https://doi.org/10.46551/issn2179-6807v27n1p9-29



Vol. 27, n. 1, jan/jun, 2021

ISSN: 2179-6807 (online)



O IDADISMO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19: COMO O PRECONCEITO ETÁRIO SE TORNOU EVIDENTE NO BRASIL


Valmir Moratelli1


Recebido em: 29/01/2021

Aprovado em: 22/06/2021



Resumo: Este artigo faz uma análise sobre o preconceito etário no Brasil, a partir do panorama da pandemia do novo coronavírus, que alterou circunstancialmente a rotina do país logo após o carnaval de 2020. Assim, introduz-se uma interpretação sobre como as percepções construídas socialmente a respeito do idoso são atravessadas por preconceito e suscitam o ódio, reforçando distanciamentos de respeito, solidariedade e empatia. É também feito um levantamento do discurso público do presidente da República e de empresários brasileiros, que minimizaram o alerta da pandemia e contrário aos pedidos de isolamento e/ou quarentena da Organização Mundial da Saúde (OMS). A interpretação de dados de recentes pesquisas econômicas ajuda a embasar a importância dos idosos como força econômica, contradizendo a ideia de improdutividade dos mesmos tão presente no pensamento neoliberal vigente. Entre as principais conclusões do trabalho, percebe-se como a pandemia escancarou as facetas de um preconceito naturalizado no país e ainda pouco debatido publicamente.

Palavras-chave: Velhice; Preconceito; Coronavírus; Pandemia.


AGEISM IN THE CONTEXT OF THE COVID-19 PANDEMIC: HOW AGE PREJUDICE BECAME EVIDENT IN BRAZIL


Abstract: This article analyzes the age prejudice in Brazil, from the panorama of the pandemic of the new coronavirus, which changed the country's routine circumstantially right after the 2020 carnival. Thus, an interpretation about how the perceptions constructed socially regarding the elderly, they are crossed by prejudice and arouse hatred, reinforcing distances of respect, solidarity and empathy. A survey of the public discourse of the President of the Republic and of Brazilian businessmen is also carried out, which minimized the alert of the pandemic and contrary to the requests for isolation and / or quarantine from the World Health Organization. The interpretation of data from recent economic research helps to support the importance of the elderly as an economic force, contradicting the idea of their unproductiveness so present in current neoliberal thinking. Among the main conclusions of the work, it can be seen how the pandemic opened up the facets of a prejudice naturalized in the country and still little debated publicly.

Keywords: Old age; Preconception; Coronavirus; Pandemic.

EDADISMO EN EL CONTEXTO DE LA PANDEMIA DE COVID-19: CÓMO EL PREJUICIO DE LA EDAD SE HIZO EVIDENTE EN BRASIL


Resumen: Este artículo analiza el prejuicio de edad en Brasil, a partir del panorama de la nueva pandemia de coronavirus, que cambió circunstancialmente la rutina del país justo después del carnaval de 2020. socialmente en cuanto a las personas mayores, las atraviesan los prejuicios y suscitan el odio, reforzando las distancias de respeto, solidaridad y empatía. También se realiza un relevamiento del discurso público del Presidente de la República y de los empresarios brasileños, que minimizó la alerta de la pandemia y contrario a las solicitudes de aislamiento y / o cuarentena de la Organización Mundial de la Salud (OMS). La interpretación de datos de investigaciones económicas recientes ayuda a sustentar la importancia de las personas mayores como fuerza económica, contradiciendo la idea de su improductividad tan presente en el pensamiento neoliberal actual. Entre las principales conclusiones del trabajo, se puede ver cómo la pandemia abrió las facetas de un prejuicio naturalizado en el país y aún poco debatido públicamente.

Palabras clave: Vejez; Preconcepción; Coronavirus; Pandemia.


INTRODUÇÃO - DEFINIÇÕES PARA A VELHICE


A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer/

A barba vai descendo e os cabelos vão caindo pra cabeça aparecer/

Os filhos vão crescendo e o tempo vai dizendo que agora é pra valer/

Os outros vão morrendo e a gente aprendendo a esquecer”

(Envelhecer, de Arnaldo Antunes)


O recente cenário enfrentando no mundo com a pandemia do coronavírus (ou Covid-19) colocou a velhice no centro do debate, por entendê-la como grupo de maior possibilidade de óbito. Ao longo da pandemia – iniciada no país em março de 2020 e ainda em curso em 2021 – o discurso atravessado por preconceito aos idosos se tornou mais escancarado na sociedade brasileira.

O primeiro percalço em qualquer análise etária é sobre a compreensão do que é ser velho. Alguns institutos consideram para suas pesquisas indivíduos a partir dos 60 anos – como é o caso do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que segue orientações da OMS (organização Mundial da Saúde); outros, a partir dos 65 anos – como faz a FGV Social (Fundação Getúlio Vargas), para fins metodológicos. Ainda assim, é possível visualizar os diversos aspectos sociais que reforçam o estudo sobre a velhice como um objeto heterogêneo e complexo.

De acordo com o IBGE2, em 2018 eram 29,6 milhões de pessoas acima de 60 anos e, em 2019, o número aumentou para 30,2 milhões, o que corresponde a 15% da população. É um crescimento de 18% na quantidade de pessoas acima dos 60 anos desde 2012, ou 4,8 milhões a mais no período. Em 2018, as mulheres já eram maioria expressiva nesse grupo, com 16,9 milhões, correspondendo a 56%, enquanto os homens idosos eram 13,3 milhões, o equivalente a 44% do total. As projeções do Instituto indicam ainda que, até 2060, pode-se chegar a 19 milhões de pessoas com mais de 80 anos. Em 2016, eram 3.458.279 pessoas nessa faixa etária, e em 1980, 684.789 pessoas. As taxas de letalidade (mortalidade) da doença entre pessoas com 80 anos ou mais são 13 vezes maiores do que na faixa de 50 a 55 anos e 75 vezes a letalidade da faixa de 10 a 19 anos, segundo o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social)3.

Assim como não há definição precisa para o início da velhice, não há consenso sobre as terminologias utilizadas nesta temática, em constantes reformulações; visto que “a idade não é um dado da natureza, não é um princípio naturalmente constitutivo de grupos sociais, nem um fator explicativo dos comportamentos humanos” (DEBERT, 1998, p. 9). Desse modo, há vários temos para o preconceito etário. O ageísmo (que vem do inglês, ageism) refere-se ao preconceito que ocasiona a discriminação etária, o que vale tanto para os mais velhos quanto aos mais jovens. Na tradução para o português, costuma-se utilizar “idadismo”, com a mesma definição, e que preferimos utilizar neste trabalho por abranger diferentes faixas de idade. Também é comum o uso de “etarismo” ou “idosismo”, este último apenas aos mais velhos. Mais recente, o “perennial” (de perene), que engloba quem tem mais de 50 anos, em oposição4 aos millennial (nascidos entre 1982 e 2000).

Trazendo a questão das definições etárias para a atualidade, as diversas mudanças globais “nas estruturas políticas e econômicas no mundo contemporâneo colocam em relevo as questões de identidade e as lutas pela afirmação e manutenção das identidades nacionais” (HALL e WOODWARD, 2003, p. 34). Há uma certa fluidez ao se imaginar como essas identidades permeiam o campo simbólico de forma tão inconstante. Isso porque:


(...) as identidades em conflito estão localizadas no interior de mudanças sociais, políticas e econômicas, mudanças para as quais elas contribuem. As identidades que são construídas pela cultura são contestadas sob formas particulares no mundo contemporâneo – num mundo que se pode chamar de pós-colonial. Este é um período histórico caracterizado, entretanto, pelo colapso das velhas certezas e pela produção de novas formas de posicionamento (HALL, WOODWARD, 2003, p.34).


O termo idoso, criado na França na década de 1960, vem substituir termos como velho/velhote, por trazerem um sentido pejorativo historicamente ligado a ideias negativas como ultrapassado, inativo, doente. Como se discutiu anteriormente, a era Moderna colocaria no trabalho a ideia de dignidade humana. Com a era tecnológica, somam-se ao termo velho conceitos como analógico, arcaico, atrasado.


(...) O aposentado lá (na França) recebeu a etiqueta da terceira idade — termo que vemos fortemente presente nos discursos e representações da velhice no Brasil a partir da década de 80, de uma forma crescente. Este conceito de terceira idade, faixa etária entre 60 e 80 anos de idade, aproximadamente, traz consigo o signo do dinamismo dos “jovens idosos”. Enquanto isso, os “idosos velhos”, a partir dos 80 anos, já estariam compondo uma quarta idade, esta etapa sim estaria associada à imagem tradicional da decadência ou incapacidade física (MARQUES, 2004, p. 67).



O CENÁRIO PANDÊMICO NO BRASIL


Em 20 de março de 2020, foi decretado estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional, como medida urgente para que o governo Federal não obedecesse à meta fiscal e repasse maior aporte financeiro aos estados. O Brasil começava a fazer regime de quarentena para tentar conter o avanço do novo coronavírus. Identificado na cidade chinesa de Wuhan, no fim de 2019, e depois de se espalhar pela Ásia, contaminar a Europa e chegar às Américas, o novo coronavírus se tornaria uma ameaça à saúde pública global afetando a ordem socioeconômica diante de uma forte recessão mundial.

A pandemia foi de imediato comparada a pestes da Idade Média, a outras doenças respiratórias como a Gripe Espanhola, de 1917/18, e a Sars, de 2003. Em tom alarmista que traduz bem o humor à época, um editorial do jornal O Globo, de 23 de março de 2020, reforçara que “nunca houve nada igual, pela velocidade com que o vírus se espalha pelo planeta, representando grave perigo para as populações”5. O então novo vírus colocou em grupos de risco pessoas com doenças respiratórias ou em baixa imunidade, gestantes e mulheres com até 45 dias de pós-parto, além dos idosos. 

Apenas em abril e maio de 20206, a Covid-19 foi a causa de 34% das mortes no Rio de Janeiro. Foram contabilizados 6.487 óbitos, quase o dobro da principal causa de morte no mesmo período do ano anterior, quando doenças do aparelho circulatório vitimaram 3.281 pessoas, segundo dados do sistema Tabnet, do governo Federal. O efeito devastador do coronavírus é expressado também quando se compara com os números da violência no estado em 20037, quando foram registrados 6.624 homicídios dolosos, o pior ano da série histórica do Instituto de Segurança Pública (ISP).

Faz-se este breve relato de um fato ainda recente, que alterou circunstancialmente a rotina do país logo após o Carnaval daquele 2020, para introduzir uma análise sobre como as percepções sociais a respeito do idoso são atravessadas por preconceito e suscitam o ódio, reforçando distanciamentos de respeito, solidariedade e empatia. A pandemia escancarou tais facetas apontadas a este grupo de risco. Tentando minimizar o alerta da pandemia e contrário aos pedidos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outros líderes de nações que já estavam com seus sistemas de saúde em colapso, como era o caso da Itália, o presidente Jair Bolsonaro assim comparou durante uma coletiva de imprensa, ainda em março de 2020:


(...) A Itália se parece com Copacabana, onde em todos os edifícios há um homem idoso ou um casal de idosos. É por isso que eles são muito frágeis e muitas pessoas morrem. Eles têm outras doenças, mas dizem que morrem de coronavírus. (...) Não é o coronavírus que mata os velhinhos, essas pessoas já estão debilitadas8.


A tentativa do presidente de subestimar o impacto do vírus na sociedade se mostraria frustrada pelos números de vítimas fatais e contaminados que eram atualizados diariamente pelos veículos de comunicação junto a órgãos de saúde. Os apelos da mídia e das autoridades sanitárias para que as pessoas mantivessem o isolamento social, permanecendo em suas residências, tinha como objetivo evitar a circulação e propagação do vírus em grande escala, afim de não sobrecarregar o historicamente frágil sistema público de saúde no Brasil. Entretanto, logo seriam sentidas as consequências econômicas desta ruptura abrupta de livre circulação de pessoas no país: Desemprego em curva ascendente, menor arrecadação de impostos, queda na receita das empresas.

Aqui cabe um parêntese para um salto histórico na temática de pandemias. Ao tratar da revolta da vacina9, ocorrida no Rio de Janeiro em 1904, o historiador Nicolau Sevcenko (2010) defende que “a matança coletiva dirige-se, via de regra, contra um objeto unificado por algum padrão abstrato que retira a humanidade das vítimas: uma seita, uma comunidade peculiar, uma facção política, uma cultura, uma etnia” (2010, p.5). Neste grupo ficam agrupadas todas as ameaças “à ordem das coisas, os executores se representam a si mesmos como heróis redentores, cuja energia implacável esconjura a ameaça que pesa sobre o mundo” (ibidem).

Quando se debatia o retorno às atividades escolares, no segundo semestre de 2020, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)10 a partir de dados da Pesquisa Nacional de Saúde, indicou que 9,3 milhões de brasileiros, o equivalente a 4,4% da população, ficariam expostos à Covid-19 – número de adultos e idosos com problemas crônicos de saúde, vivendo na mesma casa que crianças e adolescentes em idade escolar (entre 3 e 17 anos).

Ainda nas primeiras semanas de março de 2020, o empresário e apresentador de TV Roberto Justus, então com 64 anos, teve um áudio vazado na internet, no qual conversava com amigos em um grupo de WhatsApp. Ignorando os apelos de autoridades médicas de que o vírus poderia ser letal a todos, dizia:


(...) Quem entende um pouco de estatística, que parece que não é o seu caso, vai perceber que é irrisório. E dos que morrem, dos velhinhos, só 10 a 15% deles morrem. Se pegarmos o vírus, o que seria bom, já criaríamos anticorpos e acabaria de uma vez. (...) Na favela não vai matar ninguém. Vai matar só velhinho e gente doente. Não tem nenhuma morte no mundo até hoje, das 12 mil, que a pessoa não tenha nenhum problema recorrente de saúde do passado. Nenhuma. (...) Todos foram velhinhos ou diabéticos ou têm problema pulmonar (...). Então, assim, isso não é grave. Grave é o que vai acontecer com o mundo agora, com uma recessão nunca antes vista na história11.


Em outra situação no mesmo período, Júnior Durski, empresário curitibano do ramo de restaurantes, então com 56 anos, gravou um vídeo para as redes sociais afirmando que o Brasil não poderia parar por causa do novo coronavírus. Ele explicava assim:


(...) Vamos chorar cada uma dessas pessoas que morrerem com o coronavírus. Vamos cuidar dos idosos, é nossa obrigação. Mas não podemos (parar) por conta de 5 mil ou 7 mil pessoas. (...) Eu sei que é muito grave. Mas muito mais grave é o que o acontece no Brasil. Em 2018, morreram mais de 57 mil pessoas assassinadas. Mais de 6 mil por desnutrição. (...) Não pode parar o Brasil. Vamos pensar em quem tem que trabalhar. Não pode simplesmente os infectologistas decidirem que todo mudo tem que parar, independente das consequências gravíssimas que vai ter na economia.12


O sistema capitalista estava em polvorosa com os apelos sanitários para o lockdown. A economia brasileira já vinha apresentando um tímido crescimento. O PIB (Produto Interno Bruto) cresceu 1,1% em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, segundo o IBGE. Com a pandemia, a economia brasileira seria fortemente abalada, acompanhando o ritmo planetário de desaceleração. Em meio ao caos econômico e, consequentemente, às feridas sociais abertas em seguida, os idosos foram alvo fácil desses ataques.

Conforme os dois exemplos de declarações de empresários acima citados, apoiados pelo que dissera o presidente da República mais de uma vez, os idosos não deveriam ser alvo central de preocupação da sociedade. O primeiro cita que a covid-19 “vai matar só velhinho e gente doente” e constata, de forma nada humanitária, que “isso não é nada grave”. O segundo até diz que é preciso “cuidar dos idosos”, mas reforça de forma enfática que “não podemos (parar) por conta de 5 mil ou 7 mil pessoas”. Na lógica racional do lucro capitalista, minimiza-se a morte dos idosos em detrimento das consequências de se abster das atividades econômicas e da circulação de bens e pessoas nas cidades e países.

Assim como o presidente que, ao se referir aos idosos, disse, entre outras coisas, que “essas pessoas já estão debilitadas”, tais declarações, que exacerbam a impiedade de um sistema calcado na concentração do lucro capital, reforçam o estigma de que idoso é um ser frágil e em declínio físico e mental, incapacitado de atividades individuais e de vivências de prazer, desprovido de propósitos sociopolíticos e, por isso, não merecedor de assistência em um momento de fragilidade econômica e grave crise global.

O pensador Ailton Krenak (2020), reconhecido líder do movimento indígena que surgiu a partir dos anos 1970, e um dos responsáveis pela inclusão do “Capítulo dos índios” na Constituição de 1988, entende que essas declarações, mais do que representarem a banalização da vida, banalizam o poder do discurso.


(...) Esse tipo de abordagem afeta as pessoas que amam os idosos, que são avós, pais, filhos, irmãos. É uma declaração insensata, não tem sentido que alguém em sã consciência faça uma comunicação pública dizendo “alguns vão morrer”. É uma banalização da vida, mas também é uma banalização do poder da palavra. Pois alguém que fala isso está pronunciando uma condenação, tanto de alguém em idade avançado, como de seus filhos, netos e de todas as pessoas que têm afeto uns com outros. (...) Dizer que a economia é mais importante é como dizer que o navio importa mais que a tripulação (KRENAK, 2020, p. 10).


Para usar a analogia de Krenak, a ala idosa da tripulação desse navio nunca é vista circulando no convés. Essa crítica ao modelo neoliberal possibilita compreender como a invisibilidade de determinados grupos se torna mortal quando toda a tripulação precisa repensar sua existência e os modos de relação. É por isso que a necropolítica (MBEMBE, 2016) existe e atua, para perpetuar relações de poder de uns sobre outros, garantindo o extermínio desses “outros” sempre que necessário.

Hall (2016) cita Mary Douglas (2014) ao argumentar que o que realmente perturba a ordem cultural “é o aparecimento de coisas na categoria errada ou quando elas não cabem nas classes existentes” (2016, p. 157). Um exemplo disso é o surgimento de um grupo social como o de mestiços – nem “brancos” nem “negros” –, que flutuam em uma zona híbrida, instável. Pode-se incluir aí a categoria dos “quase idosos”, pessoas acima dos cinquenta anos, por exemplo. “O que fazemos com a ‘matéria fora do lugar’ é varrê-la, jogá-la fora, restaurar a ordem do local, trazer de volta o estado natural das coisas” (HALL, 2016, p.157).

Utilizado como referência Vigiar e Punir, de Michel Foucault (1987), para justificar as atitudes de determinados governos dentro de uma lógica liberal, Krenak (2020) denuncia a visão contemporânea de que o indivíduo precisa produzir para ter visibilidade, ter aceitação. Dessa forma, o pensador cita os sistemas de Previdência Social, que a lógica mercadológica os classifica como gastos permanentes aos cidadãos.


(...) Essa sociedade de mercado em que vivemos só considera o ser humano útil quando está produzindo. Com o avanço do capitalismo, foram criados os instrumentos de deixar viver e fazer morrer: quando o indivíduo para de produzir, passa a ser uma despesa. Ou você produz as condições para se manter vivo ou produz as condições de morrer. O que conhecemos como Previdência, que existe em todos os países com economia de mercado, tem um custo. Os governos estão achando que, se morressem todas as pessoas que representam gastos, seria ótimo. Isso significa dizer: pode deixar morrer os que integram os grupos de risco (KRENAK, 2020, p. 11).


A visão moderna de produtividade aliada à aceitação e inserção social se faz presente nos discursos trazidos pelo cenário da pandemia de 2020. A velhice, mais uma vez, é traduzida como um gasto econômico, um fardo para a sociedade e um símbolo não não-produtividade.

Isso porque os dilemas da Modernidade são consequência de uma organização social que impede a inclusão e participação igualitária de diferentes grupos etários. Com a vigência do neoliberalismo, essa divisão se acentuou, a ponto de idosos serem excluídos em sua quase totalidade. Os dilemas econômicos diante do envelhecimento populacional não são um empecilho para a expansão neoliberal, já que, em nome de interesses privados, o Estado se apequena para reger uma política de mercado.


A MORTE E A QUESTÃO ECONÔMICA


Mantendo a discussão acerca do que foi levantando no contexto pandêmico, de acordo com a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 67% dos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS (Sistema Único de Saúde) são negros, e “estes também são maioria dos pacientes com diabetes, tuberculose, hipertensão e doenças renais crônicas no país”13 – fatores agravantes para o desenvolvimento de sintomas mais letais da Covid-19. Em outubro de 2020, uma pesquisa do Ipea14 revelou que o número de óbitos de pessoas com mais de 60 anos era, até aquele momento, de 100.818 pessoas. Este número representa uma redução de quase 0,5% na população total de idosos em 2020.

Se a pandemia chegou ao Brasil com a elite branca, é sabido também que logo se espalhou pelas classes menos abastadas, levando a um colapso do sistema de saúde em várias cidades brasileiras. Levantamento da consultoria Lagom Data e divulgado pela revista Época15 em julho de 2020, em que foram analisados dados de 54.488 vítimas, mostrou, por razões socioeconômicas e sociodemográficas, que a doença matou no país mais pobres e pardos, além de mais homens (57,9%) do que mulheres. A média para mulheres mortas foi de 70 anos, e para os homens de 67.

Até o meio de maio de 2020, 72% das mortes pela doença no país correspondiam a pessoas de 60 anos ou mais. Além da dor para as famílias, a morte desses idosos — aposentados, beneficiários de programa social ou que ainda trabalhassem — durante a pandemia representa a perda da principal fonte de renda em muitos lares.

Nos dois gráficos a seguir, há um perfil da vítima da covid-19 na cidade do Rio de Janeiro, em levantamento realizado até julho de 2020. No primeiro gráfico, observa-se que as faixas etárias entre 30-39 e 40-49 apresentam maior alvo da doença. Entretanto, se somarmos as faixas etárias a partir dos 60 anos, se sobressaem a todas as demais, derrubando o argumento de que a doença atingiria mais adultos do que idosos. Já com o segundo gráfico, sobre o número de óbitos causados pela covid-19, tem-se claramente apontadas as faixas etárias a partir dos 60 anos como as mais vulneráveis à doença.


Gráfico: Vítimas de covid-19 no Rio até julho de 2020


Fonte: Dados da Prefeitura do Rio. Reprodução O Globo, disponível em <https://oglobo.globo.com/rio/dados-de-julho-mostram-que-covid-19-no-rio-afetou-mais-faixa-de-30-39-anos-24577430 >. Publicado em 10/08/2020.


No segundo trimestre de 2020, 1,257 milhão de trabalhadoras domésticas ficou sem ocupação, dados do IBGE. Ressalta-se que sete entre dez trabalhadoras domésticas em atividade no Brasil são negras. Outro número que exemplifica a situação dessa parcela da população é da Defensoria Pública do Rio de Janeiro que, ao analisar 23.497 audiências de custódia registradas entre setembro de 2017 e 2019, observou que 80% dos homens e mulheres detidos eram negros. Assim como:


(...) é negra a maioria dos brasileiros assassinados e dos jovens mortos em decorrência de intervenção policial. Nas periferias vivem mulheres e homens e crianças e jovens e idosos negros que predominam entre doentes, mortos e vulnerabilizados pela crise sanitária. (...) Negros estão sobrerepresentados no desemprego, na informalidade, na baixa renda, nas doenças crônicas, nas condições habitacionais precárias, na falta de saneamento básico, acesso a computador e internet, usuários do Sistema Único de Saúde, estudantes da rede pública16.


Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicam que o trabalho doméstico foi um dos mais afetados pela crise. É a principal profissão das mulheres com 60 anos ou mais, ocupando 13,3% delas. Somada às auxiliares de serviços gerais e cozinheiras, essa parcela sobe para 22%, quase um quarto da mão de obra feminina nessa faixa etária. Entre maio e julho de 2020, cerca de um milhão de trabalhadoras domésticas ficou sem emprego, queda de 16,9%. A situação é pior quando a comparação é feita com 2019: 1,7 milhão a menos na atividade17.

Sobre este fator de gênero no que se refere ao trabalho doméstico no país, o mesmo “já foi responsabilizado pelo insucesso das meninas em todo o mundo subdesenvolvido, em decorrência possível do adulto-centrismo que percorre nossas reflexões” (ROSEMBERG, 2001). A perpetuação dessa prática de trabalho com a cultura machista de que seria de responsabilidade feminina a função doméstica ajuda a dificultar a participação dessas mesmas mulheres, quando mais velhas, na amplitude do mercado de trabalho.

Outro número importante é que a taxa de desemprego dos trabalhadores de cor preta chegou a 17,8% em 2020, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc), do IBGE. No mesmo período, a dos brancos foi de 10,4%. Na média a taxa ficou em 13,3%. Nesta pesquisa identificou-se que o perfil padrão do desempregado brasileiro é “negro, mais jovem e tem pouca instrução”18. É esta parcela da população que, quando consegue chegar à velhice, mesmo que os números revelem que suas chances são menores, não desfruta da mesma igualdade de direitos. Isso porque, por toda a vida, não lhe foi dada a oportunidade de ascensão social. Não é exagero afirmar que envelhecer, neste caso, é quase um ato de resistência e sorte.

Se até 2019, portanto antes da pandemia, a geração de vagas no mercado de trabalho era menor para a faixa acima de 60 anos, com o agravamento da doença estas vagas sumiram, registrando-se mais demissões do que contratações. Em agosto de 2020, foram geradas 263,7 mil vagas com carteira para quem tem menos de 60 anos e eliminadas 14,3 mil entre os mais velhos, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério da Economia19.

Ainda em 2020, Fernando Hellmann, doutor em saúde coletiva e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ressaltou que a doença “mata mais a população idosa, doentes crônicos, indígenas, negros e pobres”20. Os números aqui já expostos ajudam a ilustrar esta afirmação, corriqueira na mídia de uma forma geral. Entretanto, como se percebe, a discussão médica muitas vezes deixa de salientar que a questão etária, as características de saúde e o agente econômico são atravessados – todos eles – pelo fator da cor da pele. Um negro idoso, tal como o indígena idoso, que apresente alguma doença crônica e esteja em situação de pobreza, tem todos os elementos signatários de vulnerabilidade à doença. Essa desigualdade foi o destaque do Boletim Observatório Covid-19 da Fiocruz de janeiro de 2021, que traça um panorama da pandemia no Brasil.


(...) Embora a pandemia afete a população do país como um todo (...) os que possuem condições de vida e trabalho mais precários (...) ou sofrem injustiças por questões de gênero e raça, vivenciam de modo mais acentuado os impactos imediatos da pandemia e se tornam mais vulneráveis aos seus impactos de médio e longo prazo21.


O trabalho realizado na primeira onda da pandemia pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC-Rio22, e divulgado em julho de 2020, reforça o cenário de desigualdade ao apontar que negros sem escolaridade tiveram taxa de mortalidade de 80,35%; nos brancos com nível superior ela era de 19,65%. O percentual de mortes foi maior entre negros de todas as idades e níveis de escolaridade.

Já acerca dos desdobramentos da pandemia da covid-19, quando a crise econômica dava seus primeiros saltos naquele paralítico ano de 2020, vários levantamentos econômicos tentaram dar conta da importância do idoso na renda familiar do brasileiro.


Gráfico: Participação de idosos na renda familiar

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Reprodução de O Globo, publicado em 25/05/2020.


Mesmo que não leve em consideração o quanto desses números é representado pela parcela negra da população, o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que em 20,6% dos 71 milhões de domicílios brasileiros os recursos de idosos representam uma média de 90,1% do orçamento familiar. Isso significa quase 15 milhões de lares dependentes de idosos, onde residem 30,6 milhões de pessoas, sendo 2,1 milhões de crianças e adolescentes. A renda domiciliar per capita nos domicílios em que idosos respondem por mais da metade do orçamento, em 2020, era de R$ 1.621,80. O indicador cai para R$ 425,54 nos lares que perdem seus idosos. Há ainda 4,3 milhões de pessoas com menos de 60 anos que dependem unicamente da renda de idosos, que recebem aposentadoria ou Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Desconhecendo esse cenário econômico ou mesmo ignorando-o, o presidente Bolsonaro voltou a criticar as medidas de isolamento social como forma de conter a disseminação do novo coronavírus, no final de janeiro de 2021. Nas suas palavras, “a política de fechar tudo e ficar em casa não deu certo (...). Os mais vulneráveis são velhos e com comorbidades, o resto tem que trabalhar”23. A declaração aconteceu na semana em que o Brasil ultrapassara as 200 mil mortes pela covid-19. Sem também respeitar o distanciamento social, o presidente promoveu aglomerações com apoiadores em várias capitais, ignorou utilização de máscaras e defendeu o uso de medicação sem comprovação científica, como a cloroquina e a hidroxicloroquina.

A utilização de tais dispositivos, narrativas contrárias a norma médica, teve como consequência trágica à população o altíssimo número de óbitos. Não só pela interrupção no exercício dos direitos públicos de livre circulação, a pandemia afetou o princípio básico da existência da vida, a respiração, já problematizado por Mbembe (2016). No âmbito íntimo, rompeu com as cerimônias de despedida e rituais fúnebres (ELIAS, 1990). E, como se já não fosse o bastante, utilizada como dispositivo de controle da necropolítica, a pandemia também desmascarou “efeitos nefastos do culto exacerbado aos valores do neoliberalismo, em uma sociedade que está desaprendendo a velar e chorar, sofrer e enterrar dignamente seus mortos” (MACIEL, 2020, p. 548).

As atitudes do governo, aqui já descritas, reforçam uma falsa legitimidade a diversas agressões públicas ocorridas enquanto o número de vítimas estava em ascensão. Cita-se, por exemplo, o episódio marcado por ataques físicos e verbais de pessoas vestidas de verde e amarelo a profissionais da saúde que protestavam a favor do Sistema Único de Saúde (SUS) em frente ao Palácio do Planalto24, em Brasília. Ou o vandalismo ocorrido no protesto em memória das vítimas da Covid-19 na Praia de Copacabana, no Rio, quando um homem avançou sobre cruzes fincadas na areia e as derrubou sob xingamentos25.

As imagens vinculadas na mídia de hospitais lotados, falta de vagas em centros de tratamento intensivo e a busca individual por cilindros de oxigênio em Manaus (AM) ilustraram o colapso do sistema de saúde em várias cidades brasileiras, mas não foram suficientes para mobilizar toda a sociedade. Sem repudiar estas manifestações, e diante de perdas irreparáveis, o presidente e sua equipe mais próxima, formada principalmente pelos filhos, o deputado Federal Eduardo Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, além dos então ministros de Relações Exteriores Ernesto Araújo e o de Economia Paulo Guedes, entre outros, criaram situações embaraçosas para a relação do país com a comunidade internacional em plena busca por insumos para fabricação de vacinas. Além disso, criticaram o lockdown de países europeus e propagaram fakenews sobre a eficiência das vacinas disponíveis e a respeito da origem do vírus como arma biológica chinesa. Nesta batalha por narrativas centradas em negacionismo à ciência, quase meio milhão de brasileiros perderam a vida em pouco mais de um ano de pandemia. Aos que defenderam tais atitudes, carregam consigo “a ilusória soberania dos vivos que um dia serão os próximos mortos, capitalizando prestígio social ao ofício dos provedores da vida, mas também dos cuidadores da morte” (MACIEL, 2020, p. 550).

Entre as lições que a pandemia nos permite interpretar estão aquelas já amparadas por teorias já expostas por bell hooks (2019) e Simone de Beauvoir (1990), décadas atrás – qualquer tipo de desvalorização ou opressão humana só será findada na insurgência de um olhar crítico ao capitalismo, sistema que hierarquiza e limita ações de igualdade em fatores de gêneros, cor, classe social e faixa etária. Não que o capitalismo tenha inaugurado esses segregadores, mas soube utilizá-los para uma engenharia de dominação como nunca antes na história da humanidade.

Há vários trabalhos de pesquisadores respeitados que, até a pandemia, se entusiasmavam com a possibilidade de entender consumo como forma de inserção social de faixas etárias mais elevadas. A interpretação de consumo inseparável do exercício da cidadania não surge só na questão etária, mas também em aspectos de cor e estrato social. Porém, a crise econômica vinda no rastro da Covid-19 exacerba a compreensão de que não é pelo consumo que esta inserção deve ser atingida. O apaziguamento do idadismo não se dará pelo maior poder aquisito a ser conquistado por uma parcela da população, mas por políticas contínuas de implementação de programas que visem ao bem-estar dos idosos, além de uma educação que resgate a valorização dos mais velhos e o preparo igualitário dos jovens a uma vida adulta cada vez mais competitiva.

Isso poque uma crise econômica sempre atinge, primeiramente, os mais vulneráveis. Depois, o capitalismo não agrega, mas reforça laços de hierarquia. E, por fim, não se pode perpetuar a ideia de que a velhice brasileira é homogênea, então também não será homogêneo seu acesso a bens de consumo. A inserção por consumo possibilita um olhar mais cuidadoso ao cidadão-consumidor, mas não é firme e duradoura, na realidade dos países em desenvolvimento, diante dos tsunamis que o capitalismo cria para segurar sua organização hegemônica no mundo.


POR QUE GRUPO PRIORITÁRIO


Vê-se que a faixa etária para a qual o indivíduo é classificado como idoso varia de acordo com a cultura em que vive, assim como ser classificado na terceira idade varia de acordo com as regras de aposentadoria de seu país. Ainda que visível por aspectos físicos, o envelhecimento “é cercado por determinantes sociais que tornam as concepções sobre velhice variáveis entre indivíduos, de cultura para cultura, de época para época” (SECCO, 1999, p.12). Logo, não é possível pensar a velhice sem compreender o contexto histórico-cultural no qual que se insere.

Pelo caráter biológico, o processo do envelhecimento é carregado por alterações nos aspectos motores, funcionais e psicológicos (DEBERT, 1998). Entretanto há ainda o caráter psicossocial, que impregna sentidos antagônicos à velhice. Por um lado, ela pode ser valorizada como símbolo da sabedoria, responsável pela manutenção dos valores em seu grupo social; por outro lado, pode ser entendida como desvalorização social, improdutividade, dependência e peso orçamentário. É esta última, aliás, a compreensão que se faz quando se discute, por exemplo, a reforma da previdência – o idoso como um ser dependente da família ou do Estado.

A qualidade de vida na velhice não passa unicamente pela aceitação pessoal ou familiar do indivíduo em sua condição biológica, mas também da sociedade em aceitar e valorizar este idoso e, por fim, “da relação sociológica e cultural (...) que a pessoa envelhecendo significa no contexto do todo” (GUARDINI, 1986, p.99). A este “significado”, somam-se aspectos de classe social, cor, localidade etc, e como a sociedade vai fazendo suas escolhas de privilégios de uns em detrimento de outros.

Compreendendo que a vulnerabilidade está entre os idosos, o que em nada os diminui em grau de importância no combate à doença, percebe-se que, mesmo entre eles, há grupos mais expostos tanto à pandemia quanto às consequências de seu combate. Levantamento do jornal O Globo26 a partir de dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde, em fevereiro de 2021, mostrou que apenas 19% dos quase 5 milhões de vacinados no Brasil até aquele momento eram pretos ou pardos27. Levando em consideração que 56% da população é negra (preta ou parda), o percentual de vacinação no primeiro momento da campanha de imunização no país ficou muito abaixo da parcela da população que se identifica dessa forma.

Estes números são um indício de que as desigualdades socioeconômicas fizeram dos negros um dos grupos mais desproporcionalmente afetados pela Covid-19. No primeiro grupo de prioridades para receber a vacina estavam idosos e agentes da saúde; sem se olvidar que a área da saúde concentra prevalência de profissões em que não se encontram muitos negros, como no campo da medicina. De acordo com os dados analisados pelo O Globo por exemplo, entre os grupos em que os pretos têm sua maior proporção de vacinados estão moradores de rua, quilombolas, guardas civis e trabalhadores de limpeza. Entre os 336 moradores de rua sobre os quais há registro de vacinação daquela fase inicial da campanha, 64% são negros e 27% são brancos. Entre os 950 mil idosos com 80 anos ou mais, 41% são brancos e 18% são pretos ou pardos. A assimetria demográfica verificada nos postos de saúde nos faz concluir que no Brasil, envelhecer é um luxo para alguns, não um direito concebido a todos. As barreiras socioeconômicas a que foram submetidos ao longo da existência fazem, de alguns grupos, excluídos.

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), formado pelas nações mais ricas, publicou em 2017 o relatório Prevenir o Envelhecimento Desigual, alertando que sociedades menos desiguais são mais coesas e produtivas e menos violentas28, além de apresentarem níveis muito mais baixos de disfunção social. O desafio do envelhecimento no Brasil passa por um modelo vivenciado de forma antagônica em países desenvolvidos. Nestes, primeiro enriqueceram para depois envelhecerem. Aqui, em um permanente contexto de pobreza e desigualdade, a dádiva da longevidade chega para acentuar uma crise social sem precedentes.

No cenário da pandemia do novo coronavírus, este tipo de compreensão poderia ter definido outras prioridades a serem tomadas pelas autoridades de saúde. No início da vacinação, nos primeiros meses de 2021, ainda com poucas doses de vacinas disponíveis no país, surgiu um debate sobre o chamado grupo prioritário, então composto por profissionais da saúde e idosos a partir dos 75 anos e pessoas com 60 anos ou mais que vivem em instituições de longa permanência (como asilos e instituições psiquiátricas)29. Pela escassez de vacinas, pobres e negros30, apesar de vulneráveis à pandemia por uma série de fatores já expostos, não foram incluídos no Plano Nacional de Imunização (PNI).

A pesquisa “Fatores sociodemográficos associados à mortalidade por Covid-19 em hospitais do Brasil” (tradução livre do inglês)31, publicada em janeiro de 2021 na revista inglesa Public Health, mostrou que entre os brasileiros hospitalizados, negros tiveram maior taxa de mortalidade (42%) que brancos (37%). Na falta de vacina a todos os idosos, a imunização de um grupo da população socialmente mais vulnerável deveria ser primordial, visto que a letalidade da Covid-19 em negros internados na UTI chegou a 79%, e 56% nos brancos.

Esses números ajudam a compreender a dominação simbólica (BOURDIEU, 1989), a partir de lugares ocupados por determinados grupos e assim silenciados. A pandemia exibiu as faces do idadismo, como já relatado, instaurando dessa forma uma segregação física e uma sem-igual política de gerenciamento e descarte de corpos idosos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


O senador e pensador romano Cícero [106 a.C. – 43 a.C.], há mais de dois milênios já pregara que “a velhice só é honrada na medida em que resiste, firma seu direito, não deixa ninguém lhe roubar seu poder e conserva sua ascendência sobre os familiares até o último suspiro” (1997, p.34). Ao não se compreender o envelhecimento como processo contínuo da vida e, por isso mesmo, a velhice como mais uma etapa desse processo, nega-se aos idosos direitos e participações sociais, o que “denuncia o fracasso de toda a nossa civilização” (BEAUVOIR, 1990, p. 664).

À luz dos desafios recentes que o país atravessou – e ainda atravessa no momento em que este presente trabalho é realizado - com a pandemia do novo coronavírus, entender a velhice em sua complexidade, atravessada por construções sociais tão díspares como as do Brasil, é uma forma de dignificar os cidadãos e melhorar o alcance das políticas públicas destinadas a esta parcela da população em franco crescimento.

Combater o idadismo, ou todo tipo de preconceito com gerações anteriores às que dominam o mercado de trabalho e a economia, é tarefa de toda a sociedade para que a mesma seja entendida como plural e democrática. O que a pandemia do novo coronavírus escancarou em relação aos idosos é algo enraizado em séculos de construção civilizatória (ELIAS, 1990) e que deve ser enfrentado amplamente, pois os desafios acerca do envelhecimento populacional vêm colocando o país em seu grande desafio na modernidade tardia.


REFERÊNCIAS


BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Tradução de Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

CÍCERO, M. T. De Senectute: Saber Envelhecer. Tradução de Paulo Neves. 1ª edição. Porto Alegre: L&PM, 1997.

DEBERT, Guita Grin. “Pressupostos da reflexão antropológica sobre a velhice”. In: DEBERT, Guita Grin. A antropologia e a velhice – Textos Didáticos, 2ª ed., 1 (13), Campinas, IFCH/Unicamp, 1998.

DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.

ELIAS, Norbet, O Processo Civilizador. Uma História dos Costumes. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1990.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. 

GUARDINI, Romano. A sublime arte de envelhecer. Petrópolis: Vozes, 2008.

HALL, Stuart. Cultura e Representação. Tradução de William Oliveira e Daniel Miranda. Rio de Janeiro: Apicuri, 2016.

HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis: Editora Vozes, 2003

HOOKS, Bell. Eu Não Sou Uma Mulher? – Mulheres Negras e Feminismo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Rio de Janeiro: Antigona, 2016.

MACIEL, Welliton Caixeta. “Pandemia, necropolítica e purificação simbólica dos cuidadores da morte”. In: Cientistas sociais e o coronavírus. GROSSI, Miriam Pillar; TONIOL, Rodrigo (org.). – 1. ed. – São Paulo: ANPOCS; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020.

MARQUES, Ana Maria.” Velho/Idoso: Construindo o sujeito da terceira idade”. Revista Esboços, Nº 11 – UFSC. 2004.

ROSEMBERG, Fúlvia. “Educação formal, mulher e gênero no Brasil contemporâneo”. Revista Estudos Feministas. vol.9, nº 2. Florianópolis, 2001. Disponível em <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200011>.

SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. “As rugas do tempo na ficção”. Cadernos IPUB, Rio de Janeiro, n. 10. 1999.

SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Cosac Naify, 2010.





1 Doutorando do PPGCOM da PUC-Rio. Integrante do Grupo de Pesquisa “Narrativas da vida moderna na cultura midiática – dos folhetins às séries audiovisuais”. E-mail: vmoratelli@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6071-1360.

2 Disponível em <https://ipemed.com.br/numero-de-idosos-cresce-18-no-brasil/>.

3 Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) anual, de 2018. Disponível em <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-04/brasileiros-com-65-anos-ou-mais-sao-10-53-da-populacao-diz-FGV>.

4 É um termo criado pela empreendedora de tecnologia Gina Pell na revista estadunidense Fast Company, em 2016, e que rapidamente se popularizou. Os perennial cultivam estilo de vida que equilibra hábitos de diversas idades, baseando-se em identidade social, e não em noção cronológica. Este termo está relacionado ao movimento de reinclusão dos 50+ no mercado de trabalho nas primeiras décadas desse século.

5 Mais em <https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-servico/editorial-somos-todos-responsaveis-24321827>. Jornal O Globo. Publicado em 23/03/2020.

6 Em maio de 2020, auge da pandemia na cidade do Rio de Janeiro, foram registrados 10.227 óbitos causados por diferentes motivos, 60% a mais que o recorde anterior, 6.412, de junho de 2016. Segundo dados do sistema Tabnet.

7 Mais em <https://oglobo.globo.com/rio/em-dois-meses-coronavirus-provocou-um-terco-dos-obitos-no-rio-matou-mais-que-pior-ano-da-violencia-no-estado-24503870>. Jornal O Globo. Publicado em 28/06/20.

8 Mais em < https://revistaforum.com.br/coronavirus/bolsonaro-insulta-italianos-que-respondem-fascista-sexista-homofobico-e-alem-disso-vulgar/>. Revista Fórum. Publicada em 19/03/2020.

9 Um motim popular ocorrido entre 10 e 16 de novembro de 1904 no Rio de Janeiro, contra a obrigatoriedade do governo pela vacina anti-varíola.

10 Mais em <https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/covid-19-o-retorno-aulas-pode-colocar-em-risco-quase-dez-milhoes-de-idosos-aponta-fiocruz.html>. Jornal O Globo. Publicado em 22/07/2020.

11 Transcrição completa do áudio do apresentador e empresário em <https://kogut.oglobo.globo.com/noticias-da-tv/noticia/2020/03/marcos-mion-se-pronuncia-sobre-polemica-de-audio-de-roberto-justus-sobre-coronavirus-alguem-vacilou-muito-e-nao-assumiu-eu-nao-vazei-nada.html>. Jornal O Globo. Publicada em 24/03/2020.

12 Matéria sobre a repercussão do vídeo do empresário em <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/consequencias-economicas-serao-maiores-do-que-5-ou-7-mil-que-vao-morrer-diz-dono-do-madero.shtml>. Jornal Folha de SP. Publicada em 23/03/2020.

13 Mais em <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/11/coronavirus-e-mais-letal-entre-negros-no-brasil-apontam-dados-do-ministerio-da-saude.ghtml>. Publicado pelo site G1.

14 Mais em <https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/covid-19-fez-reduzir-em-quase-05-populacao-de-idosos-do-pais-menos-100-mil-pessoas.html. Publicado por Jornal O Globo. 01/10/2020

15 Mais em <https://epoca.globo.com/sociedade/dados-do-sus-revelam-vitima-padrao-de-covid-19-no-brasil-homem-pobre-negro-24513414 Publicado por Revista Época.

16 Mais em <https://oglobo.globo.com/opiniao/crime-sem-tregua-que-cansa-24585017>. Jornal O Globo. Publicado em 14/08/2020.

17 Mais em < https://oglobo.globo.com/economia/desemprego-entre-idosos-com-risco-saude-exclusao-digital-pandemia-agrava-situacao-dos-maiores-de-60-anos-1-24698665>. Jornal O Globo. Publicado em 18/10/2020.

18 Mais em <https://oglobo.globo.com/economia/taxa-de-desemprego-de-negros-cresce-mais-que-de-brancos-na-pandemia-24611365>. Jornal O Globo. Publicado em 28/08/2020.

19 Mais em <https://oglobo.globo.com/economia/desemprego-entre-idosos-com-risco-saude-exclusao-digital-pandemia-agrava-situacao-dos-maiores-de-60-anos-1-24698665>. Jornal O Globo. Publicado em 18/10/2020.

20 Em entrevista ao jornal O Globo, disponível em < https://oglobo.globo.com/sociedade/sem-doses-para-todos-definicao-de-criterio-para-vacinacao-contra-covid-19-gera-debate-no-brasil-24575333>. Publicado em 10/08/2020.

21 O boletim está disponível no portal da Fiocruz < https://portal.fiocruz.br/documento/boletim-do-observatorio-covid-19-fiocruz-de-2021>.

22 Dados disponíveis em < http://www.ctc.puc-rio.br/nois-afirma-que-taxas-de-crescimento-e-letalidade-da-covid-19-no-brasil-estao-entre-as-maiores-do-mundo/>.

23 Mais em https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2021/01/epoca-negocios-bolsonaro-critica-isolamento-povo-brasileiro-e-forte-e-nao-tem-medo-do-perigo.html. Revista Época Negócios. Publicado em 28/01/2021.

24 Mais em <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/05/01/profissionais-no-mundo-sao-aplaudidos-e-no-brasil-a-gente-apanha-diz-enfermeira-agredida-em-ato-no-df.ghtml >. Portal G1. Publicado em 01/05/2020.

25 Mais em <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/06/11/protesto-em-memoria-das-vitimas-da-covid-19-e-atacado-na-praia-de-copacabana >. CNN Brasil. Publicado em 11/06/2020.

26 Mais em <https://oglobo.globo.com/sociedade/vacina/covid-19-maioria-da-populacao-negros-foram-menos-vacinados-ate-agora-24891207>. Jornal O Globo. Publicado em 21/02/2021.

27 Segundo o Ministério da Saúde, não há registro sobre a cor de 26% dos vacinados. Assim, mesmo que todos fossem pretos ou pardos, o percentual de negros vacinados ainda seria menor que o da população brasileira.

28 Mais em <https://www1.folha.uol.com.br/folha-100-anos/2021/01/envelhecer-em-um-pais-tao-desigual-e-ruim-para-todos.shtml>. Jornal Folha de SP. Publicado em 30/01/2021.

29 Mais em <https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2021/01/14/ministerio-da-saude-altera-grupos-prioritarios-para-vacinacao-da-covid/>. Site Agência Brasília. Publicado em 15/01/2021. O chamado “grupo prioritário” sofreu várias alterações, de acordo com a disponibilidade das vacinas no país.

30 Reportagem disponível em <https://oglobo.globo.com/sociedade/vacina/cientistas-criticam-ausencia-de-prioridade-pobres-negros-na-vacinacao-contra-covid-19-1-24851931>. Jornal O Globo. Publicado em 24/01/2021.

31 Disponível em <https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1201971221000308>. Revista Public Health. Publicado em 12/01/2021.

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R evista Desenvolvimento Social, vol. 27, n. 1, jan/jun, 2021

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