https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v28n1p30-49
Vol. 28, n. 1, jan/jun, 2022
ISSN: 2179-6807 (online)
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INTELIGIBILIDADE E HEGEMONIA: DIÁLOGOS COM O FUTEBOL NA
RELAÇÃO COM A CIS-HETERO-NORMATIVIDADE
Eric Seger de Camargo
1
Guilherme Gomes Ferreira
2
Aprovado em: 13/08/2022
Resumo: O presente artigo visa refletir sobre as formas através das quais é possível fazer-se
humano e inteligível na sociedade brasileira diante das masculinidades hegemônicas que temos
no nosso país contemporaneamente, analisando as condições que permitem a estabilização da
hegemonia da cisgeneridade, da heterossexualidade e de um tipo de masculinidade no Brasil. A
partir daí, também será possível cruzar essa referência em relação à cis-hetero-normatividade
no esporte, e mais particularmente, no futebol. Para este fim, realizamos uma revisão
bibliográfica com base em teóricas transfeministas contemporâneas e tendo como referência
também investigações científicas qualitativas realizadas pelos autores no campo dos estudos de
gênero e sexualidade. Concluímos que atletas dissidentes em termos de gênero e sexualidade
no futebol e em esportes em geral só são possíveis, ainda atualmente, a partir da invisibilidade
de suas identidades ou a partir de modelos estruturados pela cisgeneridade que tomam a
verdade dos seus corpos através de noções biologicistas e essencialistas. Ainda, que o esporte,
assim como diversas outras instituições, reflete um regime de gênero e sexualidade hegemônico
que retiram a inteligibilidade daquelas identidades dissidentes.
Palavras-chave: Cisgeneridade. Heteronormatividade. Inteligibilidade. Hegemonia.
Futebol.
INTELLIGIBILITY AND HEGEMONY: DIALOGUES WITH FOOTBALL IN RELATION TO CIS-HETERO-
NORMATIVITY
Abstract: This article aims to reflect on the ways in which it is possible to become human and
intelligible in Brazilian society in the face of the hegemonic masculinities that we have in our
country today, analyzing the conditions that allow the stabilization of the hegemony of
cisgenderism, heterosexuality and a type of masculinity in Brazil. From there, it will also be
possible to cross this reference in relation to cis-hetero-normativity in sport, and more
particularly, in soccer. To this end, we carried out a bibliographic review based on contemporary
1
Licenciado em Educação Física, Mestre em Educação (UFRGS). Membro fundador do grupo HTA - Homens
Trans em Ação (RS). ORCID: 0000-0003-0770-9832. Contato: eric.w.seger@gmail.com.
2
Bacharel, Mestre e Doutor em Serviço Social (PUCRS). Especialista em Saúde da Família e Comunidade
(GHC). Professor do Departamento de Serviço Social e Coordenador do Curso de Serviço Social da UFRGS.
Líder do JUDIS - Grupo de Pesquisas em Justiça, Direitos Humanos e Segurança (UFRGS). Vice-líder do
MarGens - Grupo de Pesquisa em Marcadores de Gênero e Sexualidade na Saúde (GHC). Membro do
Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Ativista voluntário na ONG Somos - Comunicação,
Saúde e Sexualidade. ORCID: 0000-0002-4036-1615. Contato: guilhermeferreira@ufrgs.br.
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transfeminist theories and also having as a reference qualitative scientific investigations carried
out by the authors in the field of gender and sexuality studies. We conclude that dissident
athletes in terms of gender and sexuality in football and sports in general are only possible, even
today, from the invisibility of their identities or from models structured by cisgenderism that
take the truth of their bodies through biological and essentialist notions. Still, that sport, as well
as several other institutions, reflects a hegemonic gender and sexuality regime that removes the
intelligibility of those dissident identities.
Keywords: Cisgenderism. Heteronormativity. Intelligibility. Hegemony. Soccer.
INTELIGIBILIDAD Y HEGEMONÍA: DIÁLOGOS CON EL FÚTBOL EN RELACIÓN A LA CIS-HETERO-
NORMATIVIDAD
Resumen: Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre las formas en que es posible
hacerse humano e inteligible en la sociedad brasileña frente a las masculinidades hegemónicas
que tenemos hoy en nuestro país, analizando las condiciones que permiten la estabilización de
la hegemonía de la cisgeneridad, la heterosexualidad y un tipo de masculinidad en Brasil. A partir
de ahí, también será posible cruzar esta referencia en relación a la cis-hetero-normatividad en
el deporte, y más particularmente, en el fútbol. Para ello, realizamos una revisión bibliográfica
basada en las teóricas transfeministas contemporáneas y teniendo también como referencia
investigaciones científicas cualitativas realizadas por los autores en el campo de los estudios de
género y sexualidad. Concluimos que los atletas disidentes en cuanto a género y sexualidad en
el tbol solo son posibles, aún hoy, desde la invisibilidad de sus identidades o desde modelos
estructurados por el cisgeneridad que toman la verdad de sus cuerpos a través de nociones
biológicas y esencialistas. Aún así, ese deporte, así como varias otras instituciones, refleja un
régimen hegemónico de género y sexualidad que elimina la inteligibilidad de esas identidades
disidentes.
Palabras-clave: Cisgeneridad. Heteronormatividad. Inteligibilidad. Hegemonía. Fútbol.
INTRODUÇÃO
O Brasil é considerado mundialmente o país do futebol. Mas o futebol não é igual
para todas as pessoas. Ele é predominantemente praticado por homens cisgêneros e,
para todos os efeitos, heterossexuais, e é atravessado por pedagogias de
masculinidades (Martins et al, 2021). Bandeira e Seffner (2013) apontam que dentre as
masculinidades possíveis existe a hegemônica, ou seja, aquela que é representada de
forma a não apenas dominar e subordinar as outras como, sobretudo, de forma a tornar-
se referência a ser seguida. O futebol, como prática esportiva e também cultural, está
intimamente ligado com a produção e a reprodução das masculinidades, e ao mesmo
tempo, também se conecta com as produções das identidades - tanto aquelas que são
consideradas inteligíveis e coerentes quanto aquelas tratadas como marginais ou
abjetas.
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Este artigo visa refletir sobre as formas através das quais é possível fazer-se
humano e inteligível na sociedade brasileira diante das masculinidades hegemônicas
que temos no nosso país contemporaneamente. Tendo como referência o exemplo do
futebol, poderíamos pensar que não como tornar-se inteligível no Brasil sem torcer
ou saber sobre futebol; de modo semelhante, não como ser inteligível sem se
aproximar, ainda que minimamente, da masculinidade hegemônica e de outros padrões
estruturais de gênero e sexualidade também hegemônicos: nesse caso, nossa análise
centrar-se em outros marcadores sociais hegemônicos: a cisgeneridade e a
heterossexualidade compulsória.
Cisgeneridade é um conceito que aparece para contextualizar os regimes de
inteligibilidade que conferem às pessoas que não são transgêneras (nem transexuais ou
travestis) o status de referência, isto é, são tratadas como naturais, normais ou mais
autênticas do que pessoas trans. Por definição, pessoas cisgêneras são aquelas que se
identificam com o sexo/gênero que lhe foram designados ao nascer (Vergueiro, 2016).
Essa é a situação hegemônica na nossa sociedade e, portanto, não é nomeada. Por outro
lado, quando uma pessoa recusa identificar-se com o sexo/gênero que recebeu ao
nascer, essa pessoa passa a ser denominada com a informação que qualifica sua
dissidência de gênero, como transexual que historicamente tem sido um diagnóstico
médico indicando um transtorno de identidade ou então passa a se identificar com
identidades políticas como trans, transgênero e travesti. Estas identidades marcam a
posição de diferença em relação à hegemonia.
a cisnormatividade (Vergueiro, 2016; Vergueiro, 2015) refere-se a esse
conjunto de regras sistematizadas que colocam a cisgeneridade como referência de
naturalidade ou de autenticidade, passando pelo registro civil, possibilidades de
intervenções corporais, espaços segregados por gênero e vários outros aspectos da vida
em sociedade. Este artigo pretende, diante das questões até aqui apresentadas, analisar
as condições que permitem a estabilização da hegemonia da cisgeneridade, da
heterossexualidade e de um tipo de masculinidade a partir do trabalho de
transfeministas brasileiras como Viviane Vergueiro, Megg Rayara de Oliveira e Jaqueline
Gomes de Jesus. A partir daí, também é possível cruzar essa referência em relação à cis-
hetero-normatividade no esporte, e mais particularmente, no futebol.
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HEGEMONIA MASCULINA
No futebol, a hegemonia masculina caracteriza-se pela centralidade do futebol
praticado por homens cisgêneros e declaradamente heterossexuais, sendo esse esporte
televisionado a partir de múltiplos campeonatos, tradicionalmente recebendo maior
valor e representatividade social quando comparado, por exemplo, ao futebol praticado
por mulheres. Existem pedagogias de masculinidade e virilidade que se apresentam
nesses contextos, produzindo essa hegemonia de uma masculinidade dominante, que
subjuga o outro, e impedindo, inclusive, a manifestação pública de dissidências sexuais
e de gênero. A partir de Bandeira e Seffner (2013) podemos delinear os mecanismos de
produção dessa hegemonia:
Pensamos no adjetivo “hegemônico” para nos referir à representação de
masculinidade que goza de maior status de legitimação em diferentes
instâncias culturais. A construção dessa masculinidade acontece ao mesmo
tempo em que se constroem diversas outras masculinidades e/ou
feminilidades. O adjetivo hegemônico permite, também, demonstrar a
presença de masculinidades que são merecedoras de outros adjetivos.
(BANDEIRA, SEFFNER, 2013, p. 252).
Nesse sentido, a produção de uma masculinidade hegemônica necessariamente
implica a produção de outras identidades subordinadas que são impedidas até mesmo
de virem a público, caracterizadas pelos autores como desviantes ou marginais. Tanto
masculinidades quanto feminilidades podem ser produzidas como desviantes nesse
contexto. Tomando como exemplo as identidades de homens e mulheres cisgêneros, as
mulheres aparecem como secundárias, com menos status de legitimação,
especialmente no caso do futebol. Em relação à prática amadora desse esporte no Brasil,
Martins et al. (2021) observam:
Em outras palavras, das atividades esportivas, mais da metade dos homens
tem preferência e pratica o futebol. Portanto, é patente que o futebol, no
Brasil, é um esporte praticado prioritariamente por homens, embora
potencialmente tenha crescido entre as mulheres. A razão é que o futebol é
atravessado por discursos imbuídos de uma densidade de representações de
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masculinidade, virilidade e agressividade, fato que explica a enorme atração
que a prática oferece para meninos e homens (MARTINS et al, 2021, p. 8).
Enquanto isso, existem também os futebóis de mulheres, mas esses não são tão
representados na mídia nem possuem o mesmo reconhecimento ou valor social, pois
entram em conflito com essa associação entre masculinidade hegemônica, virilidade,
agressividade e futebol. Podemos inclusive pensar que esse esporte, para o imaginário
social e senso-comum, não deveria ser praticado por mulheres e, quando isso ocorre, é
a partir do efeito masculinizador que as identidades das atletas recebem pelo conjunto
da sociedade - em paralelo, algo que acontece também com mulheres que praticam
crimes e que são presas por isso, como se a violência e o crime fossem, em si mesmos,
masculinos (CHIES, 2008). Tendo como exemplo o tratado a seguir, podemos perceber
que o futebol de mulheres não é pensado como futebol de verdade e que as mulheres
que o praticam não são vistas como verdadeiras mulheres:
Esse agregar de estereótipos e teorias tradicionais sobre a relação "mulher-
crime" permite [...] que se considere que as mulheres reclusas ou estão
loucas, ou são masculinas, menopáusicas ou inadaptadas (para os papéis
femininos tradicionais), e que isso traga como resultado que nem elas sejam
vistas como mulheres "reais", "autênticas delinquentes", nem "verdadeiras
prisioneiras" e, portanto, que as prisões de mulheres não sejam "autênticos
cárceres" (CHIES, 2008, p. 88).
Nesse mesmo sentido, Baratta (1999) sustenta que, através de oposições como
“sujeito e objeto” e “razão e emoção”, a qualidade masculina é sempre correspondida
ao primeiro termo enquanto a feminina está para o segundo, de modo que qualidades
como altivez e agressividade são tratadas como masculinas e passividade ou
sensibilidade, como femininas. Ainda sobre a prática amadora de futebol, de acordo
com Martins et al. (2021), o futebol de mulheres no Brasil também é atravessado por
outras intersecções sociais: ele é predominantemente praticado por mulheres negras e
mais pobres.
Isto é, se por um lado as mulheres brancas e de extratos econômicos mais
altos têm uma tendência maior à prática de esportes, por outro, são as
mulheres negras e mais pobres que aderem ao futebol. Ao analisarmos os
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homens que jogam futebol, observamos que este, como um esporte popular,
também tem maior adesão das classes mais baixas. No entanto, no caso das
mulheres esse efeito é bem mais acentuado (MARTINS et al, 2021, p. 03).
Na análise das autoras, mesmo tendo mais dificuldades para engajar em
atividades esportivas, quando as mulheres negras e pobres o fazem, optam pelo futebol.
Isso caracteriza também o futebol como um local de produção de dissidência das
normas e de ressignificação social. A produção de identidades de mulheres nesses
espaços está em jogo com essas relações hegemônicas de gênero, raça e classe de um
ponto de vista estrutural, mas também no campo mais da interação social e das relações
sociais, traçando aqui um paralelo com a argumentação de Connell e Messerschmidt
(2013) em relação à manifestação da masculinidade hegemônica em três distintos
níveis: o local, o regional e o global. Para os autores, no nível local, a interação face a
face estabelece, por meio de relações estruturadas, os padrões de hegemonia da
masculinidade reproduzidos em ambientes específicos, como a família, a comunidade e
as instituições; no nível regional, a masculinidade hegemônica se no campo da cultura
ou do Estado-nação, enquanto no nível global estaria embutida nas políticas mundiais,
na mídia e nos comércios transnacionais. Nesse sentido, se classe social, raça e gênero
podem servir para análise de qualquer situação no plano da estrutura (global), no plano
da particularidade (local) a desigualdade ou a diferença também poderiam se
estabelecer, por exemplo, pela noção mais individual de identidade, pelas crenças
religiosas, pelo lugar em que se vive (território) e o acesso à políticas sociais, etc.;
enquanto no plano das relações sociais (regional), poderia ou não se levar em
consideração um termo mais alargado da geografia (nação), a publicização da
orientação sexual, o ciclo vital, e assim por diante (FERREIRA, 2018).
HEGEMONIA HETEROSSEXUAL
A heterossexualidade aparece como um componente fundamental da
masculinidade hegemônica. O ambiente do futebol se constituiu com muita
permissividade às demonstrações de homofobia junto do pressuposto de que seus
praticantes homens devem ser heterossexuais (ANJOS, 2021). Esse pressuposto, mais
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uma vez, é reflexo dos valores de virilidade e masculinidade sustentados nas oposições
binárias dos regimes de gênero em que ser homossexual é conectado ao feminino e às
qualidades ditas femininas (nesse caso, fragilidade, inaptidão para o esporte e para
atividades físicas que exigem esforço físico, etc.).
Assumir-se gay é visto como um risco à carreira e à segurança dessas pessoas.
Mesmo performar uma masculinidade que não coadune com a virilidade
esperada e valorizada é prejudicial. Não à toa são raros os jogadores que
tornam pública sua homossexualidade, o que se denomina informalmente
como “sair do armário” (ANJOS, 2021, p. 2).
Na verdade, a “ausência” de homossexuais no futebol profissional não é um
fenômeno brasileiro, mas mundial. Trata-se de um reflexo de uma cultura
alimentada por todos os atores deste espetáculo, incluindo os próprios
atletas [...]. São raríssimos os casos de jogadores atuando em grandes ligas
que “saíram do armário”. [...] Mas a torcida também é ator importante. Com
seus cânticos, muitos de natureza homofóbica, aumentam o nível de pressão
sobre os possíveis gays. Além disso, não raras vezes exercem pressão sobre
os dirigentes, atuando para impedir a trajetória de jogadores, em tese, gays.
O caso mais emblemático no Brasil é Richarlyson. Volante com passagem por
grandes clubes, ele jamais empunhou a bandeira LGBTQIA+ ou disse não ser
hétero, mas ainda assim foi alvo de preconceito ao longo de toda a carreira
(FALKOWSKI, 2021, s.p.).
O “dever-ser” heterossexual, aqui, é sinônimo do que entendemos como
heterossexualidade compulsória. Esta, é regulada pela heteronormatividade, que
corresponde àquelas instituições, estruturas de compreensão e orientações práticas
que fazem com que a heterossexualidade pareça coerente e se torne um ideal, isto é,
diz respeito àquilo que torna, no social, a heterossexualidade uma norma (BERLANT,
WARNER, 2002). Com um ambiente hegemonicamente heterossexual e
heteronormativo, ainda assim foram produzidas resistências ao longo de nossa história
recente. Destaca-se no fim dos anos de 1970 e início da década de 1980 a Coligay,
torcida do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense que assumia-se gay e afeminada (ANJOS,
2018). A autora destaca que nos anos que seguiram o fim da Coligay, cresceu a
“masculinização” das torcidas organizadas (entendida aqui como a masculinidade
hegemônica) e episódios de violência aumentaram, ao mesmo tempo que reduziu-se a
presença de mulheres no estádio (ANJOS, 2018). Paradoxalmente, outras manifestações
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a favor da diversidade ocorreram ao longo dos anos, como a torcida Tribuna 77. Ao redor
do país, as manifestações a favor da diversidade LGBTQIA+ é frequentemente permeada
por reações de violência e rejeição, de forma que as pessoas que se identificam
publicamente com essas identidades políticas podem sentir-se ameaçadas de
frequentar os espaços dos estádios (ANJOS, 2021).
Mendonça (2021) analisa os cânticos homofóbicos entoados pelas torcidas. Em
2018, no jogo entre Clube Atlético Mineiro e Cruzeiro Esporte Clube, os autores
destacam:
Faltando menos de um mês para o primeiro turno das eleições que, em um
segundo pleito, alçariam Bolsonaro ao posto de presidente, ouviu-se: Ô
Cruzeirense, toma cuidado: o Bolsonaro vai matar viado!”. A diretoria do
clube, através de vídeo e texto publicados em redes sociais, posicionou-se de
modo a combater a homofobia, lembrando que o time é plural, diverso e
inclusivo (MENDONÇA, MENDONÇA, 2021, p. 2).
Esta manifestação foi antes da eleição. Ainda nesse período, em campanha pré-
eleitoral, um grupo de torcedores da Sociedade Esportiva Palmeiras foram gravados
entoando o canto “Ô bicharada, toma cuidado: o Bolsonaro vai matar viado!” que teria
sido começado ao deparar-se com um homem reconhecidamente homossexual, na
estação de metrô Sé, em São Paulo.
Desde sempre, o futebol foi considerado “coisa para macho” e as
manifestações homofóbicas das torcidas são uma constante em sua história.
Estas manifestações, em sua maioria, são expressões verbais que
desclassificam e hierarquizam os chamados homens por sobre os não
homens, utilizando como argumento as formas de prazer e de existências
ditas dissonantes (MENDONÇA, MENDONÇA, 2021, p. 3).
As manifestações de homofobia no futebol também produziram impactos nas
experiências de jogadores, como no caso de Richarlysson, jogador sobre quem se dizia
ser gay:
Richarlysson enfrentou preconceito e obstáculos ao longo da vida
profissional. Em entrevista a uma emissora de televisão em 2007, um
dirigente do Palmeiras admitiu que ele não foi contratado pelo clube por ser
gay. No próprio São Paulo, apesar das boas atuações, jamais teve
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relacionamento amistoso com a torcida. Depois, em 2012, a torcida Mancha
Verde estendeu uma faixa na frente do CT do Palmeiras que dizia: “A
homofobia veste verde”. Tratava-se de uma mensagem aos dirigentes do
clube, que na época negociavam, mais uma vez, a contratação de
Richarlysson. As tratativas existiam, mas foram interrompidas. Ele ficou no
Atlético Mineiro e foi campeão da Libertadores. O Palmeiras, por sua vez,
caiu para a Série B em 2012 (FALKOWSKI, 2021, s.p.).
O futebol pode não aceitar a contratação de um jogador por ele não ser
heterossexual. Além disso, a ideia de que futebol é coisa de “macho” como referido por
Mendonça (2021) indica não essa construção de masculinidade hegemônica, que
precisa ser viril e heterossexual mas também aponta para o eixo principal da análise
deste artigo: a articulação entre características biológicas e fisiológicas dos corpos
sexuados e a verdade do gênero.
HEGEMONIA CISGÊNERA
Gônadas, cromossomos e hormônios identificam e conformam os sujeitos de
acordo com o encadeamento corpo/gênero/sexualidade. Para ser reconhecida como
“fêmea”, uma pessoa precisa ter útero, ovários e vagina. Para ser reconhecido como
“macho” uma pessoa precisa ter testículos e pênis. É o pré-requisito para a introdução
do treinamento de gênero que ocorre desde a gravidez. Algumas correntes de
feminismo radical inclusive adotam esses termos de macho e fêmea como forma de
representar os sujeitos políticos e assim, repreender o gênero/sexo de pessoas trans.
Em geral, esse tipo de retórica considera que mulheres trans não são mulheres de fato,
e por isso, referem-se a “fêmeas” como o sujeito protagonista do feminismo, referindo-
se a características biológicas e fisiológicas associadas a essa construção (BAGAGLI,
2018).
Isto porque, muitas das formas que, no feminismo radical, servem para
descrever as formas de violências contra “mulheres” também são apontadas
como sofridas por aquelas “mulheres transgêneras”, “mulheres transexuais”,
“travestis” além dos “homens transexuais” ou “homens transgêneros” pelo
transfeminismo. Tais formas de significar mulher não se encontram no
discurso do feminismo radical; este traduz, através de construções
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predicativas, tendo em vista as coerções de suas próprias restrições
semânticas, o que no transfeminismo é designado como “mulheres
transexuais, transgêneras ou travestis” como “homens inconformes” ou
“homens que dizem que são mulheres” (BAGAGLI, 2018, p. 48).
Tendo em vista essas divergências em relação às violências sofridas por mulheres
cis e trans, a autora destaca que o transfeminismo utiliza categorias específicas para
nomear as situações em que existem opressões contra pessoas trans, transgêneros,
transexuais, travestis, homens trans ou transmasculinos: transfobia, cissexismo,
transmisoginia. Dentre as múltiplas violências direcionadas a pessoas trans, estão:
assassinato, desemprego, prostituição coercitiva (quando não outra opção senão
exercer a prostituição) e transformar pessoas trans em cidadãs de segunda classe. Essas
violências se sustentam pela crença de que pessoas cis são o padrão natural e esperado
de gênero e corpos. Efeitos disso também decorrem no acesso ao registro civil, no
passado de patologização das identidades trans, bem como nas tentativas de terapias
de conversão.
A informação biológica denominada “sexo” é, nesse contexto de
cisnormatividade e transfobia, tida como um dado material inquestionável. A questão
levantada pelo posicionamento de feministas ao atribuírem significados de “macho”
para mulheres trans traz à tona uma variável delicada: a socialização de gênero.
Compreendida como os múltiplos processos pelos quais uma pessoa interage com as
normas de gênero, de forma a subjetivar sua identidade, a socialização é um dado que
para a linha de pensamento das feministas radicais é determinístico, ou seja, como se
essa socialização para “fêmeas” fosse tão estável e fixa que produz um abismo
incomensurável entre as experiências de socialização de “machos”. As feministas negras
apontam que essa construção não é igual para mulheres negras, o que nos leva a outro
componente importante das hegemonias sociais: a branquitude.
Ao mesmo tempo, Davis (2016) afirma que a redução de mulheres escravizadas
a serem somente “fêmeas”, aproximando da animalização, foi uma violência cometida
na escravização das mulheres negras nos Estados Unidos. O feminismo negro mostra
essas violências e recusa essa animalização de redução a características fisiológicas
sexuadas como principal representação política. A discussão ao redor desta temática
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introduz a necessidade de uma ferramenta teórica que expresse as contradições e as
práticas que sustentam essa hegemonia: a cisgeneridade.
A cisgeneridade, fundamentalmente, pode ser compreendida como a
identidade de gênero ‘típica’, naturalizada: é aquilo que a
heterossexualidade é para as orientações sexuais (apesar das frequentes
confusões entre identidade de gênero e sexualidade), e que a branquitude é
para as raças-etnias (VERGUEIRO, 2015, p. 192).
A autora sustenta a compreensão da cisgeneridade como uma construção
política e social que remonta à colonialidade europeia. Assim também o faz Megg Rayara
de Oliveira (2018), ao apontar para os primeiros registros no Brasil sobre pessoas
“desviantes” de gênero, no Tratado Descritivo do Brasil de 1587. As chamadas “cudinas”
eram pessoas reconhecidas pelos portugueses como do sexo masculino, mas que pela
referência ocidental eram tratadas e tinham as mesmas tarefas que as mulheres
cisgêneras. Chamadas de “nefandos demônios”, elas vinham das comunidades de povos
originários brasileiros, e de acordo com Oliveira (2018), seria uma identidade de gênero
similar ao que hoje em dia são as travestis ou mulheres transexuais.
Oliveira (2018) também retoma a história de Xica Manicongo, cujo registro data
de 1591 e retrata a existência de uma pessoa negra reconhecida como sendo do sexo
masculino, mas cuja expressão de gênero era feminina. A partir dessas histórias, a
autora reforça a noção de que o olhar branco europeu colonizador marca identidades
de gênero diversas de outras culturas como “anormais” ou “desviantes” e reforça que a
imposição de normatividades de gênero nunca é dissociada de um ideal racializado.
Quando alguém não obedece a essas normatividades de
corpo/gênero/sexualidade, ocorrem punições sociais. No caso da heteronormatividade,
os cânticos homofóbicos das torcidas podem ser pensados a partir dessa função.
Entretanto, essas normas sociais estão sempre em disputa. As lutas sociais pela
diversidade alçaram o patamar de criminalização da homofobia e transfobia
(MENDONÇA, 2021, p. 3), ainda que existam tantas crenças populares sobre a
homossexualidade transformar alguém em “não-homem” ou “não-mulher”, ou ser um
status inferior de existência. No caso de pessoas trans, entretanto, essa disputa coloca
em questão a própria fisiologia do corpo. Se o critério principal para ser homem ou ser
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mulher está no corpo (CAMARGO, 2017), então como simbolizar a validade do seu
gênero diante dessa norma?
Para muitas pessoas trans, é através da ressignificação do corpo que esse diálogo
consigo e com a sociedade ocorre. Modificações corporais através de hormonização e
cirurgias podem aproximar os corpos das pessoas trans desse referencial cis. Entretanto,
parte significativa do movimento transfeminista brasileiro afirma que não são essas
modificações que conferem a validade do gênero. A ressignificação do corpo ocorre
mediante muitos diálogos entre a norma e a dissidência, e o objetivo é que o sujeito
consiga dar sentido a si mesmo, no entremeio desses conflitos.
Considerando a relação entre cisgeneneridade e processos de colonização
branco-europeus, Vergueiro (2015) afirma a necessidade de produção de maneiras
interseccionais e decoloniais de ressignificação de identidades de gênero, evitando
genealogias que centralizam perspectivas ocidentalizadas sobre diversidades de
identidade de gênero. Ela cita epistemologias que são pautadas pela “redesignação
sexual” como uma dessas formas de significar as identidades de gênero dissidentes a
partir dessa lógica ocidental europeia-branca. Os três eixos que sustentam a
cisnormatividade, de acordo com Vergueiro (2015), são: pré-discursividade, binariedade
e permanência. A questão analisada neste artigo é a relação desses eixos com o esporte.
CISNORMATIVIDADE NO ESPORTE
A cisnormatividade no esporte encontra sua sustentação a partir do
reconhecimento dos critérios biológicos e fisiológicos como parâmetros estanques e
permanentes na inteligibilidade de um “sexo biológico” designado ao nascer, e que
então delimita a existência de duas categorias, e somente duas - tratando-se, portanto,
de um sistema binário - que serão as únicas possíveis de fazer-se inteligível enquanto
atleta (e ser humano). Essas categorias masculinas e femininas do esporte tiveram
seus limites desafiados, por exemplo, no reconhecimento de atletas mulheres com
cromossomos XY, que apresentam uma condição intersexo chamada de insensibilidade
androgênica.
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Inicialmente, os testes de cromossomos foram utilizados como parâmetro para
identificar as atletas mulheres ditas “de verdade” (com o par de cromossomos XX), mas,
ao deparar-se com mulheres que apresentavam o par XY, foi necessária uma
reestruturação dessa compreensão. Inicialmente as mulheres intersexo com
cromossomos XY foram banidas da categoria feminina e estigmatizadas socialmente,
como se estivessem utilizando de fé, portando-se como um gênero do qual não
pertenciam, como no caso da atleta espanhola Maria Patino Martinez (FAUSTO-
STERLING, 2000). Em investigação científica anterior que sustentação ao presente
trabalho (CAMARGO, 2021), relata-se que a atleta ficou conhecida como sendo a
primeira a desafiar o teste de feminilidade de cromossomos do Comitê Olímpico
Internacional (COI), e que eventualmente ela tornou-se parte o comitê que escreveu o
consenso sobre a participação de atletas trans e intersexo. Eventualmente ela também
torna-se professora universitária e pesquisadora, e por isso compôs o grupo de
especialistas que escreveu o consenso de 2015.
A presença de atletas intersexo na categoria feminina produziu efeitos de
desestabilização da noção binária de sexo biológico, mas através da mudança de
critérios de cromossomos para hormônios, foi ressignificada a matriz binária. Por não
serem sensíveis a hormônios androgênicos, essas mulheres com cromossomos XY não
seriam afetadas por alguma suposta vantagem injusta que eles trariam, e assim elas
poderiam ser reintegradas à categoria feminina. atletas que possuem hormônios
androgênicos em níveis acima do considerado normal ainda se encontram sob suspeita.
Um dos casos mais estudados na literatura é o da Caster Semenya, atleta que apresenta
hormônios andrógenos em níveis acima do que considerado normal e foi atingida pelo
regulamento da Federação Internacional de Atletismo (World Athletics) que obrigava a
atletas nessa condição a tomarem medicamentos para modificar seus níveis hormonais.
Karkazis e Jordan-Young (2018) afirmam que a normalização de corpos intersexo
se dá mais fortemente em atletas do sul global, sob o pretexto de que esses países são
“menos desenvolvidos” em intervir para normatizar as pessoas intersexo mais cedo.
Além disso, as notícias retratam a atleta Caster Semenya como excessivamente
masculina, no jeito de se portar e de caminhar, além do fato dela estar em um
relacionamento com outra mulher. Isso evidencia que o policiamento dos corpos utiliza
da expressão “desviante” de gênero (e combinando eventualmente também com o
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“desvio” da sexualidade) para atingir as pessoas a serem “corrigidas”. Camargo (2020)
destaca que a Corte Arbitral do Esporte suspendeu o regramento que obrigava as atletas
a se hormonizarem, alegando que não existiam evidências científicas que
demonstraram a suposta vantagem competitiva por seus níveis hormonais. Isso é a pré-
discursividade, pilar da cisnormatividade, em ação.
Em relação a atletas trans, em geral podemos perceber as seguintes
considerações atualmente em voga: i) parece ser necessário um regramento explícito
que informe quais as condições que esses e essas atletas precisam cumprir para
participar; ii) torna-se fundamental que a fisiologia hormonal de pessoas trans seja
espelhada no referencial cisgênero e iii) para validar a participação de mulheres trans
na categoria feminina, elas precisam mostrar que seu rendimento esportivo é inferior
ao dos homens (CAMARGO, 2020).
Destacamos que em relação a esse contexto (quando nos referimos a atletas
trans em competições esportivas), estamos apontando para situações em que a
competição se numa categoria diferente daquela do sexo que foi atribuído no
nascimento. Ou seja, situações em que mulheres trans (que foram designadas do sexo
masculino ao nascer) competem na categoria feminina, bem como quando homens
trans (designados do sexo feminino ao nascer) competem na categoria masculina.
Situações em que atletas trans competem na categoria do sexo designado no
nascimento precisam de análise específica, pois nessa situação o pertencimento ao sexo
biológico não está sendo colocado em questão, ainda que existam atravessamentos que
possam prejudicar a participação desses e dessas atletas.
As três características analisadas mostram como a cisnormatividade se atravessa
na efetivação da participação de pessoas trans no esporte. Se não existir uma regra
explícita que mostre as condições para participação de atletas trans, então supõe-se que
eles e elas não estão autorizados a participarem, mostrando que é um espaço
hegemonicamente cis. Para efetivar essa autorização, são escrutinadas as condições
fisiológicas que devem ter como parâmetro a binariedade cis. Para identidades de
gênero diferentes de “homem” ou “mulher” não existem categorias esportivas
específicas, como por exemplo “travesti” ou identidades não binárias.
Além disso, supõe-se que existam traços permanentes que marcam os corpos de
pessoas trans em relação ao desempenho: mulheres trans precisam ter seu
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desempenho reduzido, e homens trans são tidos como pré-dispostos a uma
inferioridade física a ser compensada com a hormonização. Isso diz da permanência,
outro traço da cisnormatividade.
O parâmetro que determina os limites de desempenho para o sexo feminino é
arbitrariamente delimitado por uma diferença de 10 a 12% entre homens e mulheres
no esporte, como analisado por Camargo (2020). Isso significa que qualquer atleta que
ameace essa diferença pode ser apontada como fora da “natureza”, investigada por
doping (se for cisgênera) ou, se for uma mulher trans, ser considerada “homem” e,
portanto, não autorizada a competir como mulher. No caso das mulheres intersexo,
existe a tentativa constante de promover regras que as obriguem a reduzir seus níveis
hormonais, mesmo que existam contradições éticas e erros de pesquisa (PIELKE et al.,
2019; SONSKEN et al., 2018) que indiquem ser impossível afirmar que com esses níveis
hormonais elas tenham vantagens esportivas.
Atletas trans vêm lutando para conquistar espaços na inserção esportiva, seja
em esportes amadores ou profissionais. Jones et al (2017) afirmam que a maioria das
experiências de pessoas trans em ambientes esportivos amadores é de desconforto e
de situações de preconceito, o que aponta para a necessidade de uma educação para
questões de identidade de gênero como prioridade. Até o momento, não existem
pesquisas que demonstrem qualquer evidência de vantagem injusta de pessoas trans
que justifiquem esse tipo de escrutínio e polêmica em relação a sua participação no
esporte institucionalizado. Por outro lado, existem pesquisas demonstrando as
dificuldades de inserção de pessoas trans em espaços esportivos por causa do
preconceito e da discriminação (JONES et al., 2017).
RESISTÊNCIAS TRANS NO FUTEBOL
Como estamos no país do futebol, as resistências em relação a hegemonia cis
também aparecem no futebol. Existem times de futebol organizados por pessoas trans
que criam territórios de sociabilidade e inteligibilidade para homens trans através da
prática do futebol (SILVESTRIN, VAZ, 2021).
Silvestrin e Vaz (2021) analisam as palavras de um de seus interlocutores:
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Rafael, idealizador do projeto Transversão F. C., embora tenha vivido a maior
parte de suas experiências no handebol, justifica a escolha da modalidade
futsal para o projeto porque, em suas palavras, o futebol é o esporte do
brasileiro e essa modalidade seria a porta de entrada para acessar os
meninos trans e, posteriormente, poder ampliar o repertório esportivo.
Relata ainda que um trabalho longo a ser feito antes de se pensar em
participação em campeonatos, que o acolhimento de meninos trans no
esporte e sua visibilidade tem maior importância, e assume que para
competir é preciso preparo técnico e recursos financeiros, elementos que o
time ainda não dispõe (SILVESTRIN, VAZ, 2021, p. 6).
Os principais times de futebol ou futsal de homens trans estudados foram: MBB
Meninos Bons de Bola, Transversão F.C. e os T Mosqueteiros (São Paulo); BigTBoys
(Rio de Janeiro) e Transviver F.C. (Pernambuco). O MBB organizou um festival no seu 3º
aniversário que contou com diversas agremiações de homens gays, mulheres lésbicas e
mistas (que tem tanto homens quanto mulheres na sua composição) e inclusivas (que
são compostas por pessoas de diversos gêneros além de homem e mulher).
Esse formato de competição e de composição dos times mostra que as
categorias feminina e masculina que separam homens e mulheres no esporte
institucionalizado, sob a pretensa igualdade formal de chances, não
alcançam a diversidade de corpos e experiências (sejam trans, sejam
cisgêneras) nas arenas esportivas, exigindo, portanto, o desenvolvimento de
novos formatos para o esporte (SILVESTRIN, VAZ, 2021, p. 7).
Nesse ponto, fica evidente que a presença de times com diversidade de gênero
na composição (sejam mistos entre homens e mulheres, ou que incluam pessoas que se
identificam com outros gêneros) ameaça a hegemonia cisgênera que pressupõe ser
necessário, para o equilíbrio no esporte, que haja uma separação bem definida entre
homens cis e mulheres cis. Essa pressuposição ocorre conforme o estabelecido por
Vergueiro (2015): de forma pré-discursiva, pois anteriormente à existência dos esportes
se pressupõe essa necessidade; de forma binária, em que são inteligíveis duas
possibilidades de identidade de gênero, que mimetizam o binarismo de corpos
sexuados; e de forma permanente: a cisnormatividade supõe que existem traços
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corporais que marcam permanentemente uma pessoa a partir da designação de sexo
no nascimento.
Existem muitas formas de ressignificar a experiência de resistir à normatividade
de gênero. No artigo de Silvestrin e Vaz (2021), os autores relatam situações do campo
de pesquisa em que a performatividade da masculinidade hegemônica era posta como
uma forma negativa de agir, constrangendo aqueles que demonstraram mais “jogo de
corpo” no jogo de futebol, associando isso com uma ideologia machista. Esses conflitos
buscam encontrar formas de ser homem que não sejam machistas, ainda que
masculinas.
Nesse sentido, se o esporte ocidental é masculino, alcançar essa
masculinidade pode significar ser bem-sucedido nessa atividade.
Entendendo que as masculinidades não são necessariamente coniventes
com o machismo questionado por algumas transmasculinidades, é possível o
esporte ser masculino sem ser masculinista (ideologia que prega a
superioridade masculina) (SILVESTRIN, VAZ, 2021, p. 7).
Em suma, os futebóis de homens trans e transmasculinos apresentam
possibilidades de ressignificar normatividades corporais, de gênero e de sexualidade,
oferecendo novas ferramentas para produzir diversas maneiras de vivenciar o esporte
que não se resumam à cis-heteronormatividade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que reconhecido como país do futebol, existem muitas barreiras para que
tanto o futebol quanto o esporte em geral possa ser vivenciado com equidade para
todos, todas e todes. A hegemonia de masculinidades cis-hetero-brancas produz
diferentes acessos aos esportes, desde constrangimentos à homossexualidade, a
impossibilidade de atletas serem assumidamente homossexuais, quanto a barreiras de
regramentos sobre fisiologia que colocam em dúvida a possibilidade de pessoas trans
participarem de esportes institucionalizados.
A colonialidade branca europeia relacionada com a imposição de identidades de
gênero toma como referencial branco os ideais de feminilidade e masculinidade,
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produzindo efeitos racistas também no esporte e na desumanização de atletas negras,
principalmente mulheres. As atletas negras do sul global que são intersexo estão sujeitas
a maior policiamento de seus corpos e são mais atingidas pelas regras que as obrigam a
tomar medicamentos potencialmente desnecessários, que podem causar efeitos
colaterais indesejáveis.
Em relação a atletas trans, a hegemonia cisgênera marca o pertencimento desse
campo, fazendo com que os espaços de vivência do esporte sejam frequentemente
despreparados para a existência de pessoas trans nos vestiários, quadras, campos, etc.
As regras que permitem e condicionam a participação de pessoas trans no esporte ainda
utilizam como referência o espelhamento de identidades cis, e reduzem à compreensão
das vivências trans a esse processo de “adequação” a esse referencial, sem se preocupar
com as situações globais de vulnerabilidade e dificuldades de acesso a direitos. Mesmo
com esse quadro de dificuldades, existem organizações de futebol promovidas por
homens trans e pessoas transmasculinas que visam criar espaços de sociabilidade e
prática do esporte para reforçar a inteligibilidade de pessoas trans através da prática do
futebol.
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