https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v28n2p11-26
Vol. 28, n. 2, jul/dez, 2022
ISSN: 2179-6807 (online)
É PRECISO AQUILOMBAR O TERRITÓRIO EDUCACIONAL
Marta Quintiliano1
Resumo: Este artigo tem como objetivo trazer a minha trajetória acadêmica como estudante
cotista do programa UFGInclui. Neste longo caminho percorrido pude experimentar no corpo e
na alma as violências visíveis e invisíveis do(s) racismo(s) que são produzidas pela branquitude.
Portanto, me fortaleci na coletividade, no aquilombamento entre negras/os quilombolas e
indígenas, fizemos redes estratégicas de afeto, escuta e acolhimento para sobreviver no
território acadêmico. Neste sentido, pensar a política de permanência e a conclusão nos cursos
de graduação de estudantes indígenas, negras/os quilombolas e outros que não pertencem ao
rol dos privilegiados se faz necessário.
Palavras-chave: UFGInclui. UFG. Ações Afirmativas. Permanência.
IT IS NECESSARY TO AQUILOMBAR THE EDUCATIONAL TERRITORY
Abstract: This article aims to bring my academic trajectory as a quota student of the
UFGIincludes program. In this long path I have been able to experience in my body and my soul
the visible and invisible violence of racism(s) produced by whiteness. Therefore, I strengthened
myself in the collectivity, in the settlement between black women/the quilombolas and
indigenous people, we made strategic networks of affection, listening and acceptance to
survive in the academic territory. Thus, thinking about the policy of permanence and
conclusion in undergraduate courses for indigenous, black/quilombola students and others
who do not belong to the list of the privileged people is necessary.
Keywords: UFGIncludes. UFG. Affirmative Actions. Permanence.
ES NECESARIO AQUILOMBOLAR EL TERRITORIO EDUCATIVO
Resumen: Este artículo tiene como objetivo acercar mi trayectoria académica como estudiante
de cuotas del programa ufgiincluye. En este largo viaje, pude experimentar en el cuerpo y el
alma la violencia visible e invisible del racismo(s) que produce la blanquitud. Por lo tanto, me
fortalecí en la comunidad, en el aquilombamiento entre mujeres negras/quilombolas e
indígenas, creamos redes estratégicas de cariño, escucha y aceptación para sobrevivir en el
territorio académico. En este sentido, es necesario pensar en la política de permanencia y
conclusión en los cursos de grado para estudiantes indígenas, negros/quilombolas y otros que
no pertenecen a la lista de los privilegiados.
Palabras-clave: UFGIncluye. Ufg. Acciones afirmativas. Permanencia.
INTRODUÇÃO
1Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0086-6667. E-mail: carpemubuntu@gmail.com
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Para falar sobre a minha trajetória acadêmica torna-se necessário apresentar
de onde eu venho. Não sou apenas um corpo de mulher negra jogado nos corredores
da Universidade Federal de Goiás. Que ora é vista como pesquisadora, ora vista como
uma quilombola atrevida que ousa escrever sobre si. Prefiro dizer que a minha escrita é
um eu-coletivo’, de várias experiências coletivas que tive ao longo da minha vivência.
Ou melhor, escrevivência! (Conceição Evaristo, 2020)
Algumas vezes a minha escrita é confundida como desabafo acadêmico e/ou
social logo, não é ciência “Eu, como uma mulher negra, escrevo com palavras que
descrevem a minha realidade, não com palavras que descrevem a realidade de um
erudito branco, pois escrevemos de lugares diferentes” (Kilomba, 2019, p.88). Afinal
ser cientista é reproduzir os conhecimentos eurocêntricos, existe um molde que deve
servir para todos, caso não sirva: retire-se, aqui não é o seu lugar! Na universidade
ninguém vai te dizer que NÓS produzimos ciência. NÓS, que somos os OUTROS dos
pesquisadores, os pesquisados, não produzimos ciência. Existe uma sutileza nas
intervenções, nas falas. Isso também é violência.
Estar no espaço acadêmico com um corpo que difere da maioria é um desafio.
A compreendermos como se deve jogar o jogo, é sangramento na certa. Com isso,
não quero dizer que não devemos estar na academia, mas que é necessário construir
de forma coletiva alternativas de sobrevivência. Ou melhor dizendo redes
afro-indigenoafetivas2.
As ações afirmativas nas Universidades são de suma importância, é uma luta do
movimento negro para garantia do direito de acesso ao ensino superior. De acordo
com a Nilma Lino Gomes:
O Movimento Negro conquistou um lugar de existência afirmativa no Brasil.
Ao trazer o debate sobre o racismo para cena pública e indagar as políticas
públicas e seu compromisso com a superação das desigualdades raciais,
esse movimento social ressignifica e politiza a raça, dando-lhe um trato
emancipatório e não inferiorizante. No caso do Brasil, o Movimento Negro
ressignifica e politiza afirmativamente a ideia de raça, entendendo-a como
2O termo afro-indígenoafetivas um conceito que venho desenvolvendo desde 2017. É uma rede de
compartilhamento de saberes, afetos e resistência construídas no coletivo de união de estudantes
indígenas e quilombolas.
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potência de emancipação, e não como uma regulação conservadora;
explicita como ela opera na construção de identidades étnico-racial
(GOMES, 2020, p.21).
Com os nossos corpos inseridos, começamos outros debates necessários, tais
como: permanência estudantil, currículo plural com autoras/es negras/os, negras/as
quilombolas e indígenas. A educação superior esteve e está estruturada para o
estudante branco ou para aqueles que se embranqueceram no meio do processo.
Por isso, é importante que a produção de conhecimento seja diversa e plural.
As ações afirmativas devem afirmar as nossas presenças no território acadêmico que se
diferem inclusive entre nós, e isso para nós não é um problema. Não somos apenas
corpos presentes, somos corpos pensantes
Os saberes nas comunidades tradicionais são coletivos, plurais e alcançam a
todos por meio de saberes e modos próprios. O povo negro quilombola carrega na
memória, no espírito e no corpo as heranças ancestrais que atravessam o tempo e
permanecem vivas em nossas danças, ritmos, batuques e no cotidiano.
Os nossos territórios são solos sagrados:
Para o povo quilombola, a terra não é um pedaço de chão, mas um
conjunto material e imaterial da vida desses povos, que se constitui em um
espaço cultural, político e territorial, que buscamos dentro do aparelho
estatal como cidadãos e como povos que somos. O que se reivindica, em
suma, é o respeito às diferenças e ao exercício pleno dos direitos de um
povo, que manteve seu território protegido durante um longo tempo sem a
presença do aparelho estatal. Não se trata de uma usurpação de poder ou
de competência, trata-se, em específico, da defesa de nossos territórios
históricos e da nossa história (DIAS, 2019, p. 43).
Na minha casa, os ensinamentos perpassam a escuta, a reflexão e a ação,
sendo assim desde muito novos, eu, meus irmãos, primos e primas ouvíamos: estude,
estudar é o único bem que não vão roubar de vocês!”. Essa fala ouvíamos
principalmente das matriarcas, que era importante estudar para ter um futuro
diferente delas. E muitas de nós ouvimos e praticamos, outras não. A maioria parou no
ensino fundamental.
Eu ouvi atentamente e segui em frente o sonho de ser “letrada”, era um sonho
coletivo, sonho das mulheres da minha família.
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Em concordância com Lélia Gonzalez “negro tem que ter nome e sobrenome”
por isso escrevo em extenso os nomes das minhas matriarcas: Maria Madalena
Quintiliano, Tereza Mariano dos Santos, Ana Carolina Bruno, Rita Felizardo de Jesus.
Os sobrenomes dos meus tios paternos me intrigavam, cada um tinha um
sobrenome diferente do outro. Algumas vezes perguntei, mas a resposta era sempre a
mesma: o seu avô que ia para cidade registrar as crianças. Como meu avô paterno
morreu antes do meu nascimento, fiquei sem resposta. Afinal, para a família isso não
era uma questão que importava.
Do lado materno, a minha mãe ficou com ônus de não ter sobrenome, pois
meu avô, ao ir registra-la, esqueceu de falar todo o nome e ficou apenas Maria
Madalena. Ao se casar acrescentou o Quintiliano do meu pai. Nós, as filhas e os filhos,
herdamos apenas o sobrenome do meu pai, isso chateava bastante a minha mãe. Era
uma conversa recorrente nas tardes de domingo na casa dos meus avós. Eu ouvia
atenta com o objetivo de solucionar tudo isso quando fosse para escola e aprendesse
como funciona o sistema para ajudar.
Um certo dia perguntei à minha mãe se ela queria acrescentar o sobrenome
Santos dos meus avós, ela disse que não, que para ela era tarde demais para fazer
essa mudança.
Esse foi meu primeiro questionamento acerca dos conhecimentos adquiridos
no banco escolar, eu havia demorado tanto para finalizar os estudos e entender o
funcionamento da estrutura que ela desistiu de fazer a mudança.
A EDUCAÇÃO É PARA TODOS?
O nosso território esteve por muito tempo localizado na zona rural, em volta
moravam poucas famílias. O bairro que se formou é praticamente da nossa família, no
entanto, com a criação dos condomínios populares em volta, foi aumentando a
quantidade de moradores. Mesmo com este aumento de moradores não temos escola
e creche para as mães que precisam trabalhar, é necessário se deslocar para uma
escola ou creche mais próxima, que caminhando a pé leva cerca de 30 a 40 minutos.
Quando criança caminhava na estrada de chão por várias horas para
frequentar a escola que ficava no centro da cidade. Era comum ouvir dos meus velhos
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que nós estávamos indo pra Trindade, ou seja, estávamos indo pra cidade3. O que
mudou daquela época foi que o asfalto chegou. E isso se deve à instalação de uma
empresa de couro nas proximidades que, para não ter prejuízos com os caminhões, fez
a parte que caberia à gestão pública.
Nas minhas lembranças é recorrente a imagem da minha Tia Terezinha com um
paninho na mão, esse pano era para limpar os pés ou sapatos que enchiam de poeira
ou de lama quando chovia. Nessa época, morávamos mais perto do centro da cidade,
na casa da minha avó paterna. A nossa casa era a parada para as pessoas que moravam
mais distantes e que iam para o centro da cidade fazer compras, estudar, “tomar
fôlego", deixar as bicicletas, e beber o chazinho da minha mãe.
Ao andar pela cidade sentíamos na pele, ou melhor dizendo na nossa pele
negra, os impactos do racismo nas ruas, nas instituições, em todos os lugares. Eram
constantes os olhares de desprezo e as constantes “brincadeiras” que remetiam aos
animais. Vi diversas vezes a mãe reagindo aos ataques racistas, naquela época os
ataques não tinham nome ou pelo menos não sabíamos. E assim a minha mãe
respondia aos racistas, mas eu nem sempre conseguia ser tão assertiva como ela. Teve
uma época, principalmente na escola, que não conseguia ter a força e a potencialidade
na fala, afinal era apenas uma criança preta. E, quem disse que criança preta em uma
estrutura educacional branca tem voz? Não temos, somos ignoradas.
De acordo com a pesquisadora Eliane dos Santos Cavalheiro:
O silêncio dos professores perante as situações de discriminação imposta
pelos livros escolares acaba por vitimar os estudantes negros. Este ritual
pedagógico, que ignora as relações étnicas estabelecidas no espaço escolar,
pode estar comprometendo o desempenho e o desenvolvimento da
personalidade de crianças e de adolescentes negros, bem como
contribuindo para a formação de crianças e adolescentes brancos com um
sentimento de superioridade (CAVALHEIRO, 2012, p. 33-34)
O racismo institucional afeta a vivência escolar das crianças negras, assim como
afetou a minha e de muitas outras. A evasão dos primos no ensino fundamental não foi
3É uma forma de se expressar das pessoas que moram nas zonas rurais ou distantes do centro da
cidade. Essa fala era comum entre os mais velhos da minha família.
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por conta do trabalho ou do casamento, foi pelas violências raciais e o silenciamento
da escola. O racismo atua na nossa subjetividade e nos adoece.
A educação por muitos anos foi negada para a população negra e as
consequências são inúmeras, estamos normalmente em subempregos tais como:
empregada doméstica, faxineira, vigias, seguranças, cozinheiras, entre outras. Apesar
do avanço significativo com a Constituição de 1988, muitos dos direitos assegurados
não alcançaram a todos, visto que a população negra continua sendo excluída dos
direitos básicos: saúde, educação, lazer e trabalho.
E essa foi a realidade da minha família, a maioria não tem estudo de cadeira
escolar e os seus conhecimentos são provenientes da experiência com a terra e a
oralidade. Apenas uma tia mais nova conseguiu finalizar o ensino médio e, depois de
alguns anos, voltou a estudar e es finalizando uma faculdade privada. Os demais tios,
para garantir a subsistência, tiveram que trabalhar na roça ou em “casa de família”.
A escola para mim e os meus irmãos era um pesadelo, todos os dias
chorávamos muito para não ir na escola. Porém, para minha mãe era importante
insistir na ideia que teríamos que aprender a ler e a escrever. Era doloroso, todos os
dias o racismo batia na nossa alma para nos lembrar que a escola não tinha letramento
racial, e que era preciso resistir. Porém, dentro de mim foi crescendo uma raiva dos
colegas, principalmente dos brancos que faziam questão de me infernizar e me dizer o
quanto eu era desprovida de beleza e inteligência.
E assim, eu ia para escola pela manhã e à tarde ia trabalhar com minha mãe
como empregada doméstica. Era um pouco cansativo, não tinha tempo para estudar
ou revisar as atividades porque sempre tinha muito trabalho, afinal nós éramos as
quase da família”.
Em uma dessas casas tinha uma biblioteca e eu ficava olhando os livros no
desejo de ter livros para estudar, mas não cabia à filha da empregada ter a
oportunidade de ler, apenas trabalhar. No entanto, sonhar ou imaginar me salvou em
algumas situações de violência.
Ao finalizar o ensino fundamental tínhamos duas opções: fazer contabilidade
ou magistério, dois cursos técnicos. Como tinha dificuldade com os números, optei
pelo magistério que tinha como objetivo formar professoras para as séries iniciais.
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Finalizei o curso em 2003. Durante o curso, algumas colegas estavam dando
aulas nas escolas primárias da cidade, outras passaram em concurso público e, eu me
sentia deslocada, com medo de assumir a sala de aula. Depois de algum tempo,
entendi que a minha insegurança era decorrente dos ataques racistas e das memórias
negativas da sala de aula enquanto aluna e também estagiária. Afinal, tínhamos que
dar aulas para garantir as horas de estágio e as professoras não tinham letramento
racial para coibir os atos racistas e/ou se perceber com uma pessoa que reproduzia o
racismo.
Depois de formada dei aulas como professora substituta, porém não passava
disso. Então, tive que procurar um trabalho para ter um salário fixo. Deixei alguns
currículos em empresas, escolas e lojas. No entanto, fui chamada para trabalhar na
cozinha da escola da Vila São Cottolengo4. Eu gostava de cozinhar para as crianças, mas
era um trabalho bem pesado, no qual você não pode pensar além do que lhe é
permitido.
Eu lia bastante e conversava com as professoras e secretarias nos intervalos.
Isso me fortaleceu no meu objetivo que era passar na UFG. Neste período prestei
vestibular algumas vezes para a UFG. Passava na primeira fase e não passava na
segunda, estes processos foram bem dolorosos, pois diversas vezes acreditei que não
tinha capacidade intelectual para estudar em uma universidade pública. Nessas
tentativas via minhas colegas finalizando o curso de pedagogia, elas me diziam que eu
tinha que fazer uma faculdade. No entanto, éramos de realidades distintas: elas eram
brancas e eu era negra.
Em umas das tentativas passei na segunda chamada, mas como estava
trabalhando como cuidadora e empregada doméstica em uma casa que ficava distante
da cidade, não recebi o recado que um amigo transmitiu à minha família e que, por sua
vez, transmitiu à “família” para a qual eu trabalhava, de que eu havia passado na
faculdade de letras.
A informação foi repassada para as pessoas que eu trabalhava, porém eles
decidiram não me avisar e perdi a vaga. Fiquei desesperada e fui atrás para saber se
4Organização filantrópica, possui um centro de internação de paciente, escola inclusiva e mais 300
pacientes permanentes e moram na instituição. Atendente pacientes pelo SUS e particular, e está
localizado na cidade de Trindade - Goiás.
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tinha como reverter a situação, ouvi de uma professora que ela lamentava muito, mas
tinham que seguir os prazos.
Fui pra casa chateada e continuei tentando até que, em 2009, o professor
Nilton José dos Reis Rocha, mais conhecido como Niltinho da Faculdade de Informação
e Comunicação entrou em contato com a Neide Alves de Oliveira Leite que era
coordenadora da comunidade. Ele explicou o Projeto Brabo que tinha como objetivo
fazer uma troca de experiência entre estudantes e professores brasileiros, bolivianos e
chilenos e as comunidades: quilombola, de catadores e indígenas para construir uma
comunicação comunitária a partir dos sujeitos.
E assim, fiz uma parte da oficina na cidade de Goiás e a segunda etapa na
Bolívia que foi desafiadora, porém enfrentei a experiência de interagir com outra
cultura.
Nesses meses que passei com os estudantes do curso era recorrente
questionamentos sobre o porquê eu não estudava na UFG. Às vezes respondia e
explicava que estava tentando, até que uma estudante da faculdade de jornalismo me
falou sobre o UFGInclui5e disse que havia reserva de vagas para estudantes das
comunidades tradicionais. Fui atrás para entender como funcionava, prestei vestibular
e optei pelo UFGInclui no curso de relações públicas.
O SONHO SE TORNOU REALIDADE. E AGORA?
No ano de 2011, comecei a fazer o curso de relações públicas e, na primeira
semana, percebi que o sonho estava se tornando aos poucos um pesadelo. Não
conseguia acompanhar a turma, tinha dificuldades simples para os outros estudantes.
Para mim era mais difícil compreender e executar tarefas, como: ligar um computador,
compreender os textos, fazer resenha, fazer matrícula, entre outras. Sem contar as
bolsas que eu não sabia como reivindicar. Passei os primeiros semestres trabalhando
como empregada doméstica para ter dinheiro para pagar as cópias de textos.
Para mim, foi difícil entender o universo acadêmico e a falta de afeto e empatia
uns com os outros. Por um tempo fiquei procurando outros estudantes indígenas e
5Programa de ação afirmativa da Universidade Federal de Goiás que reserva duas vagas extras em todos
os cursos de graduação: uma vaga para indígena e uma vaga para negro quilombola, além de quinze
vagas para estudantes surdos do curso letras-libras.
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negras/os quilombolas e não os encontrava. As minhas buscas muitas vezes
terminavam com a resposta da Prograd: “Não podemos revelar, é necessário manter a
proteção do estudante cotista”.
O meu nome, por exemplo, deveria ter sido protegido se compreendemos por
essa lógica da instituição, porém, na lista de aprovados, o meu nome veio com um
asterisco sinalizando a reserva de vaga. Essa suposta proteção gerava invisibilidade,
solidão e evasão dos estudantes do programa UFGInclui.
Segui a busca por mais informações sobre outras/os ingressantes pelo
UFGInclui, provavelmente deveria ter outros estudantes que passavam o mesmo que
eu, era necessário aquilombar (NASCIMENTO, 2006) formar redes de solidariedade,
afetos e compartilhamento.
COLETIVO UNIÃO DOS ESTUDANTES INDÍGENAS E QUILOMBOLAS DA UFG
O Coletivo União dos Estudantes Indígenas e Quilombolas da UFG (Uneiq)
surgiu em abril de 2013, em um primeiro momento por iniciativa da Pró-Reitoria de
Graduação (Prograd), com o intuito de reunir os discentes indígenas e quilombolas
para conversar sobre as suas trajetórias na universidade. Recebemos uma ligação do
professor Jean Tiago Baptista, coordenador de Inclusão e Permanência da Prograd/UFG
e do UFGInclui. Lembro que eu não queria falar com ele sobre o programa UFGInclui,
uma vez que tentei por diversas vezes contato para saber dos demais estudantes e não
obtive resposta. No entanto, ele foi bem acolhedor, conversamos mais de duas horas, e
ele disse que era importante a presença de cada estudante na primeira reunião para
que ouvissem as nossas demandas.
Sendo assim, a primeira roda de conversa aconteceu no Núcleo Takinahakde
Formação Superior Indígena6, um espaço de existência e respiro dentro da UFG. Os
relatos emocionantes e os sentimentos de exclusão e não pertencimento, de certa
maneira, nos atravessam profundamente. Aliado a isso, experimentamos o racismo
institucional, preconceitos, inclusive o linguístico, e xenofobia. Um dos colegas
indígenas, estudante de medicina, nos falou da sua experiência em sala de aula.
6Conhecido também “oca”, o Núcleo está ligado à Faculdade de Letras, oferece o curso de licenciatura
em Educação Intercultural e é uma graduação em alternância voltado à formação de docentes indígenas.
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Segundo ele, o professor de uma determinada disciplina pediu para que os alunos
formassem grupos para a realização de um trabalho, e ninguém quis formar grupo com
ele, fizeram um sorteio para saber em qual grupo ele ficaria. Nos contou com lágrimas
nos olhos e afirmou que estava aguentando todas as dificuldades porque queria se
tornar médico para ajudar a sua comunidade. Outros estudantes indígenas e
quilombolas afirmaram que eram recorrentes comentários como: “foi você que
escreveu isso?”; “não estou entendendo o que você es dizendo”; “o que é que eu vou
fazer com você? olha como você escreve!”; cuidado com o plágio!"; “mulher na
engenharia, comigo não passa!”.
Na primeira semana de aula na graduação, um professor branco me fez a
seguinte pergunta: “Marta, as mulheres negras são boas de cama?” Eu respondi:
“Professor, durmo bem! Nunca tive insônia”. Ele deu um sorrisinho de canto de boca e
eu disse que não havia entendido a pergunta dele. Eu não respondi, a sala inteira sorriu
e, depois desse episódio, ele nunca mais me deixou em paz com piadas, notas baixas e
trabalhos extras. Esses episódios de racismo eram e ainda são muito recorrentes na
instituição.
Por isso, na reunião da Uneiq, foram sugeridas algumas medidas para a
instituição, para que nós estudantes pudéssemos ter uma trajetória acadêmica com
tranquilidade, respeitando os nossos saberes e as nossas culturas. As medidas foram:
Bolsa emergencial, avaliação do UFGInclui feita por nós; liberação de ônibus para os
encontros nacionais indígenas e quilombolas; monitoria de português e matemática;
moradia estudantil UFGInclui; campanha de combate ao racismo e à xenofobia; isenção
no restaurante universitário; espaço para descanso e estudo; acesso a computadores;
recepção dos novos estudantes; outdoor com a cara” da universidade que almejamos.
Essas foram as reivindicações do grupo, uma universidade na qual a população se
reconhecesse.
Estavam presentes o Pró-Reitor de Graduação, professor Luiz Mello de Almeida
Neto, o coordenador de inclusão e permanência, professor Jean Baptista, a
coordenadora de ões Afirmativas professora Luciene de Oliveira Dias, e a professora
Maria Clorinda Soares Fioravanti. Eles se comprometeram a auxiliar o coletivo no que
fosse necessário para a permanência dos discentes na universidade.
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Na imagem abaixo estão os estudantes do programa UFGInclui que
compareceram na reunião chamada pela Prograd. Éramos de cursos de várias áreas:
medicina, enfermagem, odontologia, letras, comunicação, dança, agronomia, ciências
contábeis, história e direito.
Imagem 1: Primeira roda de conversa de estudantes do UFGInclui e docentes da UFG
Fonte: Arquivo pessoal, 2013.
O grupo se reuniu durante algum tempo para reivindicar direitos e se fortalecer
como grupo, uma vez que saímos da invisibilidade. Com as reuniões, alguns alunos que
não tinham bolsas do MEC resolveram a sua situação e passaram a receber. No
entanto, essa bolsa era constantemente questionada por parte de alguns servidores
com o argumento de que a bolsa era um privilégio. Para nós, é uma parte da reparação
histórica, e quem vive em Goiânia sabe que o custo de vida é alto, além da dificuldade,
por conta do racismo que estudantes indígenas, negra/os e negra/os quilombolas
passam para conseguir alugar quitinetes minúsculas com preços altos.
Nós tivemos reuniões a cada dois meses e as demandas eram encaminhadas
para o coordenador do UFGInclui, professor Jean, sempre disponível para resolver os
problemas. Juntos criamos o projeto “Universidade na comunidade” que foi
fundamental para o aumento do número de estudantes indígenas e negras/os
quilombolas na UFG. No gráfico abaixo, os dados da quantidade de estudantes desde o
primeiro ano do UFGInclui mostram um crescimento significativo em 2016 e 2017.
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Imagem 2: Dados do programa UFGInclui 2009 a 2017
Fonte: Prograd-UFG
O coletivo Uneiq foi de suma importância para o crescimento dos números de
estudantes do programa UFGInclui. Foram feitas ões estratégicas pontuais para
alcançar uma quantidade maior de candidatos/as às vagas, tais como: divulgação do
programa nas comunidades, vídeos explicativos feitos pelo estudante quilombola Alex
Maia para candidatas/os que moravam em comunidades sem acesso à internet;
ligações para os presidentes da comunidade para divulgar o programa.
Neste período foi criado o espaço de convivência que, por muitos anos, foi um
lugar de respiro, de risadas e de descanso. No entanto, nos últimos anos as políticas de
permanência vêm sendo desmontadas com o discurso de que a universidade não tem
verba para continuar garantindo as políticas que foram conquistadas com muita luta. É
muito doloroso perceber que nós, estudantes indígenas e negras/os quilombolas, não
somos prioridade para instituição. Sem ões para a permanência, os resultados são a
evasão, conforme aconteceu nos primeiros anos de programa UFGInclui.
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Imagem 3: Espaço de Convivência - oficina de estandarte com referências negras/os
quilombolas
Fonte: Arquivo pessoal, 2019
É necessário que as universidades tenham políticas que assegurem a entrada, a
permanência e a continuidade da formação para aquelas/es que desejem seguir na
pós-graduação stricto sensu. Nós estudantes indígenas e negras/os quilombolas,
quando terminamos a graduação, não mudamos a nossa condição econômica, por isso
é necessário que as políticas de ação afirmativa se estendam para a pós-graduação.
Incluir não é apenas gerar vagas. Para que de fato exista a inclusão é preciso
dialogar com as/os estudantes sobre suas demandas, garantir a entrada, a
permanência e a conclusão.
E PARA (NÃO) CONCLUIR
Depois de tanta luta cheguei na pós-graduação, estou no doutorado em
Antropologia Social da UFG (PPGAS-UFG). É uma conquista importante para a minha
comunidade e para a sociedade, que nossas produções acadêmicas contêm outros
saberes, conhecimentos e modos de produção.
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E antes de passar no mestrado em Antropologia Social tentei o processo
seletivo na comunicação social e fui reprovada na primeira etapa, fiquei frustrada. Fui
consolada pelos amigos dizendo para fazer em outro programa ou para me preparar
melhor, ou seja, compreender como se dava o ritual de entrada nos programas de
pós-graduação.
Esse processo seletivo me fez refletir sobre a continuidade nos estudos para
estudantes negros/as, indígenas e negros/as quilombolas, pensei em como seria se
quisermos dar um passo a mais e ir para o mestrado ou o doutorado. Sendo assim,
resolvi fazer um projeto para a seleção do mestrado no PPGAS/UFG como proposta de
pesquisa na linha “Etnopolítica, Resistências e Transformações Epistemológicas”. A
temática a ser estuda era sobre os entraves no processo seletivo dos programas de
pós-graduação da UFG.
Passei nas etapas, comemorei e voltei para a realidade sobre a permanência:
como se manter sem a bolsa na pós? No PPGAS para conseguir a bolsa passamos por
um edital afirmativo que não leva em conta apenas o mérito dos primeiros lugares,
tem alguns outros pontos que são levados em consideração, como por exemplo: a
questão racial, se é mãe, a distância geográfica e outras coisas.
Em 2018, quando participei de um congresso intitulado II Seminário e
Estudos Africanos: Estação, Nação e Cultura para além das Fronteiras” e do Grupo de
Trabalho “Colonialidade do Saber e as Epistemologias do Sul: a Descolonização da
Mente como Possibilidade Emancipatória” na Universidade de Integração Luso
Afro-Brasileira (Unilab) na cidade de Redenção (CE), a minha pesquisa tomou outro
rumo, comecei a pensar fortemente nas redes de ajuntamento, afetos,
compartilhamento entres os estudantes do UFGInclui. Para mim, não bastava apenas
estudar os processos de exclusão recorrentes na pós-graduação, tornou-se necessário
pensar na potência dessas redes.
Nas minhas conversas com as/os estudantes pude olhar para a minha pesquisa
com um olhar de estranhamento, e isso foi uma virada de pensamento que não
afirmava apenas as exclusões. A solidão no início da graduação não era mais uma
realidade, éramos um pequeno quilombo universitário. “Nós construímos afetos
através das rodas de conversas, eventos, viagens acadêmicas ou quando levamos um
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amigo indígena ou quilombola para conhecer os nossos lares” (QUINTILIANO, 2019,
p.27).
A rede afro-indígenoafetivas é e foi um espaço de construções, reflexões,
desafios para nós. A entrada de estudantes negros/as quilombolas e indígenas na pós,
acendia o desejo de mais estudantes do UFGInclui em dar continuidade aos seus
estudos.
Por inúmeras vezes estive junto com as minhas e os meus parceiros lendo
projeto, adequando os textos de acordo com os programas que o estudante iria
concorrer, trouxe para perto os estudantes da pós do PPGAS que tem o inglês como
segunda Língua para dar dicas, fazer roteiro de leitura direcionada, revisão de textos.
Não consigo viver sem aquilombar, sem pensar nas redes que vamos criando para
suavizar a nossa trajetória dentro da academia.
Se não podemos mudar o sistema, por enquanto, temos que aprender como
ele funciona e perfurar as bolhas meritocráticas que instem em permanecer mesmo
com as ações afirmativas em todos os cursos de pós-graduação da UFG. E os programas
tem autonomia em relação ao processo seletivo, alguns tem sensibilidade em dar uma
maior atenção às cotas e outros nem tanto. Ainda temos cursos de pós reprovando
estudantes e mantendo uma estrutura elitista e branca.
Precisamos avançar, queremos e necessitamos de uma Universidade mais
colorida e plural.
REFERÊNCIAS
CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do Silêncio do Lar ao Silêncio escolar: Racismo,
preconceito e discriminação na educação infantil. 6ªed- São Paulo: Contexto, 2012.
DIAS, Vercilene Francisco. Terra versus território: uma análise jurídica dos
conflitos agrários internos na comunidade quilombola Kalunga de Goiás. 2019
Dissertação (Mestrado em direito agrário). Faculdade de direito, Universidade Federal
de Goiás. Disponível em: http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/9607. Acesso
em: 3 de dezembro de 2022.
EVARISTO, Conceição. Nossa escrevivência. S.d.2015. Disponível em:
http://nossaescrevivencia.blogspot.com/ . Acesso em: 2 de dezembro de 2022.
GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: Saberes construídos nas
lutas por emancipação. Petrópolis -RJ: Vozes, 2017. 5ªreimp.2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Trad.
Jess Oliveira. Ed. Cobogó. 2019.
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NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra”.
In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. SP:
Instituto Kuanza, 2006.
QUINTILIANO, Marta. Redes Afro-indígenoafetivas: Uma Autoetnografia sobre
Trajetórias, Relações e Tensões entre cotistas da Pós-Graduação stricto sensu e Políticas
de Ações Afirmativas na Universidade Federal de Goiás. 2019 Dissertação (Mestrado
em Antropologia Social). Faculdade de Ciências Sociais, Universidade Federal de Goiás,
disponível em: http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/12201. Acesso em: 29 de
set.2022
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