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Educação do Campo e Etnomatemática: uma articulação possível?
Countryside Education and Ethnomathematics: a possible articulation?
Educação Matemática Debate, vol. 4, pp. 1-23, 2020
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos


Recepção: 05 Março 2020

Aprovação: 02 Abril 2020

Publicado: 06 Abril 2020

DOI: https://doi.org/10.24116/emd.e202009

Resumo: No presente artigo, tivemos como objetivo investigar como é realizado o trabalho com a Matemática na Educação do Campo, a partir de um olhar sobre a Etnomatemática. Este estudo teve como eixo as discussões sobre a Matemática, a Etnomatemática e a Educação do Campo. Realizamos um estudo bibliográfico, tomando como referência D’Ambrosio (1990, 1993, 2005b), Carvalho (1994), Almeida (2013), Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (BRASIL,1998) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n° 9394/96 (BRASIL, 1996). Realizamos, também, observações das aulas de dois professores do 5º ano do Ensino Fundamental, além de entrevistas a esses dois profissionais. Entendemos que a pesquisa apresenta contribuições para a formação de pedagogos e professores que buscam valorizar o conhecimento trazido por seus alunos e, ainda, um aprofundamento em sua prática docente.

Palavras-chave: Educação Matemática, Etnomatemática, Educação do Campo.

Abstract: The present work had as general objective to investigate how the work with Mathematics in the Field Education is accomplished, from a look on the Ethnomathematics. This study had as its axis the discussions about Mathematics, Ethnomathematics and Rural Education. For the development of the work, we made a bibliographic study developed from the following authors and documents: D'Ambrosio (1990, 1993, 2005b), Carvalho (1994), Almeida (2013), National Curriculum Parameters of Mathematics (BRASIL, 1998) and the Law of Guidelines and Bases of National Education (LDBEN) No. 9394/96 (BRASIL, 1996). We also made observations from the classes of two 5th grade elementary school teachers and interviewed them. We believe that the research will contribute to the formation of educators and teachers who seek to value the knowledge brought by their students and also a deepening in their teaching practice.

Keywords: Mathematics Education, Ethnomathematics, Countryside Education.

1 Considerações Iniciais

No presente artigo, apresentamos resultados de uma pesquisa na qual tivemos como objetivo investigar como é realizado o trabalho com a Matemática na Educação do Campo, a partir de um olhar sobre a Etnomatemática. Ao refletir sobre a Etnomatemática, verificamos que ela está intimamente ligada ao desenvolvimento da Educação Matemática e associada aos saberes matemáticos de um determinado grupo social e de sua cultura, nesse caso, à cultura campesina, conforme verificado em uma escola estadual do campo, situada num território quilombola, no município de São Francisco (MG).

Esta pesquisa teve como objetivos específicos: analisar a importância da Etnomatemática no contexto escolar; investigar se os professores dos Anos Iniciais da Escola do Campo fazem uso da Etnomatemática no processo de ensino aprendizagem da Matemática; analisar os procedimentos adotados para o ensino da Etnomatemática; estabelecer a relação entre Educação do Campo e o trabalho com a Etnomatemática.

O interesse por esse tema surgiu na inserção na referida escola do campo, localizada em um território de Quilombo. Entendemos que essa pesquisa é importante ao analisarmos como o trabalho com a Etnomatemática possibilita a aprendizagem de forma significativa, atrativa e contextualizada para os sujeitos inseridos naquele espaço educacional.

O método utilizado nessa investigação foi o Estudo de Caso, de natureza qualitativa, precedido por uma pesquisa bibliográfica, na qual contamos com autores que abordam a Matemática, a Etnomatemática e a Educação do Campo; e por meio de observação das aulas ministradas por duas professoras e realização de entrevistas com as mesmas.

O Estudo de Caso constitui-se de uma abordagem metodológica de investigação especialmente adequada quando procuramos compreender, explorar ou descrever acontecimentos e contextos complexos, nos quais estão simultaneamente envolvidos diversos fatores. Apresenta um método de investigação extremamente relevante, sobretudo, porque assenta em uma pesquisa intensiva e aprofundada de um determinado objeto de estudo, que se encontra muito bem definido e que visa compreender a singularidade e a globalidade do caso em simultâneo (ARAÚJO et al., 2008).

Para alcançar os objetivos propostos, percorremos os seguintes passos: em um primeiro momento, realizamos uma pesquisa bibliográfica sobre a Educação do Campo e suas possíveis articulações com a Etnomatemática. Apresentamos, a partir dessa pesquisa, um contexto histórico sobre o ensino da Matemática e a Educação do Campo, as políticas públicas que surgiram ao longo dos anos para essa modalidade de ensino e as práticas utilizadas pelos professores de escolas do campo.

Já no segundo momento, fizemos uma análise crítica a partir das observações em sala de aula e, também, das entrevistas realizadas com duas professoras acerca do ensino da Matemática em turmas de 5º ano do Ensino Fundamental da escola pesquisada, inserida em uma comunidade do campo e quilombola. A partir da coleta de dados, comparamos o que foi expresso na entrevista e o que foi observado em sala de aula, com o intuito de identificar se o trabalho realizado por essas professoras foi pautado na Etnomatemática, ou seja, se o meio social em que a escola está inserida tem sido considerado no planejamento e realização das aulas. Analisamos, também, se o trabalho com a Matemática, quando realizado de forma contextualizada, possibilita benefícios nos processos de ensino e de aprendizagem dos alunos.

2 Educação do Campo e Etnomatemática

Nesta seção, discorreremos sobre a evolução histórica da Matemática no âmbito da Educação do Campo, as características do ensino da Matemática e como a Etnomatemática pode ser utilizada para o ensino da Matemática na Educação do Campo favorecendo o aprendizado por meio da integração entre os conteúdos veiculados e as experiências de vida dos alunos.

2.1 Contextualizando a Educação do Campo

A Educação se dá em todo e em qualquer lugar em que haja interação social, pois em si ela é uma prática presente em diferentes espaços e momentos da vida humana. Na Educação do Campo não é diferente, pois não existe uma “fórmula” padrão e correta para ensinar e aprender, e sim diversas maneiras das mais distintas, presentes nas diferentes classes e povos. Neste sentido, Brandão (1985) afirma que

em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender–e–ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação (p. 7).

Dessa forma, podemos interpretar que a educação não está somente ligada às instituições de ensino; ela pode acontecer em diversos espaços como nos ambientes rurais, urbanos, em salas e até mesmo debaixo de uma árvore.

A educação pode acontecer em casa por meio da família — sendo este o primeiro ambiente educador que a criança tem convívio em sua vida —, nas comunidades, vilarejos, por meio do envolvimento com os vizinhos e tantos outros indivíduos que trazem consigo uma carga educacional diferente.

A Educação do Campo é um desafio antigo e constante para o Governo e os movimentos sociais, pois traz consigo inúmeras questões teóricas e práticas. Uma das características específicas da Educação do Campo em relação às outras modalidades de educação é o envolvimento com as questões de desenvolvimento e do território no qual ela se enraíza (FAGUNDES e SILVA, 2010).

Por muito tempo, acreditou-se que as técnicas de cultivo não exigiam dos trabalhadores rurais nenhuma preparação, nem mesmo a alfabetização, fazendo com que as pessoas do campo se tornassem analfabetas funcionais. Este cenário começa a se modificar nas primeiras décadas do século XX, quando, para controlar o processo de movimento migratório e elevar o processo de produtividade no campo, se introduz, na Constituição de 1934, a educação rural como uma necessidade para os povos do campo (FAGUNDES e SILVA, 2010). Nesse sentido, Ahlert (2003) considera que

as políticas públicas são as ações empreendidas pelo Estado para efetivar as prescrições constitucionais sobre a necessidade da sociedade em âmbito federal, estadual e municipal. São políticas de economia, educação, saúde, meio ambiente, ciência e tecnologia, trabalho etc... (p. 130).

Diante do exposto, faz-se necessário conhecer a evolução da Educação do Campo e suas características, a fim de compreender como deve se dar o ensino da Matemática nessa modalidade de ensino.

A Educação do Campo passou a ser vista de maneira diferenciada, a começar pela nomenclatura. Deixou-se de utilizar a expressão Educação Rural,

com o objetivo de incluir no processo [...] uma reflexão sobre o sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam garantir a sobrevivência desse trabalho. [...] quando se discutir a educação do campo se estará tratando da educação que se volta ao conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo, sejam as nações indígenas, sejam os diversos tipos de assalariados vinculados à vida e ao trabalho no meio rural... Quer-se ajudar a construir escola do campo, ou seja, escola com um projeto político-pedagógico vinculado às causas, aos desafios, aos sonhos, à história e à cultura do povo trabalhador do campo (KOLLING[1]apudQUEIROZ, 2011, p. 38).

No entanto, por causa da precariedade dos investimentos e do descaso à população que reside no meio rural, ainda há muito o que fazer no campo a fim de que se possa ter uma educação de qualidade, voltada às necessidades de seu alunado, porquanto a ausência de investimentos causa a desvalorização do campesino.

A evolução do tratamento dado à Educação pelo Estado, tanto urbana quanto do campo, é lenta e precária, principalmente no que diz respeito à última. Esse descaso em relação à educação contraria os preceitos da Constituição de 1988, ao afirmar em seu artigo 205 que

a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988).

Desta maneira, por se tratar de um direito fundamental constitucional garantido a todos os que estejam no território nacional, brasileiros ou não, depreendemos que a educação não pode ser negada a ninguém.

2.2 A Matemática nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental: possibilidades para o campo

A Matemática é, desde a Antiguidade até os tempos modernos, uma disciplina com foco na sistemática educacional que sempre desempenhou um papel muito relevante para a humanidade, sob determinadas condições econômicas, sociais e culturais (D’AMBROSIO, 2005b). Neste sentido, “[...] a matemática surgiu a partir das necessidades do homem, de compreender e transformar a realidade em que vive” (D’AMBROSIO, 1993, p.10).

Para D’Ambrosio (2005b, p. 99), a Matemática é uma estratégia desenvolvida pela espécie humana “ao longo de sua história para explicar, para entender, para manejar e conviver com a realidade sensível, perceptível, e com o seu imaginário, naturalmente dentro de um contexto natural e cultural”.

Portanto, a proposta de utilização de uma Matemática contextualizada vem ganhando força por ser uma forma de estimular o estudante a encontrar e organizar seus próprios esquemas de respostas diante de situações de seu dia a dia e, também, para aquelas propostas pela escola, já que o mesmo possui uma bagagem muito grande de conhecimento. O conhecimento da Matemática, por sua vez, é sistematizado, ou seja, trabalhado na escola a fim de se ampliar os saberes já construídos pelo alunado. Para esse autor,

a matemática tem sido conceituada como a ciência dos números e das formas, das relações e das medidas, das inferências, e as suas características apontam para precisão, rigor, exatidão. Os grandes heróis da Matemática, isto é, aqueles indivíduos historicamente apontados responsáveis pelo avanço e consolidação dessa ciência, são identificados na antiguidade grega e posteriormente, na idade moderna, nos países centrais da Europa, sobretudo na Inglaterra, França, Itália, Alemanha. (D’AMBROSIO, 2005b, p. 74).

D’Ambrósio (1993) ainda afirma que “um dos maiores erros que se pratica em Educação, em particular na Educação Matemática, é desvincular a Matemática das outras atividades humanas” (p. 97). Porquanto, ignorar o contexto é um grande erro, visto que impede o surgimento de indagações como “o que é Matemática?” e “para que serve isso na minha vida?”.

O aluno deve entender que a ciência da Matemática realiza a inserção dos sujeitos na sociedade em que vive. Portanto, está verdadeiramente articulada à vida cotidiana na sociedade. Discussões no âmbito da Educação Matemática no Brasil e em outros países enfatizam a necessidade de se adequar o trabalho escolar à realidade moderna, onde é nítida a presença da Matemática nas diversas áreas da atividade humana, seja no campo ou na cidade.

Para melhor compreensão da questão, é importante recorrer a um breve histórico sobre os currículos, para o ensino da Matemática, praticados no Brasil nos últimos anos. Os vários movimentos de reorganização curricular, a partir dos anos 1920, não foram suficientes para mudar ou melhorar as práticas pedagógicas para o ensino e a aprendizagem da Matemática.

Conforme lemos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Matemática, em nosso país, o ensino de Matemática é “marcado pelos altos índices de retenção, pela formalização precoce de conceitos, pela excessiva preocupação com o treino de habilidades e mecanização de processos sem compreensão” (BRASIL, 1998, p. 19).

Conforme relatado por estudiosos da área, o ensino da Matemática sofreu influências de recomendações do Conselho Nacional de Professores de Matemática (National Council of Teaches of Mathemátics), no ano de 1980 nos EUA, a partir de um documento feito sob o título “Agenda para Ação”. O documento recomendava que a Matemática deveria ter foco nos aspectos da educação social, antropológica, linguística, cognitiva e principalmente na resolução de problemas (D’AMBROSIO, 2005b).

Nesta perspectiva, o ensino de Matemática passou por várias transformações e, consequentemente, deixou marcas e um legado de conhecimentos e experiências. Porém, os processos de ensino e de aprendizagem é contínuo e traz obstáculos e desafios. Na atualidade não seria diferente.

Entre os obstáculos que o Brasil tem enfrentado em relação ao ensino de matemática, aponta- se a falta de uma formação profissional qualificada, as restrições ligadas às condições de trabalho, a ausência de políticas educacionais efetivas e as interpretações equivocadas de concepções pedagógicas (BRASIL, 1998, p. 21).

Diante desse contexto, explica-se o distanciamento do ensino da Matemática teórica e prática, o que não deveria ser uma justificativa, mas é uma realidade vivenciada pela sociedade atual. Porém, por outro lado, existem esforços sendo feitos para que tais problemas sejam diminuídos. A escola vem tentando elaborar projetos que abarquem, de maneira mais qualitativa, a comunidade em que está inserida.

Não somente as escolas, mas também as universidades e as secretarias de educação, dentre outras instituições, têm buscado produzir materiais pedagógicos de apoio para o professor de Matemática (JANUARIO, 2018). Nesse sentido, o PCN de Matemática esclarece que

essas iniciativas ainda não atingiram o conjunto dos professores e por isto não chegam a alterar o quadro desfavorável que caracteriza o ensino de matemática no Brasil. A formação dos professores, por exemplo, tanto a inicial quanto a continuada, pouco tem contribuído para qualificá-los para o exercício da docência. Não tendo oportunidade e condições para aprimorar sua formação e não dispondo de outros recursos para desenvolver as práticas da sala de aula, os professores apoiam- se quase exclusivamente nos livros didáticos, que, muitas vezes, são de qualidade insatisfatória (BRASIL, 1998, p. 21).

Nesse sentido, a Educação Matemática deve ser pensada para o desenvolvimento da cidadania, tornando possível um ensino capaz de gerar nos alunos uma reflexão sobre as condições humanas de sobrevivência, bem como influenciar a inserção destes indivíduos no mercado de trabalho.

Para trabalhar a Matemática de forma eficaz e satisfatória, o professor deve possibilitar aos alunos em suas aulas, “[...] oportunidades de operar sobre o material didático para que, assim, possa reconstruir seus conceitos de modo mais sistematizado e completo” (CARVALHO, 1994, p. 17). Quanto ao papel do professor, no que concerne ao conhecimento matemático, os PCN de Matemática prevêem que

para desempenhar seu papel de mediador entre o conhecimento matemático e o aluno o professor precisa ter um solido conhecimento dos conteúdos e procedimentos dessa área e uma concepção de matemática como ciência que não trata de verdades infalíveis e imutáveis, mas como ciência dinâmica, sempre aberta a incorporação de novos conhecimentos (BRASIL, 1998, p. 36).

Dito isto, depreendemos que cabe à escola e ao professor transformar esses saberes construídos pelo aluno, durante suas vivências com o outro, fazendo com que as diversas interações — seja na escola, com os pares, nas feiras, seja na cidade ou no campo, no contato com os familiares, enfim, em todo o seu convívio social — sejam transformadas em conhecimentos sistematizados e apropriados para a resolução de problemas do cotidiano.

No entanto, “tornar o saber matemático acumulado num saber escolar, passível de ser ensinado/aprendido, exige que esse conhecimento seja transformado” (BRASIL,1998, p. 36). Logo, o professor deve mediar esse saber, articulando as experiências do contexto dos estudantes aos conceitos formais.

2.3 Contextualizando a Etnomatemática

O termo Etnociência surgiu no fim do século XIX, quando os etnógrafos e antropólogos começaram a utilizá-lo a partir dos estudos etnográficos; tais estudiosos passaram a ter conhecimento mais profundo acerca das demais culturas existentes no mundo. Assim, dentre as diversas Etnociências surgidas nesse panorama, aparece a Etnomatemática que também pode ser entendida, por alguns autores, como Sociomatemática (ALMEIDA, 2013).

Em 1970, “tiveram início os estudos sobre Etnomatemática através de um programa de estudo em História e Filosofia da Matemática, com destaque na Educação Matemática, repercutindo no cenário da pesquisa internacional” (ALMEIDA, 2013, p. 66). Os matemáticos, mentores dessas ideias, entendiam que a Matemática deveria levar em conta o conhecimento de vida experimentado pela criança em casa.

D’Ambrosio (1993) salienta que a Etnomatemática “é a arte ou técnicas de explicar, de conhecer, de entender diversos contextos culturais” (p. 5), é uma linha de pesquisa que “busca a compreensão, transmissão e socialização de conhecimentos matemáticos onde se pretende refletir a matemática em seus diferentes contextos” (D’AMBROSIO, 2005b, p. 74).

Segundo Almeida (2013), D’Ambrosio empregou o termo Etnomatemática pela primeira vez no ano de 1975 quando discutia “no contexto do cálculo diferencial, o papel desempenhado pela noção de tempo nas origens das ideias de Newton” (p. 66). Para ele,

estava claro que, apesar de raça poder ser um dos fatores intervenientes na formação do conceito e da mediação do tempo, tal noção era somente das práticas etnomatemáticas que configuravam a atmosfera intelectual onde as ideias de Newton floresceram (D’AMBROSIO[2]apudALMEIDA, 2013, p. 66).

Assim, seguindo essa linha do tempo para entender o surgimento e o desenvolvimento do termo Etnomatemática, o próximo acontecimento importante envolvendo esse conceito foi, segundo Almeida (2013), o III Congresso Internacional de Educação Matemática (ICME-3) realizado na Alemanha no ano de 1976.

Foi no ICME-3 que, “[...] D’Ambrosio instiga os educadores matemáticos a refletirem sobre o valor e as implicações sociopolíticas e culturais que devem ser consideradas na discussão dos objetivos da Educação Matemática” (ALMEIDA, 2013, p. 66). Apesar de ter lançado a discussão acerca do termo Etnomatemática no ICME-3, ele só passou a ser salientado quando D’Ambrosio, em 1977,

[...] divulga-o num simpósio promovido pela American Association for the Advancement of Sciense (Associação Americana para o Progresso da Ciência),em Washington, onde seria discutida Native American Sciense (Ciência Americana Nativa). Lá estavam reunidos especialistas de várias ciências (ALMEIDA, 2013, p. 67).

De acordo com Almeida (2013), o ano de 1984 pode ser considerado o marco do reconhecimento da Etnomatemática no cenário internacional.

Ao realizar a conferência inaugural do 5th International Congress on Mathematics Education (ICME), em Adelaide (Austrália), D’ambrosio provoca uma reflexão sobre a Educação Matemática na perspectiva da complexidade dos fatores sociais e educacionais. Discute, também, a concepção da Matemática como sistema cultural articulando-a à Etnomatemática, à História Social da Matemática e à Antropologia Matemática (ALMEIDA, 2013, p. 67).

Diante do exposto, verifica-se que D’Ambrosio (2005a) buscava mostrar a necessidade da existência de uma relação entre a Educação Matemática e a História e Antropologia Matemáticas, de modo que o meio social e cultural do indivíduo seja levado em consideração no momento do aprendizado da Matemática. Então, a ideia da Etnomatemática emerge da análise de fazeres matemáticos em diferentes contextos socioculturais, “tornando-se evidente à época em que era orientador do setor de Análise Matemática e Matemática Aplicada, juntamente com pesquisadores de diversas áreas de conhecimento” (ALMEIDA, 2013, p. 67).

D’Ambrosio em entrevista, faz o seguinte depoimento:

nas conversas que eu tinha com os doutorandos, pessoal de alto nível, culturalmente ligado à sua realidade, eles me mostraram que aquela Matemática de Primeiro Mundo levada a eles não tinha nada a ver, na sua origem, com a tradição deles. Os malinenses, que são mulçumanos, construíram grandes mesquitas típicas deles, de pau-a-pique. Estão de pé há mais de 500 anos [...]. Eles tiveram os arquitetos deles, os urbanizadores deles, que fizeram coisas maravilhosas com uma Matemática muito própria, com soluções diferentes das nossas para problemas comuns a todos os povos. Então comecei a estudar muita Antropologia, História Comparativa, para entender melhor esse fenômeno, que, claro, não se explica somente pela Matemática (D’AMBROSIO, 1993, p. 6).

Diante do exposto, entendemos que o foco da Etnomatemática não está no abstrato, mas na utilização do concreto, da cultura de cada indivíduo e das práticas matemáticas cotidianas pelas quais ele consegue traduzir o mundo dos números. Para Almeida (2013),

a Etnomatemática é um programa de pesquisa que se apoia em amplos estudos etnográficos do saber e do fazer de distintas culturas. Recorre à análises comparativas desses saberes e fazeres, e da dinâmica cultural intrínseca a eles, contemplando aspectos cognitivos, filosóficos, históricos, sociológicos, políticos e, naturalmente, educacionais (p. 68).

É também um programa que visa “explicar os processos de geração, organização e transmissão de conhecimentos em diversos sistemas culturais e as forças interativas que agem entre os três processos” (D’AMBROSIO, 1993, p. 7).

Almeida (2013) afirma que a Etnomatemática não está limitada à Matemática, mas amplia-se na análise de várias formas de conhecimento. Conquanto o nome sugira destaque na Matemática, “seu estudo presume a evolução cultural da humanidade, considerando a dinâmica cultural evidenciada através da matemática” (ALMEIDA, 2013, p. 68).

Assim, podemos afirmar que a Etnomatemática busca a integração entre a bagagem cultural do indivíduo e a Matemática como ciência, mas sempre tentando preservar e aproveitar o conhecimento de mundo que o aluno traz consigo, buscando preservar as individualidades culturais dos educandos.

A abordagem a distintas formas de conhecer é a essência do programa Etnomatemática. Na verdade, diferentemente do que sugere o nome, Etnomatemática não é apenas o estudo de “Matemáticas das diversas etnias”.Para compor palavra Etnomatemática utilizei raízes tica matema e etno, para significa que há várias maneiras, técnicas, habilidades, (tica) de explicar, de entender, de lidar e de conviver (matema) com distintos contextos naturais e socioeconômicos da realidade (etno) (D’AMBROSIO, 1993, p. 111-112).

Nesse mesmo sentido, o próprio D’Ambrosio (1990) assevera que

o termo etno é hoje aceito como algo mais amplo, referente ao contexto cultural, e, portanto, inclui considerações como linguagem, jargão, código de comportamento; mitos e símbolos; matema é uma raiz difícil que vai na direção de explicar, conhecer e tica sem dúvida de thechne, que é a mesma raiz de arte ou técnica (p. 5).

Em acordo com a teoria de D’Ambrosio, cada cultura produz uma Matemática condizente com a sua própria realidade social, devendo levar em consideração aquilo que a criança aprendeu em casa também. Nesse mesmo sentido, D’Ambrosio, em entrevista concedida ao Diário na Escola Santo André[3], em 2009, afirma que

olhar, classificar, comparar são princípios da matemática. Se alguém estender uma mão cheia de balas e outra com poucas para que uma criança escolha, ela reconhece a diferença de quantidades e vai optar pela mão cheia. Isso é uma aplicação cotidiana e prática da matemática. [...]. Pensar em números é abstrato, diferente de pensar em balas. O ensino da matemática assumiu a postura de se encaminhar para o abstrato e se libertar do espontâneo. É daí que vem o distanciamento entre as crianças e a matemática (D’AMBROSIO, 2009).

Dessa forma, concluímos que a realidade em que a criança está inserida é de fundamental importância para a construção do pensamento abstrato por esta, para o despertar do interesse das crianças pela Matemática. A Etnomatemática vem retomar esse conhecimento usado nos diversos ambientes culturais, explorando as diferentes formas de conhecer a Matemática de outras culturas.

D’Ambrosio (2005b, p. 17) considera que “o reconhecimento, tardio, de outras formas de pensar, inclusive matemático, encoraja reflexões mais amplas sobre a natureza do pensamento matemático, do ponto de vista cognitivo, histórico, social, pedagógico”.

A Etnomatemática vem sendo tema de estudos para vários autores desde meados da década de 1970. Knijnik (2006) conceitua pontos de vista de vários autores sobre a perspectiva da Etnomatemática. A pesquisadora afirma que

a Etnomatemática estuda os discursos eurocêntricos que instituem a Matemática acadêmica e a Matemática escolar, analisa os efeitos de verdade produzidos pelos discursos da Matemática acadêmica e da Matemática escolar; discute questões da diferença na educação Matemática, considerando a centralidade da cultura erudita e cultura popular na educação Matemática (KNIJNIK, 2006, p. 120).

Para ela, o papel dos educadores, no que diz respeito a introduzir a Etnomatemática no currículo escolar, não trata de

glorificar a Matemática popular, celebrando-a em conferências internacionais, como uma preciosidade a ser preservada a qualquer custo. Este tipo de operação não empresta nenhuma ajuda aos grupos subordinados. Enquanto intelectuais, precisamos estar atentos para não pô-la em execução, exclusivamente na busca de ganhos simbólicos no campo científico ao qual pertencemos. No entanto, também não se trata de negar à Matemática popular sua dimensão de autonomia, tão cara às teorias relativistas (KNIJNIK, 2006, p. 150).

Na visão de Almeida (2013, p. 69), é necessário contextualizar a “matemática com fatos históricos, culturais, políticos e sociais; promover a valorização dos conhecimentos matemáticos dos grupos socioculturais discriminados” por realizarem uma Matemática diferente daquela da academia.

A partir dos argumentos apresentados, fizemos uma articulação entre as propostas de D’Ambrosio (2005a, 2005b), Knijnik (2006) e Almeida (2013) e consideramos que a Etnomatemática busca valorizar os conhecimentos matemáticos por meio da sua contextualização e integração à realidade social do aluno a fim de que a Matemática possa ser percebida em seu aspecto mais social, se retirando um pouco da pompa das academias e espaços formais de Educação.

Por fim, tem-se a definição de Etnomatemática dada pelo seu próprio criador ao afirmar que

o que eu chamo de Programa Etnomatemática é um programa de pesquisa no sentido lakatosiano que vem crescendo em repercussão e vem se mostrando uma alternativa válida para um programa de ação pedagógica. Etnomatemática propõe um enfoque epistemológico alternativo associado a uma historiografia mais ampla. Parte da realidade e chega, de maneira natural e através de um enfoque cognitivo com forte fundamentação cultural, à ação pedagógica (D’AMBROSIO, 1993, p. 71).

Portanto, é possível considerar que a Etnomatemática não trata de um método de ensino nem de uma nova ciência, mas de uma proposta educacional que estimula o desenvolvimento da criatividade levando a novas formas de relações interculturais. Isso se confirma no argumento de que o grande motivador do programa de pesquisa que se denomina Etnomatemática é “procurar entender o saber/fazer matemático ao longo da história da humanidade contextualizando em diferentes grupos de interesse, comunidades, povos e ações” (D’AMBRÓSIO, 2005b, p. 17).

Diante disso, afirmamos que a Etnomatemática tem um papel importante na articulação dos conhecimentos cotidianos com os conhecimentos formais disseminados pela escola, em especial na Educação do Campo.

3 Percurso Metodológico de nossa Pesquisa

Nesta seção, apresentaremos uma análise dos dados coletados durante a pesquisa realizada em duas turmas de 5º ano do Ensino Fundamental na Escola Estadual da Fazenda Passagem Funda no Município de São Francisco (MG). As colaboradoras da pesquisa são duas professoras regentes e suas respectivas turmas.

3.1 Metodologia

Este trabalho foi desenvolvido por meio da realização de uma pesquisa bibliográfica, desenvolvida a partir de material já publicado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. E, ainda, da realização de um Estudo de Caso, considerando a atuação de duas professoras que foram, posteriormente, entrevistadas.

Para realização da entrevista utilizamos um roteiro semiestruturado, com o intuito de facilitar nossa interlocução com as professoras, contendo 16 questões divididas em 2 seções: a primeira, com 4 questões que se referiam à identificação das entrevistadas e a segunda, composta de 12 questões temáticas. A partir das respostas das entrevistas e das observações realizadas nas salas de aula, bem como no ambiente escolar foi realizada a análise dos dados coletados durante a pesquisa.

Na observação que aconteceu no período de 19 a 30 de novembro 2018, foi estabelecido contato com a comunidade escolar e a realidade estudada, mas sem interferir nela.

3.2 Lócus da Pesquisa

Esta pesquisa foi realizada na Escola Estadual da Fazenda Passagem Funda, localizada na Comunidade Quilombola de Buriti do Meio, no Distrito de Vila do Morro, Município de São Francisco (MG). Identificamos que sua criação se originou de turmas vinculadas à Escola Estadual Lapa do Espírito Santo, em 1987. Desde 2004, a escola foi certificada pela Fundação Cultural Palmares. Em pesquisas realizadas, constatamos a aproximação de outras entidades como Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), Instituto Novas Fronteiras de Cooperação (INFC) e Fundação Banco do Brasil, que muito contribuíram para benfeitorias na comunidade e na escola.

Atualmente o quadro de funcionários da escola é formado por 51 servidores (efetivos e designados) distribuídos nas diversas funções necessárias ao funcionamento e com qualificação variada. A Escola Estadual da Fazenda Passagem Funda atende alunos de diversas comunidades, sendo que a maioria faz parte do seu entorno.

3.3 Percepções acerca das Observações das Aulas

Foi no período de 19/11/2018 a 30/11/2018 que se deu a observação das aulas de Matemática de duas professoras do 5º ano do Ensino Fundamental, com o objetivo de investigar como elas realizavam o trabalho com a Matemática na Educação do Campo, e se, em algum momento, elas se valeram de metodologias pautadas nas premissas da Etnomatemática, ou seja, considerando os saberes e vivências socioculturais do contexto dos estudantes.

Durante o período de observação, foi perceptível que as duas professoras, tanto a docente I quanto a docente II, desenvolvem um trabalho apropriado para a construção de conceitos matemáticos, valorizando o contexto dos estudantes, os saberes veiculados na comunidade e, sobretudo que as duas dominam os conceitos de Matemática ora trabalhados. No entanto, a professora I, por possuir um tempo maior de experiência na docência, revela um domínio e uma postura diferentes daqueles mostradas pela professora II, uma vez que esta possui pouca experiência na docência.

Verificamos que a professora II não usa cartazes, nem material concreto ou jogos. Muito diferente da professora I, que usa todos os recursos que estão à sua disposição — material dourado, bingo, tabuada, muitos cartazes e, sobretudo, mobiliza a atenção dos estudantes ao propor problemas matemáticos da vida cotidiana e a abordagem de estratégias utilizadas na e pela comunidade, tais como arredondamentos, cálculos mentais aproximados, uso de medidas e instrumentos não convencionais de medida.

O que mais despertou nossa atenção durante a observação das aulas, foi a atitude da professora II ao discutir uma questão sobre os conceitos de faces, arestas e vértices a partir de uma situação-problema que havia passado como tarefa. Para a melhor compreensão de alguns alunos que não haviam entendido a questão, a referida professora utilizou a porta da sala como exemplo, riscando-a e escrevendo com o giz onde se encontrava cada um desses conceitos naquela forma geométrica. Essa atitude despertou a curiosidade dos alunos que passaram a aplicar o conceito considerando objetos da sala de aula e do entorno.

Observando as atividades desenvolvidas pelas professoras em sala, verificamos que a docente II desenvolve atividades tradicionais e se prende muito ao quadro/giz e ao livro didático. Pouco uso faz de problemas cotidianos, jogos e brincadeiras e/ou material concreto. Quando chega a utilizar o material concreto, é somente nas explicações e exemplificações, momento em que o aluno tem a possibilidade de ver e escutar, mas não de manusear tais materiais.

Tal postura desencadeia um menor rendimento da turma em comparação com os resultados da outra turma observada, na qual a professora desenvolve atividades diferenciadas em todo o tempo, para que seus alunos, de forma interativa, se apropriem dos conceitos matemáticos.

Fazendo uma comparação entre as atitudes e o que disseram as professoras I e II, nas aulas e durante as entrevistas, respectivamente, é notório que as duas mostram conhecimento dos conceitos matemáticos, dos saberes da Educação do Campo, bem como daqueles mobilizados por meio da Etnomatemática. Todavia somente a professora I aplica esses conceitos e saberes em sua prática docente. Em um dos momentos da observação, presenciamos a resolução de problemas utilizando questões cotidianas e envolvendo o conhecimento sobre medidas convencionais e não convencionais ainda utilizadas na comunidade.

Diferente da professora I, a docente II não mostrou nenhum movimento no sentido de valorizar os conhecimentos e saberes que circulavam em sua turma e/ou na comunidade, mesmo sabendo que trata-se de uma comunidade tradicional quilombola e do campo e que os processos de ensino e de aprendizagem precisam ser permeados pela valorização sociocultural daquele espaço de aprendizagem.

3.4 Reflexões possíveis a partir das Entrevistas

As entrevistas foram desenvolvidas com as duas professoras do 5º ano do Ensino Fundamental, cujas identidades serão mantidas no anonimato conforme acordado no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que fora assinado por ambas.

O roteiro de entrevista constava de 16 questões, divididas em duas seções: a primeira com questões de identificação e a segunda, com questões temáticas. Na análise da primeira seção observamos que as professoras I e II têm entre 38 e 48 anos de idade. A professora I possui mais de 10 anos de exercício da docência, enquanto a professora II está em seu primeiro ano de serviço na Educação. Ambas são formadas em Pedagogia.

Na segunda seção, propusemos as questões temáticas em que indagamos se elas foram preparadas/orientadas na graduação para atuar na Educação do Campo. Tanto a professora I quanto a II responderam, com convicção, que não. As experiências foram adquiridas no trabalho, elas mesmas tiveram que buscar esse preparo e argumentaram que o Estado deveria investir em formações continuadas para os profissionais da Educação do Campo. A professora I ainda acrescentou que o professor, “ao adentrar em uma sala, seja ela do campo ou da cidade, preciso me capacitar e me adaptar a cada realidade, ou seja, buscar fundamentação teórica e prática para melhor atender às demandas de meus alunos”.

Na segunda pergunta, foi questionado se conheciam a Etnomatemática. A resposta de ambas foi que não sabiam do que se tratava. Contudo, ao ser explicado que corresponde à contextualização e articulação da Matemática vinculado ao contexto sociocultural dos estudantes ou aos saberes e fazeres matemáticos, peculiares, de um determinado grupo, as professoras I e II afirmaram que conheciam e faziam uso desta metodologia.

A terceira pergunta foi a seguinte: “Nas suas aulas, a Matemática é trabalhada de forma contextualizada, valorizando o conhecimento que os estudantes têm, prestigiando a realidade e as especificidades do campo?”. A professora I respondeu que ela busca realizar aulas pautadas em problemas da realidade do aluno, que ouve suas experiências e as usa fazendo intervenções e articulando-as aos conceitos matemáticos. Já a professora II respondeu que tenta sempre contextualizar as “continhas”, mas que tem dificuldade, porque os alunos mostram desinteresse pela disciplina de Matemática.

Na quarta pergunta, indagamos sobre como eram trabalhados os conteúdos da disciplina de Matemática em sala de aula. A professora I explicou que a principal forma era por meio das situações-problema que evidenciam a realidade vivida pelo estudante seguida de problematizações no quadro/giz. Afirmou, também, que sempre atendeu à solicitação da escola (serviço pedagógico) para realizar, em conjunto com outras colegas, projetos interdisciplinares contemplando temas de realidade e da comunidade escolar. A professora II informou que trabalhava somente os probleminhas (situações-problema), as explicações usando quadro/giz e o livro didático com gravuras.

Na quinta pergunta, sobre “Qual era a frequência do trabalho com a Matemática correlacionando-a às questões do cotidiano, ao meio e à cultura dos estudantes?”. A professora I respondeu que trabalhava toda semana, de duas a três vezes. Já a professora II respondeu que pelo menos uma vez por semana realizava esse trabalho.

A sexta pergunta foi sobre o interesse dos alunos para com as aulas de Matemática. Nesta questão, a professora I respondeu que “os alunos mostram desinteresse nas aulas teóricas, mas que quando o trabalho é voltado às questões cotidianas e ao lúdico o ensino se torna prazeroso e as aulas bastante movimentadas e interativas”. Já a professora II respondeu que “os alunos são desinteressados e que a falta de ajuda e incentivo dos familiares prejudica sua aprendizagem”.

Na sétima pergunta, foi questionado sobre quais são as disciplinas em que os alunos apresentavam maior interesse e o motivo desse interesse. Ambas responderam que Ciências Naturais e Educação Física são as disciplinas de maior interesse dos alunos pelo fato de a primeira tratar da vida no campo e a segunda, desenvolver brincadeiras e mobilizar a interação entre os estudantes.

Na oitava pergunta, foi indagado se a escola oferece recursos para a realização de aulas contextualizadas, considerando a realidade do campo. A professora I respondeu que “são oferecidos materiais didáticos e jogos, mas que se utiliza muito pouco”. Ela comentou que “poderia usar mais se tivesse maior auxílio do supervisor pedagógico e se a disciplina dos alunos contribuísse para a realização de aulas diferenciadas”. A professora falou sobre o acervo da biblioteca e os livros didáticos que são adotados pela escola — contextualizados com a realidade regional e com princípios da Educação do Campo. Já a professora II descreveu que “o material da escola é insuficiente e que não gosto do livro didático, preciso buscar muito auxílio na internet para melhor trabalhar os conteúdos”.

O nono questionamento foi se a escola possui um projeto específico para a Educação Matemática e se nesse projeto são reforçadas as especificidades da Matemática na Educação do Campo, ou seja, se as atividades trabalhadas nas aulas têm relação com o contexto dos estudantes. A professora I afirmou que um projeto específico de Matemática não possui, mas que existem projetos excelentes nos quais a Matemática pode ser trabalhada. Enfatizou que a diretora da escola cobra bastante que seja ensinada a Matemática de forma mais sistemática e contextualizada, pois “os resultados das avaliações internas e externas da escola, nessa disciplina, não são os recomendados”. Já a professora II respondeu que a escola não possuía um projeto de Matemática, mas que era incentivado o ensino de forma diferenciada por causa da dificuldade dos alunos nos conceitos matemáticos.

O décimo questionamento foi sobre a opinião das professoras com relação à importância da Etnomatemática para o desenvolvimento da autonomia e a aprendizagem dos estudantes e, se o trabalho pautado por ela trazia benefícios para eles. A professora I respondeu que “não se pode negar o quanto o conhecimento é valioso e o quanto a Matemática faz parte da vida do homem e de suas ações cotidianas” e, “quando nós, professores, pautamos nossas aulas de Matemática na perspectiva da Etnomatemática, conseguimos aproximar a teoria da prática cotidiana e, assim, trazer benefícios aos nossos alunos, pois ao aproximarmos os conceitos à vivência destes alunos conseguimos que eles construam uma aprendizagem significativa, proporcionando a eles a ampliação do seu conhecimento”. No entanto, a professora II respondeu que “a Matemática é um conteúdo complicado, por isso deve ser trabalhado de maneira diferenciada como prega a Etnomatemática. O ensino deve abrir possibilidades aos alunos e prepará-los para resolver problemas quando solicitados”.

A décima primeira pergunta foi a seguinte: “O que você, enquanto professora, faz para aperfeiçoar sua prática para o ensino de Matemática, especialmente, articulando-o às vivências, à cultura, aos saberes cotidianos de seus alunos? Você prestigia esses saberes? De que modo?” A professora I afirmou que busca aperfeiçoar sua prática por meio “da troca de experiências com colegas, realizando pesquisas sobre atividades diferenciadas na internet. No convívio com os alunos, valorizo seus conhecimentos prévios e somando a isso minha experiência como professora”. A professora II ressaltou que busca se aperfeiçoar “ao ouvir e observar colegas com mais experiência, realizando pesquisas na internet e valorizando o que meu aluno sabe”.

A décima segunda, e última, pergunta foi se elas se consideram preparadas para trabalhar a Matemática no Ensino Fundamental, em turmas de Educação do Campo, na perspectiva da Etnomatemática. Ambas responderam que de certo modo o trabalho com a Educação do Campo já é desafiador, mas não se sentem totalmente preparadas. A professora I esclareceu que “mesmo não me sentindo tão bem preparada, busco essa preparação em cada plano de aula”. Ela afirmou que desde que ingressou na educação nunca parou de estudar e que todas as aulas são um aprendizado tanto para ela que ‘ensina’ quanto para os alunos que ‘aprendem’. A professora II argumentou que “o estudo é essencial para se preparar uma boa aula, o planejamento é fundamental na execução de qualquer aula. É assim que me preparo”.

Concluída a análise de cada questão das entrevistasse as respostas emitidas, nos deteremos a seguir a fazer o cruzamento entre o que fora observado durante as aulas e o que fora dito pelas professoras por ocasião das entrevistas.

3.5 Para além das palavras: o observado e o dito

Fazendo um paralelo entre as observações das aulas e as entrevistas realizadas com as professoras do 5° ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual da Fazenda Passagem Funda situada no município de São Francisco (MG), consideramos que as falas da professora I condizem com suas ações, porém, nem todas as afirmativas da professora II estão de acordo com o que ela realiza durante suas aulas.

Ao responderem a entrevista, as professoras afirmaram não conhecer o termo Etnomatemática, contudo, após explicação do que se trata, ambas afirmaram que desenvolviam esta metodologia em suas aulas. No entanto, a professora II não mostrou, efetivamente, a utilização dessa metodologia. Ao contrário, sua dificuldade no manejo da turma, a desconsideração das falas e posicionamentos dos alunos, a não utilização de material concreto e outros recursos, a realização excessiva de exemplificação e explicação de conteúdos no quadro, ignorando as questões cotidianas que vinham à tona na resolução de problemas — constituíram-se em dificultadores dos processos de ensino e de aprendizagem.

Contrapondo essas atitudes, a professora I valorizava as falas dos estudantes, mesmo aquelas fora de contexto, intervindo sempre que necessário, usando como estratégia de interação com a comunidade, relatos de experiências por moradores, aulas na horta e no entorno da escola, uso de jogos e brincadeiras para trabalhar a Matemática.

Portanto, ao vislumbrar e empregar as muitas possibilidades para o trabalho com a Matemática, o professor assume um papel de mediador do conhecimento, tendo seus alunos como protagonistas ou coautores de sua aprendizagem. Deste modo, ele estimula os alunos a utilizar o conhecimento do cotidiano e a desenvolver estratégias próprias para a resolução de problemas matemáticos.

Diante disso, constatamos a necessidade de o professor dar à Etnomatemática o espaço que lhe cabe no trabalho com a Matemática em sala de aula, para que, de fato, aproxime a teoria da prática e os conceitos matemáticos escolares aos conceitos do meio sociocultural no qual os estudantes estão inseridos.

4 Considerações Finais

O presente trabalho buscou, por meio de embasamento teórico e de um estudo de caso, investigar como é realizado o trabalho com a Matemática em uma escola pública do campo. E ainda, verificar se a Etnomatemática se faz presente no cotidiano daquela escola, especialmente nas turmas do 5º ano do Ensino Fundamental.

A pesquisa realizada revelou que a Etnomatemática compõe as práticas matemáticas na referida escola, contudo, seu uso entre as professoras entrevistadas nem sempre acontece de maneira efetiva. Durante o período de observação, notamos ser realizado um trabalho com traços de uma Educação Matemática contextualizada e articulada à vivência do aluno. Isso foi verificado, principalmente, na entrevista e na observação das aulas da professora I.

Sobre isso, Bicudo (1999) afirma que a Educação Matemática é um projeto humano que se lança nas possibilidades do homem ser mundano e temporal, compreendendo as relações matemáticas e os objetivos matemáticos percebidos no mundo-vida e expandindo-os na ação interventiva no cotidiano vivido.

Portanto, cabe ao professor planejar e realizar aulas que possibilitem ao aluno utilizar seus conhecimentos prévios, bem como os conhecimentos cotidianos, recorrer a conceitos veiculados em sua comunidade, desenvolver o raciocínio lógico-matemático por meio da resolução de problemas, ou seja, oportunizar aos estudantes a vivência dos conteúdos em sala, de forma articulada à realidade em que estão inseridos para que, em sua vida e fora dos muros da escola, possam utilizar todos os conhecimentos construídos de forma efetiva e autônoma.

Durante a realização da pesquisa verificamos, com clareza, ser possível, sim, articular a Educação do Campo e a Etnomatemática — questão que tematiza nosso trabalho. Nossa afirmativa pauta-se por novas observações das aulas da professora I em que verificamos uma postura mediadora, articuladora e interventiva materializada nas questões problema propostas à turma. No que concerne aos processos de ensino e de aprendizagem, os resultados são satisfatórios, mostrados no interesse dos alunos da Educação do Campo pelas aulas de Matemática, nas quais podem se valer de sua vivência cotidiana para resolver questões problemas colocadas pela professora e assim articulá-las aos conceitos matemáticos trabalhados por ela. Contudo, um desafio verificado é alcançar os resultados recomendados nas avaliações externas.

Acerca da observação das aulas e da entrevista realizada com a professora II, foi possível identificar que o trabalho por ela realizado não é articulado ao contexto dos alunos, gerando, assim, um distanciamento da Matemática Escolar e da Matemática Cotidiana.

Diante disso, verificamos a necessidade de formação e especialização dos professores desde a academia (formação inicial) até o exercício da docência (formação continuada), oferecendo aos educadores possibilidades de repensar suas práticas e de realizar, junto aos seus alunos, um trabalho que estimule o desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem de uma Matemática articulada ao cotidiano, eficaz e prazerosa.

Por isso é importante que o curso de Pedagogia, cuja formação está voltada à docência, ofereça, com qualidade, aos acadêmicos tanto o embasamento teórico quanto experiências que possibilitem trabalhar e desenvolver o conhecimento lógico-matemático dos seus futuros alunos, sabendo o quão valioso é trabalhar a vivência dos mesmos para o seu crescimento intelectual e para a ampliação de sua capacidade de interpretação de conceitos e desenvolvimento de sua autonomia cognitiva e moral.

A Matemática é uma disciplina que é interpretada por uma parcela da sociedade atual apenas como um corpo rígido de conceitos, passíveis de decodificação. Ressaltamos a necessidade de os dirigentes da Educação formularem políticas públicas capazes de formar professores para um ensino contextualizado da Matemática, a partir, também, das premissas da Etnomatemática.

Desejamos que os resultados dessa pesquisa possibilitem uma difusão maior do conceito e da importância da Etnomatemática nas escolas, sendo utilizada na prática com maior propriedade, oportunizando a professores e alunos “ensinar-aprender” a Matemática, articulando os conhecimentos trabalhados na escola à sua realidade próxima, aos conceitos veiculados em sua comunidade, às experiências vividas por eles em seu contexto sociocultural.

Referências

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Notas

[1] KOLLING, Edgar Jorge; NERY, Israel José; MOLINA, Mônica Castagna. (Org.). Por uma educação básica no campo. 3. ed. Brasília: UnB, 1999.
[2] D’AMBROSIO, Ubiratan. Da realidade à ação: reflexões sobre a Educação e Matemática. São Paulo: Summus Editorial, 1986.
[3] Disponível em http://cn1003grupo3.blogspot.com/2009/10/etnomatematica.html.

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