https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v29n1p39-63
Vol. 29, n. 1, jan/jun, 2023
ISSN: 2179-6807 (online)
OS DESAFIOS DA PARTICIPAÇÃO NO ÂMBITO DO SISTEMA NACIONAL DE
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO: ESTUDO DE CASO SOBRE O CONSELHO DA
RESERVA BIOLÓGICA DO GURUPI, MARANHÃO, BRASIL1
Laís Gonçalves de Souza2
Resumo: O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza prevê a criação de
conselhos gestores para auxiliar na gestão das áreas protegidas. Apesar dessa garantia legal,
isso não assegura que na prática haja uma participação efetiva da população. Assim, o objetivo
deste artigo é discutir sobre o processo de constituição e funcionamento desses espaços,
mediante o estudo de caso do conselho da Reserva Biológica do Gurupi, Maranhão, Brasil. Para
tanto, analisamos as atas das reuniões desse conselho, realizadas entre 2012 e 2017. Os
resultados dessa análise demonstram que após a criação do conselho as discussões acerca da
reserva, antes restritas ao âmbito institucional, foram ampliadas. Todavia, constatamos que as
diretrizes que regem o conselho, assim como as disputas que se estabelecem nesse espaço,
impõem diversos limites à participação da população nos processos decisórios envolvendo seu
funcionamento e atuação. A partir do exposto, concluímos que são necessárias mudanças para
tornar o espaço do conselho mais participativo e democrático.
Palavras-chave: Conselhos. Participação. Unidades de Conservação. Meio ambiente. Amazônia.
THE CHALLENGES OF PARTICIPATION WITHIN THE NATIONAL SYSTEM OF CONSERVATION UNITS:
A CASE STUDY ON THE COUNCIL OF GURUPI BIOLOGICAL RESERVE, MARANHÃO, BRAZIL
Abstract: The National System of Nature Conservation Units provides for the creation of
councils to assist in the management of protected areas. Despite this legal guarantee, it does
not ensure effective participation of the population in practice. Therefore, the objective of this
article is to discuss the process of establishment and functioning of these spaces, through the
case study of the council of Gurupi Biological Reserve, Maranhão, Brazil. To do so, we analyzed
the minutes of the meetings of this council, held between 2012 and 2017. The results of this
analysis demonstrate that after the creation of the council, discussions about the reserve,
previously limited to the institutional sphere, were expanded. However, we found that the
guidelines governing the council, as well as the disputes that arise within this space, impose
various limits on the participation of the population in the decision-making processes regarding
its functioning and performance. Based on the above, we conclude that changes are necessary
to make the council space more participatory and democratic.
Keywords: Councils. Participation. Conservation Units. Environment. Amazon.
2Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). ORCID iD:
https://orcid.org/0000-0001-6316-6014. E-mail: lais.gsouza@usp.br.
1Esta pesquisa foi apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico do Maranhão (FAPEMA) Processo BM 05487/15.
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LOS DESAFÍOS DE LA PARTICIPACIÓN EN EL ÁMBITO DEL SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE
CONSERVACIÓN: ESTUDIO DE CASO SOBRE EL CONSEJO DE LA RESERVA BIOLÓGICA DE GURUPI,
MARANHÃO, BRASIL
Resumen: El Sistema Nacional de Unidades de Conservación de la Naturaleza prevé la creación
de consejos gestores para ayudar en la gestión de las áreas protegidas. A pesar de esta garantía
legal, esto no asegura que en la práctica haya una participación efectiva de la población. Por lo
tanto, el objetivo de este artículo es discutir el proceso de constitución y funcionamiento de
estos espacios, a través del estudio de caso del consejo de la Reserva Biológica de Gurupi,
Maranhão, Brasil. Para ello, analizamos las actas de las reuniones de este consejo, realizadas
entre 2012 y 2017. Los resultados de este análisis demuestran que después de la creación del
consejo, las discusiones acerca de la reserva, antes restringidas al ámbito institucional, se
ampliaron. Sin embargo, constatamos que las directrices que rigen el consejo, así como las
disputas que se establecen en este espacio, imponen diversos límites a la participación de la
población en los procesos decisorios que involucran su funcionamiento y actuación. A partir de
lo expuesto, concluimos que se requieren cambios para hacer el espacio del consejo más
participativo y democrático.
Palabras-clave: Consejos. Participación. Unidades de Conservación. Medio ambiente.
Amazonía.
INTRODUÇÃO
A mobilização de vários grupos sociais durante a Assembleia Nacional
Constituinte ampliou o debate em torno do direito à participação e levou à
incorporação de diferentes mecanismos participativos na Constituição Federal de 1988.
Desde então, observa-se um movimento crescente de institucionalização da
participação no âmbito das políticas públicas no Brasil (NOVAES, 2012). O Sistema
Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), instituído pela Lei 9.985, de 18 de
julho de 2000, contempla essa característica na medida em que estabelece a criação de
conselhos, formados por representantes do poder público e da sociedade civil, para
auxiliar na gestão das áreas protegidas, denominadas Unidades de Conservação (UCs),
em todo território nacional (BRASIL, 2000).
O poder de influência dos conselhos gestores nos processos decisórios
envolvendo a gestão das UCs depende da categoria à qual elas pertencem. Nas áreas
de proteção integral, a função deles é consultiva, enquanto nas de uso sustentável,
deliberativa. A principal diferença entre esses dois tipos de UCs é quanto à finalidade:
as primeiras buscam preservar os recursos naturais, proibindo seu uso direto; e as
segundas conservá-los, por meio do uso sustentável (BRASIL, 2000). Essa forma de
classificação decorre de pontos de vistas completamente distintos acerca da noção de
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preservação ambiental, especialmente, no que diz respeito à participação dos agentes
sociais nesse processo.
Embora o SNUC tenha sido aprovado nos anos 2000, a concepção de área
protegida provém do final do século XIX, quando os Estados Unidos criaram o primeiro
parque nacional, Yellowstone (1872), com o objetivo de proteger a vida selvagem dos
avanços da sociedade urbano-industrial. No Brasil, essa noção foi introduzida na
legislação no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1937), com a publicação do
Código Florestal de 1934. Essas primeiras iniciativas partiam da ideia conservacionista
de que a única forma de proteger o meio ambiente seria proibindo a intervenção
humana. Entretanto, com o passar dos anos, esse paradigma em torno da preservação
ambiental foi se modificando, assim como a conceituação de área protegida
(BARRETO-FILHO, 1997).
De acordo com Lopes (2004), a preservação ambiental começou a configurar-se
como uma questão global”, a partir das repercussões da conferência sobre o meio
ambiente promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em Estocolmo em
1972. À época o governo brasileiro, sob o comando dos militares, mostrou-se contrário
às proposições apresentadas no evento, sob a justificativa de que elas poderiam
prejudicar o processo de industrialização que estava em curso no país. Apesar disso,
nos anos seguintes houve a criação de uma série de instituições de controle ambiental
no âmbito federal, estadual e municipal. Essas iniciativas decorreram, não das
demandas nessa área, como também da possibilidade de conseguir chancela
institucional para captar financiamentos internacionais.
Essa lógica também refletiu no aumento da quantidade de áreas protegidas no
Brasil. Segundo Barretto-Filho (1997), entre as décadas de 1970 e 1980, foram criadas
várias UCs no país, principalmente na Amazônia. Esse período, no entanto, coincide
com a expansão das fronteiras agrícolas sobre esse bioma e a implantação de políticas
de integração e desenvolvimento nacional. Por isso, na prática essas estratégias de
preservação adotadas pelo governo brasileiro foram praticamente anódinas, tanto que
os anos 80 ficaram conhecidos como a década da destruição” da Floresta Amazônica,
uma vez que as mesmas políticas que estabeleceram áreas protegidas contribuíram
para acelerar o desmatamento dessa região.
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A maior parte das UCs criadas nessa época na Amazônia foi de proteção
integral, como parques e reservas biológicas (BARRETTO-FILHO, 1997). A principal
característica dessas áreas é a proibição do uso direto dos recursos naturais, com
exceção de atividades de caráter educativo, recreativo ou científico (BRASIL, 1965).
Essa concepção, no entanto, desconsidera a presença dos agentes sociais nesses locais,
como se a Amazônia fosse um espaço vazio”, conforme adverte Almeida (2008).
Segundo esse autor, os programas e projetos desenvolvimentistas implantados nessa
região contrariam as representações do espaço social e as territorialidades específicas
das diferentes comunidades e etnias que vivem, provocando a emergência e o
acirramento de conflitos sociais.
Em relação a essa situação, Diegues (2008) também argumenta que os povos
indígenas e outros grupos tradicionais que vivem nas florestas tropicais, como a
Amazônia, desenvolveram formas de apropriação comunal dos espaços e dos recursos
naturais, além de um vasto conhecimento sobre esses ecossistemas. Mediante isso,
eles criaram formas específicas de manejo da fauna e da flora, as quais têm
contribuído para proteger, conservar e potencializar a diversidade biológica nessas
áreas. Por isso, os territórios ocupados por essas populações tradicionais várias
gerações mantêm-se mais preservados que o seu entorno.
Segundo Diegues (2008), o debate sobre as áreas de proteção integral adquiriu
novos contornos no princípio da década de 1980, com a emergência da preservação da
biodiversidade como uma questão estratégica mundial, dentro do conjunto de
propostas elaborado pela International Union for Conservation of Nature (IUCN). Nesse
documento, começou a ganhar destaque a importância do conhecimento das
populações locais para a manutenção da biodiversidade das espécies e dos
ecossistemas. Essa ideia se consolidará mais adiante na Convenção sobre Diversidade
Biológica e na Agenda 21, ambas lançadas durante a Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também conhecida como ECO-92,
realizada na cidade do Rio de Janeiro em 1992 (BRASIL, 1998; ONU, 1992).
Foi nesse contexto, logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e
a realização da ECO-92, que começou a ser delineado o SNUC (Projeto de Lei
2892/1992). Embora os debates e a mobilização dos povos e comunidades tradicionais
tenham influenciado na redação final da Lei 9.985/2000, com a regulamentação das
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UCs de uso sustentável, como as Reservas Extrativistas (RESEX), as categorias de
proteção integral foram mantidas, a despeito da importância desses agentes sociais
para a preservação da biodiversidade e dos problemas gerados por esse tipo de área
protegida (LEVIS et al., 2018; DIEGUES, 2008).
Em relação à participação popular também se observa algumas contradições no
SNUC, porque ao mesmo tempo em que ele visa assegurá-la, por meio da criação de
órgãos colegiados, delimita a forma como ela deve acontecer, mantendo-a sob o
controle do órgão gestor da unidade e restringindo sua capacidade de intervenção nas
áreas de proteção integral. Com isso, uma questão que se impõe é: será que na prática
esses espaços de participação instituídos legalmente são capazes de acolher os
diferentes pontos de vista e fomentar o debate público? A partir desta indagação, o
presente artigo pretende discutir acerca do processo de constituição e funcionamento
do conselho gestor de uma UC de uso indireto da Amazônia.
MÉTODO
Para alcançar o objetivo proposto realizamos um estudo de caso sobre o
conselho da Reserva Biológica do Gurupi (REBIO Gurupi), uma UC de proteção integral
da Amazônia, localizada no oeste maranhense. A referida reserva, junto com as Terras
Indígenas (TIs) Arariboia, Alto Turiaçu, Awá, Caru e Rio Pindaré, concentram as
principais áreas de floresta nativa da Amazônia nesse estado, que nas últimas décadas
perdeu cerca de 70% da sua cobertura original, em razão da extração ilegal de madeira,
das queimadas e da conversão das florestas em pastagens (CELENTANO et al., 2017).
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Figura 1 Mapa da REBIO Gurupi
O método do estudo de caso foi escolhido porque ele permite, não , uma
compreensão pormenorizada da situação empírica analisada, como também apurar ou
corroborar hipóteses e orientar estudos posteriores. Além disso, trata-se de um “meio
de organizar os dados sociais preservando o caráter unitário do objeto de análise”
(GOODE; HATT, 1979 apud CHIZZOTI, 2006, p. 136).
A principal técnica utilizada para a coleta de dados foi a pesquisa documental,
que consiste na análise de fontes primárias relacionadas ao objeto de estudo
(LAKATOS; MARCONI, 2003). O conjunto de documentos analisados foi constituído por
atas das reuniões do conselho da REBIO Gurupi, realizadas entre 2012 e 2017. Todos
esses materiais foram adquiridos junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da
Biodiversidade (ICMBio), órgão ambiental responsável pela gestão da referida UC,
mediante a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011).
As atas foram analisadas consoante a metodologia de análise documental
proposta por Cellard (2012), a qual envolveu duas etapas. Na primeira, realizamos uma
análise preliminar dos documentos selecionados, verificando os seguintes aspectos: (1)
procedência e autenticidade; (2) contexto de produção; (3) autoria; (4) natureza; e (5)
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conceitos-chave e lógica interna. Na segunda, procedemos à análise propriamente dita
dos materiais, cuja finalidade não foi catalogar as informações encontradas, mas
estabelecer correlações entre elas e o problema de pesquisa apresentado.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ao todo foram analisadas 15 (quinze) atas, as quais abrangem o período de
criação do conselho da REBIO Gurupi e os primeiros anos de funcionamento. Além de
constituírem o registro oficial das reuniões realizadas nesse espaço, elas também
obedecem a um gênero textual específico, que orienta o modo como as informações
devem ser redigidas e organizadas, bem como quais devem constar ou não nos
registros. No caso das atas aqui analisadas, elas atendem pelo ou menos a dois fins:
registrar a memória das reuniões do conselho e comprovar o cumprimento das
exigências feitas pelo SNUC, funcionando, assim, como uma ferramenta de controle
institucional.
A atas do conselho da REBIO Gurupi geralmente são elaboradas no decorrer da
plenária e validadas pelos conselheiros presentes no encontro seguinte. Embora não
seja regra, todas foram redigidas por representantes do ICMBio, órgão que também é
responsável por guardar esses documentos. A permanência da relatoria nas mãos dos
mesmos agentes sociais faz com que a maneira deles narrarem os fatos prevaleça
sobre as demais narrativas. Por isso, o que se tem não é um registro plural das
reuniões, mas um registro construído sob o ponto de vista de um determinado
segmento do conselho.
Ocupamo-nos de descrever as condições em que as atas foram redigidas,
porque isso permite compreendermos seus enunciados dentro do contexto em que
eles foram produzidos, além dos limites da nossa própria análise. Isto é, a natureza
desse tipo de dado acaba delimitando o alcance das nossas explicações, de modo que a
partir deles não é possível inferir questões relativas à percepção dos conselheiros, por
exemplo. A respeito disso, Cellard (2012, p. 296) adverte que embora tagarela, o
documento permanece surdo, e o pesquisador não pode dele exigir precisões
suplementares”.
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Conquanto as atas analisadas refiram-se exclusivamente às reuniões do
conselho da REBIO Gurupi, é impossível compreendê-las isoladamente, sem considerar
as dinâmicas que se estabelecem no território onde hoje se encontra a reserva e as
políticas ambientais envolvendo as áreas protegidas na Amazônia. Por isso, buscamos
correlacionar os dados contidos nelas com outros documentos e produções científicas
que dizem respeito a esse contexto mais amplo, mas que mantém estreita relação com
o objeto de estudo.
Por isso, a discussão dos resultados desta pesquisa foi organizada em três
tópicos: o primeiro sobre a composição e o funcionamento do conselho da REBIO
Gurupi; o segundo sobre os conflitos existentes na área da reserva; e o terceiro sobre
as agroestratégias empregadas na tentativa de incorporar as terras dela ao mercado de
commodities. Embora esses dois últimos discorram acerca de ações que se desenrolam
fora do conselho, elas afetam diretamente a participação dos agentes sociais nesse
espaço.
A participação aqui é compreendida como o exercício político do dissenso
descrito por Rancière (1996), cujo princípio fundamental é o reconhecimento de uma
igualdade primeira entre os sujeitos falantes, possível somente quando se suspende
qualquer tipo de critério que estabeleça a hierarquia de um grupo (ou indivíduo) sobre
outro. Tal forma de participação implica a existência de um espaço plenamente
democrático, onde não haja o silenciamento das vozes dissonantes da ordem vigente.
COMPOSIÇÃO E FUNCIONAMENTO DO CONSELHO DA REBIO GURUPI
O conselho da REBIO Gurupi chama-se oficialmente Conselho Consultivo Zé dos
Santos da REBIO Gurupi, em homenagem ao conselheiro Raimundo dos Santos
Rodrigues, assassinado em 2015. A criação desse espaço ocorreu em 2013, com a
publicação da Portaria do ICMBio 190, de 17 de maio de 2013. Ou seja, mais de duas
décadas após a criação da reserva, que aconteceu em 1988, com a edição do Decreto
95.614, de 12 de janeiro de 1988. Embora o conselho seja de caráter consultivo, por
referir-se a uma UC de proteção integral, foi o primeiro espaço aberto à participação
popular, antes dele todos os processos envolvendo a unidade eram decididos no
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âmbito da administração pública, sem qualquer tipo de diálogo com as pessoas que
viviam e/ou faziam uso da área.
Por outro lado, a criação do conselho da REBIO Gurupi não decorreu de
mobilizações sociais, mas de uma exigência do SNUC. Foi, portanto, uma demanda
estabelecida de cima para baixo, sem que houvesse qualquer tipo de articulação da
população para a construção desse espaço. Essa maneira de impor institucionalmente
mecanismos participativos, alheios às necessidades e às formas de organização dos
grupos locais, nem sempre é produtiva. Os estudos de Lopes (2006) sobre essa questão
têm demonstrado que
a eficácia de conselhos locais de meio ambiente e de programas de Agenda
21 locais geralmente depende da experiência da participação política da
população, de sua história de mobilização, desde formas comunitárias
originárias de igrejas, de associações de bairro, de participação sindical
(LOPES, 2006, p. 53).
Quando o conselho da REBIO Gurupi foi criado não havia uma diretriz específica
para regular a distribuição dos assentos, salvo a indicação de que eles deveriam ser
ocupados por representantes de instituições públicas, organizações da sociedade civil e
pessoas residentes na área. A composição inicial continha 27 assentos, distribuídos
paritariamente entre o poder público e a sociedade civil, conforme descrito a seguir.
QUADRO 1 - Composição inicial do Conselho da REBIO Gurupi
Poder público
Sociedade civil
ICMBio (presidente)
Associação de Pequenos Produtores Rurais de
Nova Esperança
Batalhão de Polícia Ambiental do Maranhão
Associação de Pequenos Produtores Rurais Vila São
Francisco Rio da Onça
Câmara Municipal de Vereadores do Centro
Novo do Maranhão
Associação de Produtores Rurais e Moradores do
Aeroporto
Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
Associação dos Moradores e Produtores Rurais São
Pedro Açudinho da Vila Souselândia
Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)
Associação dos Pequenos Agricultores Quilombo
dos Palmares da Vila Bom Jesus
Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Maranhão (IFMA/Açailândia)
Associação dos Pequenos e Médios Produtores
Rurais de Guarantan do Norte/MA
Instituto de Colonização e Terras do Maranhão
(ITERMA)
Associação dos Pequenos Trabalhadores
Produtores Rurais do Rio da Onça II
Museu Emilio Goeldi (MPEG)
Associação dos Produtores Rurais do Vale do
Gurupi (APROVALE)
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Prefeitura Municipal de Bom Jardim
Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos
Carmen Bascarán (CDVDH/CB)
Prefeitura Municipal de Centro Novo do
Maranhão
CKBV Florestal (Grupo CIKEL)
Prefeitura Municipal de Paragominas
Companhia Siderúrgica Vale do Pindaré Queiroz
Galvão Siderurgia
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e
Recursos Naturais do Maranhão (SEMA)
Fórum de Políticas Públicas de Buriticupu/MA
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA)
Viena Siderúrgica S/A
Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
----------
Fonte: Portaria do ICMBio 190, de 17 de maio de 2013.
Apesar da REBIO Gurupi estar localizada em um território historicamente
ocupado pelos povos Awá-Guajá, Ka’apor e Tenetehara (RIBEIRO, 1996; BALÉE, 1994;
WAGLEY; GALVÃO, 1948) e dos seus limites fazerem divisa com as TIs Alto Turiaçu, Awá
e Caru, constatamos que na época deste estudo não havia nenhuma representação
indígena no conselho, apenas de mediadores, como a FUNAI e, depois, o Conselho
Indigenista Missionário (CIMI). Segundo Almeida (2013b), a tentativa de usurpação das
representações políticas dos povos e comunidades tradicionais por instâncias
mediadoras é um problema recorrente e, em muitos casos, elas colocam-se como
porta-vozes desses agentes sociais ou tentam instituir novas formas de tutela sobre
eles.
Todavia, identificamos que o ICMBio, na condição de órgão gestor da REBIO
Gurupi, estava buscando estreitar o diálogo com os povos indígenas da região, por
meio do desenvolvimento de um projeto conjunto no âmbito do Programa de Áreas
Protegidas da Amazônia (ARPA)3, e inclui-los no conselho, em razão do seu interesse
em integrar as ações de proteção da reserva às das TIs, a partir da criação do “Mosaico
do Gurupi, que é um modelo de gestão previsto pelo SNUC para gerir, de maneira
participativa e integrada, um conjunto de áreas protegidas de categorias distintas,
visando à compatibilização da presença humana com a biodiversidade local, à
valorização da sociodiversidade e ao desenvolvimento sustenvel (BRASIL, 2002;
2000).
3Entre 2014 e 2016, o ICMBio, em parceria com a FUNAI, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE), MPEG, Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Universidade de Brasília (UnB) e
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), desenvolveu o projeto “Gestão Territorial do Mosaico
REBIO Gurupi e Terras Indígenas”, cujo objetivo era fortalecer a proteção da REBIO e das TIs Awá, Caru e
Alto Turiaçu, por meio de ações de fiscalização, pesquisas e integração com os povos indígenas da região
(BRASIL, 2018).
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Embora a proposta de criação do mosaico do Gurupi vise alcançar objetivos
aparentemente comuns, ela busca conciliar abordagens antagônicas sobre a
preservação ambiental. Ao analisar tentativas de gestão semelhantes na Austrália,
Muller (2003) constatou que a suposição imediata de que a agenda ambiental
conservacionista do governo coincide com a dos povos tradicionais, reproduz a
abordagem paternalista do modelo de Yellowstone, que, além de impedir a plena
participação desses povos na gestão dos territórios, também possui um viés
colonialista, na medida em que os inclui na categoria “natureza selvagem”. Por isso, os
povos aborígenes da Austrália têm buscado alternativas para descolonizar as áreas
protegidas, com a criação de Indigenous Protected Area (IPA), a partir da declaração
voluntária deles, não da designação arbitrária do Estado.
A despeito dessas questões, durante o período analisado a quantidade de
membros do conselho manteve-se igual à da primeira composição, com algumas
alterações: a empresa CKBV Florestal e a Prefeitura de Paragominas foram desligadas,
por não enviarem representantes por três reuniões consecutivas, e o Programa de
Pós-Graduação em Cartografia Social e Política da Amazônia (PPGCSPA), o CIMI e a
Associação de Produtores Rurais da Vila Bom Jardim passaram a compor o conselho.
Estes dois últimos do lado da sociedade civil, igualando o número de representantes
dela ao do poder público.
Ainda que seja paritária, essa forma de distribuição dos assentos no conselho
não necessariamente garante uma representação equilibrada dos diferentes
segmentos sociais, pois eles podem se articular para ocupar mais vagas,
especialmente, no plano da sociedade civil, que abrange grupos e organizações
completamente antagônicos, que representam os interesses das indústrias
siderúrgicas, do agronegócio e dos moradores da reserva (pequenos agricultores).
Para evitar essas distorções e atender à Instrução Normativa do ICMBIO 09,
de 05 de dezembro de 2014, publicada em âmbito nacional, o conselho da REBIO
Gurupi criou um Grupo de Trabalho (GT) para discutir a renovação dos seus assentos,
porém, não aprovou nenhuma mudança dentro do período analisado. Embora
mantenha a distribuição paritária dos assentos, o referido ato normativo determina a
organização deles em setores proporcionais e representativos das especificidades
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locais, com objetivo de tentar equilibrar o jogo de forças que se estabelece dentro dos
conselhos das UCs em todo o Brasil.
O modo de funcionamento desses conselhos das UCs pode ser compreendido à
luz do conceito de campo político de Bourdieu (1989). Para esse autor, todo campo
político é um campo de forças e um campo de lutas, no qual os agentes sociais buscam
manter ou transformar as relações de força vigentes. São essas dinâmicas que
conferem a estrutura do campo ao longo do tempo. Assim, para se ter uma ideia mais
próxima do que é um conselho, não basta analisar os seus membros, mas as relações
que eles estabelecem entre si em determinado contexto.
Mediante a leitura das atas, elaborou-se um quadro síntese com as principais
informações contidas em cada uma delas. Optamos por dispor os dados desse modo
porque ele permite observar a periodicidade das reuniões, as pautas mais frequentes e
o momento em que determinados temas aparecem e outros somem das discussões.
QUADRO 2 - Síntese das reuniões do conselho da REBIO Gurupi
Data
Principais temas discutidos na plenária
30/11/2012
Composição inicial do conselho
12/07/2013
Posse dos conselheiros / papel do conselho / situação das estradas na reserva / ações
em curso contra a REBIO Gurupi.
18/10/2013
Registro das reuniões do conselho / situação das estradas na reserva / violências e
abusos nas ações de fiscalização / mobilizações contra a REBIO Gurupi.
18/11/2013
GT acordos de convivência” / diagnóstico sobre a situação fundiária e dos moradores
da reserva / registro das reuniões do conselho/classificação e limites da REBIO Gurupi.
28/01/2014
GT “acordos de convivência” / situação das estradas na reserva / desintrusão da TI
Awá / capacitação dos conselheiros / ações do ICMBio / presença do Deputado
Federal Weverton Rocha (PDT/MA) / situação fundiária da reserva /criação de novos
assentos / ameaças aos conselheiros.
28/04/2014
Assentos do conselho / situação das estradas na reserva / regularização fundiária
29/07/2014
Assentos do conselho / capacitação dos conselheiros / instalação de placas de
sinalização dos limites da REBIO Gurupi / Programa de Áreas Protegidas da Amazônia
(ARPA).
29/10/2014
Capacitação dos conselheiros / assentos do conselho / problemas na indicação dos
conselheiros / termos utilizados nas reuniões / GT acordos de convivência”.
14/04/2015
Capacitação dos conselheiros / assentos do conselho / ões do GT acordos de
convivência” / educação ambiental / diagnóstico fundiário / práticas agrícolas e
construção de escolas na REBIO
10/09/2015
Assassinato do conselheiro dos Santos / mudança do nome do conselho / proteção
e segurança dos conselheiros / situação das famílias de Rio da Onça II / atuação da
SEMA / conflitos na área da REBIO Gurupi / Mosaico do Gurupi / produção de
materiais científicos sobre a REBIO.
26/04/2016
Educação ambiental / diagnóstico sobre a situação fundiária e dos moradores da
reserva / assassinato do Sr. dos Santos / registro das reuniões / segurança dos
conselheiros / ações do ICMBio / incêndios / plano de recuperação ambiental.
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28/07/2016
Atuação da SEMA / manejo florestal do entorno da reserva / segurança dos
conselheiros / situação das famílias de Rio da Onça II / Mosaico do Gurupi / ações de
proteção territorial na TI Caru / reativação do GT acordos de convivência” / produção
de materiais científicos sobre a REBIO.
28/10/2016
Renovação dos assentos do conselho / situação das famílias de Rio da Onça II /
Mosaico do Gurupi / produção de materiais de divulgação sobre a REBIO e o conselho
/ Programa de monitoramento da biodiversidade.
30/03/2017
Segurança dos conselheiros / Mosaico do Gurupi / situação das famílias de Rio da
Onça II / plano de recuperação ambiental / renovação dos assentos do conselho /
produção de materiais de divulgação sobre a REBIO e o conselho.
09/08/2017
Situação do PE SANBRA / renovação dos assentos do conselho / segurança dos
conselheiros / GT “regularização fundiária” / diagnóstico dos moradores da reserva.
Fonte: elaborado pela autora.
No regimento interno do conselho estava previsto a realização de reuniões
trimestrais (ICMBIO, 2013), mas observa-se que na prática não foi mantida essa
periodicidade, sendo realizadas em média três por ano. Todas aconteceram na cidade
de Açailândia, que fica a cerca de 200 Km da REBIO Gurupi. Embora o ICMBio
garantisse o transporte dos conselheiros, a distância dificultava a participação de
outras pessoas que moravam próximas ou dentro da reserva, deixando-as à parte das
discussões. Essa dinâmica privilegiava apenas a participação dos membros oficiais,
desconsiderando a importância da ampliação do debate para além do espaço
institucional.
De acordo com Lopes (2006), as propostas políticas democráticas nem sempre
conseguem lidar com as demandas da população. Por isso, às vezes elas acabam
propondo instrumentos ou formas de participação preconcebidas, que não encontram
respaldo nas práticas locais. Segundo ele, isso ocorre porque elas estão mais
comprometidas com o cumprimento das exigências e metas institucionais do que com
a promoção de uma participação social efetiva nos espaços públicos de debate.
Também constatamos que a assiduidade dos conselheiros era relativamente
baixa, de modo que a maior parte das reuniões ocorria com quórum próximo do
mínimo (metade dos assentos mais um). Além disso, a rotatividade dos conselheiros
era alta, tanto dos que representavam a sociedade civil quanto o poder público. Por
isso, em todas as reuniões houve posse, substituição ou desligamento de um ou mais
conselheiros. Esse tipo de situação acaba comprometendo o andamento das ações,
especialmente às desenvolvidas pelos GTs, que são formados por um número menor
de participantes para discutir questões específicas. Por isso, dos três que foram
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Revista Desenvolvimento Social, vol. 29, n. 1, jan/jun, 2023
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propostos, apenas o GT acordos de convivência” funcionou por um breve período de
tempo, mas acabou encerrando suas atividades devido à saída dos integrantes.
Outro obstáculo à participação nesse espaço são as restrições impostas pela
maioria da plenária à abordagem de temas que questionem os dispositivos
jurídico-administrativos relativos à reserva. Ao impor isso, o conselho perde sua
potencialidade