https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v28n2p100-124
Vol. 28, n. 2, jul/dez, 2022
ISSN: 2179-6807 (online)
Revista Desenvolvimento Social, vol. 28, n. 2, jul/dez, 2022
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AÇÕES AFIRMATIVAS NA PÓS-GRADUAÇÃO E POVOS INDÍGENAS NO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Marize Vieira de Oliveira1
Ricardo Sant’ana Felix dos Santos2
Daniel Ganzarolli Martins3
Mariana Paladino4
Resumo: No presente artigo, busca-se contribuir para a discussão sobre a presença de
estudantes indígenas na pós-graduação stricto sensu, com foco em programas de pós-graduação
em educação das cinco principais universidades públicas localizadas no estado do Rio de Janeiro.
Na primeira parte, analisam-se os editais de seleção dos anos de 2019, 2020 e 2021 desses
programas, apontando certas características e procedimentos das políticas de ação afirmativa
para os candidatos indígenas, identificando elementos que podem facilitar ou dificultar tal
presença. Na segunda parte, com base na narrativa de uma das autoras que é a primeira
indígena a ingressar por ações afirmativas no Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal Fluminense, problematiza-se a invisibilidade dos povos indígenas no
estado do Rio de Janeiro, principalmente dos que vivem em contexto urbano, e como essa
realidade se reflete no direito ao acesso de políticas públicas diferenciadas e interculturais,
sobretudo na educação superior. Identificam-se processos de abertura à presença de
estudantes e intelectuais indígenas na universidade, mas que convivem com mecanismos
institucionais racistas e excludentes, que precisam ser questionados.
Palavras-chave: Ações afirmativas. Pós-graduação. Indígenas. Rio de Janeiro. Educação.
AFFIRMATIVE ACTIONS IN POSTGRADUATE STUDIES AND INDIGENOUS PEOPLES IN THE STATE
OF RIO DE JANEIRO
Abstract: In this article, we seek to contribute to the discussion about the presence of
indigenous students in stricto sensu postgraduate programs, focusing on education programs of
the five main public universities located in the state of Rio de Janeiro. In the first part, we analyze
the call for applications to postgraduate programs in education of the years 2019, 2020 and
2021, pointing out certain characteristics and procedures of affirmative action policies for
1 Para Reté, da etnia Guarani. Presidente da Associação Indígena Aldeia Maracanã (AIAM), Coordenadora
do Instituto dos Saberes dos Povos Originários - Aldeia Jacutinga, Professora de História, Doutoranda em
Educação pela UFF. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7740-6047. E-mail: marizemulher@gmail.com
2 Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense.
Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. ORCID: 0000-0002-4611-7058. E-mail:
rs_felix@ufrrj.br
3 Doutorando em Educação pela UFF, professor efetivo de Ciências da rede municipal de Maricá (RJ).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5113-9745. E-mail: danielgmk9@gmail.com
4 Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS), Museu
Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da Faculdade de Educação da
Universidade Federal Fluminense. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0671-0260. E-mail:
marianapaladino@id.uff.br
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indigenous candidates, and also identifying elements that can facilitate or hinder such presence.
In the second part, based on the narrative of one of the authors who is the first indigenous
person to join the Postgraduate Program in Education at the Federal Fluminense University
through affirmative action, the invisibility of indigenous peoples in the state of Rio de Janeiro is
problematized, especially those living in the urban context, and how this reality is reflected on
the right to access differentiated and intercultural public policies, especially in higher education.
We identify opening processes to the presence of indigenous students and intellectuals at the
university, but they coexist with racist and excluding institutional mechanisms, which need to
be questioned.
Keywords: Affirmative Actions. Postgraduate studies. Indigenous people. Rio de Janeiro.
Education.
ACCIONES AFIRMATIVAS EN POSGRADOS Y PUEBLOS INDÍGENAS EN EL ESTADO DE RÍO DE
JANEIRO
Resumen: En este artículo, se busca contribuir a la discusión acerca de la presencia de
estudiantes indígenas en programas de posgrado, centrándose en los programas de educación
que existen en las cinco principales universidades públicas ubicadas en el estado de Río de
Janeiro. En la primera parte, se analizan las convocatorias de selección para los años 2019, 2020
y 2021 de dichos programas. Se señalan ciertas características y procedimientos de las políticas
de acción afirmativa para los candidatos indígenas, y se identifican elementos que pueden
facilitar o dificultar dicha presencia. En la segunda parte, a partir del relato de una de las autoras,
que es la primera indígena a ingresar por acción afirmativa en el Programa de Posgrado en
Educación de la Universidad Federal Fluminense, se problematiza la invisibilidad de los pueblos
indígenas en el estado de Río de Janeiro, especialmente los que viven el contexto urbano, y
cómo esta realidad se refleja en el derecho a acceder a políticas públicas diferenciadas e
interculturales, especialmente en la educación superior. Se identifican procesos de apertura
hacia la presencia de estudiantes e intelectuales indígenas en la universidad, pero que coexisten
con mecanismos institucionales racistas y excluyentes, necesarios de ser cuestionados.
Palabras-clave: Acciones afirmativas. Posgraduación. Pueblos indígenas. Rio de Janeiro.
Educación.
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, as universidades brasileiras atravessaram mudanças
significativas, sobretudo no que diz respeito à democratização do acesso de estudantes
de escolas públicas, de baixa renda e autodeclarados pretos, pardos e indígenas nos
cursos de graduação e pós-graduação. A implementação de políticas afirmativas foi
fundamental para a presença destes setores historicamente excluídos do ensino
superior.
Segundo Carvalho (2003), em 2003, quando as primeiras experiências de reserva
de vagas ou cotas estavam iniciando, os assentos nas universidades públicas eram
preenchidos quase em sua totalidade por estudantes brancos e egressos de escolas
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particulares, especialmente nos cursos de maior prestígio. Desde então, e com a
expansão de ações afirmativas na graduação, resultado da deliberação dos conselhos
universitários em alguns casos, de leis estaduais em outros, e, mais tarde, da Lei Federal
n. 12.711 (“Lei de Cotas” - BRASIL, 2012), esse quadro começa a ser alterado. Também
foram adotadas políticas afirmativas nos cursos de pós-graduação de universidades
públicas. No entanto, ainda não uma lei federal, como acontece com as cotas na
graduação, que regulamente tais ações.
O ingresso de indígenas a cursos de pós-graduação é anterior à implementação
de normativas e procedimentos que alguns programas criaram para a reserva de vagas
e acesso diferenciado desses candidatos. A busca pela pós-graduação se baseia,
segundo as narrativas de muitos estudantes, profissionais e intelectuais indígenas, no
anseio de adquirir mais e melhores ferramentas para o exercício qualificado nos seus
campos de atuação. Como costuma ser dito por diferentes líderes indígenas: “antes
lutávamos com arco e flecha, agora nossas armas são as canetas e o computador”, o
que indica o papel estratégico da formação superior para a conquista de uma posição
de menor desigualdade e maior autonomia em relação ao Estado e à sociedade não
indígena. Assim, a educação superior é considerada como um caminho para acessar
postos e profissões socialmente valorizadas, e que costumavam ser ocupados pelos
“brancos”. Trata-se de uma busca orientada pela preocupação do “retorno” e
“contribuição” às necessidades contemporâneas de suas comunidades. Também está
presente o anseio de ocupar e transformar o espaço acadêmico, contribuindo com
novas epistemes, metodologias, produções e formas de habitar esse território.
No entanto, esse acesso até dez anos atrás era raro e dependia
fundamentalmente das redes de apoio que algumas pessoas conseguiam construir,
possibilitando obter informações e habilidades necessárias para a inscrição nas
convocatórias existentes, bem como suporte para a permanência nas cidades durante
os estudos.
Um programa de apoio e financiamento pioneiro para a formação dos primeiros
mestres e doutores indígenas foi o International Fellowships Program (IFP), da Fundação
Ford, executado no Brasil pela Fundação Carlos Chagas. Tal programa atuou de maneira
a fornecer bolsas de maior valor do que as bolsas CAPES e CNPq, e também apoiou na
preparação dos candidatos aos processos seletivos, inclusive com aulas de português e
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língua estrangeira, e orientação para a elaboração do projeto de pesquisa (ROSEMBERG;
ANDRADE, 2013).
A partir de 2002, alguns programas de pós-graduação começaram a adotar ações
afirmativas de recorte étnico-racial, contudo, na maioria dos casos se tratava de
resoluções decididas pelos próprios colegiados e não uma política institucional
universitária que abrangesse todos os programas. Esse é o caso do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional-UFRJ, cujo colegiado, com
intensa participação do corpo discente, iniciou em 2007 um debate sobre a necessidade
de modificar o processo seletivo para ampliar a presença de estudantes indígenas e
negros, sendo aprovada uma política de ação afirmativa para esses dois grupos em 2012
e tornando-se uma referência para outros programas de antropologia.
A Universidade Federal de Goiás (UFG) foi a primeira instituição pública federal
do país a adotar, em resolução publicada em abril de 2015, ações afirmativas para a
inclusão e a permanência da população negra e indígena em todos os seus cursos de
pós-graduação stricto sensu.
Quanto às universidades estaduais, destaca-se o caso do estado do Rio de
Janeiro, ao aprovar a Lei n° 6.914 (RIO DE JANEIRO, 2014), que determina que todas as
instituições públicas estaduais de ensino superior devem instituir sistema de cotas para
ingresso nos cursos de pós-graduação, incluindo mestrado, doutorado, cursos de
especialização, aperfeiçoamento, entre outros.
Outro marco foi a Portaria Normativa 13 do Ministério da Educação, publicada
em 11 de maio de 2016 (MEC, 2016), que dispõe sobre a indução de políticas de ações
afirmativas voltadas para negros, indígenas e pessoas com deficiência na pós-
graduação5. Após a publicação dessa portaria, algumas instituições divulgaram
processos seletivos para se adequarem à normativa6.
Desde então, segundo o levantamento realizado por Venturini (2019) dos editais
de programas de pós-graduação até janeiro de 2018, os dados apontam para uma
5 A portaria levou em conta o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei n. 12.711 e a constitucionalidade desta
lei reconhecida pelo STF em 2012. Ela outorgou um prazo de 90 dias para as instituições federais de ensino
superior apresentarem propostas de inclusão em seus programas de pós-graduação, e criarem comissões
próprias, com a finalidade de aperfeiçoar a discussão.
6 Em 18 de junho de 2020, o Ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a revogá-la, através
da Portaria 545. Contudo, diante do repúdio generalizado, o ministro interino que o sucedeu anulou
esta última.
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ampliação significativa desse tipo de política. A autora ressalta que os principais alvos
das políticas de pós-graduação são estudantes pretos, pardos e indígenas, o que mostra
uma mudança em relação às políticas de graduação, em que as cotas privilegiam a
condição socioeconômica. Também são incluídos grupos que não haviam sido sujeitos
de políticas para os cursos de graduação, como transexuais, travestis e refugiados.
Com base nos dados levantados, Venturini constata que as mudanças
institucionais mais profundas – a modificação dos critérios de seleção dos estudantes –
são resultado de processos endógenos. Ou seja, promovidos por certos atores
institucionais diretamente envolvidos com as ações afirmativas, alcançando apoio no
próprio programa e conseguindo estender as medidas para outros programas.
Diversas análises mostram a insuficiência das políticas estarem somente
voltadas para o acesso, sendo necessário abranger a permanência, vinculada a questões
socioeconômicas (prioridade na obtenção de bolsas e outros auxílios) e também
curriculares-epistemológicas. uma forte resistência à realização de mudanças mais
substantivas nos processos seletivos em razão de uma perspectiva que ainda privilegia
o “mérito” e a “excelência acadêmica'', bem como a preocupação pelos impactos dessas
mudanças na nota da avaliação da CAPES (VENTURINI, 2018). Ao mesmo tempo,
observamos que alguns programas de pós-graduação valorizam a presença dos sujeitos
alvos de tais políticas, justificando a implementação de cotas étnico-raciais com base
não apenas na reparação histórica e justiça social, mas também na justiça e pluralidade
epistêmica. Isto é, a defesa de que a presença de estudantes com experiências e
conhecimentos diversificados traz um enriquecimento para o próprio programa,
contribuindo com novas perspectivas e visões de mundo e com novas práticas
profissionais e acadêmicas.
Contudo, vale ressaltar que a concepção destas políticas - que pretendem dar
conta de um cenário de diversidade sociocultural e da sua relação com desigualdades
educacionais estruturais - não pode ser universal, muito menos homogeneizante.
diversas razões para problematizar a imposição de um desenho único, tendo em vista
os diferentes grupos envolvidos (negros, indígenas, pessoas com deficiência,
quilombolas, transexuais). Neste sentido, Baniwa (2013) aponta uma série de questões
(embora pensadas para a graduação e a realidade instituída pela Lei de Cotas) que nos
fazem refletir se, ao contrário de promover uma verdadeira inclusão, uma formatação
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que não se adere às especificidades de um contexto já tão heterogêneo e multifacetado
como o indígena, não iria contra um histórico de iniciativas que vinham sendo bem-
sucedidas7.
No presente artigo, pretendemos contribuir para a discussão sobre a presença
de estudantes indígenas na pós-graduação stricto sensu, com foco em programas de
pós-graduação em educação vinculados a faculdades de educação de universidades
localizadas no estado do Rio de Janeiro. Percebemos processos de abertura à presença
de estudantes, pesquisadores e intelectuais indígenas na universidade, mas que podem
conviver com diversos mecanismos institucionais racistas e excludentes, que precisam
ser analisados e questionados. O recorte da pesquisa em programas de pós-graduação
em educação se baseia no fato de uma das autoras ser a primeira indígena a ingressar
por ações afirmativas no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da UFF, e
outros dois autores participarem da Comissão Permanente de Ações Afirmativas (CPAA)
do PPGE/UFF. Tais experiências têm provocado numerosas reflexões. Ademais, nos
parece extremamente necessário atentar para a forma em que os programas dessa área,
voltados para o aperfeiçoamento de profissionais da educação, vêm se abrindo para a
acolhida de diferentes coletivos.
Este trabalho se baseia em dados levantados a partir de pesquisa bibliográfica,
análise de documentos, participação em eventos vinculados ao tema, e na narrativa
autobiográfica da autora indígena, revelando impasses e obstáculos que dizem respeito
à necessidade do reconhecimento dos povos indígenas e do pluralismo epistêmico na
academia.
Na primeira parte do artigo, analisamos os editais de seleção dos programas de
pós-graduação em educação de universidades públicas localizadas no estado do Rio de
Janeiro, apontando certas características e procedimentos das políticas de ação
afirmativa para os candidatos indígenas, identificando elementos que podem facilitar
ou dificultar tal presença.
7 Entre esse histórico de iniciativas, o autor se refere aos vestibulares específicos e diferenciados para
candidatos indígenas na graduação que algumas universidades promoveram, com propostas bastante
interessantes, tais como privilegiar exames de modalidade oral ao invés de escrita; realizar as etapas de
seleção em várias cidades, para facilitar a realização das provas para os indígenas distantes da sede do
campus universitário em questão; considerar os contextos e vínculos comunitários em detrimento dos
pressupostos individualizantes das seleções convencionais; entre outros.
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Na segunda parte, com base no relato pessoal de uma das autoras,
problematizamos a invisibilidade dos povos indígenas no estado do Rio de Janeiro,
principalmente dos do contexto urbano, e como essa realidade se reflete no direito ao
acesso de políticas públicas diferenciadas e interculturais, sobretudo no âmbito da
educação superior.
Por fim, nas considerações finais, refletimos sobre os obstáculos e também as
potências da presença indígena nos programas de pós-graduação em educação.
O CASO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS PARA INDÍGENAS NOS PROGRAMAS DE PÓS-
GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Segundo o último censo do IBGE (2010), existem 15.894 pessoas autodeclaradas
indígenas no estado do Rio de Janeiro8. Contudo, uma grande invisibilização da sua
presença. Além de uma população expressiva de indígenas da etnia guarani, que se
distribuem principalmente entre 7 aldeias nos municípios de Angra dos Reis, Paraty e
Maricá, e uma aldeia formada por famílias do povo pataxó no município de Paraty,
também uma presença significativa de outros povos indígenas que residem nos centros
urbanos9. O censo revelou que 750 indivíduos estão em Terras Indígenas e 15.144 nas
cidades. No entanto, destacamos que esse número provavelmente seja uma sub-
representação diante de uma maior quantidade de população indígena nesse estado,
considerando diferentes fatores que influenciam a autodeclaração nos censos.
Um elemento importante a ser considerado neste sentido é a absorção pela
categoria “pardo” de pessoas que possuem ascendência indígena. Conforme dissertou
8 É chamativa a diminuição de cerca de 20.000 indígenas entre o Censo do IBGE de 2000 e o Censo de
2010. algumas hipóteses para isso, como o aumento do processo de demarcação de terras, que
poderia ter impactado no retorno de algumas famílias indígenas a seus territórios tradicionais em outros
estados brasileiros. Mas também deve ser considerada a mudança da metodologia entre os dois censos,
pois acrescentou-se no Censo 2010 a pergunta sobre a etnia e a língua falada dos autodeclarados
indígenas. Santos e Teixeira (2011) estimam que a inclusão desses dois quesitos pode ter sido um fator
que influiu para que muitas pessoas deixassem de se declarar por constrangimento, ao não saberem a
língua ou se identificar a uma etnia específica. Assim, esses e outros autores indicam que tal fator poderia
explicar a opção de se autodeclarar no grupo “pardo”, que acaba somando à categoria “negro”.
9 O estado do Rio de Janeiro apresentou 163 etnias declaradas por aproximadamente 4.030 indígenas,
sendo que as que têm maior quantidade de pessoas, são a etnia Guarani Mbyá (n=660), Guarani Kaiowá
(n=427), Tupiniquim (n=394), Guarani Nhandeva (n=341) e Tupinambá (n=318). 9.886 indígenas
informaram “não saber” a etnia, sendo a maioria residente na área urbana (98,5%) (CUNHA et al., 2019).
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Oliveira em análise das estatísticas dos censos oficiais para o estudo histórico das
populações indígenas:
A categoria de “pardo” parece não ter outra função que a de servir como
instrumento do discurso da mestiçagem e reunir evidências numéricas que
reforcem as suposições ideológicas quanto à tendência ao “branqueamento”
progressivo da população brasileira. No plano das análises regionais leva a
confundir em um todo homogêneo fenômenos absolutamente distintos
entre si. O registro de pardo na região sul indica algo inteiramente diferente
do ponto de vista étnico e social do que aquilo que é assim caracterizado no
nordeste ou na Amazônia (OLIVEIRA, 1997, p. 67).
Esta dissolução do elemento indígena na categoria pardo se adere às bases
políticas que situam os povos originários no passado, apagando os rastros de sua
continuidade histórica e negando sua participação no presente. A invisibilização
estatística produz uma ausência também reproduzida na memória histórica coletiva,
que simplesmente escolhe ignorar a diversidade e a complexidade da presença indígena
na formação e na atualidade brasileira. Como o autor dirá mais adiante: “(...) as
estatísticas sociais não podem ser desvinculadas de políticas de governo e de
representações sociais” (ibid., p. 76).
Se compararmos os últimos dois censos realizados (2000 e 2010), percebemos
uma dinâmica cujos fatores apontam para uma série de elementos multicausais
possivelmente associados, mas especialmente relacionados à forma da produção dos
dados:
As perdas populacionais de indígenas foram significativas nas áreas urbanas
de 20 Unidades da Federação, principalmente nos Estados de São Paulo, do
Rio de Janeiro e de Minas Gerais (...) No último período intercensitário,
2000/2010, a população indígena residente nos Municípios das Capitais
apresentou perda populacional em todas as Grandes Regiões (...) Outros
estados, contudo, apresentaram perdas consideráveis de indígenas no seu
interior : Rio de Janeiro, -7,7% ao ano, São Paulo, -4,4% ao ano, e Goiás, -
5,4% ao ano. (IBGE, 2012, p.14)
É significativo que estudos com base no Questionário da Amostra dos Censos
2000 e 2010, mostram que mais da metade dos indígenas do estado do Rio de Janeiro
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não eram naturais do município de residência, o que aponta que o fenômeno da
migração, de maneira geral, está ligado à educação, ao mercado de trabalho e à saída
da terra indígena, muitas vezes em decorrência de conflitos e de situações de despojo e
invasão territorial por parte de diferentes agentes. A maior parte da população indígena
no estado do Rio de Janeiro em 2010 era oriunda do Nordeste (56,1%), do Sudeste
(19,7%) e do Norte (16,5%) do Brasil.
um número expressivo de indígenas que habitam o contexto urbano em
espaços específicos de acolhimento, como a Aldeia Maracanã e a Aldeia Vertical, os
quais trazem um cenário complexo de relações sociopolíticas entre diferentes etnias.
Todavia, um grande contingente de indígenas urbanos dos quais não se sabem
maiores detalhes sobre sua localização. Destaca-se também a presença indígena nas
favelas e periferias do Rio de Janeiro, colocados no IBGE como “aglomerados
subnormais”, onde vivem 20% do total de indígenas na cidade do Rio de Janeiro
(CAMPOS; DAMASCENO, 2019). Cabe apontar as especificidades vivenciadas por esse
grupo de indígenas no meio urbano, que frequentemente passam por um “preconceito
de autenticidade”, usando a expressão de Albuquerque (2015). O autor faz uma análise
a partir da situação desses grupos na cidade do Rio de Janeiro:
Como mostra o exemplo paradigmático do Rio de Janeiro, os indígenas nas
cidades têm muita dificuldade em terem seus direitos efetivados, o principal
instrumento de contestação da “autenticidade” dos indígenas, seja do poder
público, que os mantém administrativamente num “limbo jurídico”, seja a
própria sociedade nacional que os estereotipa, é a suposição de que o fato
desses indígenas estarem nas cidades não os qualificaria como indígenas e,
portanto, não deveriam ter acesso a direitos específicos, como saúde e
educação. (ALBUQUERQUE, 2015, p. 166)
Esses questionamentos são extremamente importantes para refletirmos sobre
os alcances das políticas de ação afirmativa para indígenas no estado do Rio de Janeiro.
Será que elas foram construídas com base no conhecimento da realidade indígena neste
estado? Ou foram formuladas a partir de certos imaginários essencialistas,
desconsiderando a expressiva situação urbana, a mobilidade e o dinamismo dessas
populações? As expectativas construídas pelas instituições em relação ao público
indígena beneficiário destas políticas devem ser postas em exame, problematizando o
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caráter restritivo da associação automaticamente feita aos residentes em terras
oficialmente reconhecidas como indígenas pelo Estado.
A seguir, faremos uma análise dos editais dos programas de pós-graduação
stricto sensu em educação das universidades públicas localizadas no estado do Rio de
Janeiro que possuem ações afirmativas. Foram analisados os editais do Programa de
Pós-Graduação em Educação da UFF (PPGEdu), Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE), Programa de Pós-
Graduação em Educação da UERJ (ProPEd), Programa de Pós-Graduação em Educação,
Processos Formativos e Desigualdades Sociais da UERJ (PPGEDU-FFP), Programa de Pós-
Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas da UERJ (FEBF);
Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas
Populares da UFRRJ (PPGEduc), e Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIRIO
(PPGEdu). Além dessa análise documental, que abrangeu os editais dos processos
seletivos (mestrado e doutorado) dos anos 2019, 2020 e 2021, também consultamos
algumas coordenações dos programas e professores do corpo docente que pesquisam
junto a populações indígenas sobre a presença dos discentes indígenas.
QUANTIDADE E TIPO DE VAGAS PARA CANDIDATOS INDÍGENAS
Um primeiro aspecto a ser analisado é a quantidade de vagas para os candidatos
indígenas e o tipo de vaga: se é cota (isto é, uma porcentagem do total de vagas
disponibilizadas para cada processo seletivo), ou se é vaga suplementar, criada
especificamente para atender esse segmento.
No caso do PPGEdu/UNIRIO, observamos que há vagas reservadas para negros
(20% do total de vagas) e para pessoas com deficiência (5%), mas não há para indígenas.
Portanto, não mencionaremos mais este programa nas análises a seguir.
No caso do PPGE/UFRJ, para o processo seletivo do ano de 2021, o número de
vagas oferecido para Cotas de Ações Afirmativas (CAA) reservadas para candidatos
autodeclarados negros, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência e pessoas
travestis e transexuais foi de 30% (UFRJ, 2021, p. 3). Contudo, não existe o detalhamento
sobre como se procede à distribuição deste 30% de vagas entre todos esses grupos.
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No caso da UERJ, são oferecidas 12% das vagas para estudantes negros e
indígenas (UERJ, 2021, p.1) nos Programas de Pós-graduação em Educação (Faculdade
de Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em
Periferias Urbanas (Faculdade de Educação da Baixada Fluminense) e Programa de Pós-
Graduação em Educação, Processos Formativos e Desigualdades Sociais (Faculdade de
Formação de Professores). No entanto, semelhante ao caso do PPGE/UFRJ, não se
especifica como se realizará a distribuição entre candidatos negros e indígenas.
No caso do PPGEduc/UFRRJ, existem ações afirmativas para negros, indígenas,
pessoas com deficiência e transgêneras, sendo que 20% das vagas são para os
candidatos que se autodeclararem pretos, pardos ou indígenas (PPI). Assim, tal como no
caso da UERJ, constatamos que negros e indígenas competem pelas mesmas vagas, e
também não se explicitam os critérios para a distribuição de vagas internas a essa
categoria.
No PPGEdu/UFF, ações afirmativas para candidatos negros (50% das vagas
abertas em cada processo seletivo) e 1 vaga suplementar para indígena, 1 vaga para
pessoa com deficiência e 1 vaga para LGBTI+.
Assim, identificamos que somente no caso do PPGEdu/UFF criou-se vaga
específica para atender os candidatos indígenas, sendo que, nos programas das demais
universidades, formam parte de uma porcentagem de vagas que abrangem outras
categorias de optantes.
Destacamos que essa concorrência entre candidatos negros e indígenas, como
problematizado por intelectuais e acadêmicos indígenas, dificulta o acesso dos
indígenas às vagas:
Os povos indígenas possuem seus processos educativos próprios, em alguns
casos, muito distintos das escolas não-indígenas (pretos, brancos e pardos),
estimulados pela legislação brasileira que lhes possibilita uma educação
escolar específica e diferenciada. Como o indígena que estudou em uma
escola específica, bilíngüe, intercultural e diferenciada (currículo
diferenciado), que foi alfabetizado na sua língua materna e tem esta como
primeira língua pode concorrer em de igualdade com outros estudantes
pretos e pardos que estudaram em escolas regulares universais? Como se
pode perceber uma incoerência e contradição na política quando ao
mesmo tempo em que reconhece o direito específico e diferenciado aos
povos indígenas, limita ou impede o exercício pleno desse direito impondo
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uma uniformização no acesso a outras políticas públicas de seu interesse
(BANIWA, 2013, p. 20).
Deve ser considerado, pois, o fato de que a trajetória educativa dos indígenas
que ingressam à graduação e à pós-graduação pode ter sido realizada em escolas
indígenas, que, por previsão legal, possuem modalidade diferenciada e intercultural,
valorizando e priorizando bagagens de conhecimentos distintos aos das escolas de
contexto urbano. Estas últimas, mais voltadas aos conhecimentos padronizados exigidos
nos vestibulares e ENEM. Assim, entendemos a necessidade de haver uma política de
cotas e/ou de reserva de vagas para cada um dos grupos por separado.
METODOLOGIA PARA VALIDAÇÃO DA AUTODECLARAÇÃO INDÍGENA
Uma questão desafiadora é a validação da autodeclaração indígena dos
candidatos optantes. Segundo a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é país signatário
(BRASIL, 2004), os povos indígenas têm direito à definição da sua própria identidade,
sem necessidade de heteroidentificação. Contudo, constatamos que alguns programas
possuem algum tipo de procedimento ou metodologia que busca validar a declaração
do candidato.
No caso da UERJ, existe uma Comissão de Análise de Opção de Cotas da Pós-
Graduação Stricto Sensu. A comissão é composta por pedagogos, médicos, advogados e
técnico-administrativos. O Manual do Sistema de Cotas (UERJ, s/d) indica somente a
exigência do preenchimento de uma autodeclaração assinada pelo candidato indígena,
mas, apesar de não serem exigidos outros documentos comprobatórios, na declaração
consta que o candidato, após matriculado, poderá ser convocado pela comissão para
verificação da afirmação10.
No PPGEduc/UFRRJ, nos editais analisados, se exige que o candidato indígena
optante a cotas apresente no ato de inscrição on-line uma autodeclaração e uma cópia
do Registro Administrativo de Nascimento Indígena - RANI (UFRRJ, 2021, p.2), o que
10 O manual ressalta que estudantes negros e indígenas, em caso de declaração falsa, estarão sujeitos às
sanções penais, administrativas (nulidade da matrícula, dentre outros) e civis (reparação ao erário), além
das sanções previstas nas normas internas da UERJ.
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representa uma exclusão aos indígenas do contexto urbano, que não recebem esse
documento da Funai. No Documento de Autodeclaração étnico-racial, em caso de
escolher a opção indígena, o candidato deve informar a "comunidade indígena” à qual
pertence. O que também não contempla os indígenas urbanos.
Também se indica que os candidatos que se autodeclararem pretos, pardos,
indígenas e pessoas com deficiência serão convocados para entrevista com a Comissão
de Heteroidentificação da Autodeclaração Étnico-Racial, devendo autorizar gravação da
voz e da imagem na entrevista “para verificação das características fenotípicas (conjunto
de características físicas do indivíduo, tais como a cor da pele, a textura do cabelo e os
aspectos faciais)”, de maneira a conferir a veracidade da informação colocada no ato de
inscrição no processo (UFRRJ, 2021, p. 18).
No PPGEdu/UFF, o principal documento exigido para a heteroidentificação é a
realização de um memorial, “que contenha a sua trajetória de vida, sua vinculação com
a comunidade indígena que representa e/ou sua participação em organizações e
movimento indígena” (UFF, 2021, p. 4). Outros documentos, como carta de
apresentação da Funai e/ou de líderes da comunidade são opcionais.
No edital de doutorado do PPGE/UFRJ (2020) não a existência de nenhum
processo de confirmação da autodeclaração dos candidatos indígenas de ações
afirmativas, nem comissão voltada para verificar esse processo.
Comparando os editais, chama a atenção a falta de explicitação dos critérios de
validação das autodeclarações dos candidatos indígenas por parte das comissões
existentes nos programas da UERJ e UFRRJ, balizando-se em critérios que costumam ser
utilizados para os candidatos negros. No caso dos indígenas, a heteroidentificação não
deveria estar baseada na cor da pele ou em outros traços físicos, considerando a enorme
diversidade fenotípica dos povos indígenas ao longo de todo o país (OLIVEIRA, 1997). Ao
invés disso, as comissões poderiam atentar para os sentidos, vínculos e memórias de
pertencimento dos candidatos, como reivindicado por diferentes líderes e intelectuais
indígenas em eventos recentes vinculados a este debate11.
11 Entre outros, na aula inaugural do curso de formação da Comissão Permanente de Validação da
Autodeclaração da Uerj, em 06/07/2021 (https://youtu.be/NIVhvk_QRJk), Mesa III - Debates acerca da
Comissão de Heteroidentificação, Semana das Licenciaturas IFCS-UFRJ, em 28/09/2022
(https://youtu.be/hxpBuStGaLE), Acesso no dia 04/12/2022.
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CARACTERÍSTICAS DO PROCESSO SELETIVO
Ao analisarmos os diferentes editais, observamos que não existe uma avaliação
diferenciada para os estudantes indígenas. Ou seja, o processo seletivo para estes
candidatos segue as mesmas etapas dos demais candidatos. O fato desses programas
não desenharem um processo seletivo diferenciado e os indígenas serem submetidos às
mesmas regras e critérios mostra os limites dessas políticas, assim como a necessidade
de que eles futuramente se adequem às legislações e normativas educacionais
existentes, que garantem uma educação diferenciada aos seus modos de organização
próprios, como mencionado acima.
Somente o PPGEdu/UFF, a partir da Resolução 01/2019, criada pela CPAA e
validada pelo colegiado, determinou que os candidatos indígenas, tanto do mestrado
quanto do doutorado, serão isentos da etapa de realização da prova de língua
estrangeira. Esta última determinação se baseia no reconhecimento de que os
candidatos podem ser falantes das suas línguas originárias, tornando-se o português
uma segunda língua para eles12. Essa medida representa um avanço significativo,
considerando que alguns pesquisadores identificam que a etapa de provas em língua
estrangeira representa um elemento de exclusão para os candidatos indígenas e
também para surdos.
A importância da elaboração de um processo seletivo diferenciado, que
considere a diversidade cultural, linguística e de trajetórias escolares, se revela ao
constatarmos que certos programas que realizaram alterações significativas para o
ingresso de indígenas contam hoje com uma procura e presença considerável desses
estudantes. É o caso do PPGEdu da UFRGS, que estabeleceu uma política de ações
afirmativas em que os optantes indígenas são excetuados da prova escrita e da língua
estrangeira. Em lugar da prova escrita, devem entregar memorial descritivo que
apresente sua trajetória de vida e percurso acadêmico, suas motivações para o ingresso
12 Venturini (2018), por exemplo, destaca que uma das principais barreiras para os candidatos indígenas
é a proficiência na língua estrangeira, e que alguns programas têm desenvolvido medidas interessantes,
tais como a concessão de um prazo mais longo para que o candidato aprovado possa comprovar a
proficiência (caso do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP); em outros a
comprovação é requisito apenas para a defesa da dissertação ou tese, o que possibilita que o aluno
aprenda uma língua durante o curso (caso do programas de Ciência Econômica e de Desenvolvimento
Econômico da Unicamp).
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e a contribuição que seu estudo trará para a comunidade de origem. Cabe destacar a
relevância de tal política, no sentido de gerar uma maior receptividade a esses
candidatos e futuros estudantes.
AÇÕES AFIRMATIVAS VOLTADAS PARA A PERMANÊNCIA
A criação de ações voltadas para a permanência é fundamental para garantir a
efetividade das políticas que os programas de pós-graduação no Rio de Janeiro vêm
desenhando para o acesso dos grupos historicamente excluídos desse nível de estudos.
No entanto, diferentemente da graduação, existem poucas políticas de assistência e
permanência, o que se torna um importante desafio, especialmente no contexto atual
de crise econômica e política, e de redução dos recursos destinados a bolsas e
financiamento às pesquisas em geral.
Ao analisarmos os editais e os sites dos sete programas de pós-graduação em
educação, nos deparamos com poucas informações sobre ações voltadas para garantir
a permanência dos estudantes indígenas, sobretudo no que diz respeito ao auxílio
econômico. Inicialmente procuramos informação sobre a existência de algum tipo de
prioridade na distribuição de bolsas de estudos para esses candidatos, como acontece
em outros programas do país13. Não localizamos nenhuma medida neste sentido nos
programas de pós-graduação analisados que seja exclusivamente para indígenas.
Identificamos certas resoluções voltadas para favorecer a distribuição de bolsas
entre os estudantes selecionados por ações afirmativas, como no caso do PPGEdu/UFF.
No ano de 2021 foi feita uma modificação na sua resolução de outorga de bolsas de
estudos, que garantiu uma prioridade para estudantes optantes (sem distinção de
prioridade entre negros, indígenas, LGBTI+ ou pessoas com deficiência) em relação a
não optantes, mas somente como critério de desempate após a comparação de uma
série de critérios socioeconômicos. Tal inclusão pode ser considerada um importante
avanço em relação à distribuição vigente até o ano de 2020, que apenas atentava a
fatores socioeconômicos, e não para outros, como os étnico-raciais.
13 Por exemplo, no PPGAS/MN/UFRJ, de acordo à Resolução 01/2018, a distribuição de bolsas é feita por
critérios socioeconômicos, diferenciados em quatro níveis, mas dentro de cada nível se priorizam
estudantes optantes indígenas e negros incluídos na política de ação afirmativa, em função da
importância reconhecida pelo programa de garantir a permanência desses estudantes no curso (p.3).
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No PPGE/UFRJ, verificamos que ser aluno de ações afirmativas um aumento
de pontuação (10% do total) no resultado final para competir pelas bolsas de estudos.
No caso do PPGEduc/UFRRJ, não menção de qualquer prioridade dada aos
discentes de ações afirmativas para a distribuição de bolsas de estudos. Os critérios para
classificação dos interessados se baseiam em critérios socioeconômicos, e para
desempate se baseiam nas notas obtidas pelos candidatos na prova escrita e na
pontuação do Currículo Lattes.
No ProPEdD/UERJ uma série de critérios para a pontuação e classificação
entre os candidatos à bolsa: condição socioeconômica; moradia e ano de ingresso no
programa; produção acadêmica dos últimos três anos; e experiência profissional. Ser
aluno de ações afirmativas não é um critério de pontuação nessa análise classificatória
de prioridades.
Entendemos que esses e outros programas deveriam avançar na discussão sobre
a importância das bolsas, entre outras políticas de permanência, para a manutenção dos
estudantes indígenas, considerando suas especificidades. Um exemplo é a diferença de
despesas que deverão enfrentar os indígenas que vêm de municípios distantes e de
outros estados ao se dirigirem para cidades de maior porte. Destacamos que muitos
estudantes indígenas, em especial os que precisam fazer esse deslocamento para
realizar seus estudos, não têm condições de se manter nas cidades e poder realizar
mestrado ou doutorado sem ter acesso à bolsa de estudos, ainda mais em urbes com
alto custo de vida como Rio de Janeiro e Niterói.
SOBRE A PRESENÇA DE ESTUDANTES INDÍGENAS NOS PROGRAMAS DE PÓS-
GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO ANALISADOS
É possível mensurar alguns dados da última década e celebrar o sucesso das
políticas de acesso de indígenas no ensino superior em termos numéricos. Ainda que a
Lei de Cotas não seja a única responsável, considerando os resultados amplamente
divulgados do último censo da educação superior (Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira-Inep), observamos um aumento expressivo da
presença indígena nas universidades. Comparativamente aos dados de 2010, esse
incremento torna-se exponencial se tomarmos como referência o censo de 2017 (INEP,
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2018)14. Embora o mero acesso não seja necessariamente acompanhado de processos
de inclusão com qualidade em todos os casos, que garantam a permanência, esta nova
realidade exprime um contingente cada vez maior de indígenas aptos a seguirem suas
carreiras acadêmicas, direcionando-os à formação na pós-graduação.
Nesta esteira, como garantir o direito destes estudantes, de modo que esteja
aliado à compreensão sobre a mobilidade da população indígena nacional que o próprio
Sistema de Seleção Unificado (SiSU) promove? E como enfrentar as consequências de
disparidades regionais existentes no país em termos de oferta educacional, as
realidades histórico-demográficas atinentes à população indígena e seus processos
diferenciais de escolarização?
Ao realizarmos a presente pesquisa, notamos que, de forma geral, há a ausência
de uma sistematização de dados e registros sobre a presença de estudantes indígenas
nos Programas de Pós-Graduação em Educação. O conhecimento sobre a possível
presença desses estudantes se baseia nas referências indicadas por docentes
pesquisadores sobre assuntos indígenas ou sobre ações afirmativas, bem como de
outros indígenas. Assim, dentro do período analisado de 2019 a 2021, além da autora
do presente trabalho, doutoranda do PPGEdu/UFF, obtivemos a confirmação de
outra estudante indígena, da etnia Pataxó, que ingressou por ações afirmativas no
PPGE/UFRJ, tendo iniciado o mestrado em 2019 e concluído em 2021.
O fato desses programas não contarem com maior quantidade de estudantes
indígenas pode ser explicado por uma variedade de razões. Por um lado, cabe ressaltar
a situação da baixa escolarização do povo guarani (geralmente limitada ao ensino
fundamental), que é o que tem maior presença no nosso estado. O que pode ser
explicado por processos endógenos ao próprio grupo, como a intensa mobilidade que
leva a um processo de escolarização fragmentada (CARVALHO, 2021), bem como a
insuficiência da oferta de uma educação escolar bilíngue, diferenciada e de qualidade
para esta população por parte da Secretaria de Estado de Educação - SEEDUC15. Por
14 Segundo os dados referentes a 2010, 2.723 alunos se declararam indígenas iniciando seus estudos
superiores, e, em 2017, esse número passou para 25.670, número 9,4 vezes maior. Em 2017, estavam
matriculados no total 56,7 mil indígenas no ensino superior do país. A maioria (42,8 mil), matriculada em
instituições privadas. Ver em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2019-04/ingresso-de-
indigenas-em-faculdades-e-nove-vezes-maior-do-que-em-2010. Acesso realizado em: 24/07/2021.
15 O povo guarani dos municípios de Angra dos Reis e de Paraty empreendeu uma longa luta para ter uma
escola ao interior de seus territórios e que respeitasse seu Nhande Reko (modo de ser guarani). A primeira
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outro lado, considerando os indígenas de contexto urbano e a discussão sobre a
invisibilidade e racismo que enfrentam, entendemos que alguns prefiram não demandar
as reservas de vagas para indígenas em face das acusações preconceituosas de
inautenticidade a que estão sujeitos.
Também deve ser considerado o fato de que existem programas com uma
tradição mais estabelecida de estudantes indígenas no estado do Rio de Janeiro, em
especial dois programas vinculados ao Museu Nacional. O Programa de Mestrado e
Doutorado em Antropologia Social (PPGAS) e o Mestrado Profissional em Linguística e
Línguas Indígenas (PROFLLIND), que têm políticas de ações afirmativas bastante
reconhecidas e recebem estudantes indígenas de todo o país, inclusive de estados mais
distantes do Norte e Nordeste. Notavelmente, nesses programas escassa presença
de indígenas oriundos do estado do Rio de Janeiro. No PPGAS, 10% das vagas são
reservadas para indígenas. No caso do PROFLLIND, são reservadas 60% das vagas.
Destacamos que muitos dos estudantes indígenas desses programas são provenientes
de licenciaturas, atuando inclusive como professores nas suas comunidades. Porém, os
mestrados e doutorados em educação no estado do Rio de Janeiro têm até hoje uma
baixa procura por parte de licenciandos indígenas.
DESAFIOS E POSSIBILIDADES DA PRESENÇA INDÍGENA NA PÓS-GRADUAÇÃO, A PARTIR
DE UM RELATO AUTOBIOGRÁFICO16
As questões trabalhadas nesta seção do artigo são reflexões do meu processo de
construção identitária, da minha etnogênese e das violências experimentadas a partir
de minha autodeclaração. Devido à falta de uma política educacional que inclua os
povos indígenas de forma respeitosa, constantemente me perguntam se sou peruana,
pelos meus traços, pois sou morena, meus olhos amendoados, meu rosto redondo e
meus cabelos são negros. O fato pertinente a esta problematização sobre a invisibilidade
experiência de escola começou na aldeia de Sapukai e era de modalidade comunitária. Só foi reconhecida
pelo Estado em 2003. Contudo, funcionava o primeiro segmento do Ensino Fundamental, tendo
ocorrido inúmeras mobilizações e intervenções do Ministério Público Federal para que a SEEDUC e
secretarias municipais de educação de Angra dos Reis e Paraty garantissem a contratação de professores
guarani e o ensino fundamental completo (MARTINS, 2016). Essa luta levou anos aser atendida pelos
órgãos públicos. Recentemente, em 2018, se iniciou o Curso de Magistério Indígena, para a formação de
professores guarani em nível de ensino médio, assumido pela SEEDUC-RJ em parceria com a UFF.
16 Optamos por trazer uma narrativa em primeira pessoa nesta seção do artigo, ao se tratar da experiência
de Marize Vieira de Oliveira, primeira autora deste trabalho.
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indígena no Brasil é que as pessoas me identificam pertencente a um país latino-
americano. Mas quando eu explico que sou indígena, estas pessoas têm dificuldades em
aceitar-me como tal, e inúmeras vezes fui alvo de escárnio (“olha a índia do Paraguai!”),
discriminação (“você é índia de verdade?”) e racismo (“não demos a vaga para a
Conferência Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres para ela, porque ela é uma
suposta índia”), porque, para muitos, o indígena aceito é aquele que nasceu e mantém
vínculos com seu território de origem. Nascer na cidade e se autodeclarar após sua
maturidade não é aceitável.
Sempre soube das minhas avós indígenas. Contudo, estas memórias não me
proporcionaram uma maturidade étnica que me fizesse autodeclarar. Nascida e criada
na cidade, nunca entendi o porque as pessoas sempre me perguntavam: “você não é
carioca, né?”. E quando eu dizia que sim, que tinha nascido no Rio de Janeiro, em
Turiaçu, e indagava por que a pessoa me perguntava aquilo, me respondiam: “É porque
você parece com o pessoal do Norte”. Na década de 1960, acusaram minha mãe de
pintar meus cabelos, pois aquela cor de cabelo (preto-azulado) não existia. Muito mais
tarde, casada, ao deixar meus cabelos crescerem, outras perguntas vieram à tona.
Mas foi a partir de minha maturidade, construída dentro dos movimentos étnico-raciais,
que todas estas situações me deram o insight de quem eu era, ou melhor, de onde eu
vinha. A ancestralidade cobra, provoca o tempo todo, mesmo com o silenciamento e
apagamento histórico neste país.
Apesar de ainda não me autodeclarar indígena, nunca fui insensível à ausência
desses povos no currículo escolar e, como aluna do curso de formação de professores,
defendia que o Brasil tinha dono antes do tal “Descobrimento”. como professora,
ensinava meus alunos a riscarem a palavra “Descobrimento” do livro didático e
escreverem “Invasão”. Na faculdade, questionava como uma instituição, com um curso
de História, assistiu passivamente à destruição do sambaqui do São Bento atrás do
prédio onde eu estudava, em Caxias.
Nenhuma identidade é construída sem elementos que te conduzam a um
sentimento de desconforto, de estar em um lugar que você não sabe o que é, de onde
é e por que você está ali. Assim, iniciei este longo e tortuoso “caminho de volta pra
casa”, tardio, mas necessário, diria inclusive, fundamental. Reafirmar-me como indígena
na sociedade em que vivo, não foi algo fácil. Fui tratada com animosidade por algumas
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pessoas. São nestes momentos que percebo o quão afastadas do debate étnico-racial
elas estão, pelo menos do que é ser indígena no século XXI.
Em 2004, junto com indígenas pataxó e alguns indígenas em contexto urbano,
fundamos o Movimento Tamoio dos Povos Originários, que em 20 de outubro de 2006,
se transformou na ocupação do Movimento Tamoio, no antigo Museu do Índio. Este,
depois, vai ser conhecido como Aldeia Maracanã. Minha autodeclaração publicamente
se dá na Primeira Conferência Estadual de Igualdade Racial do Rio de Janeiro.
Nesta trajetória de 2004 até os dias atuais, participei em incontáveis projetos
educacionais em defesa de uma educação antirracista e de valorização do ensino de
História e Cultura indígena dentro das escolas, coletivamente ou individualmente. Foi
com este espírito que eu decidi ingressar ao mestrado no PPGEduc/UFRRJ, em 2017. Na
época, o programa ainda não tinha ações afirmativas. No período, quase todos os alunos
tinham uma relação de amizade comigo, assim como os professores que também me
respeitavam. Mas uma situação me chamou a atenção. Quando eu apresentei meu
projeto à professora de Pesquisa e Metodologia, ela elogiou minha defesa, mas uma
aluna da mesma sala foi atrás de mim e perguntou-me se eu era “índia de verdade”.
Lembro que perguntei a ela o que era ser índio de verdade, e me respondeu que “não
era ser descendente, era ter nascido na aldeia”.
Dialogando com outros estudantes indígenas de IES localizadas no Rio de
Janeiro, percebo que as situações de discriminação estão presentes, tanto no
relacionamento cotidiano com colegas e professores não indígenas, quanto na relação
institucional, ao terem que enfrentar variadas burocracias que não atentam para as
realidades indígenas. Por exemplo, uma aluna do contexto urbano do povo canela me
disse ter sofrido preconceito e constrangimento ao procurar ingressar na Licenciatura
em Educação do Campo da UFRRJ, que precisou da assinatura de três lideranças
indígenas para se candidatar às cotas. Os relatos que ela contou foram muito fortes. O
primeiro tipo de discriminação é a exigência de papéis com assinaturas de lideranças
indígenas para ingresso, para pedido de bolsa, para tudo. Ela sentia que as pessoas
tinham desconfiança de que ela não fosse indígena. Ao ter conseguido ganhar bolsas de
estudo, as colegas disseram que era um absurdo ter conseguido tantas bolsas, que não
era justo. Sempre questionavam sua alimentação. Se ela não comia determinada coisa
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era porque “não era índia”, se pintava o corpo era alvo de risadas. Estas e outras
situações provocaram muito sofrimento durante a sua trajetória universitária.
Compartilho também o relato de um estudante da etnia baré, proveniente do
Alto Rio Negro, Amazonas, hoje mestrando no PROFLLIND/UFRJ. Sua graduação foi na
Universidade Federal de São Carlos, onde sofreu vários choques culturais, porque ele
nunca tinha saído do seu território antes. A universidade não se preparou para receber
estudantes indígenas e o alojamento não tinha estrutura para que pudessem viver ali
com dignidade. Portanto, ele relata que foi necessário se organizarem e reivindicarem
direitos a uma moradia digna e, neste sentido, criaram o Centro de Saberes Indígenas.
Também lutaram por bolsas, porque quando entraram tinham um valor muito pequeno.
Com relação ao convívio com colegas e docentes não indígenas, ele menciona que as
pessoas queriam que cumprisse com os estereótipos que esperavam: usar cocar e viver
pintado. Após terminar a graduação, se mudou ao Rio de Janeiro pela possibilidade de
fazer mestrado no PROFLLIND do Museu Nacional, mas chegou em um momento difícil,
no começo da pandemia. Sua preocupação é que com os cortes orçamentários se feche
o programa, que possui a limitação de não contar com bolsa para seus estudantes,
apenas ajuda de custo para aluguel, alimentação e passagem de ida e volta para o local
de moradia deles. Mas também destaca a experiência positiva de fazer o mestrado, pois
lhe permite protagonizar processos de estudo e valorização da língua e memória
histórica do seu povo, assim como afirmar a representatividade indígena no interior da
academia.
A discriminação sofrida por estes dois alunos, assim como minhas vivências, não
são fatos isolados. São inúmeros os casos Brasil afora e nos mais variados cursos e
universidades. Neste sentido, é importante analisarmos que mecanismos são
produzidos e como desenvolvemos, a partir de sua identificação, uma resistência que
possa extirpar tais políticas de exclusão, nas unidades de ensino.
Sinto-me refletida em várias situações da trajetória do aluno baré, pois percebo
o quão distante da realidade dos povos originários as universidades e seus currículos
estão. Fiz uma disciplina sobre meio ambiente e educação no curso de doutorado em
educação na UFF, mas não vi nenhum teórico indígena fazendo parte das referências
bibliográficas. Esse fato me resultou chamativo, especialmente em um contexto político
e pandêmico no qual alguns intelectuais indígenas, como Ailton Krenak e Davi Kopenawa
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Yanomami, entre outros, trouxeram “ideias para adiar o fim do mundo” extremamente
potentes, criativas e esperançosas. Portanto, seria fundamental que a educação
ambiental nas universidades dialogasse e incluísse os conhecimentos tradicionais,
rompendo com a hegemonia eurocêntrica. Assim, não me sinto refletida nos temas
abordados nas disciplinas e me questiono como um programa abre um política de ações
afirmativas e não oferece ao menos uma disciplina que trate dos povos indígenas e suas
culturas.
Nesta conjuntura, é muito difícil para os estudantes indígenas saírem de seu
silêncio e sentirem-se fortalecidos para dizerem quem são, construir seu “caminho de
volta pra casa” (etnogênese), ou seja, sair do não-lugar (pardo), da invisibilidade, para
construir-se como pertencente a um grupo étnico.
Estive contribuindo com todo este debate na Comissão de Heteroidentificação
da UERJ que está sendo criada. Fizemos vários encontros e curso de capacitação para os
integrantes que farão parte da comissão, funcionários desta universidade. Ela não terá
nenhum representante indígena, porque a UERJ não conta com nenhum professor e/ou
técnico autodeclarado indígena. Esta realidade me causa preocupação, pois nos debates
que fizemos pude perceber quão distante é o mundo indígena para a maioria dos
servidores desta instituição (não é diferente do que penso das outras universidades do
país).
Nesta comissão, defendi o memorial como um instrumento válido para os
candidatos indígenas, tendo como base minha própria experiência ao me apresentar no
processo seletivo como optante do PPGEdu/UFF, sendo um requisito para tais
candidatos. O memorial me permitiu rememorar todas as situações que me fizeram
afirmar-me como indígena. Teve o poder de me fazer olhar para todas as situações e
resistências que garantiram que eu chegasse onde estou.
A política de ação afirmativa garantiu minha entrada no doutorado, mas o
mundo acadêmico que acessei me mostra que os conhecimentos indígenas ainda não
são ali valorizados. O que defendo, para além de um processo seletivo diferenciado, é
que as universidades possam garantir uma permanência de qualidade para seus alunos
indígenas, e também que nossas culturas e ciências estejam refletidas dentro dos muros
das universidades.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo as e os autores do presente artigo se deparado com os limites e as
possibilidades de diferentes propostas presentes nos editais analisados, o maior desafio
identificado diz respeito à efetividade do objetivo central das políticas de ação
afirmativa voltadas para indígenas. Isto é, que as vagas específicas sejam de fato
preenchidas por pós-graduandos indígenas. Neste sentido, pensar as condições que
garantam uma maior presença neste nível de ensino e na produção de pesquisas
pertinentes às suas realidades, projetos e agendas, é a chave para efetivar o seu direito
à continuidade de formação. Também torna-se necessário refletir sobre a
reconfiguração do cenário universitário, especialmente em termos da integração no
quadro docente de indígenas egressos da pós-graduação.
Numa síntese, os tópicos que entendemos como avanços positivos para os
indígenas na seleção de programas de pós-graduação são: isenção de prova para
segunda língua; apresentação de memorial no lugar de projeto de pesquisa, o qual
valoriza suas trajetórias e experiências; presença de ação afirmativa específica para
indígenas, ao invés de mesclada com outros grupos; retirada de critérios essencialistas
que podem estar presentes nas etapas de heteroidentificação, como documentos
comprobatórios da Funai ou cartas das lideranças comunitárias. No caso dos estudantes
já ingressantes nos cursos de pós-graduação, salientamos a necessidade de políticas de
permanência, entre as quais se destaca a prioridade na distribuição de bolsas de estudo,
assim como transformações curriculares, incluindo as produções e pensamento de
autores indígenas. Consideramos também que tais proposições merecem reflexões
aprofundadas considerando as especificidades políticas e institucionais de cada
programa de pós-graduação, as características das diversas áreas do conhecimento,
bem como as complexidades e especificidades dos pertencimentos étnicos que trazem
os acadêmicos indígenas ao ambiente universitário.
Nas conclusões deste artigo, gostaríamos de destacar as contribuições de
estudantes e docentes indígenas para a pluralidade epistêmica na academia. Outras
formas de produção de conhecimento estão sendo gestadas, mas também recuperadas
e valorizadas pela sua relevância para os problemas contemporâneos. Dessa forma, a
presença dos indígenas leva também a reverberações teórico-metodológicas nos
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programas de pós-graduação. O papel das universidades neste contexto, de fomentar
pesquisas, tematizar este conjunto de questões e de promover o protagonismo indígena
enquanto sujeitos pesquisadores - e não meros objetos de pesquisa -, vai ao encontro
da legitimação do direito indígena à universidade e à educação, bem como do
patrimônio imaterial associado a esses povos. Dessa forma, estaremos mais próximos
de uma “pluriversidade”, uma universidade aberta a uma pluralidade de modos de ser,
conhecer, viver e habitar.
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