https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v27n2p71-87
Vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
ISSN: 2179-6807 (online)
Revista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
PPGDS/Unimontes-MG
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RAÇA E EDUCAÇÃO: DE MANOEL BOMFIM À PAULO FREIRE, UMA
LEITURA DECOLONIAL
Cristina Borges
1
Recebido em: 13/10/2021
Aprovado em: 20/12/2021
Resumo: A questão racial tem sido debatida por epistemologias marginais a exemplo do
pensamento descolonial que tem como conceito principal a Colonialidade do Poder. Este artigo,
em perspectiva marginal, busca refletir sobre a articulação entre colonialismo, educação e raça
no Brasil. Objetiva demonstrar que uma educação libertadora tal como apregoada por Paulo
Freire (1987) passa pelo empreendimento de criticar o colonialismo e a colonialidade. Para
tanto, traz como subsídio teórico os intelectuais brasileiros Manoel Bomfim e Paulo Freire
(1987), especificamente o conceito de parasitismo social cunhado pelo primeiro e a proposta de
educação libertária do segundo a partir da superação do dilema oprimido-opressor.
Palavras-chave: Parasitismo Racial. Modernidade. Colonialidade do Poder. Educação. Oprimido-
opressor.
RACE AND EDUCATION: FROM MANOEL BOMFIM TO PAULO FREIRE, A DECOLONIAL READING
Abstract: The racial issue has been debated by marginal epistemologies such as decolonial
thinking, whose main concept is the Coloniality of Power. This article, from a marginal
perspective, seeks to reflect on the articulation between colonialism, education, and race in
Brazil. It aims to demonstrate that a liberating education as advocated by Paulo Freire (1987)
goes through the undertaking of criticizing colonialism and coloniality. To do so, it brings as
theoretical support the Brazilian intellectuals Manoel Bomfim and Paulo Freire (1987),
specifically the concept of social parasitism coined by the former and the latter's proposal of
liberating education based on overcoming the oppressor-oppressed dilemma.
Keywords: Racial Parasitism. Modernity. Coloniality of Power. Education. Oppressed-oppressor.
RAZA Y EDUCACIÓN: DE MANOEL BOMFIM A PAULO FREIRE, UMA LECTURA DECOLONIAL
Resumen: La cuestión racial ha sido debatida por epistemologías marginales como el
pensamiento decolonial, cuyo concepto principal es la Colonialidad del Poder. Este artículo, en
una perspectiva marginal, busca reflexionar sobre la articulación entre colonialismo, educación
y raza en Brasil. Pretende demostrar que una educación liberadora como la que propugna Paulo
Freire (pasa por la empresa de criticar el colonialismo y la colonialidad. A tal fin, trae como base
teórica a los intelectuales brasileños Manoel Bomfim y Paulo Freire, concretamente el concepto
1
Doutora em Ciências da Religião. Professora do curso de Ciências da Religião da Universidade Estadual
de Montes Claros (UNIMONTES). Professora visitante do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS). E-mail:
cristinaborgesgirasol@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4193-5377.
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de parasitismo social acuñado por el primero y la propuesta de educación liberadora del
segundo basada en la superación del dilema oprimido-opresor.
Palabras-clave: Parasitismo racial. Modernidad. Colonialidad del poder. Educación. Oprimido-
opresor.
INTRODUÇÃO
As reflexões que seguem integram o rol das meditações que se erguem no
momento atual. Este, oportuno para trazer à tona pensamentos que pareciam seguir o
curso das voltas na árvore do esquecimento
2
.
O tempo pandêmico, que denominamos como coronacrisis, claramente
denuncia o espaço-momento da diferença colonial (MIGNOLO, 2003) onde o sentimento
de finitude coletivo, arde em meio ao devir das contradições, ambivalências,
reafirmações, antagonismos, rupturas e continuísmos da sociedade brasileira.
Experiências de finitude apimentam a diferença colonial ao trazer à tona, em
desvelamentos nada tímidos, “velhos” ideais raciais. Se o coronacrísis possibilitou a
muitos assumir publicamente suas ideias fundamentalistas, parece também que
provocou o desaceleramento da marcha em torno da árvore do esquecimento.
A academia brasileira em streaming populariza Lives com temáticas voltadas
para as reivindicações de grupos minoritários a exemplo do movimento negro. A
questão racial ganha notoriedade. O cotidiano de violências da população negra passa
a provocar espantos e preocupações diante do alto índice de assassinatos a pessoas
negras no Brasil. Mas, o coronacrisis também escancara em imagens e depoimentos o
que a sociedade brasileira sempre soube mas pouco tem se mobilizado em busca de
soluções práticas: a fragilidade da educação brasileira e do sistema público que a gesta.
No propósito de articular educação e raça em perspectiva descolonizadora, o
presente artigo tece reflexões sobre a necessidade de se estabelecer no Brasil uma
educação popular de(s)colonial como forma de superação do parasitismo social e da
colonialidade do poder presentes na tensão oprimido-opressor denunciada por Paulo
Freire (1987).
2
No intuito de liquidar os elos com a África e sua cultura ancestral, africanas e africanos eram obrigados,
antes de embarcar nos navios negreiros como escravas e escravos, ao ritual de passar de sete (mulheres)
a nove (homens) voltas em torno de uma árvore, na costa do Benin, que passa a ser conhecida como
árvore do esquecimento.
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Em perspectiva de(s)colonial, aposta na educação enquanto ferramenta política
de transformação no espaço da diferença colonial à luz de críticos periféricos como os
brasileiros Manoel Bomfim (1868-1932) e Paulo Freire (1921-1997). Se coloca enquanto
oportunidade para volver à história brasileira onde a colonialidade do poder forjou
exterioridades parasitárias comprometendo o desenvolvimento de consciências críticas
ao estimular as voltas na árvore do esquecimento.
O artigo se estrutura da seguinte forma: em um primeiro momento apresenta a
crítica ao colonialismo latino-americano empreendida pelo brasileiro Manoel Bomfim
(2008) alargando seu conceito de parasitismo social para parasitismo racial. Isso, no
propósito de demonstrar a importância desse autor que, no início do século XX e na
contramão dos debates políticos e acadêmicos sobre a miscigenação dos povos latino-
americanos como fator de atraso moral, econômico e intelectual, chamava a atenção
para a necessidade de uma educação popular como forma de libertação dos males que
comprometiam o espírito latino-americano.
Um desses males, a inferioridade imposta aos povos latino-americanos pelas
teorias raciais europeias. Inferioridade que ainda nos prende à subjugação e à
dominação coloniais e somente superadas mediante uma ampla educação popular; O
segundo momento traz uma breve discussão conceitual sobre colonialidade do poder,
modernidade e desprendimento no propósito de situar na perspectiva da
de(s)colonialidade o parasitismo racial. Esta, parte sugere o parasitismo racial como o
que hoje se denomina de racismo estrutural; Em seguida, o artigo finaliza trazendo o
excepcional Paulo Freire e o iluminador dilema oprimido-opressor apontado por ele
como o obstáculo para o desmantelamento das redes que integram a alienação. Neste
texto, tal dilema é vislumbrado à luz da questão racial.
A CRÍTICA AO COLONIALISMO EM MANOEL BOMFIM: PARASITISMO RACIAL E
DEGENERAÇÃO
No início do século XX, o crítico do colonialismo, o intelectual brasileiro Manoel
Bomfim apostava na educação como instrumento para a extinção dos males causados
pela permanência desse sistema de exploração e dominação na América Latina. A
produção acadêmica deste pensador em torno da educação, da identidade e da
formação da nacionalidade brasileira tinha como eixo o conceito de parasitismo social:
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enfermidade sociocultural e política que assolava principalmente as elites brasileiras
3
.
O parasitismo social, segundo Bomfim (2008, p.67), foi o modelo de colonização
europeia que se traduzia em um viver, pelo dominador, “às custas de iniquidades e
extorsões”. Uma enfermidade presente no fluxo das relações sociais que comprometia
o desenvolvimento do Brasil e da América Latina por várias gerações.
Bomfim reflexionava à frente do seu tempo, um pensador dissidente no contexto
do entusiasmo provocado pela ascensão republicana no Brasil. Enquanto a
intelectualidade brasileira recorria às teorias raciológicas para explicarem o que
entendiam como atraso da nossa nação - frente à evolução
4
das nações europeias -,
imbuído de uma cultura humanística Manoel Bomfim questionava a natureza classista
do novo governo instaurado após a Proclamação da República brasileira. Governo este
distante dos ideais políticos presentes no pensamento republicano. Bomfim rechaçava
as teorias que afirmavam a mistura de raças e a presença africana no Brasil como
potencializadores do nosso atraso.
Na esteira deste pensador é possível dizer que as nações europeias, quando
chegam em Abya Yala
5
, já estavam viciadas no parasitismo, isto é, estavam viciadas em
“viver às custas de iniquidades e extorsões”. Instituem o Estado como forma de garantir
tributos e extorsões, distribuem terras para as classes dominantes, escravizam o índio,
depois o negro africano e, em seguida os mestiços. Exploram os recursos naturais de
Abya Yala e direcionam sua riqueza para a Europa de forma tal que todo o mundo direta
ou indiretamente passa a de sua seiva.
Estabelece-se, a partir do sangue vital de Abya Yala, a América e a partir dela, a
nível mundial, o parasitismo racial. Uma das características desse parasitismo é a
urbanização enquanto ideal de vida moderna o que na Europa, após o século XVI,
estimula o abandono dos campos e, consequentemente, a diminuição da produção
agrícola. Para evitar a escassez de alimentos nesse continente, o modelo parasitário
moderno se instala fortemente nas colônias a ponto de vidas indígenas, africanas e de
seus descendentes serem sacrificadas.
3
O destaque dado por Bomfim às elites se deve ao fato de, no início do século XX, apenas os privilegiados
tinham acesso à educação.
4
Desenvolvimento técnico e racionalidade.
5
Nome do continente americano antes da dominação europeia. Na língua do povo Kuna, significa terra
madura, terra viva. O termo carrega a noção de ser vivo independente dos seres humanos.
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A naturalização da exploração e da violência nas colônias impede suas elites, a
exemplo da brasileira, bem como a massa colonial e colonizadora de compreender a
vida de outra forma, isto é, ausente de hierarquias. Nos dizia Bomfim em sua obra
América Latina. Males de origem (2008):
o escravo trabalhava, ele era produtivo. E com isto resultou que o
trabalho foi considerado, cada vez mais como coisa vil, infamante. O ideal
para todos era viver sem nada fazer ter escravos e à custa deles passar a
vida e enriquecer. (BOMFIM, p.36)
A partir dessa cita não nos é difícil perceber o cunho racial do parasitismo
predador que se desenvolvia nas sociedades latinoamericanas. Segundo Bomfim, a
lógica parasitária de exploração contava com o apoio de instituições tais como o Estado
e a Religião. O estado por ser destituído de sua utilidade pública mantendo a corte, as
elites, os empregados do fisco e aplicando uma justiça que apenas condenava. A Igreja,
amparada pelo Estado, estendia “a sua trama sobre a nova sociedade que se vai
formando; escraviza os espíritos, assegura a obediência das populações, semeia
superstições, de modo a tornar quase impossível qualquer tentativa de reforma e
progresso social”. (BOMFIM, 2008)
Percebe-se na reflexão que empreende sobre os males da América Latina
empreendida o tom libertário e descolonizador. No limbo do pensamento social e do
debate educacional nos primeiros anos do século XX no Brasil, Manoel Bomfim era um
dissidente frente às teorias evolucionistas e deterministas de cunho racial que
dominavam a academia brasileira preocupada com o nacionalismo. Os debates acerca
desse, pode-se dizer, oficializava o racismo que hoje denominamos de estrutural.
No entanto, este crítico do colonialismo latino-americano desconstrói a teoria da
superioridade racial presente entre os intelectuais nativos influenciados pela auto
narrativa europeia de superioridade. Nos diz ele sobre essa teoria:
De acordo com esses princípios, os indígenas americanos, os pretos
africanos, os negróides e malaios da Oceania, foram declarados “inferiores”,
em massa. Para estes o julgamento é definitivo; a sociologia oficial da Europa
e dos Estados Unidos decretou que eles são “inferiores”, pois que se acham
todos em estado social inferior ao dos outros povos: “As grandes nações
devem ir colonizar-lhes as terras”. (...). A teoria não deixaria de ser falsa e
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imoral, mas não seria inconseqüente, se eles o competissem também
entre si, e se, mesmo na Europa, não pretendessem dominar uns aos
outros. É aqui que aparecem principalmente as extravagâncias e absurdos da
teoria. Diz ela que os superiores devem governar os inferiores porque estes
são incapazes, absolutamente incapazes, de atingir uma civilização
adiantada; ao mesmo tempo, proclama que os anglo-saxões são os
“superiores” porque dominam hoje dois terços da Terra. Destarte, a
superioridade da raça, (...), deixa de ser definitiva. Estes, que são superiores
hoje, eram inferiores há dois séculos. (BOMFIM, 2008, 193)
Quatro décadas antes de Frantz Fanon e Aimé Césaire, Manoel Bomfim chamava
a atenção para o fato de teorias deterministas de cunho racial, presentes no debate
sobre o nacionalismo brasileiro na passagem do século XIX para o século XX, serem
convenientes para justificar a dominação. Teorias raciológicas estão de acordo com a
lógica do imperialismo presente “no eterno conflito dos oprimidos e espoliados com a
exploração dominante dos parasitados e parasitas”. (BOMFIM, 2008, p. 231)
Este pensador brasileiro, no início do século XX, sinalizava para o fato da
hierarquia racial ser o sustentáculo das relações de poder amparadas no capitalismo.
Ele nos alerta: “Quando nos consideram como países atrasadíssimos, têm certamente
razão, não é tal juízo que nos deve doer, e sim a interpretação que dão a esse atraso, e
principalmente as conclusões que daí tiram, e com que nos ferem” (BOMFIM, 2008, p.
49).
Em perspectiva marginal de(s)colonial não causa surpresa a razão encontrada
pelas potências europeias para o que entendiam como atraso político, social e moral
dos países latino-americanos: a questão a racial. O fato de sermos um povo que se
distingue pela mestiçagem e, no caso brasileiro, marcado fortemente pelas raças que
foram parasitadas, o indígena e o africano. A auto narrativa europeia constrói o que as
epistemologias do sul denominam de Modernidade europeia, isto é, o relato europeu
sobre sua superioridade cultural, técnica, racial, epistémica e religiosa.
No entanto, de acordo com o nosso pensador, o parasitismo leva à degeneração:
Sempre que há uma classe ou uma agremiação parasitando sobre o trabalho de outra,
aquela -o parasita se enfraquece, decai, degenera, extingue-se. É fato reconhecido
e geralmente mal interpretado, mas em todo caso incontestável. (BOMFIM, p. 56).
A degeneração não pode ser interpretada a partir de binômios simples como se
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entre lugares, interstícios subjetivos e físicos, formados na relação tensional entre o
parasita e o parasitado não fossem criados no contato entre os mesmos. A degeneração
se faz ver no “novo” que surge a partir dessa relação, isto é, na cultura, na estética, na
religião e nos comportamentos. As gerações posteriores, oriundas dessa relação,
herdam a degenerescência e reproduzem o parasitismo. A degenerescência é um
processo que deve ser interrompido para o desaparecimento absoluto do parasitismo.
O pensamento bomfimiano nos leva a pensar na necessidade de operacionalizar
a realidade moderna a partir de outra lógica que não seja a colonial tal como nos
reiteram os militantes da de(s)colonialidade Aníbal Quijano e Walter Mignolo. O que
requer desprendimento.
Operar em outra lógica tem urgência nos sugere o intelectual brasileiro que,
libertador e descolonizador e, com nuances interculturais, na contramão da
intelectualidade do nosso país à época, conclamava-nos a um esforço nacional para
superação do atraso social, econômico, político e moral: a difusão da instrução básica
que para ele deveria ser popular e plena.
O passado colonial da América Latina não era razão para a prostração e apatia
que inundava as elites brasileiras. A libertação das amarras imperialistas é possível e, o
povo deve ser motivado a refletir sobre “[...] a necessidade imprescritível de atender-se
à instrução popular, se a América Latina se quer salvar. [...] está o remédio contra
nosso atraso, contra a miséria geral” (BOMFIM, 2008, p. 329). De acordo com esse
pensador, os governos na América Latina devem:
[...] em nome de um regime democrático e livre [...], fazer desaparecer
dentre os indivíduos essa causa de desigualdade, essa causa de inferioridade
intelectual e econômica e de incapacidade política qual o ‘não saber ler
nem escrever’?” (BOMFIM, 2008, p.337).
MODERNIDADE, COLONIALIDADE DO PODER E DESPRENDIMENTO
É compreensível porque, para Bomfim, um ensino massivo das classes populares
proporcionaria a cura do parasitismo social. Subjetividades autônomas, via
intersubjetividade, são capazes de disseminar desprendimentos e frear a naturalização
de ideais parasitários. E, se consideramos o parasitismo racial enquanto enfermidade
alastrada pelo colonialismo compreendemos melhor a conhecida sentença: a educação
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é o antídoto para o racismo (Silvio Almeida). Antes mesmo que se falasse em racismo
estrutural, Manoel Bomfim o sugeria com o conceito de parasitismo social.
O sentido dado à educação por nosso crítico do colonialismo, portanto, é o de
libertação do parasitismo sócio racial que proporciona o atraso moral e a miséria social.
Uma proposta de educação liberadora com forte sentido político, e de(s)colonial foi
apresentada décadas depois pelo excepcional Paulo Freire.
Freire (1987) concebia a educação como não restrita ao ensino formal como
apregoado por Bomfim. A educação deveria incluir os contextos social, políticos,
epistémicos e existenciais com vistas à participação popular na criação de propostas,
ações educacionais e políticas de libertação.
Ensinar para Freire é um ato político o que torna sua aposta educativa
de(s)colonial. Algo que a militante da de(s)colonialidade Catherine Walsh (2014)
compreendeu a ponto de em Paulo Freire se balizar para criar a Pedagogia Decolonial.
Uma pedagogia apropriada para as sociedades forjadas no bojo da opressão colonial e
imperial. Uma pedagogia libertadora.
No entanto, em meio ao modismo que tem envolvido a crítica descolonial e a
superficialidade com que, frequentemente, tem sido abordada é preciso, brevemente
visitar esta teoria e seus principais conceitos.
Considerando que momentos políticos impactantes produzem oportunismos
históricos, também se deve considerar que produzem movimentos teóricos. Desde
meados do século XX, as guerras mundiais e os genocídios que delas foram gerados
impulsionaram, das margens, a emergência de exterioridades sedentas de justiça à sua
história de subjugação, de direitos à cidadania e dignidade. Como sinaliza Dussel (2019),
tais exterioridades são chamas de carvão enterrado no mar de cinzas centenárias do
colonialismo e anunciam a necessidade de operar a partir de lógicas anti-imperialistas
para a construção de novos caminhos para estar, pensar, existir, olhar, escutar, e viver,
neste mundo.
Reexistir depende de caminhos outros, epistemologias outras, universidades
outras, conteúdos outros, práticas sociais outras, políticas outras como nos sugere o
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filósofo Abdélkebir Khatibi
6
, o ativista da descolonização Walter Mignolo (2003) e o
filósofo intercultural Raúl Fornet-Betancourt (2017). Mas, operar em outra lógica
significa ter ciência da Modernidade enquanto auto narrativa europeia elaborada a
partir do século XVI com a anexação da Ameríndia. Não é possível compreender o
porquê de discursos e práticas do conservadorismo e os fundamentalismos na
atualidade e, pensar caminhos para a desarticulação dessas práticas perdendo de vista
o encobrimento de Abya Yala e sua substituição pela América.
Nesta perspectiva, o Pensamento Descolonial, representado pelo coletivo
Modernidade/Colonialidade
7
, apresenta a versão marginal sobre o início da história
mundial com a implementação do colonialismo em Abya Yala. A colonização dessa terra
impulsionou a Modernidade (sua versão europeia) e o estabelecimento de um padrão
de poder mundial, o capitalismo. O principal postulado desse pensamento:
Modernidade e Colonialidade são constitutivas.
A constituição da Modernidade e da Colonialidade desembocou no
estabelecimento de uma ordem mundial, o Sistema Colonial Moderno,denunciada por
uma geopolítica do poder: o centro do capital, da cultura e da política se localiza na
Europa e seu descendente, os Estados Unidos. À margem desse sistema a América
Latina, países asiáticos, África e parte da Europa. Uma estrutura hierárquica racial,
cultural e epistémica, de gênero e religiosa constituem o Sistema Mundial Moderno: a
matiz colonial de poder.
A Modernidade enquanto auto narrativa europeia traduz uma pretensa
excepcionalidade dos europeus
8
e seus descendentes, os estadunidenses. Evolução,
desenvolvimento técnico cientifico, racionalidade, civilização e monoteísmo são os
conteúdos dessa narrativa que se contrapõe ao outro visto como primitivo, sem
capacidade cognitiva, irracional, bárbaro e politeísta. A destruição do outro, do não
europeu, bem como da sua linguagem, padrão de expressão, práticas religiosas,
6
Filósofo e crítico literário marroquino que se dedicou ao movimento da contracultura na região do
Magrebe. Propagador do Pensamento-outro Khatibi, que parte do princípio da possibilidade do
pensamento a partir da decolonização. Essa enquanto luta contra a invisibilidade, a não-existência.
7
O Grupo Modernidade/Colonialidade é formado por intelectuais marginais que militam em favor da
descolonização. São representantes desse pensamento Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Walter Mignolo,
Nélson Maldonado-Torres, Maria Lugones dentre outros.
8
Nos referimos ao que se costumou denominar de caminho excepcional da Europa que teria seu início na
Renascença.
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saberes, conhecimentos e estética constituem a colonialidade.
O filósofo Nelson Maldonado Torres (2007) estabelece com clareza a diferença
entre Modernidade e Colonialidade do poder:
O colonialismo denota uma relação política e econômica, na qual a soberania
de uma nação está no poder de outra ou nação o que constitui a última em
um império. Diferente desta ideia, a colonialidade se refere a um padrão de
poder resultante do colonialismo moderno, não se limita a uma relação
formal de poder entre a nação dominada e a dominadora se estende ao
controle das formas de trabalho, do conhecimento, da autoridade e das
relações intersubjetivas que se articulam mediante o mercado capitalista
mundial e, mediante a ideia de raça. A colonialidade permanece pós
colonialismo, está vida nos textos didáticos, nos critérios para o bom
trabalho acadêmico, na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos,
nos desejos e aspirações dos sujeitos, na religião, nas relações sociais, na
relação entre homens e mulheres, na arte, na estética. Respiramos a
colonialidade na modernidade cotidianamente. (TORRES, 2007, p. 131).
A Colonialiade do poder, como nos diz Aníbal Quijano (1992), traduz também a
invasão do imaginário do outro, sua ocidentalização. É o discurso do colonizador se
inserindo no mundo do colonizado e reproduzindo a ideia de que ele, colonizado, é
inferior. É importante dizer que a ideia de inferioridade alcança amplitude na medida
em que se refere às línguas, conhecimentos, religiões, arte, estética, raça e cor da pele
de forma tal que os colonizados passam a aspirar o universo cultural europeu. Assim se
justifica a força do eurocentrismo nas escolas, na gestão pública e, na produção cultural
dos países colonizados.
O processo de subjugação colonial - colonialidade em movimento -, invisibiliza e
subalterniza a ponto do colonizado negar, combater e esquecer os processos históricos
pelos quais foi subjugado. Assim se explica o esquecimento da história do povo negro
neste país. A árvore do esquecimento simboliza não apenas o olvido mas, sobretudo, a
subalternização dos seus saberes, sistemas de crença, práticas epistémicas e corpos.
Assim se explica a negação do ser negro, inclusive, pelo próprio negro. O racismo
estrutural ou parasitismo racial deforma subjetividades negras ao desumanizar negras
e negros que não se querem como tal e buscam o embranquecimento.
A colonialidade do poder, portanto, constrói a subjetividade do subalternizado
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e, a noção de raça é sua chave de leitura. Neste texto, a, noção de raça vinculada à cor
negra.
Reiterando, Modernidade e Colonialidade são as duas faces da mesma moeda.
Graças à colonialidade, a Europa pôde produzir as ciências humanas como modelo
único, universal e objetivo na produção de conhecimentos, além de impor o degredo as
epistemologias das periferias do ocidente.
No entanto, desde meados do século XX, teorias críticas e movimentos sociais
periféricas e marginais têm se levantado contra o Sistema Mundial-Colonial Moderno e
seu padrão mundial de poder. Buscam abrir fissuras nesse sistema com vistas à
libertações e transformação da modernidade. Anunciam a necessidade de operar a
realidade a partir de lógicas não eurocêntricas.
Operar em outra lógica exige desprendimentos (Conceito descolonial) e
abertura. É o que se percebe na obra libertária de Paulo Freire pensador marginal que
como Simón Bolívar, José Martí, Manoel Bomfim e Leopoldo Sea ousou desprender-se
da lógica eurocêntrica-ocidental em direção à de(s)colonialidade pois,
o pensar descolonial latino-americano, marginal, não é exclusivo da
contemporaneidade. Tal como o expressa Mignolo (2007, p. 28, tradução
nossa), “embora a reflexão sobre o giro epistêmico decolonial seja recente,
a prática epistêmica decolonial surgiu naturalmente” como consequência
da formação e implantação da matriz colonial de poder[...] (BORGES; SENRA,
2021, p. 07).
Enquanto um pensador fronteiriço, no espaço da diferença colonial, entre a
Modernidade e a Colonialidade Paulo Freire (1987) sugere pedagogias outras.
Pedagogias construídas a partir de contextos locais a exemplo da Pedagogia Decolonial
construída por Catherine Walsh que se inspira na epistême freriana.
O IDEAL LIBERTÁRIO EM PAULO FREIRE E DE(S)COLONIALDIADE RACIAL
Na fronteira de influencias como o personalismo de Emmanuel Mounier, o
existencialismo, a fenomenologia e o marxismo, Paulo Freire sistematizou uma
pedagogia que nos traz esperança. Associa humanismo e marxismo, temas cristãos e
temas marxistas na construção de uma pedagogia da ação para libertação. Em seu
pensamento está claro o desprendimento, a abertura e o estar na fronteira. Um aspecto
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de(s)colonial melhor vislumbrado no trágico dilema do oprimido-opressor que
pressupõe tensões axiológicas conscientes e não conscientes no oprimido: ser ou não
ser opressor!
Esse dilema ganha destaque em suas reflexões no texto Pedagogia do Oprimid,
(1972), uma vez que sua preocupação central é com as condições existenciais das classes
pobres, os oprimidos, que se encontram sob um sistema injusto que estimula nos
opressores a violência e, desumaniza o oprimido e opressor. Frear as tensões interna e
externa que envolvem opressor e oprimido é responsabilidade da educação e, como
pensa Paulo Freire (1987) não prática social mais política do que a educativa. Ainda
que a educação possa ocultar a dominação e alienar, pode também denunciar a
dominação e pensar novos caminhos, novas lógicas com vistas a de(s)alienações.
Seu projeto de educação inclui traçar caminhos metodológicos e analíticos para
o reconhecimento da realidade de opressão. Sem tal reconhecimento não é possível
conscientização, senso político, transformação da realidade e, libertação no sentido
de(s)colonial. Neste projeto a análise das condições vividas pelos mais pobres, sua
exclusão da cidadania são prioridades, inclusive, para a compreensão do que Manoel
Bomfim denomina de parasitismo social e Aníbal Quijano de Colonialidade do Poder.
Tal análise político-social é essencial para sair do dilema que assola a todos nós
enquanto oprimidos-anfitriões do opressor. Para Paulo Freire (1987), a luta para
superação dessa tensão faz da pedagogia um importante elemento político constituído
de uma dinâmica critica onde, constante, a pedagogia se faz e se refaz.
A pedagogia do oprimido destaca a responsabilidade de pensar criticamente e
aprender a ser um na relação com seu próprio ser. O que nos leva a pensar à luz de
Freire que na luta pela libertação/de(s)colonialidade o oprimido pode ser opressor pois
como lutar efetivamente contra a opressão do Sistema Mundial Moderno se a
consciência não é crítica? Se aquele que se coloca como militante insistir em práticas
coloniais e opressoras como o machismo, o racismo, a intolerância religiosa, a
homofobia?
A luta contra a opressão é, sobretudo, a luta contra o ser opressor que nos
constitui pois a estrutura do nosso pensar sobre o mundo e as relações que
estabelecemos se encontram condicionadas pela contradição vivida na situação
concreta, existencial, em que se “formou”. Se somos formados como oprimidos somos
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também como opressores. O que concede à luta contra a estrutura hierárquica do
Sistema Mundial-Colonial Moderno e o seu padrão de poder, o capital uma exigência
fundamental: a libertação de si mesmo no sentido, a autodescolonização.
Direcionando o dilema opressor-oprimido à causa negra, não causa surpresa a
seguinte constatação: quase duas décadas depois a Lei 10.639/2003 que obrigava a
inserção de temáticas afro-brasileiras na educação e, depois transformada na Lei
11.645/2008 que prevê o ensino da cultura indígena, não conseguiu se efetivar
plenamente na educação básica e na universidade. A resistência de professores e
acadêmicos na compreender ad própria cultura revela o dilema opressor-oprimido na
educação básica e no ensino superior.
Como combater as hierarquias raciais sejam na dimensão corporal, religiosa e
epistémica se a educação resiste à descolonização do parasitismo racial? Como pode ser
possível uma pedagogia construída pelo oprimido com vistas a recuperar sua
humanidade sem a de(s)colonialidade? Sem a libertação da colonialidade do poder?
A extinção ou superação do parasitismo racial e da colonialidade do poder, isto
é, a de(s)colonialidade somente é possível com a aceitação do dilema opressor-oprimido
colocada por Paulo Freire (1987). A consciência crítica sobre tal dilema deve estar
expressa nos conteúdos da educação básica e dos cursos universitários. Isso de forma
clara e contundente e, não revestida de palavras como transversalidade,
multidisciplinaridade e diversidade. A luta contra a opressão exige clareza sobre o que
se está combatendo e porque se está combatendo. O contrário mantém a educação,
nas regiões colonizadas, instrumento de manutenção da opressão e distante da luta em
favor da libertação e de(s)colonialidade.
Para Paulo Freire (1987), a vida implica o exercício de uma ética humana no
mundo e com o outro. O que faz da ética inseparável da prática educativa. Ainda que
Freire ao longo de suas produções tenha se prendido à discriminação de classe,
enquanto formidável pensador que se liberta do ser opressor que o impedia de
vislumbrar questões relacionadas à gênero e raça, escreve pouco tempo antes de sua
morte, em 1992 A Pedagogia da Esperança. Nesta obra, em uma escrita quase
autobiográfica, pensa o poder e a opressão não mais apenas reduzidos aos fatores
econômicos mas também a partir da racialização e da colonização.
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Oportunidade para a ativista da descolonização e estudiosa de Paulo Freire,
Catherine Walsh (2013) reiterar a necessidade de uma educação via pedagogias de ação,
via a aliança entre o pedagógico e o decolonial
9
com vistas à humanização. Nos diz essa
militante da de(s)colonialidade:
La deshumanización —entendida como el resultado de un orden injusto que
genera la violencia de los opresores, lo que, en cambio, deshumaniza los
oprimidos”— es, para Freire, una distorsión de la vocación de hacerse más
plenamente humano. Enfrentar este problema haciendo que el ser humano
llegue a tener consciencia de esta condición y que reconozca la necesidad de
luchar por la restauración de su humanidad, son pasos necesarios pero no
únicos en su pedagogía y praxis humanista y liberatoria hacia la
emancipación (Freire, 1974b: 74).19 La creación de estructuras socio-
educativas que equipan los “oprimidos” con las herramientas necesarias
para des-velar las raíces de su opresión y deshumanización, identificar sus
estructuras, y actuar sobre ellas, también son componentes
céntricos.(WALSH, 2013, p. 48)
A educação emancipadora, portanto, se coloca como urgente se considerarmos
a realidade atual brasileira marcada pelo crescimento de uma mentalidade religiosa,
conservadora, fundamentalista, machista e homofóbica. Uma mentalidade totalmente
em sintonia com o Sistema Mundial-Colonial Moderno e seu padrão de poder racista, o
capitalismo.
Uma mentalidade que fortalece a matriz colonial de poder e desumaniza
oprimidos e opressores.
A desumanização, que não se verifica, apenas, nos que tem sua humanidade
roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é
distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não
vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que é vocação histórica dos
homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica
ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela
desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como 'seres para
si', não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização,
mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas
9
Usamos o termo em o S em respeito e fidelidade ao pensamento da autora que optou em pensar a
descolonização como decolonialidade. Sobre as implicações sobre o uso com S ou sem o S vide BORGES,
Ângela C.; SENRA, Flávio (2020). “Epistemologias marginais: Ciências da Religião em perspectiva
descolonizadora e intercultural”. Reflexão, 45, p.1-16,2020.
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resultado de uma 'ordem' injusta que gera a violência dos opressores e esta,
o ser menos. (FREIRE, 1987, p. 16)
Uma virada epistêmica descolonizadora antiracial é necessário na educação para
reintegrar aos seres humanos sua humanidade. Paulo Freire nos alerta sobre essa difícil
tarefa pois “a libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce
deste parto é um homem novo” (FREIRE, 1987, p. 19).
O caminho decolonial apontado por Catherine Walsh (2013) a partir de Paulo
Freire, caminho esse irradiado por Manoel Bomfim é urgente. A face opressora da
universidade e das escolas brasileiras deve ser desmantelada por pedagogias outras,
de(s)coloniais e de(s)parasitadas o que não será possível sem a categoria de raça em
suas reflexões.
A compreensão do que seja racismo estrutural passa pela compreensão da
invenção da América e da história colonial que esse fato desencadeou ao longo dos
séculos. A noção de racismo estrutural concede visibilidade à histórica de luta do povo
negro durante o colonialismo quando práticas, metodologias, pedagogias de luta,
insurgência e resistência de africanas, africanos e descendentes foram empregados para
transgredir e subverter a dominação colonial. Uma história de de(s)colonialidades.
Fissuras foram abertas e um pensar, agir, sentir e reexistir de(s)colonialmente
ocorreu. As casas de Zungu, os batuques, as terreiradas, os cantos, a oralidade, a poesia,
o fazer ritualístico afro-brasileiro comprovam a existência de pedagogias da ação, de
pedagogias outras.
Mas, porque ainda, saberes e conhecimentos negros, historicamente, foram
tomados como folclore nas escolas e até nas academias brasileiras? porque práticas
epistémicas negras somente agora nos últimos anos passam a ser consideradas por
técnicos do conhecimento que antes as ignoravam? Mas que agora tateiam sobre
temáticas negras e afro-brasileiras nas redes sociais? Será o oportunismo histórico?
Uma nova forma de parasitismo racial? Outra roupagem da colonialidade do poder?
Considerando que momentos históricos impactantes provocam espantos,
que se considerar que técnicos de conhecimentos, intelectuais e educadores, bem como
qualquer brasileira e brasileiro, em algum momento durante a pandemia, pensou na
necessidade de operar o mundo e as relações a partir de outras lógicas.
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Uma educação de(s) colonial em direção ao fim da colonialidade do poder e do
parasitismo racial tão bem expressos no dilema oprimido-opressor, em momentos como
esse pode promover o diálogo com “outras” culturas. Nos referimos às culturas africana
e indígena no Brasil afro-brasileira, afro-indígena - um diálogo com nossas culturas
imêmores na árvore do esquecimento mantida pelo nosso eu opressor.
Neste caso, o diálogo é intercultural mas interno, uma vez que,
O importante do ponto de vista de uma educação libertadora, e não
bancária, que, em qualquer dos casos, os homens se sintam sujeitos do seu
pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada
implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros
(FREIRE:1987, p.75).
A educação libertadora tão bem sistematizado por Paulo Freire e sonhada por
Manoel Bomfim também é educação para a interculturalidade. Como defende
Catherine Walsh (2012, p.66)) interculturalidade se entende :
como una estrategia, acción y proceso permanentes de relación y negociación
entre, en condiciones de respeto, legitimidad, simetría, equidad e
igualdad. Pero aún más importante es su entendimiento, construcción
y posicionamiento como proyecto político , social, ético y epistémico -de
saberes y conocimientos -, que afirma la necesidad de cambiar no sólo las
relaciones, sino también las estructuras, condiciones y dispositivos de poder
que mantienen la desigualdad, inferiorización, racialización y discriminación.
A interculturalidade, portanto, inibe não apenas as sete ou nove voltas na árvore
do esquecimento imposta pela ocidentalização colonial mas também a destitui de
vitalidade.
REFERÊNCIAS
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Letramento, 2018.
BOMFIM, Manoel. América latina; males de origem. Rio de Janeiro, RJ: Biblioteca
básica brasileira, 2008.
BORGES, Ângela C.; SENRA, Flávio (2020). Epistemologias marginais: Ciências da
Religião em perspectiva descolonizadora e intercultural. Reflexão, 45, p.1-16,2020.
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Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00051.pdf.
Acesso em 16 jan,2019.
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