https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v27n1p3-8



Vol. 27, n. 1, jan/jun, 2021

ISSN: 2179-6807 (online)



APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ


SOCIEDADES EM TEMPOS DE CRISE: OS SÉCULOS XX E XXI EM PERSPECTIVA



Flávia Ferro1

Wagner Teixeira2


Recebido em: 13/08/2021

Aprovado em: 16/08/2021



A trajetória histórica das sociedades contemporâneas é marcada por diversas crises que resultaram em profundas transformações econômicas, sociais e políticas. Alterações que modificaram não só as estruturas das sociedades, mas acarretaram mudanças no cotidiano e na vida de milhões de pessoas ao redor do globo. Crises econômicas, revoluções, golpes, mudanças de regimes políticos, processos de independência, guerras mundiais, conflitos regionais, fome estrutural, desigualdades regionais e muitas outras formas de expressão de crises que desestabilizaram regimes políticos e abriram espaço para o surgimento de outras formas de governo. Neste início de século XXI a realidade não é diferente, em apenas duas décadas experimentamos crises econômicas, políticas, militares, ecológicas e atualmente enfrentamos a maior crise sanitária dos últimos anos em escala global. Nossas sociedades vivem tempos de crise.

A História do Brasil Republicano não é diferente, vivenciamos enquanto sociedade em pouco mais de 130 anos diversas crises econômicas, políticas e governamentais. Crises que culminaram em mudanças de regime político, como na que resultou na proclamação da República em 1889. Crises que resultaram em golpes civis/militares que deram origens a regimes ditatoriais, como em 1937 e 1964. Crises políticas graves como a que levou Getúlio Vargas ao suicídio em 1954, à deposição de João Goulart em 1964 ou ao impeachment de Fernando Collor (1992) e Dilma Roussef (2016). Crises econômicas externas que abalaram a economia e a política brasileira, como em 1929, 1973 e 2008. Crises econômicas internas como a alta colossal da inflação que se arrastou do final dos anos 1970 até 1993. Crises iniciadas por manifestações de rua, como as de 2013, com reflexos até os dias atuais.

Dessa forma, pode-se afirmar com relativa tranquilidade, que a história do regime republicano no Brasil se fez por meio de uma sucessão de crises econômicas e políticas que marcam profundamente a sociedade brasileira. Foram raros e curtos os períodos de estabilidade econômica e política, mais raros ainda se excluirmos os períodos em que essa estabilidade foi imposta pela violência das armas. Nossa história republicana é sinônimo de crise, seja por incapacidade do próprio regime político e das forças políticas ou pela influência da conjuntura internacional e seus reflexos no país.

Aspectos estruturais conformam a sociedade brasileira desde o período colonial e são fatores importantes na eclosão de crises. Entre estes fatores podemos citar a desigualdade social e econômica, uma das maiores do mundo; um sistema econômico incapaz de romper com o subdesenvolvimento e a dependência em relação aos países capitalistas centrais; uma incapacidade congênita de se estabelecer um sistema político estável, democrático e duradouro; um sistema educacional público estruturalmente ineficaz, em constante crise e que acaba por reforçar as desigualdades sociais; um sistema único de saúde, que é exemplo para o mundo, mas que é sistematicamente sabotado em favor dos interesses privados. Em seu conjunto, esses fatores favorecem a eclosão constante de crises que desestabilizam o sistema político e impedem um desenvolvimento econômico e social que consiga superar de forma efetiva, esses mesmos problemas estruturais que marcam historicamente a sociedade brasileira.

O Dossiê “Sociedades em tempos de crise: os séculos XX e XXI em perspectiva” tem como proposta fazer uma reflexão sobre os impactos das crises nas sociedades contemporâneas em seus diversos e múltiplos aspectos. Tendo como foco a realidade brasileira, os artigos versam sobre temas variados e reúnem pesquisadores de diferentes áreas das Humanidades. Diante do cenário atual de crises sanitária, humanitária e econômica, em razão da pandemia da Covid-19, parte dos pesquisadores que contribuíram com este dossiê, se detiveram a pensar nas questões decorrentes deste contexto. Sabe-se que países enfrentam a pandemia de maneira diferente. Há no Brasil, por exemplo, o agravamento da crise devido à questões políticas. Ademais, a desigualdade social escancara, mais uma vez, como os pobres sofrem de maneira acentuada por um mesmo problema.

Além das dificuldades enfrentadas pelas pessoas mais humildes, Valmir Moratelli identificou que os idosos também compõem um grupo desfavorecido no contexto pandêmico. No artigo intitulado “O idadismo no contexto da pandemia da Covid-19: como o preconceito etário se tornou evidente no Brasil”, o autor analisa o preconceito etário no Brasil a partir da ambiência vivida entre os idosos na pandemia. Eles sofrem de preconceitos que suscitam ódio e ausência de respeito, solidariedade e empatia. Moratelli argumenta, a partir de dados de pesquisas econômicas, que os idosos representam importante força econômica, ao contrário da ideia dominante de que se trata de um grupo improdutivo. Sendo assim, o autor problematizou o preconceito normalizado no país acerca dos idosos, buscando desconstruí-lo.

Este dossiê dispõe de outro artigo envolvendo pandemia e economia. O texto produzido por Bárbara Kruse, Maximillian Clarindo e Marcos Kruse, perpassa pelos mesmos temas, mostrando um cenário de inovação a partir da situação de crise. O artigo intitulado “Marketing ambiental e pandemia: uma análise do discurso nas vendas de bolsas grifadas second hand” discute a vendas de bolsas de grife usadas em brechós contemporâneos – os chamados second hand – e de que forma que as redes sociais são utilizadas como ferramenta de divulgação e compra. A partir de um discurso de preocupação ambiental, sustentabilidade e reificação da natureza, os brechós contemporâneos ganham força e se colocam como uma boa alternativa para um “consumo consciente”. Ademais, o artigo contextualiza esse nicho comercial com a Pandemia e identifica que esse cenário propiciou a preocupação da sociedade com o meio ambiente e suas conexões, além de ter gerado a necessidade de adaptações e reinvenções dos setores econômicos. O second hand é uma reinvenção do brechó, com um apelo de markentig comercial baseado em sustentabilidade. No entanto, os autores chamam a atenção para a manutenção dos impactos ambientais, afinal, para existir o second hand, antes é necessário ter o first hand.

Ainda pensando nos reflexos da pandemia da Covid-19 no país, este dossiê dispõe de mais um artigo. Trata-se do trabalho “Reflexões sobre o espaço urbano na pandemia, a partir do bairro Major Prates, em Montes Claros- MG”, de Mariana Fernandes Teixeira. Entre as principais questões apontadas no trabalho, estão os conflitos espaciais e as dinâmicas de sociabilidades. Ao analisar a formação do bairro Major Prates, na cidade de Montes Claros, no norte de Minas Gerais, a doutoranda em Desenvolvimento Social identificou como um espaço urbano está em constante disputas. Se por um lado pôde-se observar no bairro o crescimento urbano e o aumento de comércios, gerando especulação imobiliária; de outro se observou a manutenção de tradições rurais. No que se refere a pandemia, Teixeira discutiu a questão do isolamento social, compreendendo que nem todos tiveram o privilégio de permanecer em casa. Foi necessário se ajustar ao novo cenário, aos decretos e buscar sobrevivência através do trabalho fora de seus lares. Os moradores ocuparam os espaços públicos. Eles expressaram arte, cultura e identidade nas ruas, praças, feiras e bares. Essas ações carregaram mensagens e posicionamentos políticos. Teixeira defende, então, que o comportamento dos moradores é uma estratégia de resistência.

Na atualidade o uso cada vez mais disseminado das redes sociais, criou espaços virtuais de sociabilidade, que em alguma medida reproduzem problemas já presentes no mundo “real”. Vanessa Andriani Maria em seu artigo aborda o caso de crianças e adolescentes que estão suscetíveis a sofrer bullying no mundo virtual. Autora do trabalho “Desafios e aprendizados frente ao cyberbullying em crianças e adolescentes LGBT´s no ambiente escolar: conflito real em um mundo virtual”, Maria analisa que as tecnologias de comunicação agravaram o cenário de discriminação contra jovens LGBT´s. A autora busca em seu trabalho pensar o problema, suas repercussões e, dessa forma, possíveis prevenções a essa prática. Compreende-se que é necessário que os jovens sejam ensinados sobre tecnologias e que seus responsáveis monitorem o uso destas. A escola é uma instituição que pode auxiliar no combate ao cyberbullying, de modo a instruir sobre ferramentas digitais, e por se apresentar como um local seguro para que as vítimas relatem os incidentes sofridos. Assim, os professores ou outros profissionais da educação podem intervir de maneira mais eficaz contra a violência sofrida por essas pessoas.

Para além dos problemas enfrentados no tempo presente em decorrência da pandemia da Covid-19 e do uso das redes sociais, o dossiê contou com a participação de pesquisadores interessados em compreender outros cenários de crises. A realidade brasileira em seus múltiplos aspectos permite diversas abordagens, os artigos a seguir compõe análises que vão da Primeira República aos dias atuais, destacando questões políticas e seus impactos na formação social brasileira.

Filipe Campos nos apresenta uma dessas situações experienciadas no século XX. Durante o governo de Arthur Bernardes, após a Primeira Guerra Mundial, o Brasil disputou uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da Liga das Nações. O órgão tinha relevância mundial, uma vez que a partir de diplomacias, evitar-se-iam novos conflitos. Uma situação gerou incômodo entre as nações: o Brasil vetou a entrada da Alemanha na Liga e, posteriormente, deixou a Liga das Nações. A historiografia tradicional compreende que isto foi resultado da personalidade de Bernardes. Campos, contudo, propõe uma outra abordagem. É inovador em atentar, a partir da categoria de intelectuais mediadores elaborada por Angela de Castro Gomes, para a maneira que o presidente da República dialogava com seus informantes internacionais e como Afrânio de Mello Franco atuou nesse contexto. O que se percebe é que Bernardes e Mello Franco jogaram como puderam para atingir seus objetivos. Não há, evidentemente, uma relação de poder simétrica entre Presidente e seus representantes. Contudo, é notório que Bernardes não estava construindo uma diplomacia sozinho e seus diplomatas atuaram como intelectuais mediadores, deixando uma bagagem de seus próprios valores e projetos. O posicionamento do Brasil na Liga das Nações é um claro exemplo disto.

Gabriel Cavalcante demonstrou através de seu artigo “Negociação coletiva dos petroleiros em tempos de crise” como a crise econômica, jurídica e política vivida no Brasil a partir de 2014 implicou na categoria petroleira e nas negociações coletivas dos direitos trabalhistas dessa categoria. Cavalcante fez uma análise desses acordos entre a Petrobrás e seus trabalhadores e comparou com os períodos imediatamente anteriores. Foram feitas entrevistas com sindicalistas petroleiros, ex-presidente da Petrobras e um assessor sindical da Federação única dos Petroleiros. Há, ademais, uma discussão bibliográfica baseada em normas jurídicas. De modo geral, o artigo evidencia a noção de que crises se espalham por todas as áreas do ser social, influenciado também nos direitos adquiridos historicamente. Em cenários como este vivido desde 2014, a possibilidade de perda de direitos se amplia.

Por fim, compondo a sessão “Ensaios” do dossiê, o artigo “Bolsonarismo e Bolsonaristas no Brasil contemporâneo: antecedentes históricos, percursos políticos”, escrito por Clayton Romano, apresenta uma retrospectiva histórica de características e práticas autoritárias que fazem parte da cultura política brasileira. Sua análise aborda o período pós 1945 e enfatiza a ditadura iniciada em 1964, o período da redemocratização e o momento político atual. Para o autor essas práticas autoritárias são um traço marcante e permanente da sociedade brasileira, se no passado essa atitude foi representada pelo arenismo, via imposição da atuação dos militares na política durante a ditadura militar, hoje se apresenta sob a forma do bolsonarismo, movido pela ação de sujeitos civis e militares, os bolsonaristas, que constantemente ameaçam a frágil democracia brasileira.

1 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (2020). Mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (2015) e licenciada nessa mesma disciplina pela Universidade Federal de Ouro Preto (2013). Interesse na área de História do Brasil República, com ênfase nos estudos de História Política, Cultura Política e História Contemporânea. Participa do Laboratório de História Social e Política (LAHPS- UFJ

2 Possui graduação (1997) e mestrado em História (2000) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Campus de Franca) e doutorado em História Social (2008) pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É professor adjunto do Curso de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) em Uberaba-MG. Desenvolve pesquisas na área de História do Brasil Republicano, com ênfase nos seguintes temas: Educação e Política, Esquerdas, Movimentos Sociais e Cultura Política. Desenvolve projeto de extensão universitária na área de Cinema e Ensino de História. Foi presidente da ANPUH MG gestão (2014 - 2016). Atualmente é Diretor do Instituto de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais (IELACHS) da UFTM.

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R evista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 1, jan/jun, 2021

PPGDS/Unimontes-MG