado a inúmeros mitos, metáforas que revestem a realidade daqueles que convivem diretamente, ou não, com a experiência desse adoecimento. Embora muito já se tenha avançado sobre os fatores relacionados ao adoecer de câncer, está ainda é uma doença ligada a estigmas, pré-conceitos, desinformações. Essa mistificação que rodeia o câncer e todo imaginário a ele relacionado podem segundo Sontag (2007, p. 45) “enfraquecer a capacidade do paciente para entender o alcance do tratamento médico adequado, como também, de forma implícita, afastar o paciente de tal tratamento”, por isso o sentido aqui é de conhecer, reconhecer e retificar, para então desmistificar a doença. O imaginário social enquanto pré-construções, relaciona-se à memória do dizer, e leva em conta que a memória implica “criar condições para se instaurarem, ou não se impedirem, deslocamentos de sentidos nos discursos já cristalizados, deslocamentos que se dão a partir do que faz sentido para os sujeitos implicados” (PAYER, 2005, p. 23).

Apresentando a noção de imaginário social Orlandi (1994) vai dizer que as formações imaginárias vão se constituir a partir das relações sociais que funcionam no discurso: a imagem que se faz de um pai, de um operário, de um presidente, por exemplo, sendo, portanto, mecanismos de projeção existente em toda língua quem permitirão passar da situação sociologicamente descritível para a posição dos sujeitos discursivamente significativa.

Na opinião de Kushner (1981, p. 260) “todas as mulheres que contraíram a doença aprenderam a viver na incerteza, mesmo as que se submeteram a grandes cirurgias”. O “domínio do incerto” invade seus cotidianos: o desconhecimento dos acometimentos advindos do câncer, o medo do tratamento e seus efeitos sobre o organismo, o medo da recorrência, o olhar social sobre o corpo doente. Neste sentido, essa doença da incerteza vai acometer o sujeito que é “social”, ou seja, aquele que apreende e sente pelas construções do meio em que vive, coletivamente, numa ação de reciprocidade.

Diante de tamanha complexidade sobre o adoecimento de câncer e os impactos também sobre os espaços sociais é que atualmente são delineadas algumas intervenções, tais como a criação e expansão de projetos de apoio a esse tipo de paciente, e isso se dá em diferentes áreas, com suas muitas particularidades, porém para que estas ações possam ser efetivas, necessário se faz reconhecer o que se encontra na superfície e por baixo dela, entendimentos acerca do muito que se relaciona a tal patologia.

 

O mito em diferentes épocas

 Para Mircea (1972) não se pode começar alguma coisa sem antes conhecer a sua origem, sem entender como essa coisa veio à existência pela primeira vez. Desta maneira ao nos referirmos à mitologia e a toda riqueza de significações atribuídas a ela, é sem dúvida conveniente realizarmos um retorno a outros tempos e espaços. Segundo Nardini (1982) a origem do mito perde-se na noite da pré-história, mas surge como um acontecimento importante da evolução humana, onde o homem, antes subjugado pelas forças da natureza, passa a compreender que os acontecimentos, os fenômenos naturais têm uma causa, estão submetidos a uma lei misteriosa da qual depende toda vida.

Para Campbell (1990, p. 9) “um mito é uma máscara de Deus, também – uma metáfora daquilo que repousa por trás do mundo visível”. E este se reveste de inúmeras formas, tem diferentes corpos, porque simboliza os diferentes homens, e as diversas leis do universo. Uma diversidade que se explica porque os homens têm muitos desejos, anseios, incompletudes, e a natureza, muitos mistérios. “Ele sabe que em cada fenômeno da natureza escondem-se presenças sobre-humanas; aprende a reconhecê-las e a chamá-las pelo nome, e oferece sacrifícios e preces para merecer proteção” (NARDINI, 1982, p. 10).

Ávila (2001) destaca a mitologia como interpretação da realidade, se constituindo numa fonte inesgotável de parábolas, representações, atos, afetos e formas de vinculação que alimentam incessantemente nossa imaginação e invadem nosso cotidiano. O mito então se apresenta inteiramente misturado à nossa vida social, enraizado, estratificado em nós, vai se fazer apreensível pelo que nos torna existentes: pelo corpo, este arquivo, receptáculo que declara nossa “presença”, espaço por onde perpassam nossas sensações, percepções, atitudes. Por meio do corpo “somos”, por meio dele experimentamos o mundo, sendo o mesmo designado por Le Breton (2006, p. 70) como elemento que metaforiza o social e vice-versa, sendo que em seu interior se desenvolvem as possibilidades sociais e culturais.

Para Barros (2001, p. 6) “o corpo é constantemente transformado pela mentalidade mítica. E, portanto, sua realidade é moldada por essa mesma mentalidade, mesmo que inconsciente”, ou seja, algumas vezes o mito nos atinge e molda nossos pensamentos por sua característica de perpetuação: ouvimos, vemos, repetimos, acreditamos e o fato de desconhecer servirá como um intensificador do poder do mito.

E assim, o mito como sempre fez continua sua saga, ou seja, continua presente na sucessão dos tempos, na contemporaneidade, pois este mais que ordenar a existência, sempre foi uma via de lidar com o desconhecido (CAMPBELL, 1990). E relacionado ao corpo com câncer, os mitos se instalam e se reforçam principalmente no momento em que certos saberes sobre este adoecer ainda inexistem, por essa razão é que se faz importante apresentá-los, informar sobre eles, entender seus significados.

 

METODOLOGIA

No ano de 2006, diante de tamanha complexidade sobre o adoecimento de câncer e dos impactos causados aos espaços sociais, a Fundação Padre Tiãozinho de Apoio ao paciente oncológico da cidade de Montes Claros/MG, criou um programa de atendimento a mulheres com câncer de mama, no sentido de assistir os sujeitos acometidos por tal patologia. Tendo em vista a necessidade de programas multidisciplinares e atenta às necessidades sociais, em 2008, a Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES aprovou o desenvolvimento do projeto de extensão, Vida Presente, cujo propósito é oferecer um programa sistematizado de atividade física para mulheres com câncer de mama e ao mesmo tempo oportunizar um espaço que permita a troca de experiência e a construção conjunta de mecanismos para o exercício da sociabilidade.  Através de convite pela coordenação do programa, em 2007 passei a integrar como voluntária, a equipe multidisciplinar do projeto.

Durante um ano participei do referido projeto, na posição de professora de dança, sendo que a partir desta experiência surgiram diversos questionamentos, conhecimentos e olhares sobre os determinados sujeitos. A partir deste novo ambiente de trabalho e do que foi vivenciado no mesmo construímos um problema de pesquisa.

Para a realização deste estudo utilizamos procedimentos qualitativos, tendo como base metodológica a Análise do Discurso (AD), em sua vertente francesa, representada no Brasil, por Eni Orlandi. E para Orlandi (2007, p. 15) “na análise do discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história”. O que ocorre é que “nesse tipo de análise, olha-se através do texto enquanto unidade significativa” (ORLANDI, 2006, p. 116).

Posteriormente a escolha do método de trabalho, iniciamos nossa pesquisa de campo, sendo que primeiramente realizamos uma entrevista piloto para testarmos a aplicabilidade e o entendimento das questões que constituíam nosso roteiro de entrevista. Primeiro, a referida entrevista foi aplicada a quatro mulheres não acometidas por câncer e em um segundo momento foi realizada com três outras mulheres, todas acometidas pelo câncer (uma com linfoma, outra com câncer de mama e por último, uma com câncer de boca).

Com a entrevista piloto finalizada e os ajustes que se fizeram necessários, iniciamos nossa coleta de dados com 06 mulheres participantes do Projeto Vida Presente, com idade entre 44 e 66, sendo que todas elas já haviam sido diagnosticadas com câncer de mama e passado pela mastectomia. No momento da realização da entrevista todas as participantes da pesquisa já haviam concluído seus tratamentos.

A entrevista semiestruturada, instrumento pela qual optamos em trabalhar, continha nove questões abertas. Faziam parte do roteiro da entrevista dados pessoais como: idade, moradia, escolaridade, profissão, plano de saúde, renda familiar, ano da descoberta do câncer, tratamento realizado, tipo de cirurgia, com o intuito de caracterização do grupo amostral. As questões abertas que constituíam o roteiro foram permeadas pela: 1) experiência de ser portadora de um câncer de mama, 2) o significado do câncer na vida de mulheres participantes de grupo de apoio e 3) as possíveis mudanças ocorridas desde o diagnóstico ao tratamento. E como noção fundamental na análise do discurso, consideramos o funcionamento da linguagem, levando, desta maneira em consideração, as condições de produção, que representam o mecanismo de situar os protagonistas e o objeto do discurso (ORLANDI, 2006).

O discurso, enquanto objeto da análise, é o que torna possível a mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social (ORLANDI, 2007). Via discurso o sujeito pode intervir no mundo, pode criar esta ligação, mostra-se, mas não de maneira transparente. Orlandi (2006, p. 157) complementa: pelo discurso, “se considera que a relação estabelecida pelos interlocutores, assim como o contexto, são constitutivos da significação de que se diz”.

[...] a análise do discurso não realiza uma leitura subjetiva, ou seja, aquela na qual o leitor busca conteúdos e projeta no texto categorias de análise que não passa, por nenhum filtro crítico. da mesma maneira, a Análise do Discurso não pratica leituras des-historicizadas, nas quais reduz-se o texto a uma rede de nexos coesivos e argumentativos (MARIANI, 2004, p. 11).

 

O procedimento analítico buscou observar as regularidades enunciativas e os deslizamentos perceptíveis nos discursos das mulheres acometidas pelo câncer de mama, identificando posteriormente as formações discursivas presentes. A partir dessas estratégias de análise, nos foi possível identificar algumas pistas deixadas pelos sujeitos e consequentemente os sentidos produzidos.

Desta maneira os procedimentos metodológicos levaram em consideração duas noções fundamentais: a paráfrase que de acordo com Orlandi (2007) diz respeito ao que se mantém, o retorno aos mesmos espaços do dizer e a metáfora está relacionada à transferência, substituição contextual, o uso de uma palavra por outra, (ORLANDI, 2007).

Orlandi (2006, p. 119) “esclarece que do ponto de vista da Análise do Discurso, a mera repetição já significa diferentemente, pois introduz uma modificação no processo discursivo”. O fato de dizer a mesma coisa duas vezes, cria um efeito de sentido que não permite identificar a segunda à primeira vez, uma vez que estes são dois acontecimentos diferentes.

Então em relação aos questionamentos feitos às mulheres buscamos identificar o que se sustentou e onde houve deslizamentos de sentidos. Na representação abaixo, vemos

a historicidade representada pelos deslizes produzidos nas relações de paráfrase que instalam o dizer na articulação de diferentes formações discursivas, submetendo-os à metáfora (transferências), aos deslocamentos: possíveis “outros”. Falamos a mesma língua, mas falamos diferentes. dizemos as mesmas palavras, mas elas podem significar diferente (ORLANDI, 2007, p. 79-80).

A-B-C-D

X-B-C-D                       Metáforas

X-Y-C-D       =           

X-Y-K-D                        Paráfrases

                                  X-Y-K-E

 

Todos os depoimentos que se constituíram no corpus desta pesquisa foram coletados em abril de 2009, sendo que as seis mulheres entrevistadas foram identificadas como sujeitos (S), indo então de S1 a S6. Quatro dessas mulheres foram entrevistadas em suas residências e duas foram entrevistadas após o término das aulas realizadas no Projeto Vida Presente.

 

Os sujeitos da pesquisa

               Abaixo apresentamos a caracterização das mulheres que constituem a amostra desta pesquisa.

Quadro 1: Caracterização da amostra da pesquisa.

Sujeitos

Idade

Profissão

Ano da descoberta do câncer

A qual tratamento foi submetida

Momento do tratamento em que se encontra

S1

44

Professora Ajustamento

2005

Quimioterapia e radioterapia

Acompanhamento

S2

66

Pedagoga Aposentada

2004

Radioterapia

Acompanhamento

S3

62

Aposentada

1993

Quimioterapia e radioterapia

Acompanhamento

S4

55

Funcionária Pública Aposentada e Economia Informal

2006

Radioterapia e hormonioterapia

Acompanhamento

S5

57

Pensão alimentícia e economia informal

2002

Quimioterapia e radioterapia

Acompanhamento

S6

45

Confeiteira

2007

Quimioterapia e radioterapia

Acompanhamento

Fonte: Próprio autor (2009).

 

Procedimentos de análise:

Observemos abaixo alguns exemplos que dizem respeito ao objetivo proposto neste artigo, onde é possível perceber regularidades, deslizamentos, deslocamentos de sentidos:

Exemplo 01

S1: Uma angústia no peito, que me deu assim... que eu me lembro assim... [...] eu fui pegar o resultado porque só no laboratório que poderia entregar, só que eu falei: a gente fica naquela ansiedade sem saber o resultado, né?

S3: Olha, todo... Acho que num existe uma pessoa que fala que quando você faz o exame e fala: você tem câncer de mama. Num fica apreensivo, meia triste (enfática). Cheguei chorar, né?

S4: Eu, eu entrei em pânico comecei, só comigo mesma.

S5: Na verdade assim... na hora eu fiquei meia aérea assim... fui pra festa! Depois é que eu me toquei, sabe?

Nos exemplos trazidos acima vemos o uso da metáfora, diferentes maneiras de tratar o mesmo tema, outras formas de dizer sobre o impacto causado pelo diagnóstico da doença: temos angústia, apreensão, pânico, fuga, o que são substituições relacionadas aos diferentes contextos, como já colocado por Orlandi.

Exemplo 02

S3: Então... pensa na morte, claro que é. Depois não... consultei, vi que era uma coisa menor, vi que era normal...

S4: [...] ô mãe, a senhora fala as coisas assim, com a maior naturalidade, mãe. É câncer, mãe. E se a senhora morrer mãe? [...].

S5: Achou assim: Deus já tinha tirado a vó dela que ela gostava tanto e agora eu com essa doença... como se diz: ela já teve medo de me perder, também.

No exemplo 02, temos bem caracterizado o uso da paráfrase, aparecendo em todos os dizeres (retorno, repetição), a morte, como uma sentença da doença.

 

Exemplo 03

S2a: Á, chorei demais, eu entrei em desespero. Quando o médico me falou que eu tinha de... que eu ia tirar a mama toda... eu entrei... cê precisa de ver.

S2b: Eu fiquei assim... muito desesperada. Fiquei assim... meu marido falava: não, não. Depois cê faz... vamo ver com o médico... Não. Vamo fazer uma... Recompor a mama, e tal...

Exemplo 04

S2: Eu ficava com medo: será que tá voltando? Graças a Deus, até hoje num...

S4: [...] agora a gente sempre vive aquele medo, do câncer voltar, entendeu?

Temos acima (exemplo 03 e 04) a presença da paráfrase. No primeiro, na retomada de S2 com relação ao desespero provocado com a possibilidade da cirurgia, da retirada da mama, diante da presença do médico, do marido, formações discursivas intensamente ligadas a esta possibilidade. E no segundo, percebemos a paráfrase nos relatos com relação ao medo constante da recidiva.

 

ANÁLISE E DISCUSSÃO

O corpo com câncer passa segundo Sontag (2007) por um processo de mitificação, existe uma mitologia do câncer e com ela uma variedade de crenças e fantasias, por exemplo: “o câncer é uma doença que ataca, de maneira punitiva, cada pessoa individualmente”, o que muitas vezes leva o indivíduo diagnosticado com tal patologia a se perguntar “Por que eu?”, pergunta que se fazem no sentido de “isso não é justo”, buscando-se sempre a razão para tal “mal”. Assim nos informa três das entrevistadas:

Eu acho que o câncer na minha vida foi um alerta pra mim mudar alguma coisa, que quis me testar de alguma coisa, né?... (S1).

 

Á, o câncer? Sei lá? A gente fica assim... achando que nunca que a gente vai... né? Que vem pra gente. A gente enxerga sempre nos outros, na gente... Pra mim foi assim... Eu ficava apavo..., fiquei apavorada, mais depois eu vi que num era só... que num veio só pra mim, né? Veio pra muitos. E que é uma coisa que num depende da gente, né? É Deus mesmo, que sabe o que a gente tem que passar... (S2).

 

[...] Eu acho que foi uma experiência, assim... Sabe? Que eu tinha que passar, num é? Então, eu acho que foi isso. Uma coisa que é minha, que era pra mim, que num era... Eu num podia... Eu mesma que tinha que resolver a vida, num podia falar: toma conta pra mim Fernanda. Cê entendeu? Não! Aconteceu comigo, eu que tenho que resolver. Entendeu?... (S6).

 

Instiguemos estas reflexões pela apreciação das figuras de deuses e deusas retratados em obras de arte que tanto “nos contam”, sensibilizam, narram expressividade. E assim, como arte, o mito também nos provoca, com sua multiplicidade interpretativa, desperta nossa subjetividade

Shakespeare disse que a arte é um espelho voltado para a natureza, e é isso mesmo. Natureza é a sua própria natureza, e todas essas maravilhosas imagens poéticas da mitologia se referem a algo dentro de você. Quando sua mente se deixa simplesmente aprisionar pela imagem ali fora, impedindo que se dê a referência a você mesmo, nesse caso você terá lido mal a imagem (CAMPBELL, 1990, p. 59).

 

botticelli

Figura 1 - O casamento de Vênus.

Fonte: Sandro Botticelli, 1485.

 

carites        CARIDADE,_Michelangelo_p                Figura 2 - As Graças.                            Figura 3 - Caridade.

Fonte: Hans Baldung, 1484-1485.            Fonte: Francesco Salviati, 1543.

              

               Ao “olharmos” as figuras com corpos femininos ali “expostos” percebemos quase sempre, o seio à mostra, ou marcados por finas vestes. Este seio como símbolo da feminilidade, como característica forte do corpo da deusa, da mulher. Essas figuras mostradas em diferentes momentos, posições, atividades, aparecem como se estivessem dispostas a mostrar-se, tais como são, femininas, com suas “protuberâncias visíveis”, carregadas de muitos significados.

Campbell (1990) mostra que nas sociedades primitivas, agrárias, por exemplo, na antiga Mesopotâmia, no Egito, a Deusa, Mãe-Terra, era a figura mítica dominante. Essa relação estava associada à terra, ou seja, a mulher dá à luz, assim como da terra brotam as plantas. O seio como símbolo, transcende sua função fisiológica, de composição glandular, pois não é somente disso que vive o corpo. Está intimamente relacionado ao “ser feminino”, a sexualidade, ao poder da mulher de alimentar sua cria. É o que parece nos relatar uma das mulheres entrevistadas:

Eu fiquei assim... muito desesperada. Fiquei assim... meu marido falava: não, não. Depois cê faz... vamo ver com o médico... não. Vamo fazer uma... recompor a mama, e tal... mais aí eu fui deixando que eu tinha medo... eu ficava morrendo de medo, de fazer outra cirurgia. Fui deixando, deixando, até quando meu marido morreu. Eu falei: num vou mexer com isso não [...]. Hoje eu num tenho como fazer, porque eu já tenho problema de coração, né? Eu num vou mexer com isso, praquê? (S2).

 

A perda da mama, e uma possível reconstituição da mesma parecem, neste caso, mais ligadas ao desejo do companheiro, à sexualidade que poderia então estar abalada na ausência desta. Após a morte do marido, “um esquecimento”? Outros medos parecem que se sobrepõem a esta ausência. O comando aqui se faz mais pelo simbólico do que pelo físico.

Essa questão nos remete as colocações de Pimentel (2005) sobre os deslocamentos dos sujeitos de seus lugares sociais para suas posições no discurso, que nos dizeres acima relatados parece ocorrer do lugar de sujeito-mulher-esposa para o sujeito-mulher-doente, sendo possível deslocar as formulações “meu marido falava” para “num vou mexer com isso”.

Campbell (1990, p. 177) prossegue: “o feminino representa o que em termos kantianos, chamamos de formas da sensibilidade”. A mama seria uma dessas formas sensíveis, que dão representatividade ao corpo feminino. Tudo isso poderia explicar, em parte, a dificuldade da mulher com câncer de mama em lidar com seu novo corpo, invadido, transformado, mutilado, desprovido de parte de seu “ser feminino”, pois quando se percebe dilacerado um “pedaço” de seu corpo, pode se perder, de certa forma, uma referência e receios sobre como se é visto pelo outro, se instalarem.

Cantinelli et al., (2006, p. 125) trazem a relação da mama com o “ser feminino”, destacando que o seu acometimento expõe as pacientes a uma série de questões: o seu posicionamento como mulher, atraente e feminina, ou a mãe que amamenta. E estas questões estão relacionadas a estigmas e suas associações, como, por exemplo, a ideia de que a mulher sem sua mama deixa de ser mulher, reduzindo a mesma a um seio, mas esta é em primeiro lugar, um ser. Campbell (1990, p. 59) explica que “metáfora é uma imagem que sugere alguma outra coisa”, algo que transcende que não é literalmente coisa alguma. Como metáfora interessante sobre o adoecer de câncer de mama, apresentamos uma construção que associa este último ao Mito da Hidra de Lerna. A cabeça imortal da Hidra de Lerna estaria associada à incerteza, ao medo da recidiva[3].

250px-Hercules_and_the_Hydra_-_Antonio_del_Pollaiolo

                                               Figura 4 - Hércules e a Hidra de Lerna.

                                               Fonte: Antonio Pollaiuolo, 1432-1498.

 

O adoecer de câncer de mama traz certamente muitos estigmas, medos, sendo perceptível até na dificuldade que temos em pronunciar a palavra câncer, às vezes tratada como “aquela doença”, mesmo pelos que não possuem a enfermidade. Desta maneira, por se perpetuar assim e por ser muitas vezes vista como uma doença estigmatizante acaba reforçando atitudes como: não aceitação, esconder-se, porém, paradoxalmente, outros reagem de maneira inversa:

[...] Aí quando eu descobri aquilo eu já fui pro posto de saúde, aí conversei com a menina, a menina olhou, fez exame, falou: parece mesmo (S5).

 

[...] uma coisa que... tem gente que esconde que teve um câncer. Eu faço questão de falar, eu tive um câncer de mama, sabe? (S4).

 

Tinha uma colega mesmo que... ela, toda vez que eu ia visitar: a, mas você tá gordinha, não, eu tô feia, tô magra. Mas você vai melhorar também, mas ela não aceitava, sabe? A doença... morreu, então... faleceu a pouco tempo. Num falou com ninguém, ficou escondendo (S3).

 

E este “eu tive um câncer” do sujeito 4 (S4), nos remete ao pensamento de que falar atrai, ou seja, o fato dela repetir que teve, e que não tem mais, parece reafirmar que o momento passou, foi vencido.

O câncer vem então acompanhado de um novo vivenciar, de uma certa “estranheza”, tanto por parte de quem se vê acometido pela doença, como por parte daqueles que indiretamente estão envolvidos, pois coloca o sujeito de “cara com a morte”, sendo também importante evidenciar que

O homem mantém com o corpo, visto como seu melhor trunfo, uma relação de terna proteção, extremamente maternal, da qual retira um benefício ao mesmo tempo narcíseo e social, pois sabe que, em certos meios, é a partir dele que soa estabelecidos os julgamentos dos outros (LE BRETON, 2006, p. 78).

 

E este olhar da sociedade, do outro, como coloca Hashiguti (2003), se faz primordialmente pelo corpo, que sobre ele tece opiniões, julgamentos, ações. E tudo isso provocará reações, atitudes primeiramente de afastar estes olhares, de não precisar ser “visto”, ser “lembrado”:

[...] Sentia bem. Só fiquei assim mais... retraída, num gostava de sair. Que assim... meu marido às vezes me chamava, eu num gostava de sair com ele. Depois eu voltei ir pra igreja. Passei... Eu ia, né? Mas num era tanto [...]. (S2).

 

Outro aspecto, que advêm do tratamento, mas que nem sempre ocorrerá com todas as mulheres, é a perda do cabelo, que também feminiliza, causa certo impacto sobre o olhar social. O diferente, o “anormal”, sempre atraiu olhares, subjugado as mais diferentes especulações: "[...] O povo olhava, né, o que que tá acontecendo? Eu fiz um tratamento, o cabelo caiu, depois vai nascer... (voz suave). Aí encarava de frente (S1)".

Segundo Almeida et al., (2001) no câncer de mama a possibilidade da recorrência se apresenta como uma das diferentes situações de ameaça aos portadores da doença, sendo possível dizer que a mulher mastectomizada processará esta possibilidade a partir da forma como esse fenômeno se apresenta na sua vida social e da interpretação que faz do mesmo, "[...] Eu ficava com medo: será que tá voltando? Graças a Deus, até hoje num... (S2)".

Agora a gente sempre vive aquele medo, do câncer voltar, entendeu? Então, o que a gente preocupa! [...]. então assim... a minha saúde depois do câncer, assim...ni outros sentidos tá normal, num houve nada, igual eu nunca tive complicações, igual muitas têm, mas o medo permanece, a gente tenta ludibriar a gente mesmo, não, eu tô ótima, não vai acontecer, né? [...] (S4).

 

E no caso específico do grupo pesquisado, um projeto onde é grande a convivência, o fato dessas mulheres estarem ligadas e intensamente envolvidas uma com a vida da outra, com a doença e as “dores” da outra, o que leva a um sentimento de solidariedade, de partilha e ainda de identificação. E essa rede construída traz também à tona a lembrança recorrente de se ter tido um câncer ou poder tê-lo novamente e mais ainda a lembrança da morte, uma vez que já tiveram que conviver com algumas perdas, dentro do grupo. Essas questões são explicitadas nos dizeres de uma das entrevistadas:

[...] Eu sou muito família, então foi assim, tipo, outra família. E às vezes até melhor do que ... igual minha mãe mesmo... dá mais apoio que minha mãe me dá. Então, foi muito bom pra mim. [...]. Confesso que às vezes a gente fica... às vezes assim... Eu me abato um pouquinho, quando eu vejo que alguém tá com problema de novo. Às vezes eu fico meio pra baixo. Sabe Fernanda? Às vezes eu penso assim: á, melhor num ir mais, num querer mais ficar... Eu quero me afastar. Mais aí depois eu penso: não, isso não vai resolver minha vida, num vai resolver o problema. Porque se eu afasto, tá aqui, eu sempre vou pensar nas meninas, eu sempre vou pensar: como está fulana? Como é que tá? Como será que tá? Então, não é por aí. Não adianta fugir dos problemas (S6).

 

E esta identificação posição-sujeito-câncer parece ocorrer para muitas, na condição desta lembrança acima relatada. Assim como ela: que teve câncer, que sofreu, que teve recorrência, que morreu... eu! Na AD, segundo Orlandi (2007, p. 39-40) essas “posições” são projeções que geram imagens e que permite ao sujeito passar da situação empírica para a posição discursiva, e as palavras vão significar de forma diferente, dependendo da posição discursiva ocupada, do lugar de onde se fala.

Uma das questões que às vezes povoam o imaginário com relação ao câncer é de que alguém portador desta enfermidade é uma pessoa imóvel, cadavérica, definhando. A imagem é de alguém impossibilitado de tudo, uma imagem que denuncie o “verdadeiro mal” que ela carrega. “Os sentimentos sobre o mal são projetados numa doença. E a doença (tão enriquecida de sentidos) é projetada sobre o mundo” (SONTAG, 2007, p. 54).

Quando eu comecei tratar, algumas pessoas falavam assim... A gente começava a conversar, aí depois quando a gente falava que tá li, mas que já tinha tido um câncer de mama, aí ele: a, mais... num foi maligno não, né? Foi, câncer é maligno. E até hoje, de vez em quando umas pessoas falam... Eu falo: eu tirei um nódulo. E na verdade, qual nódulo? É mesmo? Então, cê tá ótima! Num foi maligno não, né? Foi maligno. Então o que que eu falo: eu num tirei nódulo, eu tirei um câncer de mama (S4).

Assim... durante o tratamento ou assim algumas pessoas que me viram assim... sem cabelo, essas coisas... Aí eu notava que algumas pessoas ficava meio assim... mas aí  depois que passou, que todo mundo viu, que graças a Deus eu fiquei bem, o cabelo cresceu, voltei tudo ao normal. Aí as pessoas falavam assim: “gente eu pensava que, que... Hoje eu vejo você tão bem. Eu pensava que era uma coisa assim... tão horrível, tipo assim, meu Deus do céu, uma coisa de outro mundo (S6).

 

Sobre o processo de metaforização do câncer Sontag (2007, p. 18) explica que esta doença é vista “como algo que destrói a vitalidade, transforma comer numa provação, amortece o desejo”.

No século XVII, quando segundo Lobo, Santos e Dourado (2006) passou-se a atribuir o câncer a diversos distúrbios no sistema linfático, as pessoas portadoras da doença eram afastadas da sociedade, acreditando-se que o “mal” pudesse ser contagioso. Para uma das entrevistadas essa é uma ideia que parece reverberar, pelos desconhecimentos ela se propaga, porém, uma mudança, atribuída ao discurso científico, também:

 

[...] Todo mundo sabe que é difícil, ainda mais pra quem já passou, mas, assim... as pessoas já tão mudando muito o, o... sabe? O modo de pensar... já vê que... ainda existe gente muito ignorante de pensar que câncer pega. Mais aí as pessoas com pesquisas, com, com...é... Como se fala? Com estudos. Com essas pesquisas por aí tudo. [...] (S6).

 

A morte iminente, tão próxima e tão presente como nunca antes parecera, “concreta”, provavelmente se apresenta como outro aspecto importante com relação ao adoecer de câncer. A morte, real, torna-se conscientemente aparente. E em situações onde nos apresentamos mais vulneráveis, onde passamos a nos ver em uma situação de desorganização de nossos espaços, corpos e pensamentos, momento de obrigatoriedade de se conviver com algo que antes não havia sido experimentado, nessa nova situação de vida, a morte, por assim dizer, ganhará também uma pulsão, uma conotação também diferenciada.

O câncer suscita no ser humano vários tipos de medo da morte: da morte com dor, da morte com alívio, da morte em fantasia, da morte dos sonhos da vida, da morte que provoca rupturas, da morte como erro e fracasso do médico, da morte como fracasso dos recursos tecnológicos, da morte ameaçada e avisada. A incidência em maior ou menor grau de um dos tipos de medo da morte citados, fica sempre na dependência da característica individual de cada membro do sistema, da sua história, das suas crenças a respeito da morte e da dinâmica existente na família no momento da demanda desencadeada pela doença (CARVALHO apud MAIA, 2005, p. 155).

 

Cantinelli et al., (2006) ressaltam que as perdas na esfera psicossocial se referem ao medo da morte, às questões relacionadas ao trabalho e a impossibilidade de retornarem ao mesmo e ao desenvolvimento de prole. A esse respeito Almeida et al., (2001, p. 5) trazem considerações em seu estudo, após ouvir os depoimentos de mulheres com câncer de mama: essas mulheres “denotam o sentimento que a dor e a doença lhes trazem, ou seja, a iminência do sofrimento, onde parece estar implícita a possibilidade da recorrência e, por consequência, o medo da morte”. Porém Campbell (1990, p. 161) relata o que talvez seja para algumas dessas mulheres a esperança na vida, a aceitação e o enfrentamento da doença:

 

O domínio sobre o medo da morte é a recuperação da alegria de viver. Só se chega a experimentar uma afirmação incondicional da vida depois que se aceita a morte, não como algo contrário a vida, mas como um aspecto da vida. A vida, em sua transformação, está sempre destilando a morte, está sempre à beira da morte. O domínio sobre o medo propicia coragem à vida (CAMPBELL 1990, p. 161).

 

Mas temos que considerar alguns aspectos no que diz respeito a esse enfrentamento, que vai estar condicionado pelas experiências vividas por cada uma, pelo apoio que recebeu da família, pelo acompanhamento que terá no tratamento, entre outros aspectos. Em alguns casos, a família, também surpreendida pelo diagnóstico sofre com a “antecipação da morte”, sofre por uma possível perda:

Ô mãe, a senhora fala as coisas assim, com a maior naturalidade, mãe. É câncer, mãe. E se a senhora morrer mãe? Não, num vou morrer (risos). Mas era assim... [...]. (S4).

        

[...] Á, acho que o chão faltou debaixo dos meus pés. Acho que eu cheguei em casa transtornadinha. Aí eu cheguei, que eu falei, aí na hora os menino num falaram nada, mais a menina mais nova já saiu chorando. Ela dizia que... achou assim: Deus já tinha tirado a vó dela que ela gostava tanto e agora eu com essa doença... como se diz: ela já teve medo de me perder, também. Então, aquilo pra mim foi horrível, horrível mesmo (S5).

 

Conviver com o desespero dos filhos, do marido, dos entes queridos, traz também um sentimento de responsabilidade sobre o outro, numa lembrança explícita sobre a função ou as funções exercidas por tais mulheres nos espaços que habita, sendo ainda relevante ressaltar que muitas delas não contam com outras pessoas para a organização da estrutura familiar. Explicitemos:

Meu Deus, meu marido já faleceu. Agora minhas filhas só tem eu. Agora elas vão ficar sem mim também. Então... Pensa na morte, claro que é. Depois não... consultei, vi que era uma coisa menor, vi que era normal... (S3).

 

Lucena (2003, p. 3) ressalta que existe uma relação fantasiosa do homem com a morte o que consequentemente dificulta discorrer sobre a mesma, “dessa forma é que a morte assim como outros sentimentos e manifestações de natureza animal do ser humano vão se escondendo cada vez mais por trás das cortinas da vida social”. Mas ela existe, independentemente de qualquer coisa, ou situação, e o estar doente de câncer parece trazer, na verdade, a consciência da morte.

Sobre o mesmo aspecto Sontag (2007) contribui ao refletir sobre a dificuldade em lidar com a morte nas sociedades industriais avançadas, marcadas pelo hedonismo e superficialidade das coisas e das relações, o que por consequência leva a uma dificuldade no trato com uma enfermidade vista em larga medida como sinônimo de morte, já que a última é hoje algo ofensivamente sem sentido.

 

CONCLUSÕES

O câncer por ser uma doença ainda repleta de desconhecimentos continua por alguns sendo mitificada, sendo essa uma das maneiras de lidar com questões ainda não tão esclarecidas, complexas. Alguns aspectos referentes ao mito e ao câncer de mama foram constatados pelos discursos das referidas mulheres como: a crença no caráter punitivo da doença, fruto da vontade de Deus; a ideia de que o doente de câncer é um “quase morto” ou de que o câncer é contagioso; a recorrência como um fator intensamente presente.

Os enfrentamentos diante do olhar social influenciam a maneira de lidar com o adoecimento além de poder ser uma via para a retificação a partir do conhecimento, da mudança de atitude, da desmistificação, pois verificamos nos discursos destas mulheres que ao iniciarem seus tratamentos, a maneira como este foi conduzido influenciou a forma como o sujeito passou a lidar com a doença. Desta forma, se por um lado toda intensa mistificação que envolve o câncer, bem como seus diferentes estigmas, influenciam a forma de enfrentamento e o prognóstico da doença, por outro, quando ocorre uma ação no sentido de uma desmistificação, possivelmente se enfrenta de maneira mais positiva esse adoecimento.

E isso somente pode se despersonificar a partir do (re) conhecimento sobre esta experiência, informações que venham esclarecer sobre os sintomas, as perdas, as limitações, mas também sobre o tratamento, os novos hábitos, o acompanhamento, as possibilidades de reordenar a vida e lidar com a doença de maneira a garantir a integridade e o “menor sofrimento” possível para o indivíduo atingido. Mesmo que em relação ao câncer ainda hoje existem alguns pontos obscuros, que a ciência tem buscado esclarecer, uma nova realidade se instala para o paciente e para os demais envolvidos a partir do: reconhecer-se doente, dos conhecimentos sobre o sujeito e sua relação com a doença e as particularidades que a ela se remetem.

Os mitos aqui revelados ou outros mais estão presentes porque ainda existe um caminho a ser trilhado, descobertas a serem feitas, tentativas, transformações, e este fazer ecoar a voz ou escutar a mulher com câncer de mama, permeia este caminho, não somente como tentativa, mais ainda como concretude, existência, significado. No discurso de uma, tantas vozes, tantas formações discursivas, mas também tantas incompletudes... Estes são “primeiros passos”, pequenos passos, mas de uma grande questão.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, A. M. de et al. Construindo o significado da recorrência da doença: a experiência de mulheres com câncer de mama. Rev. Latino-Am. Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 9, n. 5, 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid. Acesso em: 07 Mar. 2008.

ÁVILA, L. A. Psicanálise e mitologia grega. In: Pulsional Revista de Psicanálise, anos XIV/XV, n 152/153, 7-18, 2001/2002.

BARROS, D. D. Da submissão feminina à conquista de uma imagem corporal (ir)real. 2001. 163 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) -Escola de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001.

CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. 

CANTINELLI, F. S. et al. A oncopsiquiatria no câncer de mama – considerações a respeito de questões do feminino. Rev. Psiquiatr. Clín., São Paulo, v. 33, n. 3, 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid. Acesso em: 21 jul. 2008.

HASHIGUTTI, S. T. Subjetividade brasileira e aprendizagem de línguas estrangeiras: um estudo discursivo. 2003. 136 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

KUSHNER, R. Por que eu? São Paulo: Summus, 1981.

LE BRETON, D. A sociologia do corpo. Petrópolis/RJ: Vozes, 2006.

LÔBO, R. C. de M. M., SANTOS, N. de O., DOURADO, G. Crenças relacionadas ao processo de adoecimento e cura em mulheres mastectomizadas: um estudo psicanalítico. Psicol. hosp. (São Paulo). [online]. jan. 2006, vol.4, no.1 [citado 10 nov. 2009], p.0-0. Disponível em: World Wide Web: http://pepsic.bvspsi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-74092006000100003&lng=pt&nrm=iso.  Acesso em: 6 set. 2008.

LUCENA, R. de. F. Elias: Solidão e morte. Conexões (UNICAMP), Campinas/Unicamp, v. 1, n. 1, p. 71-78, 2003.

MAIA, S. A. F. “Câncer e morte: o impacto sobre o paciente e a família”. p.24. Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Psiconcologia - Hospital Erasto Gaertner, Curitiba, 2005. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/22/22132/tde-11052005-112949/.  Acesso em: 6 set. 2008.

MARIANI, B. Ética, pesquisa e análise do discurso. In: Rua – Revista do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade da Unicamp. Campinas: Nudecri, n. 10, mar., 2004.

MIRCEA, E. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.

NARDINI, B. Mitologia: o primeiro encontro. São Paulo: Círculo do Livro S.A, 1982.

ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas, SP: Pontes, 2006.

_____________. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2007.

_____________ . Discurso, imaginário social e conhecimento. Em Aberto, Brasília, ano 14, n.61, jan./mar, 1994.

PAYER, M. O. Linguagem e sociedade contemporânea – sujeito, mídia, mercado. In: RuaRevista do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade da Unicamp. Campinas: Nudecri, n. 11, mar., 2005.

PIMENTEL, R. M. L. A inscrição de gestos de interpretação em um “texto-bilhete”: significando (-se) em meio a um processo institucional (izante). In: Rua – Revista do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade da Unicamp. Campinas: Nudecri, n. 11, mar., 2005.

SONTAG, S. Doença como metáfora. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.



[1] Universidade Estadual de Montes Claros / Unimontes/MG

[2] Universidade do Federal de Juiz de Fora / UFJF/MG

[3] A Profa. Dra. Silvia Santiago em Palestra denominada “A Onco-Rede” proferida no Simpósio de Psico-Oncologia: Atuações e Atualidades, que aconteceu nos dias 17 e 18 de maio de 2008, na UNICAMP, construiu uma analogia entre o Mito do Câncer e o Mito do Herói (Hércules), onde o herói seria o paciente de câncer, que busca vencer a doença, como Hércules venceu a Hidra.