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Análise do sistema de conceito geométrico presente no livro didático do 4º ano do Ensino Fundamental
Analysis of the geometric concept system present in the teaching book of the 4th year of Fundamental Education
Análisis del sistema de conceptos geométricos presente en el libro didáctico del 4º curso de Educación Fundamental
Educação Matemática Debate, vol. 5, núm. 11, pp. 1-15, 2021
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos


Recepción: 21 Enero 2021

Aprobación: 17 Junio 2021

Publicación: 21 Agosto 2021

DOI: https://doi.org/10.46551/emd.e202119

Resumo: O objetivo deste texto é analisar sistema de conceito geométrico presente no livro didático Ápis do 4º ano do Ensino Fundamental. Questionamos qual a qualidade do ensino de conceitos geométricos, presente no livro didático, na direção e formação do pensamento matemático do estudante. Para esta análise, utilizamos a abordagem teórico-metodológica da Teoria Histórico-Cultural e da Teoria da Atividade no âmbito do materialismo histórico e dialético. Constatamos que, na organização pedagógica proposta pelo livro didático, o conteúdo trabalhado não se torna objeto de atenção e estudo por parte do estudante, as tarefas assumem uma direção técnica e repetitiva, voltadas para o como fazer e não ao porquê fazer, limitando o desenvolvimento das operações mentais, visto que se distanciam do objeto de estudo e seu processo histórico de produção, via para a unidade entre os sistemas de conceitos geométricos.

Palavras-chave: Organização do Ensino, Livro Didático, Conceitos Geométricos.

Abstract: The objective of this text is to analyze of the geometric concept system present in the textbook Ápis of the 4th year of Fundamental Education. We question what the quality of teaching geometric concepts, present in the textbook, in the direction and formation of the student's mathematical thinking. For this analysis, we use the theoretical-methodological approach of Historical-Cultural Theory and Activity Theory under the framework of historical and dialectical materialism. We found that, in the teaching organization proposed by the textbook, the content worked on does not become the object of attention and study by the student, the tasks assume a technical and repetitive direction, focused on how to do and not why to do it, limiting the development of the school's mental operations, as they distance themselves from the object of study and its historical production process, they lead to unity with the system of geometric concepts.

Keywords: Teaching Organization, Textbook, Geometric Concepts.

Resumen: El propósito de este texto es analizar el sistema de conceptos geométricos presente en el libro de texto Ápis de 4º curso de Educación Fundamental. Nos preguntamos cuál es la calidad de la enseñanza de los conceptos geométricos, presentes en el libro de texto, en la dirección y formación del pensamiento matemático del estudiante. Para este análisis utilizamos el enfoque teórico-metodológico de la Teoría Histórico-Cultural y la Teoría de la Actividad en el marco del materialismo histórico y dialéctico. Encontramos que, en la organización docente propuesta por el libro de texto, el contenido trabajado no se convierte en objeto de atención y estudio por parte del estudiante, las tareas asumen un rumbo técnico y repetitivo, enfocado en cómo hacerlo y no por qué hacerlo, limitando el desarrollo de las operaciones mentales de la escuela, al distanciarse del objeto de estudio y de su proceso histórico de producción, el camino hacia la unidad con el sistema de conceptos geométricos.

Palabras clave: Organización de la Educación, Libro Didáctico, Conceptos Geométricos.

1 Introdução

Ao partir da concepção de uma sociedade que se apresenta em constante transformação, a necessidade do sujeito em se apropriar dos conhecimentos produzidos historicamente é inerente ao processo de humanização e revela-se como a possibilidade de compreensão do seu lugar nas relações sociais.

Consideramos a escola como o ambiente que possibilita ao estudante apropriar-se dos conceitos científicos como ferramenta simbólica na compreensão da realidade objetiva, isso é, sua realidade circundante, imediata. Mas, esse processo de apropriação apresenta-se de forma complexa, envolvendo diferentes instrumentos físicos (como os objetos) e simbólicos (como os desenhos e as palavras) que carecem de maior atenção. Na esfera escolar, utilizamos o livro didático enquanto instrumento físico e simbólico que busca auxiliar o processo de ensino que, por sua vez, têm na efetiva apropriação pelo estudante dos conhecimentos historicamente acumulados, o desenvolvimento psíquico de qualidade nova. Nesse sentido,

para descobrir o que no desenvolvimento do conhecimento beneficia o desenvolvimento psíquico, é necessário conhecer como é assimilado o material escolar, ou seja, que operações de pensamento se usam. É importante encontrar o nível de assimilação das noções a que chegaram diferentes alunos em diferentes etapas do cumprimento do programa (BOGOYAVLENSKY e MENCHINSKAYA 2005, p. 75).

Os materiais escolares sendo uma das manifestações de determinada concepção de ensino que busca servir ao modelo de sociedade vigente, voltando-se para a adaptação das necessidades do mercado de trabalho, nos possibilitam localizar indícios de como estão sendo propostos e assimilados os conteúdos escolares (FERREIRA, 2017). No caso particular deste artigo, a escolha pelo livro didático deu-se por seu uso regular nas práticas escolares do Ensino Fundamental.

A análise foi orientada aos conteúdos de Geometria e, especificamente, aos sólidos geométricos baseando-nos em estudos de Locatelli (2015) e Grando, Nacarato e Gonçalves (2008), entre outros autores que evidenciaram a pouca atenção e a falta de compreensão dos estudantes sobre essa área do conhecimento na qual, tendo por fundamento os pressupostos vigotskianos, a concebemos como parte fundamental da construção e desenvolvimento do conhecimento matemático pelo movimento lógico-histórico de satisfação das necessidades humanas.

O movimento dessa análise nos lançou a examinar: Qual direção o ensino dos conceitos geométricos, presente no livro didático, está assumindo na formação do pensamento matemático do estudante? Nesse sentido, este artigo tem como objetivo analisar alguns conceitos geométricos presentes no livro didático de Matemática, Projeto Ápis, do 4º ano do Ensino Fundamental a fim de identificar se as tarefas de Geometria, apresentadas pelo livro didático, promovem o desenvolvimento das funções psíquicas do estudante.

Para tanto, investigamos alguns pressupostos fundamentais da Teoria Histórico-Cultural e Teoria da Atividade sobre a apropriação de conceitos historicamente elaborados pelo homem, considerando o seu processo de criação e desenvolvimento como unidade.

2 Contribuições da Teoria Histórico-Cultural e Teoria da Atividade para a organização do ensino

Os estudos de Vigotski (1988, 1993, 1997, 2001) apontam que a direção para o desenvolvimento está na relação do homem com o meio, ambiente em que vive, no sentido daquilo que lhe é externo, a direção para seu desenvolvimento interno, especificamente, das suas Funções Psíquicas Superiores (FPS) como memória, fala, pensamento etc., característica exclusiva dos seres humanos. O autor afirma que no decurso do desenvolvimento do comportamento humano

especialmente no processo do seu desenvolvimento histórico, o que muda não são as funções, [...] nem a sua estrutura, nem o seu padrão de desenvolvimento, mas o que muda e se modifica são precisamente as relações, ou seja, o nexo das funções entre si (VIGOTSKI, 1997, p. 72).

Desta forma, consideramos que os nexos das FPS (Funções Psíquicas Superiores) estão presentes no movimento histórico de produção de qualquer conceito, nas necessidades que mobilizaram sua criação e desenvolvimento. Nas relações estabelecidas entre o homem e as necessidades emergentes de seu cotidiano. Como exemplo, lembremo-nos do exemplo clássico, apresentado por Leontiev (2004) sobre a caçada, como descrito a seguir.

Neste exemplo, o autor explica que o homem diante da necessidade de sobrevivência precisa saciar a sua fome, tornando-se esse o motivo de sua atividade, no caso, a caçada de um animal. Para obter seu alimento, a carne da presa (objeto), elabora estratégias para alcançar o objetivo de capturar um animal. Para tanto, necessita da ajuda dos demais membros do seu grupo para realizarem várias ações, por exemplo, um caçador deve espantar a caça, outro por fazer armadilha, outro abatê-la etc. Observemos que a ação de espantar a caça não desencadeia a satisfação imediata de se alimentar do caçador, logo, a ação do caçador não está diretamente ligada com o seu motivo, revelando que esses processos que acontecem separadamente estão unidos, relacionado no plano mental do homem dado o objetivo de capturar o animal. Leontiev (2004, p. 85), afirma que

a decomposição de uma ação supõe que o sujeito que age tem a possibilidade de refletir psiquicamente a relação que existe entre o motivo objetivo da relação e o seu objeto. Senão a ação é impossível, é vazia de sentido para o sujeito.

Nisto revela-se o caráter consciente do homem, quando sua ação não se relaciona de forma direta com o objeto, mas integra a atividade uma vez que o seu motivo coincide com o objeto. A Teoria da Atividade ganha força nesse sentido, em possibilitar ao sujeito a compreensão de todo o processo de criação de determinado conceito. Como no exemplo da caçada, os elementos estruturantes da atividade integram a necessidade, o motivo, as ações e operações de forma consciente, na qual o sentido pessoal do sujeito se constitui em dependência com os demais sujeitos, assumindo um significado social.

Essa relação entre o sentido e as significações é um “dos principais componentes da estrutura interna da consciência humana” (LEONTIEV, 2004, p. 105). Por isso, é necessário apresentar a concepção do autor sobre o sentido e as significações. O sentido é pessoal, produto das relações objetivas do homem a partir da sua atividade. O sentido revela a relação entre o motivo da atividade com o respectivo objetivo da ação. As significações, por sua vez, são sociais, representam “a forma ideal, espiritual da cristalização da experiência e da práxis social da humanidade” (LEONTIEV, 1983, p. 225).

Corroboramos com Davýdov (1999, p. 2), ao afirmar que “as crianças podem apropriar-se de conhecimentos e habilidades somente por meio da atividade de aprendizagem quando elas tiverem uma necessidade interna e motivação para fazê-lo”. Portanto, entendemos que o papel da organização do ensino é a de criar as condições adequadas para que o estudante vivencie as necessidades e os motivos históricos-sociais para realizar a atividade de aprendizagem em direção a apropriação dos conceitos científicos. Para Vigotski (2001, p. 183),

o desenvolvimento dos conceitos científicos segue um caminho particular em comparação com o desenvolvimento dos conceitos cotidianos. Esse caminho está condicionado pelo fato de que a definição verbal primária constitui o aspecto principal de seu desenvolvimento, que nas condições de um sistema organizado descende em direção ao concreto, ao fenômeno, enquanto a tendência de desenvolvimento dos conceitos cotidianos ocorre fora de um sistema determinado e ascende até as generalizações.

Percebemos que o desenvolvimento do conceito científico demanda a existência de um sistema de generalização ao passo que o conceito cotidiano dispensa tal sistema. Assim, o ensino deve possibilitar aos estudantes o domínio do movimento lógico-histórico de produção do conhecimento, acreditamos que a via adequada para que isso se revele é por meio de um ensino de caráter problemático, em que “os conhecimentos não são transmitidos aos estudantes em forma já pronta, mas são adquiridos por eles no processo da atividade cognoscitiva autônoma na presença da situação problemática” (DAVÝDOV, 1988, p. 181). Essa deve desencadear nos estudantes a realização de ações mentais envolvendo os conceitos científicos.

Desse modo, por meio da resolução do problema de aprendizagem, o estudante adquire o modo geral de ação ou os procedimentos essenciais necessários para resolver uma categoria de problemas. A sistematização do problema de aprendizagem exige que o professor estude a gênese ou a história do conceito que irá ensinar ao estudante. Araújo (2019, p. 123), considera “que determinada base teórico-metodológica orienta o processo pedagógico, e desse modo, o desempenho do estudante vincula-se aos modos de organização do ensino.

Assim sendo, ao propor um modo de organização do ensino, que considera como ponto de partida a resolução de um problema desencadeador, nosso objetivo é mobilizar a aprendizagem dos estudantes, isto é, mobilizar motivos para que aprendam os conceitos científicos.

3 O ensino dos conceitos geométricos presente no livro didático

Consideramos a organização do ensino como núcleo do trabalho docente e o ensino dos conceitos geométricos com o caráter histórico pelo qual se desvela o movimento lógico de criação e desenvolvimento desse conhecimento. Dessa forma, na tentativa de realizar um movimento dialético, este trabalho está organizado por meio da exposição e a análise de algumas tarefas propostas pelo livro didático articuladas com as contribuições do referencial teórico adotado, com intuito de evidenciar possíveis limitações e caminhos para o ensino adequado dos conceitos essenciais de Geometria pelos estudantes.

Dentre os quatro eixos do conhecimento matemático estabelecidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (BRASIL, 1998) — Números e operações, Grandezas e Medidas, Geometria e Tratamento da Informação —, este artigo se limitou à análise do eixo de Geometria, em especial os conceitos de sólidos geométricos presente no livro didático do 4º ano do Ensino Fundamental. O movimento dessa análise nos lançou a considerar a formação dos conceitos espontâneos e científicos, bem como, o desenvolvimento desses conceitos no processo de escolarização.

Ao iniciarmos a análise procuramos verificar a lógica de organização do ensino do livro didático e a forma como são abordados os conceitos geométricos a fim de identificar a qualidade desse ensino para a apropriação dos estudantes. Verificamos que no início da seção 2, nomeada Sólidos Geométricos, o autor do livro parte de uma concepção de retomada e aprofundamento deste conteúdo, conforme consta na abertura da seção: “Neste capítulo vamos retomar e aprofundar os nossos conhecimentos sobre os sólidos geométricos” (DANTE, 2013, p. 51). Para alcançar esse objetivo, o autor subdividiu o capítulo que versa sobre os sólidos geométricos da seguinte forma:

  1. ■ Sólidos geométricos: Você já conhece, vamos retomar?

  2. ■ Elementos de um sólido geométrico;

  3. ■ Prismas e pirâmides;

  4. ■ As três dimensões;

Essas subdivisões são apresentadas com a mesma organização. Inicia com uma breve e pontual exposição sobre o conteúdo, na maioria das vezes, com algumas tarefas de fácil percepção da proposição, sem a necessidade de investigação pelo estudante. Vale observar que a nossa análise se deteve ao conceito de tridimensionalidade, considerando a secundarização que lhe é atribuída no processo educativo, contata em Locatelli (2015) e Ferreira (2017). Essas pesquisas apontam dados que nos permitem inferir que um dos motivos que contribuem para a não apropriação, das estruturas conceituais que compõem o conhecimento de Geometria pelos escolares estão relacionadas ao tempo dedicado ao seu ensino, uma vez que o tempo interfere na frequência e organização com que as tarefas são trabalhadas, além disso, períodos isolados evidenciam uma desarticulação com as demais áreas do conhecimento.

Na análise do tópico “As três dimensões” verificamos a seguinte explicação: “Em alguns sólidos geométricos podemos observar facilmente suas três dimensões: comprimento, largura e altura” (DANTE, 2013, p. 58). Em seguida, foram observados nas tarefas sobre sólidos geométricos, propostas de medição e manipulação com objetos do cotidiano. Ao analisar essas tarefas podemos dizer que estão direcionadas para estabelecer relações entre o conteúdo ensinado com os objetos que os estudantes possuem contato no dia a dia.

Contudo, nosso olhar se orienta para além das percepções imediatas, se orienta para os elementos estruturantes da atividade — motivo, necessidade, ação e operação — apresentados por Leontiev (2004). Ao analisar o desenvolvimento das tarefas do livro, no intuito de ilustrar a conscientização do escolar sobre o conteúdo que está sendo proposto, reconhecemos, pela proposta apresentada, que os motivos dos escolares realizarem tais tarefas são apenas compreendidos (motivos estímulos) e não eficazes (motivos geradores de sentido) conforme propõe Leontiev (2004). Os motivos eficazes

conferem um sentido pessoal à atividade. Na atividade gerada por um motivo desse tipo, há uma relação consciente entre os motivos da atividade e os fins das ações. Os motivos estímulos, diferentemente, têm função sinalizadora e não geram sentido, assumem o papel de fatores impulsionadores – positivos ou negativos da atividade e podemos dizer que são motivos externos à atividade do sujeito (ASBAHR, 2011, p. 89).

Para Leontiev (2004), esses motivos ainda não agem, de fato, em sua realidade circundante, posto que o desenvolvimento da consciência da criança é caracterizado pela apropriação das formas sociais de atividade historicamente constituídas pela humanidade. Logo, “é a sociedade que constitui a condição real e primeira da vida da criança, lhe determina o conteúdo e a motivação” (LEONTIEV, 2004, p. 332).

Assim, para que um conteúdo seja conscientizado pelos estudantes há que se considerar um problema gerador de motivos de aprendizagem. Acreditamos que estão nas necessidades sociais e históricas as chaves para desvelar as condições de origem e desenvolvimento dos conhecimentos historicamente acumulados. Temos nas situações desencadeadoras de aprendizagem, isto é, situações-problema ou, conforme assinala Vigotski (1988, p. 111), “perguntas-guia” as condições iniciais de produção e apropriação do conhecimento. Nelas estarão contidas as relações iniciais e essenciais do conceito de tridimensionalidade.

Cabe salientar, que a mesma situação desencadeadora de aprendizagem pode ser utilizada para diferentes idades, pois nela estarão intrínsecas todas as operações inerentes ao objeto de estudo. Contudo, cabe ao professor verificar qual a atividade dominante da criança no processo de desenvolvimento humano. Para Leontiev (2004, p. 267) são três períodos do desenvolvimento humano que revelam o lugar que a criança “ocupa objetivamente no sistema de relações humanas”. São eles, o período da idade pré-escolar, escolar e adolescência. A atividade dominante é aquela “cujo desenvolvimento condiciona as principais mudanças nos processos psíquicos da criança das particularidades psicológicas da sua personalidade em um dado estágio do seu desenvolvimento” (LEONTIEV, 2004, p. 312).

Logo, não é a atividade que ela mais realiza que determina o período de desenvolvimento, mas, ao contrário, a idade da passagem de um período ao outro depende do conteúdo e do lugar social que a criança ocupa no sistema de relações sociais. Assim, as situações-problema deverão estar de acordo com período de desenvolvimento do sujeito a fim de que se possa identificar o objeto real da consciência dele para poder direcionar a atividade de forma adequada.

Para melhor explicar esta questão, Leontiev (2004), afirma que a mudança de atividade dominante ou de motivo é fundamental para a formação e desenvolvimento estrutural da psique e da consciência da criança. Neste processo, as experiências da criança se ampliam nas relações práticas e verbais entre ela e os outros na atividade comum. Assim, a atividade não poderia acontecer em um único período, pois a mudança de estágio está inerente a uma atividade que domina a relação da criança com a realidade.

Desse modo, as ações e operações que a criança realiza deverão estar relacionadas com o objeto de estudo. A princípio, ela ainda não compreende suas ações combinadas, mas as apropria quando atinge o objetivo da atividade. Para Leontiev (1983, p. 333), o “desenvolvimento da sua consciência traduz-se pela mudança de motivação da sua atividade: os antigos motivos perdem a sua força motora, nascem novos motivos que conduzem a uma reinterpretação das suas antigas ações”.

Com a próxima tarefa (Figura 1), buscamos analisar seu enunciado, qual motivo é posto para a criança realizá-la e se sua realizao se apoia meramente em técnicas, ou seja, em como fazer. Verificamos que para abordar o conceito de tridimensionalidade, a criança necessita realizar a medição das malas para o sujeito poder viajar.

Conforme mencionado, o autor parte do pressuposto de que os estudantes tiveram acesso ao conteúdo de tridimensionalidade e que nesta seção é chegada a hora de aprofundá-lo. O aprofundamento nesta seção ocorre com a nomeação das dimensões dos sólidos geométricos. Mas, a nomeação das dimensões dos sólidos geométricos garante novos motivos nas crianças e provoca a reinterpretação das suas antigas ações ou tarefas?

Nesta forma de ensino, há o pressuposto de que o conteúdo é apropriado pelo estudante por meio do contato direto com a situação posta. Não estamos negando a importância de se relacionar o conteúdo com a vivência do escolar ou criar situações que promovam isso, ao contrário Vigotski (1993) afirma que é necessário existir determinados conceitos cotidianos, nos quais funcionam como mediadores para a internalização. Isto quer dizer que para a compreensão dos conceitos científicos é preciso que a criança já domine certos conceitos espontâneos a ele relacionados.

O que ressaltamos é a necessidade de possibilitar o avanço dos conhecimentos científicos. Ao assumir este formato, os conteúdos limitam-se à descrição superficial dos fatos. Como na tarefa seguinte (Figura 1), podemos subentender que a função social de medição dos sólidos está limitada em verificar o tamanho das malas. E caso ocorra alguma indagação pelas crianças sobre o porquê de as somas das dimensões precisar ser diferentes dependendo das viagens? Será que a variabilidade da relação entre comprimento, largura e altura está subentendida apenas pela leitura visual da tarefa?


Figura 1
Tarefa de viagens
(DANTE, 2013 p. 60)

Apesar de verificarmos potencial para o aprofundamento dos conceitos, consideramos que no livro pede-se a reflexão dos estudantes sem passar pela compreensão dos conteúdos no seu sentido universal, ou seja, considerando sua necessidade social e histórica de criação e desenvolvimento. Como consequência, o conteúdo se perde, não se torna objeto de atenção e estudo do sujeito. Verificamos que o capítulo de modo geral se apoia, na maioria das vezes, pelo recurso visual das imagens e tarefas que exigem do estudante uma execução técnica, operacional. Desse modo, a criança torna-se a narradora de sua própria aprendizagem haja vista que ela observa, interpreta e segue as instruções necessárias para concluir seu registro no caderno.

As manifestações de aprendizagem dos estudantes, deste conhecimento científico, estão direcionadas apenas para o registro das informações, sem estabelecer relação entre o motivo e sentido sobre conteúdo ensinado. Isto é, as crianças não são mobilizadas e desafiadas a pensar no motivo de criação dos conceitos geométricos que carregam em si, o sentido social. Vigotski (1993) afirma que a criança precisa ser colocada em “tensão” entre o conhecimento que já possui, denominado de Nível de Desenvolvimento Real (NDR) e o conhecimento que ele tem potencialidade de se apropriar, denominado de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Logo, a organização da atividade de ensino deve atuar na ZDP do sujeito.

Apresentamos na Figura 2, Tarefa dos sólidos geométricos, outro exemplo de tarefa que prioriza a leitura visual e a técnica como direção para a sua resolução.

Percebemos que neste tipo de tarefa as operações mentais exigidas da criança são limitadas a observação, memorização e percepção. Porém, os “conceitos científicos não assimilados, nem aprendidos pela criança, não se adquirem através da memória, mas surgem e se formam graças a tensão de toda atividade de seu pensamento” (VIGOTSKI, 1993, p. 194). A tarefa apresentada na Figura 2 não garante ao estudante a mudança de um estágio para o outro, pois o ensino está organizado para a repetição das técnicas de resolução da tarefa e a memorização dos nomes dos sólidos, não permitindo, assim, o aprofundamento conceitual que provocaria a mudança das estruturas de generalidade da criança.

Sobre esta questão, as investigações de Vigotski (1993) mostraram que o significado das palavras, em qualquer idade, é uma generalização e que seu significado não termina, mas se desenvolve (se aprofunda) em graus mais elevados de consciência. Revelam ainda que “cada estrutura de generalização determina a possibilidade da equivalência dos conceitos em seu círculo” sendo a medida de comunalidade o aspecto inicial do funcionamento de qualquer conceito (VIGOTSKI, 1993, p. 265). “A essência de seu desenvolvimento consiste em primeiro lugar na transição de uma estrutura de generalização a outra” (VIGOTSKI, 1993, p. 184).


Figura 2
Tarefa dos sólidos geométricos
(DANTE, 2013 p. 55)

Consideramos que medir o espaço em que vive é uma necessidade social e histórica dos homens e que por meio de situações que desvelem essa necessidade de criação dos conceitos geométricos que envolvem a ação de medir, o estudante poderá compreender o motivo da existência desse conhecimento e, assim, dar sentido ao que se aprende. Leontiev (2004) aponta que é preciso criar o interesse e direcioná-lo por meio da mudança da estrutura da atividade, isso é, pela mudança de seu motivo. Temos que

o conceito não é simplesmente um conjunto de conexões associativas que se assimila com a ajuda da memória, não é um hábito mental automático, mas um autêntico e complexo ato do pensamento. [...] A essência de seu desenvolvimento consiste em primeiro lugar na transição de uma estrutura de generalização à outra (VIGOTSKI, 1993, p. 184).

A transição de uma estrutura de generalização à outra é provocada, nesse entendimento, pela mudança de motivo. Diante disso, observamos que a forma como o livro didático direciona o ensino de Geometria, especificamente o ensino dos sólidos geométricos, não se revela como a forma mais adequada para garantir essa mudança. Constatamos, na análise das tarefas, que existe uma ampliação dos conteúdos e não seu aprofundamento que poderia ocorrer pela unidade entre um conceito e outro.

Por sua vez, os responsáveis pelo fazer pedagógico possuem o desafio de organizar o ensino de modo a oferecer a unidade aos sistemas de conceitos científicos pelos estudantes. E, nesse processo, existem algumas fronteiras em relação ao livro didático, uma vez que eles possuem restrições tanto para sua elaboração quanto para sua seleção, devem ser concebidos como recurso e não guia para o ensino dos conceitos geométricos.

Enfatizamos que o ensino adequadamente organizado encontra na necessidade humana de criação do conceito a direção para que o estudante compreenda o motivo e sentido daquilo que aprende.

4 Algumas considerações

Com base na Psicologia Histórico-Cultural e da Teoria da Atividade, consideramos que o livro didático analisado, na seção intitulada Sólidos Geométricos, o conceito científico é trabalhado de forma direta. Sua forma de organização do ensino não garante ao estudante superar os conhecimentos adquiridos pelas impressões imediatas para apropriar-se dos conhecimentos científicos, os quais pela sua natureza são mais elaborados e complexos.

Apesar de o livro didático partir do pressuposto de retomada e aprofundamento do conteúdo, verificamos como “aprofundamento” a nomenclatura das três dimensões. A relação essencial entre os conceitos geométricos localizada na necessidade social e histórica de controlar as variações das dimensões, não foi exposta ao estudante, inviabilizando o desenvolvimento conceitual desse conceito.

Constatamos que a lógica do ensino, materializada nas tarefas do livro didático, assume uma direção técnica e repetitiva, voltadas para o como fazer e não ao porquê fazer limitando o desenvolvimento das operações mentais do estudante. Conforme analisamos, ao não despertar o interesse da criança sobre o conteúdo geométrico, ela não encontrará motivo eficaz para aprender.

O motivo deve ser regido por uma necessidade que mobilize as ações mentais dos estudantes, sendo ela social e histórica, não rotineira como consta no livro. Contudo, no ensino de sólidos geométricos é preciso que o sujeito estabeleça as relações necessárias entre os conhecimentos cotidianos e os científicos para a mudança da estrutura de generalidade dos conceitos geométricos, porém, essas relações devem possuir o caráter histórico para a efetiva apropriação conceitual do conteúdo pelo estudante.

Cabe salientar que nossa análise não procura descartar o livro didático como recurso para a prática de ensino do professor e no processo de aprendizagem do estudante, mas apresentar análises e reflexões pontuais que contribuam para se repensar o modelo educativo vigente com um novo modo de organização do ensino, especialmente de Geometria, uma vez que o nosso objetivo foi expor como os conceitos científicos dessa área, destacando os sólidos geométricos, são abordados pelo livro didático e se tem promovido a apropriação conceitual deste conteúdo.

Diante disso, consideramos que o livro didático pode ser utilizado como um recurso, contudo, faz-se necessário que o professor, como um dos principais responsáveis pela organização da atividade pedagógica, desenvolva intervenções de ensino que promovam efetivamente uma aprendizagem conceitual, considerando o processo lógico e histórico de produção dos conhecimentos, via para a unidade entre os sistemas de conceitos geométricos.

Referências

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