https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v27n2p170-196
Vol. 27, n. 2, jul/dez, 2021
ISSN: 2179-6807 (online)
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ACOLHIMENTO FAMILIAR, ARTICULAÇÃO DE REDE E REINTEGRAÇÃO
FAMILIAR: REFLEXÕES A PARTIR DA PRÁTICA
1
Julia Matinatto Salvagni
2
Regina Lúcia Sucupira Pedroza
3
Resumo: Este artigo discute a importância da garantia do direito a convivência familiar e
comunitária de crianças e adolescentes no contexto das Políticas de Assistência Social, em
especial nas situações de afastamento do convívio familiar devido à medida protetiva de
acolhimento. A partir dessa contextualização, discute-se os resquícios e impactos do histórico
menorista do Brasil, mesmo que com a instauração da doutrina da proteção integral e, nesse
sentido, como possibilidade de romper com a hegemonia do aparelho institucional da proteção
à infância, o investimento em outras modalidades de acolhimento, como o Serviço de
Acolhimento em Família Acolhedora (SFA). Coloca-se o SFA como via para a garantia do direito
à convivência familiar e comunitária, bem como suas potencialidades para trabalhar de forma
efetiva a articulação de rede, enquanto instrumento dos processos de reintegração familiar.
Nessa perspectiva, é descrito um caso que elucida os principais pontos da discussão proposta e
a partir dele, reflexões a respeito da temática estudada.
Palavras-chave: Acolhimento familiar. Reintegração familiar. Rede Socioassistencial. Política de
assistência social. Direitos da Criança e do Adolescente.
FOSTER CARE, SOCIAL NETWORKS AND FAMILY REINTEGRATION: REFLECTING THROUGH
PRACTICES.
Abstract: This article discusses the importance of guaranteeing the right to family and
community life for children and adolescents in the context of Social Assistance Policies,
especially in situations of distancing from their original family life due to protective measures.
Based on this context, the remnants and impacts of the minorist history of Brazil are discussed,
even with the establishment of the doctrine of full protection and, in this sense, as a possibility
of breaking with the hegemony of the institutional apparatus of child protection, investment in
other forms of care, such as the Foster Care Service. The Foster Care Service is placed to
guarantee the right to family and community coexistence, as well as its potential to make
network articulation effective, as a way of working in family reintegration processes. From this
perspective, a case is described that elucidates the main points of the proposed discussion and
based on it, reflections on the topic studied.
1
O presente artigo compõe o trabalho de pesquisa de doutorado de uma das autoras, aprovado pelo
Comitê de Ética e Pesquisa em Ciências Humanas da Universidade de Brasília.
2
Aluna de doutorado do Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento do
Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5281-9657. E-
mail: jusalvagni@gmail.com.
3
Professora Associada da Universidade de Brasília no Instituto de Psicologia.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2251-5040. E-mail: rpedroza@unb.br.
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Keywords: Foster Care. Family Reintegration. Social Assistance Network. Social Assistance
Policy. Children’s Rights
ACOGIEMENTO FAMILIAR, ARTICULACIÓN DE LA RED Y REINTEGRACIÓN FAMILIAR:
REFLEXIONES DE LA PRÁCTICA
Resumen: En este artículo se analiza la importancia de garantizar el derecho a la vida familiar y
comunitaria de los niños y adolescentes en el contexto de las Políticas de Asistencia Social,
especialmente en situaciones de alejamiento de la vida familiar por la medida de protección del
acogimiento familiar. Con base en este contexto, se discuten los remanentes e impactos de la
historia minorista de Brasil, incluso con el establecimiento de la doctrina de la protección plena
y, en este sentido, como una posibilidad de ruptura con la hegemonía del aparato institucional
de protección de la infancia, inversión en otras formas de acogimiento, como el Servicio de
Acogida Familiar (SFA). La SFA se plantea como una a para garantizar el derecho a la
convivencia familiar y comunitaria, así como su potencial para trabajar eficazmente la
articulación de la red, como una forma de trabajar en los procesos de reinserción familiar. Desde
esta perspectiva, se describe un caso que dilucida los puntos principales de la discusión
propuesta y, a partir de ella, reflexiones sobre el tema estudiado.
Palabras-clave: Acogimiento familiar. Reinserción familiar. Red de Asistencia Social. Política de
asistencia social. Derechos de la niñez y la adolescencia.
INTRODUÇÃO
Conviver em família e comunidade é um direito fundamental das crianças e
adolescentes, garantido na norma constitucional brasileira, e no Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA). Segundo o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do
Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC),
documento elaborado de forma democrática e participativa com representantes do
governo e sociedade civil, a convivência familiar e comunitária, enquanto direito e como
fator de promoção do desenvolvimento integral, foi durante muito tempo negligenciada
pela política de atendimento à infância. O PNCFC demarca a ela um lugar de destaque
na política pública ao buscar:
(...)romper com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes e
ao fortalecer o paradigma da proteção integral e da preservação dos vínculos
familiares e comunitários preconizados pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente. A manutenção dos nculos familiares e comunitários
fundamentais para a estruturação das crianças e adolescentes como sujeitos
e cidadãos está diretamente relacionada ao investimento nas políticas
públicas de atenção à família. (BRASIL, 2006, p. 13).
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Este artigo irá discutir as possibilidades de atuação dos serviços de acolhimento
familiar (SFA) enquanto ponto de articulação da rede socioassistencial visando efetivar
os processos de reintegração familiar de crianças e adolescentes acolhidos. O
acolhimento é uma medida excepcional e provisória, prevista no ECA, com o objetivo de
garantir a proteção integral quando outras medidas protetivas se mostram ineficazes e
o afastamento familiar torna-se a única opção. Tal excepcionalidade é ponto de
destaque, uma vez que o direito a conviver no seio familiar de origem é garantido pela
mesma norma legal, e assegurado constitucionalmente. Entretanto, é importante
delinear que o debate sobre a convivência familiar e comunitária deve ser pauta
constante e sempre em atualização.
A perspectiva da centralidade familiar enquanto núcleo de defesa e proteção
para o cuidado da infância ganha destaque nas últimas décadas, e enfrenta
cotidianamente entraves e resistências advindos de uma forte trajetória de segregação
e institucionalização como demarcadores históricos da atenção à infância em nosso país.
Ainda hoje, mesmo com o paradigma da proteção integral, um dos pilares do ECA, é
possível observar nas práticas cotidianas de atores diversos do Sistema de Garantia de
Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), heranças da doutrina da situação
irregular que estava em voga e era sustentada pelos Códigos de Menores (BRASIL, 1927;
BRASIL, 1979).
As práticas sociais em curso até a década de 1990 eram marcadas pela
culpabilização e responsabilização de crianças (e suas famílias) pelas situações de risco
social, violência e violações de direitos que viviam. O Estado respondia a esses cenários
por meio de mecanismos disciplinatórios e de segregação (GARCIA, LIMA, 2020;
OLIVEIRA et al, 2018). Havia uma preocupação com a manutenção de uma ordem social,
que se sobrepunha a um possível olhar para o bem-estar das crianças, adolescentes e
suas famílias. inclusive, uma distinção nesse sentido, entre quem eram as crianças e
quem eram os menores, sendo esses últimos aqueles compreendidos enquanto aqueles
que estavam em “situação irregular” ou apresentavam risco à referida ordem social.
Assim, tem-se durante quatro séculos de história brasileira, mesmo que com
diferenças importantes, modelos que se instauraram e se fortaleceram com foco em
equipamentos institucionais que atuavam através do controle social. Garcia e Lima
(2020) reforçam que a “prática da institucionalização de crianças pobres como
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alternativa à convivência familiar e comunitária foi mantida de modo regular e acrítico
até o fim da década de 1980, favorecendo a diferença de concepção e de tratamento
entre crianças em relação a menores” (p.70).
Na década de 1980, com a efervescência dos movimentos sociais em prol da
redemocratização, e de denúncias diversas acerca das atrocidades e violências vividas
intramuros em instituições de atendimento à "menores”, ganha força o debate a
respeito da garantia de direitos da infância. A materialização do dever do estado, da
família e da sociedade em garantir a proteção integral da criança comparece no artigo
227 da Constituição Federal (Brasil, 1988), posteriormente regulamentado pelo ECA.
Segundo Arantes (2004), o cerne do debate que culminou no referido artigo é que:
(...) a questão da criança no Brasil não é uma questão médica ou policial. É
neste sentido que as proposições do Estatuto trazem à cena, em primeiro
lugar e antes de quaisquer outras considerações, a questão da cidadania para
todas as crianças e jovens. o se pode pensar em modelos de atendimento,
em medidas de proteção e em medidas sócio-educativas que não tenham a
guiá-las este imperativo. Tratar as crianças e os adolescentes como sujeitos
de direitos, não lhes negar a humanidade e a dignidade, constituir com eles
uma perspectiva de futuro: eis o único caminho, se queremos construir a paz
social (p.164).
Porém, destaca-se que a criação da norma jurídica não garante sua
aplicabilidade e concretização. Nesse sentido, o arcabouço legal que precedeu o ECA
tinha uma característica diferente, uma vez que emergia a partir de práticas
instituídas. Ou seja, refletiam em suas propostas o status quo de uma determinada
época. O ECA, por sua vez, se constitui a partir de reflexões e críticas acerca das práticas
em curso, enquanto possibilidade de operar mudanças em um sistema que se
apresentava violador, ao invés de protetivo, bem como segregador e ineficiente em
muitos aspectos. Isso faz com que se observe, ainda hoje, distâncias entre o texto legal
e as ações cotidianas, e uma aproximação destas, em algumas situações, com o
ordenamento jurídico anterior. Frisamos que a lei não é autoaplicável, é necessário que
seus operadores sedimentem as mudanças que ela propõe (GARCIA; LIMA, 2020;
NASCIMENTO, 2012; VALENTE,2013).
Desta maneira, GARCIA (2018) chama a atenção para a existência em nosso
ordenamento social de um ideal de modelo de família, ainda não superado, que foi
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instaurado pela reafirmação de um discurso de segregação social e controle, e
sustentado pela reprodução de valores perpetrados socialmente enquanto morais e
positivos por instituições como o Estado e a Igreja. Ao longo dos últimos séculos da
história brasileira, as famílias pobres eram assistidas dentro de um paradigma higienista
de intervenção estatal. A autora destaca que se observava: “certa antinomia que
separava as famílias da sociedade, o espaço de dentro e o de fora, o mundo da produção
e da reprodução, caracterizando o domínio privado como dotado de valores próprios,
modeladores do que se viveria externamente na vida pública (p.33)”.
Assim, por mais que o ECA, e demais normativas que o sucedem, versem sobre
o direito da criança e do adolescente e sobre atuações conexas ao tema,
especialmente no que se refere ao trabalho social com famílias (como é o caso da Lei
Orgânica de Assistência Social) - e se oponham a essa tradição, complexificando a
compreensão acerca dos modelos e formas de convivência familiar, bem como
reafirmem a centralidade do superior interesse da criança e do adolescente, e seu
protagonismo, ainda é possível observar nas práticas e ações do poder público, um forte
viés social, de raça e gênero. Por exemplo, segundo o Diagnóstico Sobre o Sistema
Nacional de Adoção e Acolhimento (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2021) 64,3% das
crianças e adolescentes em medida protetiva de acolhimento no Brasil são pardas e
pretas. Além disso, apesar de a prática e o cotidiano de atuação nesse campo
demonstrarem que as crianças/adolescentes acolhidos são de famílias em situação de
pobreza ou extrema pobreza, uma escassez de dados acerca da condição
socioeconômica das famílias cujos filhos foram afastados de sua convivência.
Outra herança histórica bastante marcante nas políticas públicas que atuam
junto à infância é sua natureza institucional. Desde o período colonial, o Brasil deu
continuidade ao modelo Europeu, no qual as crianças e adolescentes, à época
considerados vadios e marginais, eram encaminhados para grandes instituições.
Inicialmente estas eram geridas pela Igreja e tinham como discurso de base uma lógica
caritativa. Progressivamente o Estado, sob a égide de uma “cientificamente” orientada,
passa a tomar conta dessa pauta, ainda de forma irrisória e distante da consolidação de
uma política pública que visasse a garantia de direitos sociais. Dessa forma, dando
continuidade ao modelo de grandes instituições, dentro de um paradigma caritativo,
punitivista e correcional (RIZZINI, RIZZINI, 2004). Havia pouco, ou nenhum, investimento
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em um olhar individualizado e afetivo direcionado ao público atendido, e os esforços
em um planejamento técnico de ações e acompanhamento também eram restritos.
Entretanto, desde a promulgação da Constituição Federal (BRASIL, 1988), e
posteriormente do ECA, as diretrizes da atuação na área da criança e do adolescente
estão em constante transformação. Isso abrange a política de acolhimento de crianças
e adolescentes, que organiza a execução dos serviços que recebem a faixa etária de zero
a 18 incompletos anos afastada judicialmente do convívio familiar. Nesse sentido, há na
norma jurídica o estabelecimento de um discurso que zela pela excepcionalidade do
afastamento familiar, pela não culpabilização da pobreza (ECA, art. 23) e pela premência
dos esforços nos processos de reintegração, uma vez que a criança tenha sido afastada
judicialmente (BRASIL, 1990). Pontos que se distanciam consideravelmente das práticas
até então instituídas, demasiadamente marcadas pela culpabilização das famílias e da
pobreza.
Nascimento (2012), entretanto, pontua que:
No cotidiano da consolidação dessa legislação, a família pobre foi ganhando
um novo estatuto: família negligente, categorização que passa a justificar a
intervenção estatal e a continuidade da retirada de crianças e adolescentes
de suas famílias. Em poucas palavras: não se retira por pobreza, mas por
negligência, e são os pobres os considerados negligentes. (...) as intervenções
jurídicas e sociais continuam a punir os pobres, por exemplo, com a
destituição do poder familiar, com abrigamentos apressados, com a
imposição de normas de conduta (p. 40).
Isso aponta para a necessidade de manutenção de uma postura crítica a respeito
da intervenção estatal no cotidiano das famílias. Mastroiani (2018) destaca que o
contraste entre o discurso legal e a prática das medidas protetivas é significante,
especialmente quando se considera que é necessário que se desenhem ações
direcionadas à família, tanto no sentido de prevenir a medida protetiva de acolhimento,
como no de superar as motivações que ensejaram a separação da criança/adolescente
de seu núcleo de origem. Há, portanto, a previsão de que Estado e sociedade devem
atuar também no fortalecimento e proteção das famílias cujos filhos estão acolhidos.
Ou seja, agir em prol do superior interesse da criança e do adolescente é indissociável
do estabelecimento de um trabalho de intervenção em seu sistema familiar. Para isso é
necessário, segundo o autor, ultrapassar a cultura institucional assistencialista,
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investindo em dinâmicas que corroborem e favoreçam o protagonismo familiar,
substituindo a culpabilização das famílias por perspectivas de responsabilização e
construção de autonomia.
O paradigma da proteção integral requer que se estabeleçam vias de
comunicação mais fluídas e efetivas entre os diversos atores envolvidos no SGDCA. As
ações devem ser coordenadas de forma que as famílias sejam atendidas e
compreendidas em sua complexidade, e que cada órgão envolvido possa agir dentro de
seu escopo técnico, mas sem perder a visão geral daquilo que ocorre. Esse alinhamento
dialógico é importante para as crianças e adolescentes serem vistas e protegidas de
potenciais situações de risco e, concomitantemente, suas famílias tenham a
possibilidade de se reorganizar. Evitando ao máximo processos extremos como os de
destituição do poder familiar que findam com os direitos parentais e com a possibilidade
de retomada dos vínculos cotidianos entre crianças/adolescentes e suas famílias
(MASTROIANI, 2018).
Os movimentos sociais e a percepção da necessidade de implementação
cotidiana das políticas instauradas pelo ECA ganha força nos anos 2000. Nesse período,
além do PNCFC, há outros avanços importantes na legislação e na política da infância e
juventude. Destacamos as Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças
e Adolescentes - OT (BRASIL, 2009) e as Lei 12.010 de 03 de agosto de 2009 e 13.257 de
8 de março de 2016, que trazem alterações importantes no ECA.
Um ponto destes documentos é que inserem no discurso oficial o serviço de
família acolhedora e outras iniciativas de valorização de atuações mais individualizadas
no contexto do acolhimento, como os programas de apadrinhamento afetivo. Até 2009,
havia poucos serviços de acolhimento na modalidade familiar, porém, o
reconhecimento de sua existência e importância no ordenamento jurídico e na
organização da gestão da assistência social fomentam o debate sobre o tema e dão
credibilidade e maior segurança para que o SGDCA invista em modelos de execução
além do institucional.
A publicação das OT fortalece os processos de reordenamento do sistema de
acolhimento no país, amparadas posteriormente pela Resolução 23 do Conselho
Nacional de Assistência Social (CNAS, 2013). Há um corpo significativo de estudos sobre
o impacto negativo da institucionalização no desenvolvimento de crianças e
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adolescentes, conforme apontam Diniz, Assis e Souza (2018). Elas retomam autores
clássicos da psicologia como Spitz, Wallon e Bowlby para discutir a necessidade de
qualificar e profissionalizar o cuidado institucional, dando destaque ao papel do afeto e
do vínculo na vida dos seres humanos.
Segundo Baptista e Zamora (2018), o processo de reordenamento da rede de
acolhimento contempla essa visão ao objetivar redesenhar e repensar as práticas em
voga, consolidando modelos que levassem em consideração as normativas e a
transformação de práticas antigas, mas ainda vigentes, ou seja, ultrapassar uma
mudança de nomenclatura e operar uma transformação de fato. Segundo as autoras:
Reordenar é reorganizar, adequar, recompor, trabalhar de forma matriciada
entre diversos atores do SGD para integralidade das ões. Remete a novas
formas, novos pensamentos, ações conjuntas, partilhadas, enfim, a
implementação de uma Rede de Atendimento. Visa investir em capacitação
de recursos humanos, trabalhar em sistema de cofinanciamento e privilegiar
outras ações em rede, priorizando a perspectiva do planejamento e
monitoramento dos trabalhos. Ademais, esse novo movimento deseja
modificar situações de vulnerabilidade por meio de atendimento e
acompanhamento. Preconizam-se públicos menores, investimento em
acessibilidade e adequação da infraestrutura (p. 8).
Wendt et al (2018) atentam para a importância dessa reconstrução identitária
das instituições de acolhimento, de forma que elas não estejam isoladas em si mesmas
e se afastem de práticas análogas às marcas de uma instituição total. Sair de uma
posição de perpetrar exclusão para um movimento de promoção de cuidado
comunitário seria a grande mudança de chave para a efetivação do processo de
reordenamento. Além disso, é necessário cada vez mais que a gama de serviços
ofertados seja diversa e contemple as diferentes demandas do público atendido.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O SERVIÇO DE ACOLHIMENTO FAMILIAR.
O SFA, previsto no artigo 101 do ECA, em seu inciso VIII (BRASIL, 1990), consiste
em proporcionar o acolhimento de crianças afastadas judicialmente do convívio familiar
em casas de famílias da sociedade civil, que são inscritas, capacitadas, habilitadas e
acompanhadas pela equipe técnica do serviço de acolhimento. Essas famílias não
possuem vínculos familiares com as crianças e adolescentes acolhidos e não podem
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estar cadastradas no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, logo não objetivam
adotar as crianças/adolescentes que acolhem. Trata-se de um acolhimento temporário
no qual a família cuidará da criança/adolescente pelo período que durar a medida
judicial, ao passo que a equipe técnica do serviço realiza o trabalho psicossocial
relacionado aos encaminhamentos necessários a cada caso.
O SFA é uma alternativa à institucionalização, seu diferencial é a possibilidade
de ofertar cuidado e atenção individualizados, em ambiente familiar, podendo propiciar
a construção de novos vínculos afetivos - protetivos e de qualidade - bem como a
oportunidade de ampliar o repertório de convivência e cuidados cotidianos da
criança/adolescente. Estar em família acolhedora oportuniza que o dia a dia com o
acolhido seja conduzido em um ritmo que respeite e considere as demandas e
temporalidades do acolhido, levando em conta os hábitos e rotina da família que acolhe.
A atenção a essa relação e como ela favorece o desenvolvimento da criança confere
novos contornos ao trabalho da equipe técnica, que nesta modalidade não se ocupa da
dinâmica institucional.
O ECA, em seu artigo 34, § 1 o versa que incluir crianças e adolescentes em
acolhimento familiar deve ter preferência ao acolhimento institucional, presando
sempre pela excepcionalidade e caráter temporário da medida protetiva de
acolhimento (BRASIL, 1990). A inclusão desta precedência no texto legal se em 2009,
através das alterações feitas pela lei 12.010, que corrobora com a defesa da importância
de um olhar individualizado à criança e ao adolescente feita pelo PNCFC. O plano retoma
estudos clássicos da psicologia que falam sobre a importância dos cuidados
continuados, afetivos e de qualidade para o desenvolvimento infantil, em especial na
primeira infância. Segundo o PNCFC (2006):
Tanto a imposição do limite, da autoridade e da realidade, quanto o cuidado
e a afetividade são fundamentais para a constituição da subjetividade e
desenvolvimento das habilidades necessárias à vida em comunidade. Assim,
as experiências vividas na família tornarão gradativamente a criança e o
adolescente capazes de se sentirem amados, de cuidar, se preocupar e amar
o outro, de se responsabilizar por suas próprias ações e sentimentos. Estas
vivências são importantes para que se sintam aceitos também nos rculos
cada vez mais amplos que passarão a integrar ao longo do desenvolvimento
da socialização e da autonomia (p.30).
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Além de estar em família acolhedora ser um fator protetivo, há de se destacar a
importância na execução desta política da corresponsabilização da sociedade civil pelo
zelo e garantia dos direitos da criança e do adolescente, como preconizado pela
constituição federal (BRASIL, 1988). Ser família acolhedora não é uma atividade laboral,
apesar de existirem iniciativas em território nacional com a profissionalização de
famílias acolhedoras. A experiência no Brasil é majoritariamente de famílias da
sociedade civil que atuam sem nenhum tipo de vínculo trabalhista. Destaca-se aqui que
reconhecemos a necessidade de ampliar a discussão sobre a profissionalização, bem
como sobre essa atuação ser ou não considerada voluntária, o que historicamente pode
ser associado ao assistencialismo. As famílias acolhedoras são preparadas e
acompanhadas pelas equipes do serviço e são a ela referenciadas, para que possam
exercer esta função.
As famílias acolhedoras compõem, através da vinculação ao SFA, a rede de
serviços do SGDCA, buscando a proteção integral da infância. Fazem isso ao abrir espaço
em sua casa e seu cotidiano para ocupar o papel de guardiãs legais, mesmo que
temporárias, de quem acolhem. um compromisso com o respeito aos costumes,
crenças, vivências culturais e hábitos de cada um, em uma troca constante de
experiências, cuidado e respeito. Cabe a família acolhedora, quando possível, também
investir na reconstrução dos vínculos afetivos e sociais dos acolhidos e viabilizar a eles
experiências comunitárias (BAPTISTA, DARÓS, ZAMORA, 2019).
Cuidar, proteger e amar as crianças e adolescentes que acolhem relaciona-se, de
certa maneira, aos acolhedores se abrirem para serem facilitadores tanto do processo
de adaptação ao acolhimento, quanto do processo de saída do SFA. No caso do
encerramento da medida protetiva, colaborar com essa saída envolve dialogar com a
equipe técnica acerca das possibilidades de reintegração, ou nos processos de adoção,
de forma a ser ponte para essas transições junto às crianças e adolescentes. Isso envolve
uma postura colaborativa e atenta aos próprios julgamentos e preconceitos, em especial
acerca das motivações do acolhimento (BAPTISTA, DARÓS, ZAMORA, 2019; FERNADES
JACOBINA, LEMOS DE PAIVA, 2020; VALENTE, 2013).
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A saída do SFA pode ocorrer por vias distintas: reintegração
4
à família nuclear ou
extensa, adoção, transferência de serviço, evasão ou desacolhimento pela maioridade.
Cada uma dessas ações precisa ser refletida e planejada, levando em conta as vivências,
demandas, afetos e condições de cada acolhido.
Para que isso seja viável, o processo de preparação e formação das famílias
acolhedoras é um ponto chave. É necessário que haja da parte dessas famílias interesse,
disponibilidade e compreensão das próprias motivações em participar do serviço. Em
contrapartida, as equipes dos serviços de acolhimento devem implicar-se em realizar
avaliação psicossocial de forma técnica e comprometida no que concerne as famílias
que pretendem acolher. É ímpar alinhamento dos pré-requisitos, habilidades e
competências para acolher, e a disponibilização de conteúdos e espaços de reflexão
sobre temas relevantes para a execução do acolhimento, bem como sobre as condições
e a realidade das crianças/adolescentes acolhidos em nosso país.
Esses pontos possibilitam refletir sobre uma formatação horizontalizada dos
papeis dentro do SFA, em contraposição ao que geralmente se observa nos
acolhimentos institucionais. Em contextos institucionais é comum nos depararmos com
hierarquias, especialmente na organização das funções e atribuições: dirigentes,
coordenadores, técnicos e cuidadores ocupam espaços institucionais que impactam e
dialogam com o cuidado cotidiano dos acolhidos. Ao mesmo tempo que o dirigente está
no lugar de guardião legal, quem ocupa o espaço de referência cotidiana com os
acolhidos são as cuidadoras sociais, e intermediando essas relações está o corpo
técnico, que assume diferentes responsabilidades, inclusive a da comunicação com o
sistema de justiça e com o SGDCA. Espera-se que isso produza atravessamentos diversos
sobre o cuidado da criança, bem como sobre o entendimento desse processo e a sua
condução.
nos SFAs um compartilhamento inclusive do ponto de vista legal ao se
pensar na correlação entre a guia de acolhimento e o termo de guarda da
responsabilidade e dos cuidados com a criança/adolescente (DE OLIVEIRA AVELINO,
BARRETO, 2015). A família acolhedora se ocupa do cotidiano, dos hábitos, da rotina com
4
O documento Diretrizes para reintegração familiar de crianças e adolescentes (DELAP & WEDGE, 2016)
traz importantes considerações sobre a utilização dos termos reintegração e reunificação, e reflexões
acerca desses processos.
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os acolhidos, ao passo que a equipe técnica se empenha no estudo psicossocial dos
casos e no apoio e orientação da família acolhedora, sempre com foco no superior
interesse da criança. Essas duas pontas de atuação são dialéticas, interdependentes: o
bom andamento técnico depende da confiança no cuidado dispensado à criança na
família acolhedora e na compreensão e partilha acerca desse dia a dia. Da mesma forma
que uma vinculação saudável, construída no contexto da relação da criança/adolescente
com essa família, é possível na medida que se compreenda e dialogue sobre os
encaminhamentos da situação daquela criança.
Discute-se a consolidação de um cenário compartilhado de olhares, percepções
e vínculos no qual o protagonista é sempre a criança/adolescente. Essa costura permite
espaço de escuta e valorização da história de cada acolhido, do respeito às suas
peculiaridades e à sua forma de estar e se colocar no mundo. Isso pode ser concretizado
tanto com um bebê, ao se observar e respeitar seu ritmo, suas demandas e as maneiras
como se manifesta, como para um adolescente, ao garantir seu espaço de fala e
expressão a respeito dos encaminhamentos a serem realizados acerca se sua própria
história.
Um dos desdobramentos desta troca é a possibilidade de ampliar, qualificar e
otimizar o tempo e o investimento das equipes técnicas dos SFAs no trabalho social com
as famílias de origem, possibilitando a construção de um estudo técnico de qualidade,
com o maior envolvimento e diálogo com a rede de proteção de referência no território
da família de origem, o que alimentará e subsidiará o olhar do sistema de justiça a
respeito das possibilidades de atuação. A própria natureza do serviço, que tem uma
maior flexibilidade, por não precisar se ocupar das rotinas comuns e de outros aspectos
intrínsecos à uma vivência institucional, confere à atuação da equipe técnica uma
ampliação das possibilidades de atuação extramuros.
Além disso, a especificidade que se na relação das famílias acolhedoras com
cada criança/adolescente oferece uma riqueza de elementos sobre como a condução
técnica e o andamento de cada caso impacta o desenvolvimento e o bem-estar das
crianças e/ou dos adolescentes. É possível, por exemplo, a partir da relação das famílias
acolhedoras com os acolhidos lançar um olhar atento para como os acolhidos ficam após
cada visita da família de origem, se isso tem desdobramentos em seu comportamento,
se acarreta mudanças na rotina de sono, alimentação, entre outros. A partir dessas
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observações os encaminhamentos podem ser pensados e repensados, tanto em relação
aos seus objetivos, como à temporalidade das ações. Investir em transições suaves é
importante no contexto das medidas de acolhimento, tanto institucional como familiar,
mas especialmente favorecido neste último, por meio destas vivências.
Nesse sentido, Baptista, Zamora e Bittencourt (2017) pontuam que:
A possibilidade de confiar em alguém viabilizará a oportunidade de separar-
se posteriormente e de ocupar um lugar de forma inteira para constituir-se
como sujeito. O tempo em que o amadurecimento se dá é o tempo de cada
criança e a plasticidade com que cada um assimila as mudanças ambientais,
assim como a maneira de agir e reagir diante das trocas, variam em cada
indivíduo (p. 67).
As autoras trazem que viver em um espaço que proporcione cuidados e proteção
contínuos e suficientemente bons, incidem e contribuem para que os acolhidos possam
constituir-se como sujeitos de uma forma saudável, atravessada por vínculos e
afetividade. A família acolhedora ocupa uma posição em que tem maiores condições de
contribuir para a reconstrução e ressignificação das histórias por ligar-se a cada acolhido
de forma única. Isso confere respeito à individualidade e a compreensão de que os
acolhimentos são singulares. Mesmo que haja aproximações entre as narrativas e
trajetórias, elas nunca serão as mesmas. O acolhimento familiar acalenta e aconchega
quem está acolhido e ensina muito a quem acolhe. Confere à política pública da infância
o lugar de se discutir e defender o vínculo afetivo enquanto instrumento de trabalho.
Por fim, a estrutura do SFA, ao propiciar o foco maior em cada
criança/adolescente, amplifica as possibilidades de ação com as famílias de origem, uma
vez que a proximidade com cada acolhido é também uma intimidade maior com sua
história, e consequentemente com as narrativas familiares. A equipe técnica pode abrir
um canal próximo de diálogo com a família de origem, o que possibilita a construção da
compreensão das motivações do acolhimento, e, com as potencialidades e desafios de
cada família, o que tem repercussão nas possibilidades de investir-se (ou não) nos
processos de reintegração familiar, de uma maneira segura e protetiva.
Nakamura (2019) destaca a importância de se compreender e investir nessas
relações com a família de origem, inclusive nos casos em que se ocorre a destituição do
poder familiar, uma vez que a compreensão da criança e do adolescente a respeito desse
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processo se em um tempo próprio, e que os afetos e a vinculação com essa família
que será destituída não atendem ou correspondem aos desdobramentos do processo
judicial. Assim, a família acolhedora pode constituir para a criança um lugar de confiança
e elaboração em relação a esse luto.
Apesar dos ganhos proporcionados pelo acolhimento familiar, é importante
destacar que essa modalidade ainda corresponde a percentual pequeno em território
nacional, de forma que é ímpar investir na divulgação e no debate acerca de seus
benefícios.
ARTICULAÇÃO DE REDE E REINTEGRAÇÃO FAMILIAR
De Oliveira Avelino e Barreto (2015) problematizam que em ambas modalidades
de acolhimento, a garantia da convivência familiar e comunitária dos acolhidos se
mostra como desafio central dos atores envolvidos no SGDCA. Isso porque, a execução
de ações comprometidas com esse objetivo é de natureza complexa, e envolve a
percepção dos diversos segmentos envolvidos (famílias, técnicos, poder judiciário, entre
outros), bem como as condições e o contexto, geralmente bastante fragilizados, das
famílias de origem, tal qual a ordem e a gravidade da violação que ensejou a medida
protetiva.
Segundo a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (BRASIL, 2014),
um dos objetivos do SFA é apoiar o retorno da criança e do adolescente à família de
origem. Para que se efetivem as ações necessárias a esse objetivo demanda-se
compreender o que é preciso para viabilizar esse retorno de forma cuidadosa e
protetiva. O primeiro passo é identificar quem são os atores que compõe a rede
socioassistencial de referência daquele núcleo, o que foi realizado até aquele momento
e quais os profissionais e equipamentos que precisam se envolver para garantir que uma
atuação efetiva se estabeleça com aquela família, de forma a possibilitar o retorno da
criança/adolescente ao seio familiar, ou esgotar todas as possibilidades de retorno ao
núcleo de origem antes qualquer outro encaminhamento.
Investir em um trabalho voltado para a possibilidade de retorno da
criança/adolescente à sua família envolve analisar os motivos que culminaram no
afastamento do convívio familiar. Apesar de o acolhimento ser uma medida judicial, de
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maneira geral, o que a desencadeia são situações ocorridas no território da
criança/adolescente e acompanhadas por um ou mais órgãos da rede de serviços
socioassistenciais (conselho tutelar, Centro de Referência de Assistência Social, Centro
de Saúde, escola, entre outros). Para a realização de um trabalho efetivo durante a
medida de acolhimento é importante uma articulação profícua entre esses órgãos e o
sistema de justiça, em especial uma comunicação fluida entre os serviços que atuam no
caso e as equipes interprofissionais da VIJ.
O olhar e as concepções da equipe técnica do SFA acerca das famílias de origem
e das situações que geraram o acolhimento refletem na condução das ações a serem
delineadas e no diálogo estabelecido com os atores diversos do SGDCA. Ao falarmos de
famílias cujas crianças/adolescentes estão acolhidas uma gama extensa de fatores
como a pobreza, violências estruturais, dificuldades em exercer o cuidado cotidiano, que
podem ganhar nuances distintas, sendo inclusive agravados, por concepções sociais
negativas acerca das famílias e suas capacidades. A equipe técnica precisa ter escuta
atenta de suas próprias leituras sobre os casos acompanhados, para que imagens sociais
negativas não incidam em revitimizações e culpabilizações das famílias e isso venha a
diminuir o investimento no trabalho social a realizar. Estamos, enquanto seres sociais,
suscetíveis a responder e reproduzir padrões que podem fomentar discursos de
incompetência das famílias (PATIAS, GARCIA, DELL’AGLIO, 2016).
Os estereótipos sociais refletidos em famílias que possuem filhos acolhidos
podem enrijecer imagens e compreensões de risco, gerando viéses acerca das
dificuldades e desafios ao invés de investimento nas possibilidades e potencialidades de
transformação, em especial das situações adversas e de possíveis cenários de violência.
Além disso, tais preconceitos podem recair nas relações estabelecidas com as
crianças/adolescentes e dificultar de alguma maneira sua inserção comunitária e a
relação com os acolhedores.
Outro ponto que se relaciona à estereotipia sob a qual algumas famílias podem
ser vistas, é a importância de se ultrapassar os modelos tradicionais de família ao
desenhar o planejamento das ações voltadas à reintegração. O formato pai, mãe e filhos
muitas vezes não condiz com as circunstâncias postas e não se configura como uma
resposta viável às tentativas de atuação. É importante vislumbrar outras formas de
construção de vínculos, que podem vir a ser mais salutares e fortalecedores, como a
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partir da figura de tios, irmãos, avós, padrinhos e madrinhas. (PATIAS, GARCIA,
DELL’AGLIO, 2016).
Investir nesses outros formatos perpassa a compreensão de que o cuidado
comunitário é profícuo e vantajoso às crianças/adolescentes e suas famílias. A existência
de redes sociais ampara e fortalece as potencialidades das famílias, sendo tanto
preventivas como promotoras de bem-estar para os núcleos em questão.
Sanícola (2008) debate as redes sociais enquanto malhas, que podem ser densas
ou não, e que se compõe por pontos diversos, conectados entre si e recheados por
relações bastante distintas de aliança, disputas, tensões, contraposições. Para ela, as
redes sociais são configurações de relações e se dividem em rede primária, que é
composta pela família e relações afetivas; e rede secundária estabelecida por lócus
institucionais e organizações que atuam em prol do bem-estar e da garantia de direitos
e cidadania. De certa forma, as redes primárias relacionam-se à esfera do pertencimento
e da identidade, enquanto as secundárias vinculam-se à garantia da seguridade social.
Nesse sentido, Dos Santos Lopes e Dal Pra (2020) frisam que compor a rede de
um sujeito ou família diz respeito a estabelecer confiança e articulações diversas entre
seus membros, em arranjos recíprocos de apoio e diálogo. E, nessa troca dialética
possibilitar a transformação das realidades. Ademais, o investimento nas relações
afetivas e interpessoais nos contextos de proteção é ímpar, uma vez que, a princípio,
apenas quando as relações estabelecidas em nível primário não sustentam as demandas
e necessidades de um determinado sujeito ou grupo que se faz necessária a atuação da
rede secundária para garantir a proteção social.
Apesar de terem lugares distintos de atuação, mais vinculados aos afetos
estabelecidos ou à ação social do Estado, as diferentes redes sociais se conectam e
comunicam, e entre elas se estabelece (além de uma interlocução direta e explicita) o
trânsito de valores, crenças, medos e expectativas. A equipe do SFA passará a compor
essa rede, em nível secundário e a família acolhedora poderá compor sempre a
depender de cada caso a rede primária. Posto o objetivo comum entre os
participantes, a priori o retorno da criança/adolescente, os próximos passos irão
demonstrar as convergências e divergências no entendimento das situações. Gonçalves
e Guará (2010) demarcam que dentre os muitos desafios para a implementação de um
trabalho de rede consistente está a atuação por meio de uma lógica democrática e
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horizontalizada, que poderá garantir o respeito a cada um dos envolvidos e a articulação
dialogada das ações a serem executadas.
Trabalhar em uma perspectiva de articulação de rede (afetiva e
socioassistencial) é uma maneira de investir na corresponsabilização dos atores,
valorizar seus papeis e atribuições individuais e compartilhar a gestão e os resultados de
cada caso trabalhado. Essa modalidade de atuação evita que a família seja vista de forma
fragmentada e isolada pelos serviços do território e amplia a efetividade dos
encaminhamentos a partir de uma visão complexa das situações. O acolhimento de uma
criança/adolescente demarca um cenário que demanda cuidados e atenção às situações
que ocorrem no núcleo familiar atingido pela medida. Pressupõe-se, devido à
excepcionalidade do acolhimento, que tal núcleo deveria estar sendo atendido de
maneira sistemática pelos serviços de seu território, mas muitas vezes o que o ocorre é
que o afastamento da criança gera visibilidade a determinadas situações.
Logo, a articulação da rede compõe um processo de acompanhamento
psicossocial que está entre as atribuições da equipe técnica do SFA. Garcia (2018)
aponta que o trabalho social com famílias é composto por ações diversas, complexas e
complementares, de forma que o alcance e solidez do que é realizado relaciona-se a
maneira como as iniciativas de cada ponto da rede se entrelaçam. A falta de diálogo e
consonância dos encaminhamentos pode incorrer em uma precarização do
acompanhamento, devido à fragmentação das ações que compõe o plano de
atendimento de uma determinada família (GARCIA, 2018).
indicativos na rede de acolhimento sobre a descontinuidade ou a não
efetivação de uma atuação sistêmica, por exemplo, o desacolhimento por maioridade,
onde a saída do adolescente não necessariamente ocorre em função de um processo de
acompanhamento efetivo; e, também, a existência de acolhimentos de longa
permanência, mesmo com o mapeamento de vínculos e de disponibilidade da família
em aderir aos encaminhamentos realizados. Segundo Aguiar, Martins e Rosa (2019)
esses exemplos indicam impasses na consolidação de uma rede socioassistencial
reordenada, e que isso muitas vezes relaciona-se à manutenção, mesmo que residual,
de uma lógica de segregação e punição como via interventiva nas camadas mais pobres
e vulneráveis da sociedade.
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Implicar esforços nos processos de reintegração familiar é, de certa forma, andar
na contramão dessa lógica. Reintegrar é investir em vinculações e possibilitar que
famílias se vejam e sejam vistas a partir da sua capacidade de (re)organização e
transformação, tanto da maneira como se relacionam, como do contexto à sua volta.
Não significa apenas responsabilizar uma família por sua independência, mas construir
conjuntamente a ela possibilidades para a consolidação de uma vida autônoma, na qual
seria viável amplificar seus potenciais, e admitir suas fragilidades, contando com apoio
sempre que se fizer necessário. Dessa maneira, propõe-se uma lógica comunitária de
suporte mútuo e reciprocidade ao invés de um paradigma de isolamento e
autossuficiência. Esse pensamento, que a família precisa se bastar, ou “caminhar com
as próprias pernas” é atrelado aoreferido modelo idealizado de família, que atende a
ideais capitalistas e de produção mercadológica.
O trabalho de reintegração deve ser iniciado com a deflagração do acolhimento.
A maneira como a equipe do SFA estabelece as primeiras comunicações com a família
de origem impacta na forma como essa família pode vir a aderir, ou não, aos
encaminhamentos sugeridos. Muitas famílias chegam fragilizadas e estigmatizadas pela
retirada da criança/adolescente e enxergam, em alguns casos, a equipe técnica como
continuidade do poder público que atuou nessa retirada. Por isso, é importante garantir
que essas pessoas sejam escutadas em suas dores e indignações, e pontuar que o SFA é
um espaço de proteção da criança, mas também tratará de forma respeitosa e zelosa a
família.
Nesse processo de acolhida da família é possível estabelecer relações de
confiança, na qual se abrem espaço para reflexões e considerações sobre as violações
de direito que culminaram no acolhimento, tal qual, sobre o desejo e a disponibilidade
da família em compreender a medida protetiva e trabalhar junto à equipe e demais
atores da rede para viabilizar o retorno da criança/adolescente. Para algumas famílias,
o afastamento é um elemento que aumenta o contexto de fragilidade e é importante
que a equipe esteja próxima para orientar e apoiar os núcleos demonstrando que
vias para ultrapassar a situação vivenciada de forma integrada e coletiva.
Além disso, as famílias acolhedoras têm um papel importante nos processos de
reintegração, uma vez que fazem a ponte cotidiana dos acolhidos com os demais
envolvidos no processo. A reintegração, como discutido, é um processo e não uma ação
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isolada. Deve ser construída de forma gradativa, buscando prover segurança para
proceder com a consolidação do retorno à família. O acolhimento rompe com os
vínculos cotidianos com a família de origem, e a possibilidade de retorno pode ser tanto
à nuclear, como à extensa. Em ambos os cenários o fortalecimento e a confiança nos
vínculos precisam ser focos do trabalho. Proporcionar visitas, espaços ampliados de
convivência, participação da família de origem em aspectos diversos da vida da
criança/adolescente (saúde, educação, entre outros) são importantes estratégias de
atuação nesse sentido (BRASIL, 2009).
A família acolhedora participa desse processo observando e dando o contorno
necessário após as visitas das crianças à suas famílias, tendo atitude e falas positivas e
apoiadoras acerca desses encontros, demonstrando receptividade e abertura para
dialogar sobre medos e inseguranças apresentados pela criança. Isso requer diálogo
entre família acolhedora e equipe técnica, para que dúvidas e inseguranças sejam
dirimidas. Dessa forma, o acolhido pode sentir-se pertencente à sua família, sabendo
que não entre os adultos em sua vida disputas ou concorrências, pelo contrário,
cooperação e cumplicidade.
Da mesma forma que essa parceria entre família acolhedora, família de origem
e equipe gera segurança afetiva para os acolhidos, a sedimentação do trabalho em rede
confere eficácia, efetividade e maior apropriação acerca dos encaminhamentos dos
diversos atores da rede. Constituir espaços de troca e compartilhamento a respeito dos
casos empodera as equipes e auxilia a delinear etapas a serem seguidas na consolidação
da reintegração. Além disso, assim como a saída da criança do núcleo de origem é
disruptiva, o retorno, se não for conduzido com cautela e cuidado, também pode ser.
Portanto, é imprescindível que o plano de reintegração contemple ações de
continuidade de acompanhamento e atendimento do núcleo familiar, para além do
encerramento da medida. Dessa forma, se constroem espaços de garantia de direitos e
fortalecimento de vínculos comunitários e familiares. A rede socioassistencial sai de um
lugar histórico de cobrança e culpabilização e pode efetivar-se enquanto espaço de
cuidado, proteção e promoção de bem-estar.
Para ilustrar as discussões propostas, trazemos um relato de caso de
reintegração familiar, de um bebê que esteve em família acolhedora, ilustrando alguns
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pontos acerca do cotidiano do trabalho de articulação de redes no processo de
reintegração, seus entraves e possibilidades.
O ACOMPANHAMENTO DE MAIARA E RAFAEL: O SFA ENQUANTO ESPAÇO DE
GARANTIA DE DIREITOS.
Maiara
5
é uma mulher indígena, de aproximadamente 50 anos. Mora em uma
região de periferia, tem 11 filhos, dos quais 4 moram com ela. É mãe solo. Sua filha Jaci,
19 anos, desde o início de sua adolescência tem crises psicóticas severas, nas quais
apresenta considerável desorganização psíquica e momentos de alucinações,
engravidou e deu à luz a Rafael. Até o parto, a família não acreditava na gestação, se
mantendo na crença que o discurso da jovem era fruto de suas alucinações. Ao entrar
em trabalho de parto, Jaci teve uma forte crise. Ato contínuo ao nascimento de Rafael,
foi encaminhada para internação psiquiátrica e Maiara foi contatada pela equipe da
maternidade.
Maiara é uma das líderes da comunidade em que vive, entretanto tinha uma
relação conflituosa com o Conselho Tutelar (CT) ao qual é referenciada. A equipe do
serviço social da maternidade entrou em contato com o referido órgão para assegurar
que a liberação de Rafael para a avó materna era de fato protetiva. O CT se manifestou
contrário à liberação do bebê à Maiara, alegando que ela bebia abusivamente. A
liberação do bebê foi feita para a filha mais velha de Maiara, Joana.
Apesar disso, quem assumiu os cuidados cotidianos com o bebê foi Maiara, uma
vez que Joana trabalhava fora, em uma rotina bastante intensa e o único arranjo possível
para ambas é que Maiara cuidasse do neto, tal qual fazia com a filha de Joana. Passados
alguns meses, o CT em visita de acompanhamento à residência da família, verificou que
a avó de Rafael estava se responsabilizando pelos seus cuidados. Comunicou-se à
situação ao Sistema de Justiça e alguns dias depois Rafael foi encaminhado pela Vara da
Infância e Juventude (VIJ) a um SFA. Não houve estudo de outros órgãos do SGDCA ou
da equipe interprofissional da VIJ.
5
Este caso compõe a pesquisa de doutorado de uma das autoras, aprovada pelo Comitê de Ética e
Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais da UnB. Destacamos que os nomes são fictícios e que
informações que pudessem comprometer o sigilo da pesquisa foram omitidas.
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Na época do acolhimento, Rafael tinha pouco mais de quatro meses. Chegou ao
SFA, conduzido pela equipe do comissariado da VIJ e foi recebido pela equipe técnica. A
equipe que buscou o bebê na casa da progenitora relatou que no momento da retirada
ele estava bem, brincando, limpo e que uma vez que Maiara compreendeu o que se
passava, pediu para que eles esperassem que ela faria uma mamadeira e arrumaria uma
mala com as roupas de seu neto. Rafael foi levado para uma família acolhedora e a
equipe técnica deu início ao estudo psicossocial do caso.
Desde o primeiro contato com a equipe, Maiara demonstrou-se bastante
mobilizada com o acolhimento de seu neto, dizia reiteradamente não compreender os
motivos que levaram ao acolhimento e afirmava que tudo era culpa de um determinado
conselheiro tutelar, com quem ela havia tido um desafeto um tempo antes. Apesar
disso, ela se mostrou aberta a dialogar com a equipe e logo iniciou o processo de visitas
ao neto na sede do SFA.
Em um momento inicial não houve contato entre a família acolhedora e Maiara.
Esta em especial se dizia desconfortável em conhecer os acolhedores e reiterava ter
receio de que quisessem tomar seu neto para eles. Sempre comentava que Rafael estava
limpo, cheiroso e bem cuidado, mas inicialmente a equipe percebia que ela interpretava
este zelo com certa insegurança.
Paralelamente à visita iniciou-se um processo de diálogo com os equipamentos
da localidade em que a família de Rafael morava, bem como com seus vizinhos e alguns
membros da igreja que frequentavam. Notou-se uma maior resistência do CT em
enxergar uma figura protetiva em Maiara, mas em contraponto a isso, os demais órgãos,
em especial a rede de saúde e de educação a descreviam como uma mãe zelosa e
participativa na vida de seus filhos. Pouco a pouco, à medida que a equipe se fazia mais
presente no território, e estabelecia uma relação de confiança tanto com Maiara, como
com seus filhos e outras pessoas de importância para a família, algumas situações de
fragilidade e vulnerabilidade começaram a ser narradas.
A primeira delas era relacionada à situação de saúde mental de Jaci. Os vizinhos
relataram que as crises de Jaci eram muito severas e difíceis de controlar, e que em
alguns momentos a jovem era agressiva e que isso poderia colocar as crianças que
moravam na casa em risco, uma vez que a própria Maiara tinha dificuldades em gerir
essas situações. Após ser questionada algumas vezes sobre essa experiência, Maiara
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começou a falar sobre sua dificuldade de acesso à rede de saúde mental, bem como
sobre seus sentimentos em relação à doença da filha e ao impacto que isso causava em
sua vida. Pode admitir-se sozinha e desemparada, e em alguns momentos refém de sua
própria condição, pois com as crises de Jaci tinha dificuldades de arrumar um emprego,
que não poderia deixar os filhos mais novos e o neto sozinhos com ela, dessa forma
contava com os auxílios governamentais e com o suporte financeiro de sua filha Joana.
Após alguns meses de acolhimento, com a ampliação da periodicidade e do
tempo das visitas, Maiara começou a falar sobre sua relação com o álcool. Admitiu aos
poucos sobre a frequência do uso, e sobre sua dificuldade de adesão à proposta do
Centro de Atenção Psicossocial/Álcool e Drogas (CAPSad) ao qual estava referenciada.
A equipe técnica precisou nesse momento ser mais incisiva em relação à essa adesão ou
a outro modelo de tratamento, mas falou franca e abertamente sobre as consequências
do alcoolismo e os riscos que isso apresentava aos seus filhos e neto.
Dois meses após o acolhimento, Maiara e a família acolhedora manifestaram que
gostariam de se conhecer, a equipe técnica avaliou que tal encaminhamento teria
ganhos importantes e promoveu o encontro. Frisamos, que estes encontros são
proporcionados caso haja disponibilidade mútua entre famílias e avaliação da equipe
técnica do serviço a esse respeito. Luana, família acolhedora, pode falar à Maiara sobre
a admiração que nutria por seu esforço e perseverança e o quanto sua trajetória para
reaver o neto a emocionava. Disse também que se sentia muito honrada em poder
cuidar de um bebê tão querido e que dizia a ele sempre que em breve estaria com a avó.
Durante todo o encontro, Rafael sorriu e brincou com a avó e com Luana, demonstrava,
dentro daquilo esperado para sua idade, estar feliz e confortável com a presença das
duas.
Esse encontro foi muito mobilizador para Maiara, que começou a participar de
encontros dos Alcoólatras Anônimos (AA) e levava os comprovantes ao CAPSad para que
isso constasse em seu prontuário. Compareceu às reuniões marcadas pelo CT e, por fim,
passou a relatar e a pedir ajuda à equipe do serviço sobre algumas situações nas quais
sentia-se sozinha ou sem saber como proceder. Essa maior aproximação possibilitou que
ela fosse encaminhada a um processo psicoterápico, e que a equipe técnica do serviço
junto com o Núcleo de Saúde na Família (NASF) encaminhasse Jaci ao equipamento de
saúde mental de referência e que se articulasse junto ao órgão de educação vaga na
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modalidade creche para Rafael, e em modalidade integral para as demais crianças, de
forma a facilitar o retorno de Maiara ao mercado de trabalho.
Perto da liberação judicial de Rafael, Maiara perguntou à Luana se ela gostaria
de ser madrinha do bebê. Dessa maneira, elas estreitaram laços, e a disputa por Rafael,
que em algum momento se estabeleceu no pensamento de sua progenitora, findou-se.
Agora ela poderia confiar em Luana, enquanto alguém que a respeitava e que zelava
pelo seu neto, ou seja, mais um ponto de apoio com quem contar em possíveis
momentos de dificuldade.
O acompanhamento pós-reintegração de Rafael e Maiara, por parte do SFA, se
estendeu durante um ano. Foi enviado relatório para a VIJ, mediante solicitação desta,
após seis meses. Maiara passou a entrar em contato com a equipe do serviço e outros
órgãos da rede de proteção local quando se percebia em um momento de dificuldade,
e isso possibilitava que medidas preventivas fossem tomadas. Sua capacidade de pedir
ajuda passou a ser uma potencialidade, e não mais uma fraqueza como ela compreendia
inicialmente. Informou à equipe do SFA que houve visita da VIJ cerca de oito meses após
o desacolhimento, o que indicou a realização de um estudo psicossocial.
Maiara mantém contato com a equipe do serviço e em algumas situações
participa das turmas de formação de famílias acolhedoras. Em sua fala comparece a
experiência do acolhimento de Rafael como a mais difícil de sua vida, que em um
determinado momento quase a levou a desistir (referindo-se a bebida), mas que por
outro lado foi um período de intenso aprendizado sobre seus limites, seus direitos e a
importância de ter pessoas com quem contar, e que isso não a inferiorizava ou
depreciava enquanto mulher, mãe ou avó.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acolher uma criança/adolescente é acolher sua história e família. Compreender
seus vínculos de pertencimento, o lugar e os significados que ocupam nas relações e de
que maneira se constituem psiquicamente. Assim, narrativas atravessadas por violações
de direito sofrem impactos e desdobramentos que precisam ser enxergados e cuidados
de forma cautelosa e respeitosa. É comum nos casos de afastamento familiar, a família
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também ser vítima da violência estrutural, e muitas vezes, não ter compreensão ou
dimensão da gravidade e dos significados daquelas vivências.
Um serviço de acolhimento que atua nos casos de forma integrada à rede
socioassistencial e considerando cada criança e família em sua singularidade tem
maiores possibilidades de atuar de maneira protetiva, respeitosa e ao mesmo tempo
transformadora junto aos núcleos familiares e a rede. O próprio SFA (tanto corpo técnico
como acolhedores) pode fazer-se rede para aquela família, como no caso relatado no
qual a acolhedora passou a compor a rede primaria de Maiara. Isso é possível a partir
de uma construção metodológica atenta às armadilhas da repetição de modelos
higienistas em relação às famílias atendidas, e aos próprios preconceitos que cada
indivíduo pode carregar consigo, uma vez que somos socializados dentro de uma lógica
patriarcal e capitalista.
O caso de Rafael ilustra como crenças, valores e preconceitos podem interferir
na atuação da rede, e de que forma vivências pessoais comparecem no cotidiano de
atuação. Maiara precisou (re)construir a confiança na atuação do Estado, para permitir-
se ser atendida por seus atores. Por sua vez, os operadores do SGDCA precisaram abrir-
se para os significados que circulavam naquela família para construir com ela as
contingências que se faziam necessárias ao retorno de Rafael.
A confiança de Luana no trabalho delineado pela equipe do SFA permitiu que ela
se relacionasse com Maiara e esse contato foi constituidor para Rafael, que percebeu
suas figuras de referência afetiva em contato e sentiu-se seguro com isso. Da mesma
forma, Maiara e Luana puderam fortalecer-se mutuamente em suas experiências
pessoais e a partir disso construíram uma relação saudável e importante para ambas.
Maiara passou a ter mais alguém compondo sua rede de apoio e Luana teve sua
vinculação com Rafael mantida, respeitada, e ampliada a todo núcleo familiar.
O SFA é uma política pública que contempla em seu formato a complexidade da
população atendida ao fazer a defesa da singularidade e do afeto como formas de
atuação junto à infância. Concretiza a corresponsabilização pela garantia dos direitos da
infância ao convocar a sociedade civil a exercer esse dever constitucional e, dessa forma
nos mobiliza a pensar no potencial que cuidados e vínculos de qualidade têm nos
processos de desenvolvimento humano, em todas as fases da vida, transformando e
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propiciando novas vivências às crianças, adolescentes, suas famílias, as famílias
acolhedoras, a equipe técnica do SFA e, de certa maneira, a todo SGDCA.
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