https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v29n1p11-38
Vol. 29, n. 1, jan/jun, 2023
ISSN: 2179-6807 (online)
TERRAS DA UNIÃO: A COMUNIDADE QUILOMBOLA BOM JARDIM DA
PRATA E AS DISPUTAS TERRITORIAIS NO VALE MÉDIO DO O
FRANCISCO/MG1
Amaro Sérgio Marques2
Alessandro Borsagli3
Brenda Melo Bernardes4
Resumo: Desde o processo de colonização do Brasil, o Rio São Francisco tem atraído povos
tradicionais, que habitam, sobretudo suas margens, devido às facilidades associadas ao
transporte fluvial, à possibilidade de uso de suas águas para atividades cotidianas e à
fertilidade dos solos situados próximos ao curso d’água para cultivo. Apesar dessa dependência
direta das comunidades tradicionais do Rio São Francisco como fonte de subsistência,
verifica-se, ao longo da história, conflitos entre esses povos e outros grupos sociais que
também têm mostrado interesse em usufruir dos benefícios do rio e da fertilidade de suas
terras, por meio da exploração predatória dos recursos naturais para fins econômicos.
Contudo, tais terras são legalmente pertencentes à União, o que torna ainda mais
problemático os conflitos territoriais existentes. Desse modo, é proposto como objetivo deste
artigo compreender a problemática existente vinculada ao processo de ocupação de terras da
União por grupos sociais distintos e os interesses econômicos existentes. A análise apresentada
tem como recorte de estudo a região do Vale Médio do São Francisco, com ênfase para os
conflitos territoriais vinculados à comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata, situada em
região rural do município de São Francisco.
Palavras-chave: Rio São Francisco. Terras da União. Comunidades tradicionais. Conflitos
territoriais. Quilombolas.
FEDERAL LANDS: THE QUILOMBOLA COMMUNITY BOM JARDIM DA PRATA AND TERRITORIAL
DISPUTES IN THE MIDDLE VALLEY OF O FRANCISCO/MG
Abstract: Since the process of colonization of Brazil, the São Francisco River has attracted
traditional peoples, who mainly inhabit its banks, due to the facilities associated with river
transport, the possibility of using its waters for daily activities and the fertility of the soils
located near the watercourse for cultivation. Despite this direct dependence of the traditional
communities on the São Francisco River as a source of subsistence, throughout history there
4Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-5603-3202.
E-mail: brenda.mbernardes@gmail.com.
3Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). ORCID iD:
https://orcid.org/0000-0001-8789-012X. E-mail: borsagli@gmail.com.
2Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). ORCID iD:
https://orcid.org/0000-0003-4697-3572. E-mail: amarosergiomarques@gmail.com.
1Trabalho realizado com o apoio do grupo de pesquisa em Produção do território e territorialidades, do
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PPGArq/PUC-Rio).
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have been conflicts between these peoples and other social groups that have also shown
interest in enjoying the benefits of the river and the fertility of its lands, through the predatory
exploitation of natural resources for economic purposes. However, these lands legally belong to
the Federal Government, which makes the existing territorial conflicts even more problematic.
Thus, the objective of this article is to understand the existing problems linked to the process of
occupation of federal lands by different social groups and the existing economic interests. The
analysis presented presents the Middle Valley of São Francisco region as a study setting, with
emphasis on the territorial conflicts linked to the quilombola community of Bom Jardim da
Prata, located in the rural region of the municipality of São Francisco, with emphasis on the
territorial conflicts linked to the quilombola community of Bom Jardim da Prata, located in the
rural region of the municipality of São Francisco.
Keywords: São Francisco River. Federal lands. Traditional communities. Territorial conflicts.
Quilombolas.
TIERRAS DE LA UNIÓN: LA COMUNIDAD QUILOMBOLA BOM JARDIM DA PRATA Y DISPUTAS
TERRITORIALES EN EL MEDIO VALLE DE O FRANCISCO/MG
Resumen: Desde el proceso de colonización de Brasil, el río São Francisco ha atraído a los
pueblos tradicionales, que habitan principalmente en sus orillas, debido a las facilidades
asociadas al transporte fluvial, la posibilidad de utilizar sus aguas para las actividades
cotidianas y la fertilidad de los suelos situados cerca del curso de agua para el cultivo. A pesar
de esta dependencia directa de las comunidades tradicionales del río São Francisco como
fuente de subsistencia, a lo largo de la historia se han producido conflictos entre estos pueblos
y otros grupos sociales que también han mostrado interés en disfrutar de los beneficios del río
y de la fertilidad de sus tierras, a través de la explotación depredadora de los recursos naturales
con fines económicos. Sin embargo, estas tierras pertenecen legalmente a la Unión, lo que
hace aún más problemáticos los conflictos territoriales existentes. Así, el objetivo de este
artículo es comprender los problemas existentes vinculados al proceso de ocupación de las
tierras federales por diferentes grupos sociales y a los intereses económicos existentes. El
análisis presenta como recorte de estudio la región del Medio Valle de São Francisco, con
énfasis en los conflictos territoriales vinculados a la comunidad quilombola de Bom Jardim da
Prata, situada en la región rural del municipio de São Francisco.
Palabras-clave: Río São Francisco. Tierras de la Unión. Comunidades tradicionales. Conflictos
territoriales. Quilombolas.
INTRODUÇÃO
O Rio São Francisco, ao longo da história, desempenhou um importante papel
no processo de ocupação das regiões fisiográficas do Alto São Francisco, Médio São
Francisco, Submédio e Baixo São Francisco.
Dentre os grupos sociais que habitavam essas regiões, ganham destaque os
povos tradicionais, como os indígenas, que estavam na região antes mesmo da
chegada dos portugueses ao Brasil, e os povos quilombolas, ribeirinhos, vazanteiros,
entre outros, que utilizavam o rio São Francisco enquanto fonte de sustento para
irrigação, alimentação e como meio de transporte. Também, durante o processo de
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colonização, esses territórios foram habitados por bandeirantes e fazendeiros, que
durante o período das incursões sertanistas, no processo de colonização do Brasil,
adentraram essas regiões em busca de metais preciosos, mão-de-obra e terras férteis
para cultivo e criação de animais (FONSECA, 2011; MARQUES, 2018; PEIXOTO, 2006).
Fato é que as margens do Rio São Francisco sempre foram cobiçadas em função
da sua riqueza natural e em razão de articular porções significativas do território
brasileiro. Apesar da importância desempenhada por esse eixo natural, presencia-se,
ao longo da história e no contexto atual, diversos conflitos territoriais 5entre grupos
sociais como comunidades tradicionais6, fazendeiros, sitiantes, empresas ligadas ao
agronegócio, em razão de configurar uma fonte de subsistência, no caso dos povos
tradicionais, e por interesses econômicos vinculados à exploração de seus recursos
naturais.
No entanto, essas terras, que têm sido reivindicadas por diversos grupos
sociais, são pertencentes à União. Caracterizam-se como áreas que conformam faixas
de proteção ambiental, quando trata-se das suas margens, e também conformam ilhas,
lagoas, veredas que são Áreas de Preservação Permanente (APP), de acordo com o
Código Florestal (Lei 12.651, de 25 de Maio de 2012). Desse modo, além da questão
relativa ao direito de uso e posse dessas terras, que são de interesse coletivo, existe
também a problemática associada ao uso indiscriminado de seus recursos naturais
caça e pesca predatória, extração de matéria-prima, queimadas, etc.
Ressalta-se que, no caso específico das comunidades tradicionais, esses
recursos naturais são utilizados de forma racional, voltados para a subsistência, além
de contribuírem para conservação ecológica dessas áreas por meio das suas práticas
tradicionais. Desse modo, a permanência das comunidades tradicionais em áreas de
interesse de proteção ambiental pode ser benéfica, ao contrário do uso indiscriminado
desses recursos naturais por outros grupos sociais que visam essencialmente a
lucratividade.
6As comunidades ou povos tradicionais são grupos que apresentam cultura distinta da predominante na
sociedade e que se reconhecem como portadores desses modos singulares de viver, possuindo formas
específicas de organização social (BRASIL, 2007).
5Os conflitos territoriais caracterizam-se como disputas que ocorrem em campo por indivíduos ou
grupos sociais que manifestam interesses divergentes sobre o uso e apropriação do território. Desse
modo, os conflitos resultam das tentativas de poder e dominação do território em diferentes contextos
sociais e conforme particularidades da formação territorial de cada período da história (BALTAZAR, 2007;
DANTAS, 2021).
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Dentre as comunidades tradicionais que ocupam as margens do Rio São
Francisco destaca-se a Comunidade Quilombola Bom Jardim da Prata, que se encontra
na região do Médio São Francisco, em área rural da cidade de São Francisco, sendo
foco de estudo deste artigo. Essa comunidade tradicional, assim como outras
comunidades que habitam o Norte de Minas, tem lidado com tentativas de remoção e
conflitos, inclusive armados, diante dos interesses existentes de posse territorial por
grupos dominantes (MEDEIROS, 2021; SILVEIRA, 2014; ZANGELMI, 2022).
Assim, define-se como objetivo geral deste artigo compreender a problemática
vinculada ao processo de ocupação de terras da União por grupos sociais distintos e os
interesses econômicos existentes no vale médio do Rio São Francisco.
Sobre os métodos de pesquisa, as reflexões apresentadas derivam de estudos
conduzidos pelos pesquisadores em várias frentes. Inicialmente, destacam-se as
contribuições oriundas de participação em Grupo de Pesquisa sobre Espaços Rurais e
Povos Tradicionais, da Faculdade Santo Agostinho - Montes Claros/MG, entre os anos
de 2015 e 2018. Além disso, as análises apresentadas se fundamentam nos resultados
da tese de doutoramento desenvolvida por Amaro Sérgio Marques pela Escola de
Arquitetura da UFMG, defendida em 2018 e de discussões promovidas no grupo de
pesquisa sobre Território e Territorialidades, na PUC Rio.
Importante ressaltar que a pesquisa de campo apoia-se na metodologia
etnográfica, por meio da imersão do pesquisador Amaro Sérgio Marques no Quilombo
Bom Jardim da Prata, situado na zona rural do município de São Francisco, durante os
anos de 2015 a 2018. Desse modo, durante esse período foram realizadas diversas
visitas de campo nos finais de semana, bem como, estadia do pesquisador na
comunidade quilombola durante o período de aproximadamente 2 meses. Além disso,
a análise apresentada no artigo é apoiada em pesquisas bibliográficas realizadas, de
modo geral, sobre comunidades tradicionais no Norte de Minas e sobre uso e gestão
dos bens da União.
Na estrutura do artigo é definido além da introdução e considerações finais,
outras duas seções que tratam, respectivamente, sobre o histórico do Rio São
Francisco, suas margens e o conceito de terras de marinha e da União e sobre a
comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata e o uso das ilhas do São Francisco.
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O RIO SÃO FRANCISCO, SUAS MARGENS E O CONCEITO DE TERRAS DE MARINHA E DA
UNIÃO
A bacia hidrográfica do rio São Francisco, de acordo com Hermuche (2002) tem
como área total cerca de 636.099,73 km², onde se distribuem 508 municípios nos
estados de Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Sergipe, Alagoas e o Distrito
Federal, inseridos nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil.
O curso principal do rio São Francisco tem extensão de 2.814 km, situando-se
entre as cabeceiras, no município de São Roque de Minas - MG (Nascente Histórica), e
se encontra dividido em quatro regiões fisiográficas (HERMUCHE, 2002): Alto São
Francisco, Médio São Francisco, Submédio e Baixo São Francisco.
O Médio São Francisco, região na qual se insere o objeto de análise do artigo,
inicia-se no município de Pirapora-MG e termina no município de Remanso-BA, trecho
correspondente a cerca de 1.250 km do curso total do rio, navegável em toda sua
extensão.
Nesse contexto, a porção da bacia correspondente ao médio rio São Francisco
possui grande importância para a ocupação do território mineiro, uma vez que as
primeiras incursões com finalidades de povoamento do território ocorrem no seu eixo
no sentido sul, a partir das bandeiras que partiram do Recôncavo Baiano, na segunda
metade do século XVII, e da expansão pastoril realizada pelos baianos, que adentraram
o território do médio São Francisco após as incursões bandeirantes (MOREIRA, 2010).
As margens do curso d’água, ao longo da história, foram ocupadas por
inúmeros povos nativos, que ali encontraram condicionantes positivas para o
estabelecimento de assentamentos, provisórios e permanentes. Ressalta-se ainda que
as expedições bandeirantes contribuíram para a formação dos núcleos urbanos atuais e
que, juntamente com os povos tradicionais, em maior ou menor intensidade,
influenciaram nos impactos na estrutura do curso d’água e na sua relação com a
paisagem circundante (IEPHA, 2015).
Com a ocupação e o povoamento das margens do rio São Francisco, iniciados
na segunda metade do século XVII, originaram-se inúmeros povoados às margens do
São Francisco como os povoados de Morrinhos (Matias Cardoso), Brejo do Salgado
(Januária), São Romão e Pedras dos Angicos (São Francisco), fundados entre o último
quartel do século XVII e o primeiro quartel do século XVIII, além dos núcleos
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populacionais ligados à pesca, agricultura e pecuária, atividades praticadas pelo
menos três séculos pelas populações que habitam as terras próximas ao rio São
Francisco em sua porção média.
Nesse sentido, observa-se que foi a partir das margens do São Francisco que os
povos tradicionais se estabeleceram, caracterizando formas específicas de organização
social e modos de vida que utilizam do ambiente biofísico para “[...] reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica” (BRASIL, 2007). Destacam-se, nesse
contexto, os povos vazanteiros7e os quilombolas8(Figura 1), este último objeto de
análise do presente artigo. Tais condições são parte de uma realidade ecossistêmica
dinâmica e, ao mesmo tempo, complexa, uma vez que o curso d’água atravessa uma
vasta extensão semiárida e historicamente ocupada através da expansão pastoril
realizada pelos baianos, que adentraram o território do médio São Francisco.
8As comunidades quilombolas são aquelas constituídas por descendentes de quilombos, que
compartilham da identidade étnica negra e se inserem em processos de reivindicação de terras, em
contextos diversos que se relacionam com o legado cultural que carregam (SCHMITT; TURATTI;
CARVALHO, 2002).
7As comunidades vazanteiras apresentam formação cultural rica que tem raízes vinculadas aos
indígenas, negros e ribeirinhos que se estabeleceram em áreas adjacentes a rios, onde exercem a prática
da agricultura de vazantes, conforme as dinâmicas de cheias fluviais (PEREIRA et al.,2016).
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