https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v28n1p50-65
Vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
ISSN: 2179-6807 (online)
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PPGDS/Unimontes-MG
A IMPORTÂNCIA DA ORALIDADE PARA OS ESTUDOS SOBRE A MULHER
NO FUTEBOL BAIANO: REVISITANDO MEMÓRIAS
Enny Vieira Moraes
1
Nivalda Pereira Coelho
2
Felipe Eduardo Ferreira Marta
3
Aprovado em: 13/08/2022
Resumo: Os movimentos em torno da presença das mulheres nos diferentes espaços da
sociedade, inclusive no futebol, têm gerado uma série de reflexões relacionadas aos espaços de
lutas por reconhecimento e igualdade nos esportes. Desta forma, o presente artigo objetiva
abordar aspectos que revelam e destacam a força da metodologia da história oral em estudos
anteriores realizados pelas autoras e pelo autor. Estes estudos evidenciaram memórias de
mulheres que contestaram uma lógica social preestabelecida dos lugares que elas devem ocupar
na sociedade. Assim, revisitou-se aspectos presentes nos relatos de Maria Neide e Risalva, duas
praticantes de futebol atuantes na década de 1980 no interior baiano, que assim como muitas
mulheres carregam uma trajetória de vida permeada por lutas em busca de reconhecimento e
visibilidade social. O uso da história oral possibilita um contato diferenciado com a história,
que utiliza da memória enquanto meio para se chegar aos resultados. Desta forma, conclui-se
que os relatos orais, as narrativas e as histórias sobre o passado ajudam a compreender os
processos que permeiam a vida das pessoas, das comunidades, das coletividades, permitindo
desvelar a complexidade que marca a vida cotidiana e as contradições inerentes às relações de
poder incorporadas aos processos sociais vigentes.
Palavras-chave: Mulheres. História oral. Futebol de mulheres. Memória. Sociedade.
THE IMPORTANCE OF ORALITY FOR STUDIES ABOUT WOMEN IN BAIANO FOOTBALL:
REVISITING MEMORIES
Abstract: The movements around the presence of women in different spaces of society,
including football, have generated a series of reflections related to the spaces of struggle for
recognition and equality in sports. Thus, this article aims to address aspects that reveal and
highlight the strength of the oral history methodology in previous studies carried out by the
authors and the author. These studies evidenced memories of women who challenged a pre-
1
Doutora em História Social pela PUC/SP. Professora Adjunta do Departamento de Educação (DEDC),
Campus II, Alagoinhas-BA da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-2771-2003. E-mail: e.vieira.moraes@gmail.com.
2
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (UESB). Bolsista
FAPESB. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6580-1269. E-mail: nyvia.uneb@outlook.com
3
Doutor em História pela PUC-SP. Professor Pleno do Departamento de Ciências da Saúde (DCS) da
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e
Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
0501-4298. E-mail: fefmarta@uesc.br
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established social logic of the places they should occupy in society. Thus, aspects present in the
reports of Maria Neite and Risalva were revisited, two soccer practitioners active in the 1980s
in the interior of Bahia, who, like many women, carry a life trajectory permeated by struggles in
search of recognition and social visibility. The use of oral history allows a differentiated contact
with history, since it uses memory as a means to reach the results. In this way, it is concluded
that oral reports, narratives and stories about the past help to understand the processes that
permeate the lives of people, communities, collectivities, allowing to unveil the complexity that
marks everyday life and the inherent contradictions. to the power relations incorporated into
the prevailing social processes.
Keywords: Women. Oral history. Women's footbal. Memory. Society.
LA IMPORTANCIA DE LA ORALIDAD PARA LOS ESTUDIOS SOBRE LA MUJER EN EL FÚTBOL
BAIANO: REVISANDO LAS MEMORIAS
Resumen: Los movimientos en torno a la presencia de la mujer en diferentes espacios de la
sociedad, incluido el fútbol, han generado una serie de reflexiones relacionadas con los espacios
de lucha por el reconocimiento y la igualdad en el deporte. De esta forma, este artículo pretende
abordar aspectos que revelan y resaltan la fortaleza de la metodología de la historia oral en
estudios previos realizados por los autores y la autora. Estos estudios evidenciaron memorias
de mujeres que desafiaron una lógica social preestablecida de los lugares que debían ocupar en
la sociedad. Así, se revisaron aspectos presentes en los relatos de Maria Neite y Risalva, dos
practicantes de fútbol activas en la década de 1980 en el interior de Bahía, que, como muchas
mujeres, llevan una trayectoria de vida permeada por luchas en busca de reconocimiento y
visibilidad social. El uso de la historia oral permite un contacto diferenciado con la historia, ya
que utiliza la memoria como medio para llegar a los resultados. De esta forma, se concluye que
los relatos orales, narrativas y relatos sobre el pasado ayudan a comprender los procesos que
permean la vida de las personas, comunidades, colectividades, permitiendo develar la
complejidad que marca la cotidianidad y las contradicciones inherentes al poder. relaciones
incorporadas a los procesos sociales predominantes.
Palabras-clave: Mujeres. Historia oral. Fútbol feminino. Memoria. Sociedad.
INTRODUÇÃO
Tal qual um reflexo do que ocorre com os movimentos em torno da presença das
mulheres nos diferentes espaços da sociedade, os debates acerca da participação
feminina no futebol têm sido capazes de gerar uma série de reflexões relacionadas aos
espaços de lutas das mulheres por reconhecimento e igualdade no “campo esportivo”
4
.
Para Pisani (2012), os problemas enfrentados pelas mulheres, principalmente no
cenário do futebol brasileiro, têm sua gênese nos seus primeiros momentos de vida,
pois quando uma criança do sexo masculino nasce é comum que ganhe presentes como
4
A categoria “campo esportivo” é empregada neste artigo tendo como referência os estudos de Pierre
Bourdieu (1983).
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roupas de times, sapatinhos com formatos de chuteiras ou bolas, o que não é comum
quando se trata do sexo feminino.
No âmbito social, esses debates trazem contribuições principalmente
relacionadas às poucas produções teóricas em torno dessa temática, além da
possibilidade de reconhecimento e enaltecimento da luta das mulheres pelo espaço no
futebol, principalmente no interior baiano, o que reafirma a busca por espaços dentro
da sociedade em geral. Nesse sentido, ganha relevo e significância o intento do presente
estudo em lançar luz sobre as memórias de ex-atletas baianas, algo que possibilita não
apenas o reconhecimento individual destas jogadoras, mas também promove o
nascimento de debates teóricos acerca da inserção das mulheres no esporte e em tantos
outros lugares antes compreendidos como pertencentes aos homens, em especial no
contexto baiano.
Falar sobre o futebol de mulheres no Brasil exige certa contextualização a fim de
que todo processo de inserção e permanência nessa prática, que se encontra em
andamento, seja compreendido pelo leitor. De acordo com Moraes (2012), os primeiros
times de futebol de mulheres do Brasil surgiram em meados da década de 1960 com a
realização de competições em cidades de Minas Gerais. Neste início, assim como em
outras situações posteriormente vivenciadas pelas mulheres neste esporte, muitos
foram os casos de preconceito que dificultaram sua prática. Essas interferências
partiram de órgãos legislativos e também da igreja, para quem as mulheres não
deveriam expor suas pernas correndo atrás de uma bola (MORAES, 2012).
Ao longo dos anos, as mulheres começaram a perceber que, assim como os
homens, também fazem parte da construção histórica da sociedade e que é um grupo
que deve atuar de acordo com as demandas existentes ao seu redor. Foi então que
começaram a surgir as reivindicações políticas e sociais, além da criação dos coletivos
“feministas” a fim de lutarem pela igualdade dos sexos (PERROT, 2019).
A partir dessas lutas feministas, muitos espaços foram e estão sendo
conquistados pelas mulheres em diferentes âmbitos, sejam eles social, político, cultural,
de lazer ou profissional, e isso pode ser notado em diferentes lugares, inclusive em
cidades do interior baiano que possuem contextos históricos e uma visão de mulher tão
condizente com os moldes tradicionalistas de divisão dos sexos. No entanto, muitas
barreiras ainda precisam ser quebradas, como é o caso da prática esportiva, ou ainda da
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prática do futebol, considerado um campo recente de atuação das mulheres,
principalmente em regiões do interior nordestino.
Quando decidimos aceitar o desafio de discorrer sobre a relação e importância
da oralidade, enquanto método de pesquisa nos estudos que envolvem a história,
tínhamos ciência da responsabilidade que representa tal desafio. Assim, neste breve
texto, pretendemos abordar, sem a intenção de encerrar essa discussão, aspectos que
revelam e destacam a força dessa metodologia em estudos realizados entre os anos de
2008 a 2012 e 2019 a 2021 que evidenciaram memórias de mulheres que se colocaram
em contraposição a uma lógica social preestabelecida que busca determinar os lugares
que elas devem ocupar.
Ouvir estas mulheres, antes desconhecidas de um público mais amplo, e
posicionar suas memórias dissonantes no centro do debate se torna importante pela
força que nos foi revelada nos depoimentos colhidos. Durante o percurso destas
pesquisas concretizadas com mulheres do futebol baiano, para além de materializar um
novo olhar sobre a história do futebol, o contato próximo com elas nos impôs reflexões
e questões que até hoje dialogam em nossa memória e dizem respeito à luta que não
se restringia ao direito de exercer uma prática esportiva, mas indicava a ousadia das
futebolistas de serem mulheres outras à margem de um padrão social normativo que
historicamente buscou defini-las.
Ao definir como objeto de pesquisa as mulheres do futebol na Bahia que atuaram
na modalidade entre as décadas de 1970 a 1990, buscamos as fontes documentais em
acervos de revistas e jornais da época, bibliotecas e da TV Itapoãn, emissora da cidade
de Salvador. Esta última, por meio de depoimentos colhidos já durante a pesquisa com
as entrevistadas, teria sido uma das únicas a transmitir jogos e entrevistas com as atletas
durante os campeonatos estaduais que ocorreram durante a década de 1980. No
entanto, sem encontrar quaisquer pistas a respeito dessas futebolistas, ficou claro que
somente a partir das memórias daquelas mulheres poderíamos realizar tal estudo.
Entretanto, ainda havia outro obstáculo para falar e contar as histórias dessas mulheres:
onde encontrá-las? Da falta de pistas a uma grande rede de informações que se formou
e possibilitou a realização da pesquisa foi “um pulo”: elas estavam lá e muito dispostas
a falar.
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Assim, neste artigo, a proposta é revisitar aspectos presentes no relato de duas
atletas que atuaram no futebol de mulheres do interior baiano em meados das décadas
de 1970 e 1980 e que fizeram parte de estudos anteriores
5
. Aqui pretendemos lançar
mão de pequenos recortes das memórias e dos depoimentos que nos foram cedidos
com o intuito de destacar a força e a riqueza presentes naqueles relatos que serviram
como aportes para os estudos citados anteriormente. Nesse sentido, selecionamos
alguns fragmentos da entrevista concedida por Maria Neide Cruz Sampaio,
carinhosamente conhecida como Neidinha, natural da cidade de Jequié/BA, que atuou
no futebol daquela cidade na transição entre as décadas de 1970 e 1980, pois até hoje
suas palavras continuam reverberando em nosso pensamento, revelando para sempre
a força e a potência da memória e da oralidade para a pesquisa. Utilizamos também
fragmentos da entrevista realizada com Risalva Magalhães de Oliveira, natural de Vitória
da Conquista/Ba, mas que desde a infância estabeleceu moradia na cidade de
Guanambi/Ba, onde atuou no futebol na década de 1980.
MARIA NEIDE: “[...] O PRECONCEITO, ELE DAVA LUGAR [...] AO ORGULHO!”
Maria Neide Cruz Sampaio era nossa conhecida por sua importante e
destacada atuação junto ao PCdoB de Jequié, mas nunca imaginaríamos que ali estava
uma das referências do futebol de mulheres daquela cidade. Essa observação é
importante porque fala sobre o esquecimento imposto a tantas histórias de mulheres,
e aqui destacamos as mulheres do futebol que cotidiana e paulatinamente reconstroem
suas vidas, suas trajetórias e ajudam a recontar a história da nossa sociedade.
A falta de recursos financeiros da família foi o que a fez integrar um dos times de
maior destaque na cidade naquele período, o Santos de Caculé. A partir dos seus
depoimentos, pudemos saber muito mais sobre sua vida e sua infância. Marcou-nos de
forma mais profunda ter ciência do quanto foi pesado para ela e toda sua família o
falecimento de seu pai. Além da perda de um pai amoroso e muito querido, esse
momento também significou uma grande diminuição de recursos para a família, já que
ele era o arrimo financeiro da casa, além de ser uma figura que representava uma forte
segurança, inclusive emocional do grupo familiar. Seu falecimento havia fragilizado todo
5
Para mais informações consultar Moraes (2012) e Coelho (2021).
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o grupo, inclusive a mãe de Neide que vivia chorando, preocupada em manter a
sobrevivência dos filhos ainda crianças e adolescentes, além da falta que sentia do
companheiro.
Esse momento familiar conturbado exigiu de todas aquelas pessoas se
reestruturarem e, nesse processo, descobrirem dentro de si e coletivamente uma força
ainda desconhecida. Como nossa depoente afirmou, precisou desenvolver atividades
para ajudar em casa, tais como: vender alface na feira, carregar feira, lavar roupa e pegar
madeira numa madeireira próxima, o que ajudava no cozimento de alimentos no
fogãozinho a lenha, entre outras atividades. Seu empenho em ajudar sua mãe e os/as
irmãos e irmãs, num total de seis, também ocorreu em razão da difícil recuperação de
sua genitora com a perda do marido e pela compreensão dos obstáculos que os/as
filhos/as e ela teriam que enfrentar para sobreviver.
Esses fatos ocorreram em meados da década de 1970 naquela cidade do interior
baiano, quando Neide transitava entre a infância e adolescência. Ao mesmo tempo em
que vivia as dificuldades impostas pela realidade, nossa depoente lembra de forma
saudosa dessa época, pois tinha a possibilidade de brincar na rua com as/os amigas/os
dessa época, segundo ela, um período de muita liberdade. E foi brincando na rua,
correndo, caçando passarinho que recebeu o convite para ingressar no futebol
jequieense. Nesse sentido, um fato a ser destacado em seu depoimento é uma
descrição, a partir de sua compreensão, do perfil das meninas que foram convidadas a
integrar aquele que foi um dos times que marcou a história da cidade:
[…] eles não queriam qualquer menina, eles queriam aquelas meninas que
se destacaram, que você via que eram aquelas meninas que conversavam,
que tinham iniciativa, que não eram tímidas que tavam naquele meio ali.
6
O esporte em Jequié estava em expansão de acordo com depoimentos da
comunidade local, e por isso alguns visionários resolveram apostar no futebol para as
meninas, o que resultou na criação de alguns times como o Santos de Caculé, do qual
Neide viria a tomar parte. Um aspecto importante para ela, tornando possível seu
ingresso e de outras garotas, foi o fato de não terem que pagar para praticar o esporte,
que suas famílias não tinham verba disponível para isso. Mas a atitude daquelas
6
Depoimento de Maria Neide Cruz Sampaio realizado em agosto de 2009, na cidade de Jequié-BA.
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garotas, cheias de iniciativa, determinação, destemidas, livres, chamou a atenção dos
organizadores dos times de acordo com nossa depoente. Afinal de contas, estamos
tratando de uma novidade para o período: mulheres/meninas jogando futebol em uma
cidade do interior nordestino! E, para realizar essa tarefa, ou ousadia, era de se esperar
que apenas um grupo bastante seleto de garotas aceitaria encarar toda aquela
exposição.
Tudo era feito de forma improvisada, mas havia um técnico que conseguia os
locais de treino, uniformes, lanches, ou seja, o básico para o time funcionar. Mas as
dificuldades que viveram transformaram todo aquele processo em um grande desafio
que aquele grupo de garotas do Santos de Caculé decidiu abraçar, o que fez desenvolver
entre elas um forte sentimento de coletividade, pois tinham um desafio real a enfrentar
e uma conquista a realizar. Neide lembra ainda o caráter de novidade que representava
para elas o futebol, como também para a comunidade local que, aos domingos à tarde,
mantinha como certa a programação de se dirigir ao Estádio Valdomirão
7
para
acompanhar os jogos de futebol de mulheres.
Com a realização dos jogos e as disputas entre os times da cidade, o Santos de
Caculé passou a fazer um sucesso inesperado ao ponto de ser convidado a jogar em
cidades vizinhas e distritos como Ipiaú, Itajuru e Florestal, localizados nos arredores da
cidade de Jequié. Muitas vezes o técnico Flor
8
conseguia até um carro da prefeitura para
o transporte do time. E para aquelas meninas que já conheciam as dificuldades da vida,
especialmente pela precariedade econômica que suas famílias enfrentavam, o que
significava a exclusão e ausência de outras oportunidades, estar num time de futebol
certamente se tratou de uma experiência inesquecível, realizando conquistas,
vivenciando vitórias e um certo reconhecimento social enquanto grupo.
Embora com as vitórias as meninas começassem a se tornar figuras conhecidas
na cidade, sendo ainda valorizadas pelo desempenho em campo, uma das maiores
resistências que Neide enfrentou ocorreu no interior de sua própria casa. Sua mãe não
a apoiava, pois não compreendia ser o futebol algo próprio da natureza feminina. Muito
ao contrário, mulher muito católica, para ela, a mulher deveria obedecer a padrões
7
Estádio Valdomiro Borges localizado na cidade de Jequié-BA.
8
Flor foi um importante personagem na história do futebol feminino local, dedicou-se a treinar várias
garotas de Jequié nessa modalidade esportiva, inclusive aquelas do Santos de Caculé.
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como a docilidade, subserviência ao marido e a Deus, ter uma vida dedicada ao espaço
doméstico, enfim, determinações que a filha não seguia. Como aquela não deveria ser
uma atividade reconhecida, ou naturalizada, Neide se recorda que seu irmão mais velho
até assistia aos jogos, mas escondido, demonstrando certa vergonha da escolha que a
irmã havia feito, como do seu comportamento.
A pouca ou quase nenhuma estrutura para o futebol delas era uma realidade.
Todo o material era emprestado dos times dos garotos, inclusive as vestimentas. As
meninas tinham de exclusividade os Kichutes
9
da escola para participar do time. No
caso de Neide, pegava as roupas de seu irmão mais velho que a via jogar escondido e
que também praticava o futebol.
Em um desses dias de jogos, enquanto se preparava em casa, colocando as
roupas, o Kichute e os demais aparatos para mais uma partida, seu irmão mais velho
surgiu no quarto e lhe disse que estava parecendo com ele “E no meu caso, tudo isso, e
também no caso de todas as outras motivava! Porque quando a gente botava aquela
roupa... (pausa)’”
10
. Ao ouvir essa frase, nossa depoente fez uma pausa e fechou os
olhos como quem se transporta aos mais profundos recônditos da memória. Interpretar
o que havia acabado de ouvir do irmão, alguém que “substituiu” o lugar do pai, havia
reconhecido nela seu valor e força. E como ela mesma disse em depoimento logo em
seguida: “Veja, o preconceito existia, indiscutivelmente... (mas) uma das coisas que a
gente observava nas apresentações é que o preconceito, ele dava lugar a... ao orgulho
das pessoas que estavam ali assistindo (...).”
11
A riqueza das palavras de Neide expressas através de suas memórias forneceu
um bom sentido ao que podemos construir a partir da metodologia utilizada em nosso
estudo. Mesmo de forma simplista, podemos compreender que foi a partir do futebol,
mesmo rompendo com padrões definidos como “corretos” socialmente impostos às
mulheres, que nossa depoente pôde ser valorizada por sua família, reafirmando sua
identidade enquanto atleta. As vitórias trouxeram alegria para sua família e a
possibilidade de um reconhecimento que Neide e suas amigas que compunham o Santos
de Caculé jamais imaginariam merecer. Para ela, ouvir do seu irmão mais velho palavras
9
Na década de 1970, o Kichute era um tipo de calçado que se assemelhava a um tênis bastante utilizado
por alunos/as das escolas públicas, seria um tênis de modelo básico que integrava o fardamento escolar.
10
Depoimento de Maria Neide Cruz Sampaio, realizado em agosto de 2009, na cidade de Jequié-BA, p. 56.
11
Depoimento de Maria Neide Cruz Sampaio, realizado em agosto de 2009, na cidade de Jequié-BA, p. 57.
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que soavam como incentivo, considerado uma referência, especialmente quando da
ausência trágica e precoce de seu genitor, foi uma experiência única conquistada através
do futebol.
É necessário ressaltar o desprezo que foi fortemente direcionado às
meninas/mulheres que ousaram praticar o futebol no Brasil na década em questão,
como também em quase todo o século passado, como pode ser observado em pesquisas
e estudos acadêmicos como os de Kessler, Costa e Pisani (2020). Fora a discriminação
que sofreram, a elas se tentou impor o esquecimento e a invisibilidade como formas de
silenciar esses corpos em movimento que mexeram com estruturas dentro e fora das
quatro linhas.
Não obstante, elas persistiram histórica e heroicamente, não apenas para
defender o direito de praticar uma modalidade esportiva, mas e principalmente para
exigir respeito por terem o direito de ser e reivindicar socialmente um outro lugar para
a mulher em nossa sociedade. Essas meninas/mulheres não reduziram para si o espaço
doméstico como única possibilidade e independentemente de sua identidade de gênero
desejaram ocupar outros locais de atuação na esfera pública, para além do futebol.
Essas mulheres “diferentes” questionaram e desafiaram normas e lutaram por espaços
até então considerados como de pertencimento dos homens, como foi o caso do
futebol. Quiseram também ser técnicas, treinadoras, árbitras, mas também médicas,
advogadas, políticas, empreendedoras, enfim, exigiram o direito de ser o que queriam
ser e estar nos locais que entendiam que poderiam ocupar.
Nesse caso em particular, as memórias de Maria Neide, a despeito do fato de
estarem circunscritas ao interior da Bahia, se tornam emblemáticas e representativas
de um universo de possibilidades, um “ponto de vista de uma memória coletiva”, para
aquilo que se pensava/imaginava como “lugar de mulher”. Trazer para o centro do
debate suas experiências enquanto mulher atleta nos leva a indagar: quantas “Marias
Neides” questionadoras e transformadoras das estruturas sociais das cidades no interior
no Brasil ainda aguardam a oportunidade de serem ouvidas/reconhecidas? Se por um
lado não temos condições de neste estudo dar conta de todas essas mulheres, temos a
possibilidade de lançar luz sobre mais uma, como veremos a seguir.
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“EU FUI EXPULSA DESSE JOGO, E A GALERA QUERIA ENTRAR PARA BATER NO JUIZ
[...]”: RELATOS DA DESTEMIDA E GENIOSA RISALVA MAGALHÃES
Seguindo a ideia proposta de elencar as contribuições da oralidade para o
processo de visibilidade do futebol de mulheres no interior da Bahia, traremos um
recorte de uma dissertação de mestrado defendida no início do ano de 2021 por uma
das autoras deste artigo. Naquela pesquisa são apresentadas entrevistas com quatro
mulheres que atuaram no futebol em meados da década de 1980. No entanto, para este
artigo, traremos apenas algumas reflexões acerca de uma das entrevistas.
Desta forma, ainda quebrando uma lógica social que desconhece o futebol
enquanto esporte de prática e atuação das mulheres, traremos as memórias de Risalva
Magalhães de Oliveira, atuante no futebol de várzea da cidade de Guanambi/BA no
período mencionado acima, momento em que se formou o primeiro time de futebol de
mulheres na cidade. Natural de Vitória da Conquista, sudoeste baiano, Risalva mudou-
se para Guanambi ainda criança, onde vivenciou muitas experiências que guarda em sua
memória e que aceitou dividir conosco, especialmente em relação ao seu amor pelo
futebol.
[...] como todas as molecas néh, que fui sempre, eu gostava muito de bola,
gostava muito de, de, desde criança mesmo. Futebol era minha praia, ou
melhor, a bola era minha praia, gostava muito, desde a infância mesmo. Saía
para jogar com a molecada aqui e na escola também, começamos com
baleado na rua, fazíamos o campeonato aqui na rua mesmo, de baleado.
12
Outra memória especial partilhada pela entrevistada refere-se a sua participação
na formação do Vênus Futebol Clube, primeiro time de futebol de mulheres da cidade
de Guanambi. Embora Risalva e outras jogadoras que fizeram parte desse time tenham
afirmado que possuíam uma relativa qualidade técnica no futebol e até mesmo de certo
reconhecimento perante a sociedade local diante da animadora atuação em campo, o
período de permanência do grupo foi curto. Questões como falta de incentivo público e
as imposições sociais tradicionalistas que determinam os lugares em que as mulheres
devem ocupar perante a sociedade foram cruciais para que as pioneiras do futebol da
12
Depoimento de Risalva Magalhães de Oliveira em entrevista realizada em 12 de março de 2020, na
cidade de Guanambi-BA.
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cidade não atuassem por muito tempo. Com a finalidade de resgatar essas memórias e
torná-las visíveis para além da particularidade de cada uma dessas mulheres, buscou-se
o trabalho com a história oral por ser uma metodologia capaz de dar ouvidos às “[...]
vozes ocultas pelo saber oficializado, construído por meio de documentos
convencionais, principalmente escritos” (MEIHY, 2006, p. 197).
Falar sobre a presença de mulheres no futebol nas décadas de 1970 e 1980, e
mais ainda em cidades do interior nordestino, vai muito além da discussão sobre o
esporte. Para que essas mulheres conseguissem se inserir dentro da prática do futebol,
era necessário ir de encontro a uma série de questões sociais, inclusive no âmbito local,
que direcionavam em quais espaços elas deveriam estar ou ocupar. A ideia de
fragilidade feminina e de que a mulher deveria assumir a condição de mãe e dona do lar
era presente na cidade, o que dificultava a aceitação por parte da sociedade local.
Entretanto, no que se refere ao apoio familiar, Risalva relata que após perder seu pai e
ver seus irmãos como as principais representações masculinas da casa, obtinha todo
apoio nas suas escolhas, independentemente de quais fossem, inclusive a iniciação da
prática esportiva aos 12 anos de idade. Em algumas ocasiões, seus irmãos davam até
mesmo os materiais necessários para sua atuação em campo como chuteiras e os
uniformes se fosse preciso.
Risalva começou suas práticas esportivas através do baleado com grupos de
vizinhos e amigos, a atuação no futebol especificamente ocorreu apenas a partir das
aulas de Educação Física, porta de entrada para a formação do Vênus Futebol Clube. No
contexto local da década, as mulheres se dedicavam muito a essas aulas, pois era a partir
daí que conseguiam o acesso aos esportes. As idealizadoras do time foram meninas que
tinham em comum o amor pelos esportes e que praticavam outras modalidades como
voleibol, basquete e o handebol, como aponta o relato a seguir:
Jogávamos. Foi, participava de outros esportes. Aí através da turma lá, igual
eu conheci Rogéria, Edilene que nós estudávamos no mesmo colégio, no Luiz
Viana, que a gente jogava vôlei, jogava, todas elas jogavam outras coisas,
participavam de outros jogos, vamos montar o time de futebol. tinha
campeonato de futsal, a gente participava, era a gente, no futsal. Aí
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quando nós resolvemos montar o time, a gente começou, a gente era nova
demais.
13
Embora tenham conseguido formar o time e começado a treinar, vale ressaltar
que conseguiram ganhar visibilidade na cidade após a presença de duas figuras
masculinas no corpo técnico, Pedro e Zé Carlos. Pedro era irmão de uma das jogadoras
e Zé Carlos era um policial da cidade que em determinada situação viu o grupo jogando
e se ofereceu para treiná-las. Aqui percebemos como os valores locais vinculavam o
poder e o reconhecimento apenas para o masculino. Até o momento em que o time era
composto apenas por mulheres não conseguiu ascensão, isso só ocorreu após o policial
Carlos assumir a responsabilidade por elas. De acordo com Risalva: “Zé Carlos era
policial, ele era mais influente”
14
.
Mesmo tendo o suporte dos homens, as mulheres ainda tinham muitas
dificuldades, pois diante do contexto da década de 1980, a relação da mulher vinculada
ao futebol não era estabelecida pela população do interior baiano, menos ainda pela
sociedade local de Guanambi. Assim, tudo se tornava mais difícil para aquelas mulheres,
que manter um time participativo em competições e campeonatos exigia uma série
de investimentos e incentivos financeiros, e elas não tinham essa ajuda por parte de
nenhum órgão público ou político, menos ainda condições individuais de arcar com
todas as despesas, tornando-se necessária a busca por patrocínios dos comerciantes da
cidade.
Entre os patrocínios conseguidos pela equipe, estavam os uniformes, recordado
por Risalva por terem sido branco e verde. No entanto, por mais que essas empresas
concedessem esses patrocínios, não significava diretamente que elas estavam
reconhecendo o time enquanto uma seleção consistente e de representação para a
cidade. Essas ações partiam da vontade de presenciarem o espetáculo da aparição
feminina dentro de um campo praticando o futebol. A sociedade local via esse fato como
uma situação inusitada, como curiosidade em ver a mulher em um espaço caracterizado
enquanto masculino.
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Depoimento de Risalva Magalhães de Oliveira em entrevista realizada em 12 de março de 2020, na
cidade de Guanambi-BA.
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Depoimento de Risalva Magalhães de Oliveira em entrevista realizada em 12 de março de 2020, na
cidade de Guanambi-BA.
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Neste período inicial de atuação, o time de futebol de mulheres estabeleceu uma
ligação muito forte com o time dos homens da cidade, isso por dividirem o mesmo
espaço de treino, e o técnico Carlos ter relações com as duas equipes.
Normalmente quando havia jogos dos homens, as mulheres eram convidadas a jogar
antes, exatamente por entenderem que elas em campo atraíam muitos curiosos, assim
se tornava um incentivo para o aumento do público. Risalva recorda de um desses jogos
em que elas fizeram a abertura:
Entramos com bandeira e tudo, aquela coisa. Acho que foi um campeonato,
parece que foi a final de Guanambi com outro time aí se não me engano, que
nós fizemos a abertura. E foi a vez que nós jogamos com Espinosa. Deu gente,
eu lembro. Uma abertura feita por mulheres. E eu fui expulsa desse jogo
(risos). [...] Eu fui expulsa desse jogo, e a galera queria entrar para bater no
juiz (risos).
15
De acordo com seus relatos, Risalva se mostra uma mulher geniosa, que não se
intimidava dentro de campo, seja com os árbitros ou com as adversárias, mas, também,
não deixava que os problemas atrapalhassem a performance da equipe durante a
partida. Vestia a camisa de número 5 e assumia a posição de cabeça de área, atuando
um pouco mais à frente das zagueiras. Essa posição permitia que fizesse “[...] cada
lançamento pra Cida
16
. E Cidinha na cabeça, trá, de goleada (risos)”
17
.
A forma com que Risalva recorda esses momentos lhe permite trazer não só um
sorriso em seu rosto como demonstrou no momento, mas como afirma Halbwachs
(1990), as lembranças funcionam como uma forma de reconstrução do passado a partir
de dados do presente, portanto, relatar tudo que aconteceu naquela situação lhe
permitiu reviver as mesmas sensações de prazer e felicidade vivenciadas no passado.
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Depoimento de Risalva Magalhães de Oliveira em entrevista realizada em 12 de março de 2020, na
cidade de Guanambi-BA.
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Cida, ou Cidinha como era mencionada pelas colegas de time, também fez parte do primeiro time de
futebol de mulheres da cidade e compôs o quadro de entrevistas da dissertação: “Memória das
praticantes de futebol feminino na cidade de Guanambi, Bahia: lugares e espaços da mulher
guanambiense” da qual faz parte esse recorte. A dissertação está disponível em:
http://www2.uesb.br/ppg/ppgmls/wp-content/uploads/2021/06/Disserta%C3%A7%C3%A3o-de-
Nivalda-Pereira-Coelho-2.pdf.
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Depoimento de Risalva Magalhães de Oliveira em entrevista realizada em 12 de março de 2020, na
cidade de Guanambi-BA.
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A entrada do futebol na vida de Risalva começou como uma brincadeira entre
amigos e irmãos e foi tomando lugar na sua vida. Mas isso não permaneceu por muito
tempo, exatamente devido a todo o contexto local da cidade em que vivia. A prática
esportiva pelas mulheres naquele momento ainda era bem restrita, principalmente
relacionada a esse esporte, que embora tivesse muita visibilidade no Brasil, considerado
o país do futebol, era totalmente direcionado aos homens. Além disso, nem todas as
jogadoras possuíam condições financeiras que lhes permitissem viver uma juventude
sem trabalhar; assim que a maioridade ia se aproximando, elas precisavam ajudar nas
despesas de casa, e essa foi a razão primordial do afastamento de Risalva da seleção.
Diante das dificuldades com a falta de estrutura para manter as participações em
campeonatos e do afastamento das jogadoras que como Risalva se dedicaram ao
trabalho, ou de outras que se dedicaram à família e ao casamento, as forças do Vênus
Futebol Clube foram se esgotando e o time foi sendo cada vez mais ausente nos
campeonatos da região. A partir desse momento, Risalva que já tinha os esportes como
parte da sua vida procurou se aproximar deles de outra forma, adentrou o mundo
universitário na primeira turma do curso de Educação Física da Universidade do Estado
da Bahia – UNEB – Campus de Guanambi.
Em todo seu percurso acadêmico, essa depoente esteve ligada aos esportes e
durante sua vida profissional não foi diferente, pois esteve envolvida nesse espaço
através de turmas de futsal e voleibol para jovens e adultos que estudavam ou que
trabalhavam nas escolas em que ela atuava. Dedicava-se ao máximo para que seus
alunos sempre conquistassem a vitória nas competições, uma forma encontrada por
Risalva para reviver todas as emoções vivenciadas em sua juventude.
Atualmente, continua residindo em Guanambi e atuando na área esportiva, com
planos de montar uma equipe de futebol de mulheres na cidade, para que ela possa
ajudar jovens que tenham o futebol pulsando em suas veias, assim como ela e todas as
participantes do Vênus Futebol Clube tinham em sua época, mas não puderam
prosseguir. Embora na cidade haja muitos times de várzea femininos, todos são de
futebol de salão devido à facilidade de espaços, por isso os planos de Risalva são de
organizar novamente uma seleção feminina de futebol de campo, algo que tem se
mostrado de muita dificuldade.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mulheres do futebol do Brasil lutaram por exercer sua liberdade e construir
uma outra identidade enquanto sujeitos no mundo, enquanto grupo e enquanto classe
social. Durante todo o século XX, ousaram e conseguiram mudar a história, não do
esporte, mas uma estrutura social que as impunha um destino único e um apagamento
da História como consequência do poder machista, conservador e patriarcal.
Mas nós podemos e continuamos a contar suas histórias, através de suas
memórias, reveladoras de sua força e poder questionador da realidade. Nesse sentido,
fica a pergunta: temos como medir a potência e a riqueza da oralidade e da memória
enquanto método de pesquisa? A essa pergunta nossa condição argumentativa ainda
não é capaz de responder. Mas acerca disso, temos uma possibilidade de olhar, refletir
e sugerir que na memória reside um caminho que somente ela pode nos traduzir,
explicar e rever nossa própria História. A partir dos exemplos que citamos, com base em
nossos estudos, temos ciência de que se não houvesse a possibilidade do trabalho com
a memória, as pesquisas aqui citadas não poderiam ter sido realizadas.
Analisar essas e tantas outras memórias de mulheres que atuaram no mundo
esportivo, principalmente no futebol, se torna um objetivo possível de ser alcançado
quando trabalhado a partir da história oral, pois esse método de trabalho possibilita a
inserção nos relatos históricos de pessoas que até então permaneciam invisíveis perante
a história oficial, mas que carregam uma grande bagagem de informações vivenciadas
individualmente ou em grupos e que merecem ser registradas para futuras análises das
suas próprias visões de mundo (CASSAB; RUSCHEINSKY, 2004). Em outros termos, a
busca por essas mulheres e suas memórias representa um posicionamento político
imbuído do desejo de reconhecer “outras histórias” dando ouvidos a sujeitos sociais
muitas vezes negligenciados por um pensamento patriarcal que se quer hegemônico.
Os estudos baseados nessa metodologia de pesquisa possibilitam ao
pesquisador um contato diferenciado com a história, porque se utiliza da memória
enquanto meio para se chegar aos resultados. Através das metodologias orais, muitas
classes silenciadas pela história oficial, como a classe feminina, tomam a palavra,
podendo expor individualidades, pontos de vista contraditórios e aspectos culturais, o
que a história baseada em documentos oficiais não é capaz de expressar (BOSI, 2003).
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Ademais, os relatos orais, as narrativas e as histórias sobre o passado ajudam a
compreender os processos que permeiam a vida das pessoas, das comunidades, das
coletividades, permitindo desvelar a complexidade que marca a vida cotidiana e as
contradições inerentes às relações de poder incorporadas aos processos sociais
vigentes.
REFERÊNCIAS
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2003.
BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.
CASSAB, Latif Antonia; RUSCHEINSKY, Aloísio. Indivíduo e ambiente: a
metodologia de pesquisa da história oral. Biblos, Rio Grande, v. 16, p. 7-24, 2004.
COELHO, Nivalda Pereira. Memória das praticantes de futebol feminino na
cidade de Guanambi, Bahia: lugares e espaços da mulher guanambiense. 2021.
Dissertação (Mestrado em memória e sociedade) – Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia, Vitória da Conquista, 2021.
CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas questões. In:
AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). Usos & abusos da história
oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 149-164.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Laurent Léon
Schaffter. São Paulo: Ed. Vértice, 1990.
KESSLER, Cláudia Samuel; COSTA, Leda Maria da; PISANI, Mariane da Silva
(Org.). As mulheres no universo do futebol brasileiro. Santa Maria –RS: Editora UFSM,
2020, p.69-87.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Os novos rumos da história oral: o caso
brasileiro. Revista de História, n. 155, p. 191-203, 2006.
MORAES, Enny Vieira. As mulheres também são boas de bola: histórias de vida
de jogadoras baianas (1970-1990). 2012. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. 2. ed. 6. reimp. Tradução de
Ângela M. S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2019.
PISANI, Mariane da Silva. Poderosas do foz: trajetórias, migrações e
profissionalização de mulheres que praticam futebol. 2012. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.
FONTES ORAIS
Maria Neide Neide Cruz Sampaio. Entrevista realizada em agosto de 2009 na
cidade de Jequié- BA.
Risalva Magalhães de Oliveira. Entrevistada em 12 de março de 2020 na cidade
de Guanambi-BA.