https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v27n1p98-117



Vol. 27, n. 1, jan/jun, 2021

ISSN: 2179-6807 (online)




A LIGA DAS NAÇÕES EM TEMPOS DE CRISE: O DIPLOMATA COMO INTELECTUAL MEDIADOR1


Filipe Queiroz de Campos2

Recebido em: 14/04/2021

Aprovado em: 22/06/2021


Resumo: Após a Primeira Guerra Mundial, o Brasil pleiteou um assento permanente no Conselho de Segurança da Liga da Nações, organização que buscava construir uma diplomacia multilateral, para que se evitasse novas guerras mundiais. A diplomacia brasileira na Liga das Nações ficou conhecida pela historiografia por apresentar decisões nada diplomáticas. O Brasil vetou a entrada da Alemanha na Liga, causando desconforto internacional, bem como exigiu o assento permanente como condição para continuar na organização, se retirando definitivamente da Liga em 1926. Sobre as razões por trás dessas decisões, contudo, há muito que se debater. Até então, a historiografia vinha apontando que foram decisões tomadas devido à personalidade impetuosa e intransigente do presidente Arthur Bernardes. Novas pesquisas, contudo, demonstram que há razões mais complexas por trás das decisões de Bernardes. Essas razões se ligam às relações de poder entre o Presidente e seus diplomatas. Nesse artigo, analisaremos essas relações de poder entre Arthur Bernardes e seus informantes internacionais, por meio da categoria de intelectuais mediadores de Ângela de Castro Gomes, para investigarmos mais detidamente o processo de tomada de decisões que levaram o Brasil a sair da Liga das Nações.

Palavras-chave: Liga das Nações. Diplomacia. Entreguerras. Intelectuais Mediadores. Primeira Guerra Mundial.


THE LEAGUE OF NATIONS IN TIMES OF CRISIS: THE DIPLOMATE AS AN INTELLECTUAL MEDIATOR


Abstract: After the First World War, Brazil claimed a permanent seat on the Security Council of the League of Nations, an organization that sought to build multilateral diplomacy, in order to prevent new world wars. Brazilian diplomacy in the League of Nations was known for its historiography for presenting non-diplomatic decisions. Brazil vetoed Germany's entry into the League, causing international discomfort, as well as demanding a permanent seat as a condition to remain in the organization, withdrawing definitively from the League in 1926. Regarding the reasons behind these decisions, however, there is much to debate. Until then, historiography had pointed out that decisions were made due to the impetuous and uncompromising personality of President Arthur Bernardes. New research, however, shows that there are more complex reasons behind Bernardes' decisions. These reasons are linked to the power relations between the President and his diplomats. In this article, we will analyze these power relations between Arthur Bernardes and his international informants, through the category of intellectual mediators of Ângela de Castro Gomes, to investigate further the decision-making process that led Brazil to leave the League of Nations.

Keywords: League of Nations. Diplomacy. Inter-war period. Intellectual Mediators. First World War.


LA LIGA DE NACIONES EN TIEMPOS DE CRISIS: EL DIPLOMADO COMO MEDIADOR INTELECTUAL


Resumen: Después de la Primera Guerra Mundial, Brasil reclamó un asiento permanente en el Consejo de Seguridad de la Sociedad de Naciones, una organización que buscaba construir una diplomacia multilateral, para prevenir nuevas guerras mundiales. La diplomacia brasileña en la Liga de Naciones era conocida por su historiografía para presentar decisiones no diplomáticas. Brasil vetó el ingreso de Alemania a la Liga, provocando malestar internacional, además de exigir un escaño permanente como condición para permanecer en la organización, retirándose definitivamente de la Liga en 1926. Respecto a las razones de estas decisiones, sin embargo, hay mucho que debatir. Hasta entonces, la historiografía había señalado que las decisiones se tomaban debido a la personalidad impetuosa e intransigente del presidente Arthur Bernardes. Sin embargo, una nueva investigación muestra que hay razones más complejas detrás de las decisiones de Bernardes. Estas razones están ligadas a las relaciones de poder entre el Presidente y sus diplomáticos. En este artículo analizaremos estas relaciones de poder entre Arthur Bernardes y sus informantes internacionales, a través de la categoría de mediadores intelectuales de Ângela de Castro Gomes, para indagar más detenidamente el proceso de toma de decisiones que llevó a Brasil a dejar la Liga de Naciones.

Palabras clave: Liga de las Naciones. Diplomacia. Entreguerras. Mediadores intelectuales. Primera Guerra Mundial.


INTRODUÇÃO


Onze de novembro de 1918: a Primeira Guerra Mundial terminou. Um saldo de aproximadamente dez milhões de mortos, economias europeias arrasadas e uma nova arquitetura geopolítica a se construir era o cenário que se a passou a se enfrentar após esse conflito. A “guerra para acabar com todas as guerras” não apenas findou com antigos formatos de se gestar a política internacional, próprios do século XIX, como também deu início a novas formas de se construir essa política. As relações internacionais não poderiam mais ser entendidas sem conceitos como “nações, nacionalismos, modernidade ou guerras mundiais”.

Como foi apontado pela professora Silvia Correa (2014), a historiografia vem apresentando que os impactos dessa “guerra total” puderam ser sentidos em todos os países e nas mais diversas dimensões da vida humana. Jay Winter (2009) demonstrou que o sistemático massacre de civis engendrou um novo “normal” para o fazer guerra.

Para a diplomacia, uma das repercussões dessa imensa guerra, foi a tentativa de construção da paz que fosse mais duradoura e reorganizasse o cenário internacional. Falava-se em se evitar os conflitos internacionais e em se construir programas de desarmamento. Nos bastidores da própria diplomacia, contudo, não era isso que vinha acontecendo.

Uma das mais notáveis reações políticas aos eventos internacionais que ocorreram entre 1914 e 1918 foi o erguer de nações pautadas pela busca de um nacionalismo forte que demonstrasse poder para intimidar qualquer possibilidade de novos conflitos próximos às suas bordas. O nacionalismo e a modernidade, como indicou o professor Jean Carlos Moreno (2014), passaram a ser ferramentas de afirmação de poder internacional.

No Brasil e em países mais pobres, esse nacionalismo esteve ligado a uma busca, política e artística pela ruptura com os padrões europeus em nome de se construir uma identidade própria para si. Aracy Amaral (2012) explica que, no Brasil, por exemplo, a tendência mais marcante na política e em movimentos artísticos era a efervescência de um nacionalismo forte, que criasse apego a elementos brasileiros, em detrimento dos modelos europeus. Assim, a Primeira Guerra Mundial foi, para os países mais periféricos, um exemplo de como o modelo político, social e econômico da Europa não deveria mais ser seguido. Governos inspirados pelo nacionalismo e pela modernidade da década de 20, buscavam, então, “nacionalizar, para internacionalizar” (AMARAL, 2012, p. 9-18).

Foram imbuídos desse novo caldo de modernidade e de nacionalismo que os presidentes Epitácio Pessoa e Arthur Bernardes, no Brasil, entre 1919 e 1926, desenvolveram uma diretriz bem clara para a política externa brasileira: garantir que o país permanecesse na Liga das Nações. O que era essa Liga das Nações?

A Liga das Nações foi primeira organização internacional com a proposta de se construir um concerto internacional para a paz. Ela envolveu muitos países do globo, para discutirem os rumos da política internacional em um sentido multilateral. Foi um organismo inédito que suscitou debates igualmente inéditos. Apesar de, atualmente, muito criticada pelas suas falhas, a organização foi bastante inovadora e precisa ser lembrada, também, pelos seus avanços, como o debate sobre o direito internacional dos refugiados ou a própria possibilidade de países, como o Brasil terem a chance de discutir os rumos das relações internacionais com as grandes potências.

Como foi demonstrado em trabalho mais recente (CAMPOS, 2020), a Liga das Nações foi palco para um momento inédito na diplomacia de países mais pobres: partindo do princípio de igualdade jurídica de votos e vetos, países como Brasil e Argentina vislumbraram, pela primeira vez, a possibilidade de coagir ou até mesmo restringir as ações de países europeus.

Foi o que exatamente acabou fazendo o Brasil. Quando Arthur Bernardes assumiu a presidência em 1922, a diplomacia brasileira passou a exercer planos para que o Brasil se tornasse um membro permanente do Conselho de Segurança da organização. Se conseguisse, o país estaria entre aqueles que poderiam decidir a respeito dos mais sensíveis assuntos sobre guerra e paz. Essa posição de membro permanente não apenas se relacionava a buscar do governo Bernardes por elevar o prestígio internacional do Brasil, mas, também, estava conectada com a diplomacia latino-americana, visto que, assim, o Brasil demonstraria força frente ao seu principal rival bélico na região, a Argentina (CAMPOS, 2019, p. 42-63).

A diplomacia de Arthur Bernardes na Liga das Nações foi bastante polêmica e, ainda hoje, muitos pesquisadores se debruçam sobre o assunto. A polêmica iniciou-se quando a Alemanha, por meio de negociações paralelas à Liga chamadas de Acordos de Locarno, acabou sendo indicada como o principal candidato a membro permanente, em detrimento do Brasil. Após muitas negociações, o Brasil vetou a entrada da Alemanha como membro permanente, para impedir que ela tomasse sua almejada vaga. Essa decisão foi muito criticada pelo próprio representante do Brasil na Liga das Nações, Afrânio de Melo Franco, por contemporâneos, como José Carlos de Macedo Soares, bem como por historiadores como Eugênio Vargas Garcia (2010) e Sérgio Danese (2017). Esse último, inclusive, classificou as decisões de Arthur Bernardes na Liga das Nações como uma “antidiplomacia” (DANESE, 2017, p. 362).

Ainda assim, esses autores fizeram apenas conjecturas, pois não apresentaram afirmações apoiadas diretamente por fontes primárias no sentido de se comprovar quais eram as intenções de Bernardes com as decisões que tomou. O debate muda com as últimas publicações sobre o assunto. Surge, então, uma nova dimensão de análise para esse debate: a relação entre o poder Executivo e seus representantes internacionais.


O DEBATE HISTORIOGRÁFICO


Houve algumas correntes de explicações que buscaram entender as decisões de Arthur Bernardes na Liga das Nações: a de Eugênio Vargas Garcia, que propôs que Bernardes desconhecia a complexidade das relações internacionais e diplomáticas da época, tendo uma má interpretação do contexto. Para Garcia, Bernardes conduziu suas decisões muito mais em benefício da política interna que da externa; o Presidente sofria do que o autor chamou de misperception sobre a realidade diplomática da época. Além disso, era um indivíduo bastante temperamental e intransigente, portanto, não muito afeito a outras perspectivas que não as suas (GARCIA, 2010, p. 70). Todas essas características teriam levado Arthur Bernardes a decidir com “olhos no lugar errado”, formulando uma diplomacia pouco vinculada aos interesses internacionais do Brasil, mas, sim, aos seus próprios.

Stanley Hilton (1986) e Clodoaldo Bueno (2002) também defenderam que Bernardes desenvolveu uma política nacionalista mais agressiva na Liga das Nações, por estar com olhos na opinião pública interna, no sentido de angariar prestígio com medidas mais radicais, como o veto à Alemanha ou a retirada do Brasil da organização.

Outros estudos passaram a buscar entender mais o contexto das decisões tomadas e sinalizaram para causas que iam além da busca por prestígio interno e além das características da personalidade do Presidente. Dois estudiosos que buscaram revisitar os motivos para que Bernardes tomasse as decisões que tomou foram os de Norma Breda dos Santos (2016) e de Braz Baracuhy (2006).

Baracuhy defendeu que Bernardes decidiu vetar a Alemanha e sair da Liga das Nações, pois o foco da diplomacia brasileira seria o “legado do Barão de Rio Branco”, no sentido de que essa diplomacia era respeitadora do multilateralismo, do direito internacional e da democracia. Vendo que a Liga estava sendo desrespeitada pela diplomacia europeia a partir dos Acordos de Locarno, que vinham sendo feitos para inserir a Alemanha na organização sem anuência de seus membros, o Brasil decidira sair como uma forma de protesto (BARACUHY, 2006, p. 355). Para esse autor, o Brasil teria vetado a Alemanha, para impedir que a diplomacia europeia interviesse em assuntos que seriam de todos os membros da Liga, e não apenas europeus. Vendo que a Europa continuava controlando a Liga, Bernardes, então, preferiu não se submeter àquela realidade e se retirou.

Noma Breda dos Santos defendeu, por sua vez, que a diplomacia de Bernardes deveria ser vista com mais cautela e mais contextualização, divergindo de que a personalidade de Bernardes ou a busca por prestígio interno explicasse todas as suas decisões. Essas decisões, para a autora, deveriam ser entendidas, por meio de um contexto no qual houve um choque de agendas entre a geopolítica europeia, que negociava apartada da Liga das Nações, por meio dos Acordos de Locarno, e a nova política multilateral da Liga, que oferecia transparência e decisões mais democráticas (SANTOS, 2016, p. 21). Ainda assim, esses estudos não apresentaram fontes primárias que fossem capazes de esclarecer quais as intenções do Presidente por trás de suas decisões.

Em 2020, publicou-se uma nova perspectiva para as decisões de Arthur Bernardes na Liga das Nações (CAMPOS, 2020). Por meio de fontes pouco ou nunca pesquisadas, presentes no Arquivo Público Mineiro, pode-se identificar que, na verdade, havia bastante pressão para que Bernardes não vetasse a Alemanha, muito menos saísse da Liga das Nações. Os diplomatas, em volta de Bernardes, principalmente, Afrânio de Melo Franco, confidenciavam ao Presidente que se o Brasil vetasse a Alemanha, uma terrível crise internacional poderia ocorrer (CAMPOS, 2020, p. 190).

Desse modo, concluímos que o Presidente não tomou suas decisões devido a uma busca por prestígio na política interna. O que mais direcionou suas decisões foram as percepções que ele compartilhava com seus informantes internacionais sobre qual seria o melhor caminho para que o Brasil deixasse claro ao mundo que era um país forte e que não poderia ser subestimado. É nesse sentido que as relações de poder entre o Presidente e seus diplomatas passam a ser fundamentais para se compreender as decisões que foram tomadas.


DIPLOMATAS E REPRESENTANTES INTERNACIONAIS COMO INTELECTUAIS MEDIADORES


Notamos que o Presidente Bernardes, ao contrário do que defendeu Garcia, era muito bem-informado a respeito das relações internacionais, pois trocava correspondências constantemente com Félix Pacheco, Ministro das Relações Exteriores, Afrânio de Melo Franco e com um informante secreto chamado Augusto Carlos de Souza e Silva, discutindo o intrincado jogo político da época. Entre essas cartas, Bernardes confidenciou a Pacheco que tinha forte interesse pela política internacional e gostaria muito de agir de acordo com suas perspectivas (CAMPOS, 2020, p. 238).

Por meio das fontes (CAMPOS, 2020, p. 135), pudemos compreender que Bernardes conduziu uma política de insistência pelo assento permanente não devido a uma suposta busca por prestígio interno, até porque havia constatada pressão, para que o Brasil não vetasse a Liga, mas, sim, devido às suas próprias percepções a respeito da política internacional. Mediante cartas e telegramas trocados entre o Presidente, seu Ministro Pacheco e entre o Presidente e outros diplomatas, expostas no trabalho Diplomacias Secretas: o Brasil na Liga das Nações (CAMPOS, 2020), temos uma nova perspectiva sobre as razões para as decisões de Bernardes na Liga das Nações. Nessa perspectiva, a opinião dos informantes internacionais ganha um peso estratégico com relevante poder explicativo.

É claro que quem dava a última palavra sobre as diretrizes da política externa brasileira era o Presidente, mas houve um verdadeiro jogo de forças entre Melo Franco, Bernardes, Félix Pacheco e o informante Souza e Silva até que essas decisões de fato ocorressem. Além disso, esse próprio jogo de forças acabou moldando a maneira com a qual as decisões do Presidente seriam aplicadas. Essa intrincada relação leva-nos, nesse artigo, a fazer uma reflexão a respeito das relações de poder entre o Presidente, seus diplomatas e representantes internacionais.

Normalmente, o foco do estudo sobre as decisões da política externa de um país ocorre no Presidente, como condutor máximo dessa política, o que é normal. O excesso de foco nessa figura, contudo, pode simplificar as relações de poder que forjam a decisão final. Inspiramo-nos nos ensinamentos de Michel Foucault a respeito da “microfísica do poder” (FOUCAULT, 1989), que aponta que a gestão do poder está em todos os níveis das relações humanas, e não apenas em um grande centro de decisões. Essa percepção leva-nos a compreender os diplomatas e informantes internacionais como indivíduos que também contribuíram para o processo de decisão.

Os informantes e diplomatas do Presidente, na Liga das Nações, precisavam executar o que ele mandava, bem como informá-lo sobre tudo o que acontecia. É verdade que Bernardes decidia o que Melo Franco deveria ou não fazer. É também verdade, contudo, que Melo Franco poderia decidir não fazer exatamente o que mandou o Presidente, como acabou, de fato, fazendo em algumas situações. Franco também dispunha de poder sobre como iria executar as ordens do Presidente. Os espaços ou brechas de poder precisam ser considerados, para que se entenda uma decisão final para a política externa de um país.

O Presidente decidia, mas não decidia sozinho. É esse entendimento que nos leva a apresentar, aqui, as possibilidades de se utilizar a categoria de intelectuais mediadores, desenvolvida por Ângela de Castro Gomes, para diplomatas e informantes internacionais. Acreditamos que análises que enxerguem os jogos de poder entre o poder Executivo e seus informantes podem lançar novas luzes não apenas para pesquisas a respeito da diplomacia brasileira na Liga das Nações, como, também, para outras pesquisas que se dedicam à História da Política Externa de um país.

Quem seriam os intelectuais mediadores para Ângela de Castro Gomes? A professora diz adotar uma acepção mais ampla, para o que seria esse intelectual mediador, indo além do senso comum para o conceito de “intelectual”:


são homens da produção de conhecimentos e comunicação de ideias direta ou indiretamente vinculados à intervenção político-social. Sendo assim, tais sujeitos podem e devem ser tratados como autores estratégicos nas áreas da cultura e da política” (GOMES, 2016, p.10).



Nesse sentido, essa abordagem rompe com a ideia de que o intelectual é um “produtor original ou criador”, como um sujeito responsável pela constituição da cultura erudita. A produção de novos sentidos também é feita pelos mediadores.

O intelectual mediador é uma categoria que permite entender “aquele que leva mensagem” também como um produtor. A circulação de ideias e a tomada de decisões não passam incólumes pelos mediadores. Gomes convida-nos a pensar que o mensageiro pode produzir novos sentidos à mensagem, partindo de projetos políticos e culturais inclusive diferentes daqueles de quem produziu a mensagem original.

Gomes orienta que o que se ignora no sentido habitual de interpretação do mediador intelectual é que o que o intelectual “mediou” torna-se um outro “produto”. Assim, o intelectual mediador não se distingue do intelectual criador. Para que algum ator social seja então identificado como intelectual mediador, a autora oferece a seguinte definição: “esse intelectual, muitas vezes, ocupa um cargo estratégico numa instituição cultural, pública ou privada (...) ou atua em uma organização política (...) de onde protagoniza projetos de mediação cultural de enormes impactos políticos” (GOMES, 2016, p. 27).

É dessa maneira que compreendemos que a categoria de intelectual mediador leva-nos a um novo olhar a respeito das relações entre diplomatas, informantes internacionais e o poder Executivo. Em tempos de crise, como foi a crise gerada pelo veto brasileiro à Alemanha e o processo de saída do Brasil da Liga das Nações, o papel do intelectual mediador torna-se ainda mais importante. Isto, pois a decisão final, normalmente, é de grandes repercussões.

Em tempos de crise, aquele que envia a sua decisão para ser executada por outro precisa ter certeza de que ela será executava. Do outro lado, todavia, aquele que executa está cônscio de que tem grandes poderes nas mãos e, pode ver na própria maneira que se vai fazer executar a decisão, uma brecha para exercer ao menos parte de suas próprias crenças e projetos.

Dessa maneira, a diplomacia pode ser um jogo de poderes entre países, mas, dentro da própria confecção de decisões diplomáticas, há um outro campo de forças; um que julgamos ainda pouco explorado: aquele que compete às relações de poder entre o poder Executivo e seus representantes no exterior.

Vamos à análise das perspectivas de Afrânio de Melo Franco, Félix Pacheco, Arthur Bernardes e do informante secreto do Presidente, o contra-almirante Augusto Carlos de Souza e Silva, para enxergarmos esse campo de forças.


AS RELAÇÕES DE PODER ENTRE O PRESIDENTE E SEUS REPRESENTANTES NO EXTERIOR

Afrânio de Melo Franco era um diplomata, jurista e político entusiasmado com a ideia de paz universal. Ele acreditava que o papel do Brasil, na Liga das Nações, não deveria ser pautado pela busca de poder e autoridade, mas de respeito às lógicas da geopolítica europeia, que geraram a própria existência da Liga das Nações. Era, portanto, um pacifista que defendia ações mais comedidas para o Brasil.

Era muito importante, para o Presidente Bernardes, ter alguém com esse perfil na Liga, além disso, Melo Franco estava envolvido com o jogo político nacional, o qual impelia o Presidente a fornecer um cargo importante a um político mineiro.

Melo Franco encaixava-se, portanto, perfeitamente nessas necessidades. Apesar disso, Bernardes não compartilhava das crenças de Franco a respeito de como o Brasil deveria se inserir no ambiente internacional do pós-guerra.

Melo Franco repudiava totalmente qualquer possibilidade de o Brasil vetar a Alemanha. Em uma de suas últimas comunicações que encontramos a respeito do veto, ele disse: “diante do impasse, refuto erro funesto a responsabilidade do veto. Assumiremos tremenda responsabilidade da anulação dos Tratados concernentes a Política de Paz Europeia quando todos os grandes membros receiam desse gravíssimo perigo”3.

Por meio de fontes do Arquivo Público Mineiro, no fundo Arthur Bernardes, identifica-se cartas entre o Ministro das Relações Exteriores e o Presidente no sentido de que eles acreditavam que a França, Inglaterra e Alemanha eram as verdadeiras intransigentes na crise (CAMPOS, 2020, p 212). Bernardes e Pacheco entendiam que o Brasil estava exercendo seu direito natural e previsto pela própria Liga das Nações de buscar seu cargo permanente e tinha muito mais respaldo quanto a um prestígio de pacifismo e democracia que a Alemanha. O Brasil deveria, portanto, manifestar sua luta por um lugar permanente, como forma de exercer aquilo que a própria Liga das Nações propunha: igualdade no tratamento entre os países membros. Ministro e Presidente estavam muito mais preocupados com a garantia de espaços de poder ao Brasil na Liga que o próprio representante brasileiro na organização, Afrânio de Melo Franco.

Bernardes e Pacheco já tinham motivos de sobra para desconfiar da lealdade de Melo Franco. Na Conferência Internacional de Desarmamento de 1923, Franco já havia desrespeitado ordens diretas do presidente em nome do pacifismo que acreditava ser correto (para mais detalhes ver: CAMPOS, 2020, p. 191).

Por outras fontes de informação, além de Melo Franco, ou seja, outros diplomatas, Bernardes vinha sendo informado de que a Alemanha não estaria disposta a ceder o lugar para o Brasil, e a velha política europeia continuava em funcionamento dentro da Liga das Nações:


Vossa Excelência presidente da República, o orgulho alemão exige nada menos que todas as nações se apaguem diante da afirmação do prestígio da nova Alemanha. [...] Se a crise atual acabar pelo desmoronamento, toda a responsabilidade cabe aos alemães, única e exclusivamente. Tal responsabilidade é terrivelmente pesada, pois representa o fim da reconciliação dos povos 4.



Outros confidenciavam a Bernardes que Liga era um projeto dos vencedores que os países latino-americanos precisavam se fazer representar nesse jogo, como foi o caso Rivas Vicuña, representante do Chile, escrevendo para Bernardes em caráter confidencial:


Só os vencedores ocupam assentos permanentes, dominando o Conselho. Não corresponde essa situação com o cárter que devia ter a Liga conforme espírito de Washington, algo desvirtuado em Versalhes e que precisa se purificar em Genebra. Os neutros deveriam ter u posto permanente. Qual deles? A Liga não devia ser um órgão de vencedores, devendo os neutros ter nela determinante influência. A América necessitava de uma ativa representação5.



Havia duas percepções: a entrada da Alemanha seria uma afronta à diplomacia dos países periféricos, pois foi gestada em acordos paralelos à Liga, nos Acordos de Locarno, ignorando os princípios que fundaram a organização: transparência e multilateralidade. Por outro lado, outros viam, como Franco, que cabia ao Brasil apenas respeitar os Acordos de Locarno, que priorizavam a paz internacional ao apaziguar os desejos dos alemães por poder e representatividade. Cartas entre Bernardes e Pacheco, contudo, mostram que o Presidente e o Ministro não entendiam o cenário de maneira tão polarizada.

E 14 de fevereiro de 1923, Pacheco explicou seu plano confidencial a Bernardes: o Brasil não deveria ter intenções reais de sair da Liga, nem mesmo chegar às vias de vetar a Alemanha, mas, sim, construir, junto com a Espanha, um clima de ameaças de que ambos os países vetariam a entrada da Alemanha ou até mesmo sairiam da organização se o número de cadeiras para membros permanentes não aumentasse. Apenas depois do aumento do número de assentos, o Brasil deveria promover ou não uma discussão sobre a entrada da Alemanha. O Ministro chamou esse plano de política ad terrorem6.

Além disso, a justificativa alemã para entrar na Liga, em vez do Brasil e da Espanha, era de que a Alemanha era uma potência militar e Brasil e Espanha, não. Pacheco fez mostrar ao Presidente que, naquele momento, a Alemanha contava com inúmeras restrições de exército, território e munição, não sendo, portanto, uma potência bélica (CAMPOS, 2020, p. 161). O Ministro tinha, então, interpretações legítimas sobre a realidade geopolítica da época, bem como um plano secreto de ação.

Os planos e entendimentos do Ministro e de Bernardes passaram despercebidos pela historiografia que se voltou muito mais para as impressões de Melo Franco, que chegaram aos arquivos do Itamaraty e foram amplamente consultados pelos estudiosos do assunto. Vemos, contudo, que Melo Franco ficou totalmente fora das estratégias de Bernardes e Pacheco. Claramente, o diplomata não sabia exatamente dessa política ad terrrorem e não sabia, porque o Presidente já tinha ciência de que o diplomata não concordaria com essas ideias. A discordância direta de Franco poderia minar todo o plano. Franco dispunha de brechas de poder significativas. Poderia emitir mensagens não exatamente como o esperado ou poderia não ameaçar fazer o Brasil sair da Liga. Isso era muito provável, visto o comportamento anterior do diplomata como citamos. De certa forma, criar ameaças de veto ou de saída dependiam bastante de um trabalho efetivo de Franco nesse sentido. Enxergamos aqui, então, os limites da diplomacia do poder Executivo encontrando-se com as potencialidades da diplomacia do mensageiro, no caso, Melo Franco.

A categoria de intelectual mediador cabe muito bem a Franco, para que se possa enxergar suas brechas de poder como um dos fatores que moldaram a maneira com a qual Bernardes optou para executar seus planos, ou seja, por meio de um plano secreto junto ao Ministro Pacheco.

Para o Presidente, era vital fazer com que o Brasil mostrasse força internacionalmente, pois, ao contrário de Melo Franco, Bernardes não acreditava que aqueles eram tempos de paz. Ao lermos as cartas que ele trocou com seu informante secreto na Liga, o contra-almirante Carlos Augusto de Souza e Silva, identificamos que, na verdade, para o Presidente, para o Ministro Pacheco e Souza e Silva, a ocorrência de uma nova guerra entre as nações parecia questão de tempo. Aqueles não eram tempos de mostrar condescendência e diálogo; era um momento de crise. Para eles, a Liga das Nações era apenas uma fachada para a geopolítica europeia continuar operando seus jogos de poder. A novidade era que os países periféricos poderiam, ao menos, contestar isso tudo publicamente e exigir também fazerem parte do jogo (CAMPOS, 2020, p. 204).

Augusto Carlos de Souza e Silva enviava longas cartas para Pacheco e Bernardes emitindo sua interpretação sobre o estado das coisas. Nessas cartas, chagava a pedir que não se tirassem cópias para que elas não chegassem ao Itamaraty7. Por isso, seus planos não haviam sido estudados por quem apenas pesquisou nos arquivos do Ministério das Relações Exteriores.

Esse secreto conselheiro do Presidente emitia suas impressões sobre como o Brasil deveria se comportar, e, as fontes levam a constatar que foram nessas impressões que Bernardes se inspirou para tomar as decisões que tomou. Dizia Silva ao Presidente em uma longa carta em um tom muito informal:


Na expendida situação internacional em que nos encontramos, podemos tomar atitudes sempre claras e decididas à moda dos Estados Unidos, pois apenas se respeita as nações que o fazem. V. Ex. tem propensão para uma política vigorosa sem fraquejar para sempre afirmar com intransigência o ponto de vista do interesse da segurança nacional. Creio que podemos falar, acusar como quisermos de igual para igual e exigir elas por elas, pois hoje a maioria dos países das Grandes Potências estão na nossa dependência para o seu comércio interno, sua concorrência e sua indústria e sua imigração, a começar pela Inglaterra. Com a Itália, principalmente, devemos falar alto e grosso! Quanto mais o fizermos, guardando a forma amistosa, menores dificuldades teremos.8



Bernardes, inclusive, pagava mais a Souza e Silva que ao próprio Melo Franco. Encontramos, nos arquivos, uma nota telegrafada de Franco perguntando a Bernardes quem seria “esse Souza e Silva” (CAMPOS, 2020, p. 212), que estava recebendo uma quantia bastante elevada. Não nos parece que Franco obteve qualquer resposta. A nota demonstra o quanto Bernardes já desenvolvia uma diplomacia totalmente paralela à oficial conduzida por Franco. Havia o representante oficial e o oficioso, para Bernardes. Para realmente fazer cumprir suas decisões finais, todavia, Bernardes sempre teria que passar por Melo Franco.

Os ânimos de Silva estavam muito exaltados. Para ele, aqueles eram tempos de continuação da guerra. Em suas cartas, ele evidenciava que tempos de paz eram um mero momento de rearmamento e preparação para novos tempos de guerra:


Ninguém está falando de estabilidade e desarmamento que se faz nos protestos da Liga das Nações. A nações grandes estão tratando de se armar. Cada país está se preparando para uma futura guerra que muitos julgam próxima de 5 a 10 anos. A Convenção de Washington não desarmou a nenhum de seus signatários. Ao contrário, deu à França e à Itália mais tonelagem que tinham substitui navios velhos. Cada um está em rumo de uma frota muito mais poderosa.9


Nessa realidade, Silva não via o Brasil fora da mira de uma próxima guerra. Ela afirmou: “. O Brasil é particularmente visado por eles, porque sua posição geográfica dá lhe o comando do Atlântico”10. Nos termos das cartas de Silva, o Brasil precisava tomar decisões de força em uma “diplomacia viril”, para mesmo que saísse da Liga, mostrasse ao mundo que as grandes potências precisavam respeitar um país de decisões fortes. Essa era a verdadeira interpretação de mundo que fundamentou as decisões do Presidente na Liga. O legado que Bernardes buscava deixar era o de um país que precisava ser respeitado em um momento que ele entendia como de continuação das crises políticas na Europa.

As palavras de Silva mostram o tom de estratégia de guerra que o Brasil deveria adotar. Era momento de fazer do Brasil um país que usaria as ferramentas dos europeus, para construir uma nova diplomacia que os forçasse a escutar os países mais periféricos. Disse Silva ao Presidente:


A Liga das Nações está morta, mas está longe de ser uma inutilidade (...) A verdade é que ela põe em confronto os grandes e os pequenos, e esses podem ali gritar e espernear e fazer escândalo e de tudo isso há de resultar em um ambiente novo na diplomacia e nas relações internacionais que facilitará os entendimentos e, aos poucos, criará uma opinião pública mundial, que é a único sansão possível entre os desmandos das violências11.


As fontes nos levam à constatação de que todo pano de fundo da perspectiva de política externa de Silva, Bernardes e de Pacheco era este: o Brasil lutaria para manter seu lugar entre as grandes potências, pois o mundo estava se preparando para uma nova guerra.

Em outra carta a Bernardes e a Pacheco, Silva elogiou a conclusão do veto do Brasil à entrada da Alemanha, dizendo que a Alemanha era a grande ameaça à paz da Europa. Ele também lamentou que Melo Franco não estava correspondendo às ordens do Presidente de comparecer às negociações e mostrar força. Nessa carta de Silva, fica claro que Afrânio não estava buscando se envolver nas principais discussões, justamente porque discordava dos métodos da “política ad terrorem de Bernardes. Franco não estava disposto a produzir ameaças de veto, nem a saída do Brasil da Liga. Disse Silva com muita liberdade ao Presidente:


O Afrânio, em lugar de vir passar um mês em Paris para fazer seus movimentos ficou imóvel e desatento na Itália (...)isso que vou lhe dizer é grave. Guarde só para você e para o presidente (...) Fui a Genebra a noite e encontrei o Afrânio atemorizado com a nossa atitude e aterrorizado com a responsabilidade que lhe estava nos ombros. Eu, muito preocupado com sua situação de “jurista” tentei agir. Eu já sabia das ordens do presidente. Afrânio disse-me que o veto brasileiro à entrada da Alemanha iria causar grande complicação na Europa. Estava muito impressionado com as sugestões de Chamberlain e as manhas de Briand. Por fim disse: eu em caso algum vetarei a Alemanha. Eu repliquei, Afrânio, você não pode fazer isso caso contrário será recebido no Rio com ovos podres. Seria homem morto e liquidado. Tenha coragem. Fale grosso e não revele fraqueza. Ameace que eles cedem. Ele perguntou, você acha que vencemos? Respondi, acho que vencemos se formos firmes. Se você mostrar fraqueza estamos fritos. Ele reafirmou que receava uma nova guerra na Europa. Respondi, devemos usar a tática da fadiga (...) não morre ninguém.12


É bom lembrar que, nesse ponto dos acontecimentos, a Espanha já havia retirado seu apoio ao veto do Brasil à Alemanha. O Brasil ficou isolado na proposta de ameaças. A ideia de Silva era que o Brasil deveria anunciar que vetaria e estava decidido a isso apenas para o Conselho de Segurança, pois isso causaria uma reação entre as grandes nações e as negociações ainda estariam abertas. O grave erro que levou os planos ao insucesso, pela narrativa de Silva, é que Melo Franco não fez a declaração de veto no Conselho de Segurança, mas, sim na própria Assembleia Geral, diminuindo totalmente o poder de ameaça que a decisão teria, pois, na Assembleia Geral o assunto já se apresentaria como consumado e não geraria mais embates.

Naquela altura, para Silva e para Pacheco, todos já sabiam que Afrânio estava sem real coragem de fazer o veto à Alemanha diante das grandes potências. Inclusive, outros diplomatas conversaram com Franco para desmotivá-lo a fazer o veto:


O Afrânio, que é um bom jurista não viu o laço, pois o avesso de um bom jurista é um péssimo diplomata. Aterrorizado com as consequências que seria capaz de causar caiu no laço (...)tremia como varas verdes. Estava lívido como um cadáver (...)O Afrânio deu-lhes uma saída fazendo precipitadamente a sua declaração. A declaração era para ter sido feita no Conselho, e não na Assembleia (...)esse Régis é o diabo. Ele, para aguentar-se com Chamberlain pôs-se a serviço dele contra o presidente do Brasil. Colaborou numa nota com Chamberlain. Foi o Régis que encorajou Chamberlain a dizer para Afrânio que o veto teria sérias consequências para o Brasil!13



O desgaste final e máximo foi quando, por fim, falhadas todas as tentativas de se produzir às grandes potências a sensação de que o Brasil realmente estava disposto a fazer pressões, Bernardes decidiu passar à estratégia de sair da Liga. Os planos ad terrorem, ou seja, a política da ameaça deixou de usar o veto à Alemanha e passou a usar a última carta que o Brasil poderia ter: se retirar.

A estratégia do Presidente nunca foi a de levar de fato o veto ao fim e ao cabo nem a de levar o Brasil a sair da Liga. Ainda assim, uma vez que as estratégias de ameaça não funcionaram, como, para Silva “A Liga estava morta”, não faria tanta diferença, o Brasil sair da organização desde que deixasse uma mensagem clara: o Brasil precisava passar uma mensagem de que era uma nação que precisava ser respeitada e que a Liga das Nações não estava construindo um novo modelo de paz, mas, apenas perpetuando as políticas europeias que levaram à Guerra.

Melo Franco se recusou a fazer as declarações de retirada do Brasil da Liga, ameaçou pedir demissão; ameaçou sair do posto antes da declaração final do Brasil, além de não aceitar o discurso que Pacheco escreveu para ser lido na Assembleia, como discurso de despedida do Brasil da Liga. Era um discurso inflamado no qual o Brasil deixaria claro que estava saindo, porque a Liga se tornara um instrumento dos interesses europeus e perdeu sua vocação multilateral (CAMPOS, 2020, p. 233).

Por fim, a opinião de Franco fez o discurso ser alterado e suavizado. O Presidente então exigiu que o discurso fosse lido para todos, para causar impacto e, nas palavras dele, causar um “momento político (CAMPOS, 2020, p. 234). Melo Franco, mais uma vez, fez usos de suas brechas de poder: apenas entregou o discurso brasileiro ao presidente da Liga, sem ler uma palavra dele em voz alta. Em quinze de junho de 1926, o Brasil então oficializou seu discurso de saída da organização.

Em todo esse processo as relações de poder entre o Executivo, seus diplomatas e informantes demonstram um processo muito mais complexo na efetivação das decisões do Presidente para a política externa do Brasil na Liga. Essas interações permitem-nos investigar a atuação dos diplomatas como intelectuais mediadores, ou seja, capazes de encontrar brechas de poder e de imprimir, na mensagem que precisam passar, um pouco de seus próprios valores e projetos. Elas nos convidam também a pensar que ao exercer essas brechas de poder, eles estavam gerando “um novo produto”. O Presidente não estava, portanto, construindo sua diplomacia sozinho.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Ao fim dessa análise, podemos investigar as relações de poder entre o Presidente Bernardes e seus representantes do exterior. Expor essas relações de poder mostra que Bernardes teve suas intransigências, mas Melo franco também as teve. Ambos os lados detinham poderes de barganha e pressão. Não eram relações de poder simétricas, claro. Mesmo assim, muito além, do choque entre agendas diplomáticas do Brasil e da Europa, apresentado como uma das razões para as decisões do Brasil na Liga das Nações, foi o choque entre as visões de mundo entre o Presidente e seus diplomatas que forjara as decisões finais e os acontecimentos naquele tempo de crise.

Era um tempo de paz e reconstrução para Melo Franco. Era um tempo de crise, novas possíveis guerras e de nacionalismos exaltados, para o Ministro Pacheco, Souza e Silva e o Presidente do Brasil. Esse embate estava claro para ambos os lados. Melo Franco jogou com pôde para evitar que o Brasil produzisse decisões agressivas. Bernardes fez exatamente o oposto com sua rede de atores oficiosos.

A categoria de intelectual mediador ajuda-nos a compreender a “microfísica o poder” entre os produtores da mensagem e os mensageiros. As relações de poder entre Presidentes e diplomatas merece investigações mais profundas. Essa interação demonstra como o processo de tomada de decisões na política externa pode ser muito mais complexo do que se apresenta a priori. Entre o Presidente decidir e de fato se fazer cumprir suas decisões, existe um abismo repleto de relações de poder que podem mudar bastante o resultado dessa própria decisão.

Essas relações auxiliam-nos a compreender mais profundamente o próprio período histórico pelo qual se passava. Eram tempos de crise do liberalismo econômico e questionamentos profundos sobre a validade do próprio liberalismo político. Eram tempos nos quais a “paz dos vencedores”, imposta aos perdedores da Primeira Guerra Mundial, para muitos, parecia enunciar novos tempos de guerra.

Ao se estudar a formulação da política externa brasileira para a Liga das Nações, também se está estudando o entreguerras. O momento não foi de paz e tranquilidade, mas de várias interpretações sobre o que seria essa “paz” da Liga das Nações e do Tratado de Versalhes. Os países mais periféricos precisam de posicionar mais fortemente quanto às ameaças externas. Eram tempos de verdadeiras corridas armamentistas encobertas por acordos de paz e contenção.

Em tempos de crise como esses, as relações entre Presidentes e diplomatas tornam-se ainda mais relevantes para que o historiador possa investigar a complexidade da realidade política, pois cada decisão internacional pode gerar profundas repercussões relacionas à guerra ou à paz. É nesse sentido que debruçarmo-nos mais sobre essas interações, por meio de categorias que nos auxiliam a complexificar nossas análises é, certamente, um exercício muito bem-vindo.



REFERÊNCIAS


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Gomes, Angela de Castro; Hansen, Patrícia Santos. Apresentação- Intelectuais, mediação cultural e projetos políticos: uma introdução para a delimitação do objeto de estudo. In: Gomes, Angela de Castro; Hansen, Patrícia Santos (orgs). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2016

HILTON, Stanley. Afrânio de Melo Franco e a diplomacia brasileira, 1917-1943. Revista brasileira de política internacional, a. XXIX, n. 1, 1986, p. 15.

MORENO, Jean Carlos. Revisitando o conceito de identidade nacional. In: RODRIGUES, C. C.; LUCA, T. R., and GUIMARÃES, V. (Orgs.). Identidades brasileiras: composições e recomposições [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014, pp. 7-29. Desafios Contemporâneos collection. ISBN 978-85-7983-515-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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WINTER, Jay (Ed.). The Legacy of the Great War: Ninety Years On. Columbia; Londres: University of Missouri Press, 2009.

1 Esse artigo é resultado de nossas pesquisas de mestrado e de doutorado realizadas por meio do programa de pós-graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora e financiadas pela CAPES.

2 Doutorando no programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora.

E-mail: filipeqc@hotmail.com. ORCID: 0000-0001-8820-9957.

3 FRANCO, Afrânio de Melo. [Correspondência]. Destinatário: Arthur Bernardes. Genebra, 12 mar. 1926. Telegrama absolutamente confidencial. AHI 274/3/1

4 VELOZZO. [Correspondência]. Destinatário: Arthur Bernardes. 1 telegrama confidencial. 14 mar. 1926. Cx. 120. Doc. 13

5 VICUÑA, Manuel Rivas. [Correspondência]. Destinatário: Arthur Bernardes. 1 telegrama confidencial. 16 mar. 1926. Cx. 120. Doc. 17.

6 PACHECO, Félix. [Correspondência]. Destinatário: Arthur Bernardes. 1 telegrama confidencial. 14 fev. 1923. Cx. 119. Doc. 323.


7 SOUZA E SILVA, Augusto Carlos de. [Correspondência]. Destinatário: Félix Pacheco. 6 abr. 1926. Cx. 119. Doc. 274a. p. 9.

8 SOUZA E SILVA, Augusto Carlos de Souza. [Correspondência]. Destinatário: Arthur Bernardes. 18 dez. 1923. Cx. 119. Doc. 323.

9 Ibidem, p. 8.

10 Ibidem, p. 11.

11 SOUZA E SILVA, Augusto Carlos de. [Correspondência]. Destinatário: Félix Pacheco. 1 carta particular. Paris, 19 dez. 1923. Cx. 119. Doc. 252. p. 7.

12 Ibidem, p. 2-8.

13 Ibidem, p. 2-8.

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R evista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 1, jan/jun, 2021

PPGDS/Unimontes-MG