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(Re)invenções de tradições: apropriações políticas e econômicas nas cavalgadas, vaquejadas, pegas de boi e cavalhadas de Sergipe
(Re)inventions of traditions: political and economic appropriations in ‘cavalgada’, ‘vaquejada’, ‘pega de boi’ and ‘cavalhada’ in Sergipe
(Re) invenciones de tradiciones: apropiaciones políticas y económicas en ‘cavalgada’, ‘vaquejada’, ‘pega de boi’ y ‘cavalhada’ en Sergipe
Revista Cerrados (Unimontes), vol. 20, núm. 01, pp. 255-278, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros



Recepción: 18 Enero 2022

Aprobación: 02 Mayo 2022

Publicación: 01 Junio 2022

DOI: https://doi.org/10.46551/rc24482692202211

Resumo: O artigo aborda a (re)invenção de tradições tomando as formas de apropriação como centralidade analítica e a memória como condutora para a compreensão das inovações ocorridas em expressões da cultura. Tem por objetivo compreender a ressignificação e a (re)invenção de tradições no processo de apropriação de manifestações culturais em Sergipe que se fazem com animais de montaria, a saber: cavalgada, vaquejada, pega de boi e cavalhada. Para isso, está ancorado em autores que tratam de território, cultura, memória, tradição e economia da cultura na expectativa de contribuir para a compreensão das motivações e relações engendradas na (re)invenção dessas manifestações culturais no estado de Sergipe.

Palavras-chave: Manifestações culturais, Tradições, Ressignificações, Animais de montaria.

Abstract: The article addresses the (re) invention of traditions, taking the forms of appropriation as an analytical centrality and memory as a driver for understanding the innovations that occurred in expressions of culture. It aims to understand the resignification and (re) invention of traditions in the process of appropriating cultural manifestations in Sergipe that are made with riding animals, namely: ‘cavalgada’, ‘vaquejada’, ‘pega de boi’ and ‘cavalhada’. For that, it is anchored in authors who deal with territory, culture, memory, tradition and economics of culture in the hope of contributing to the understanding of the motivations and relationships engendered in the (re) invention of these cultural manifestations in the state of Sergipe.

Keywords: Cultural manifestations, Traditions, Resignification, Riding animals.

Resumen: El artículo aborda la (re)invención de las tradiciones tomando las formas de apropiación como centralidad analítica y la memoria como conducto para la comprensión de las innovaciones ocurridas en las expresiones de la cultura. Tiene como objetivo comprender la resignificación y (re)invención de las tradiciones en el proceso de apropiación de manifestaciones culturales en Sergipe que se realizan con animales de montar, a saber: ‘cavalgada’, ‘vaquejada’, ‘pega de boi’ and ‘cavalhada’. Para ello, se ancla en autores que se ocupan del territorio, la cultura, la memoria, la tradición y la economía de la cultura con la esperanza de contribuir a la comprensión de las motivaciones y relaciones engendradas en la (re)invención de estas manifestaciones culturales en el estado de Sergipe.

Palabras clave: Manifestaciones culturales, Tradiciones, Resignificaciones, Animal en montar.

Introdução

Entre as mudanças que se observam nas formas e nos enredos das manifestações culturais que se fazem com a significativa e simbólica participação de animais de monta, está a crescente organização comandada por interesses econômicos, associada com patrocínios de gestões governamentais municipais. Diante disso, questionamo-nos sobre o contexto de tais manifestações. Há inquietações e (in)certezas que advêm de nossas reflexões e que nos movem a buscar suas resoluções. Que manifestações são essas? Quem são seus propulsores e mantenedores? Quais as relações e interesses intrínsecos em seus processos de permanência e manutenção? Como a apropriação assume a centralidade de suas ressignificações e (re)invenções? Como se dão as relações internas e externas de poder, pertencimento, entre os sujeitos produtores e os sujeitos participantes? De que forma é concebida a memória dessas manifestações por esses sujeitos e suas representações? Em meio às mudanças inerentes à estas manifestações culturais advindas de suas ressignificações e (re)invenções, são reveladas inúmeras distinções de expressões da cultura que vão se multiplicando e proliferando.

Para o nosso estudo delimitamos quatro manifestações: a cavalgada, enquanto um cortejo a cavalos, possui inúmeras finalidades, dentre elas, destaca-se a festiva (SANTOS, 2018); a vaquejada, enquanto festa rural do Sertão nordestino, é conhecida como esporte em que dois cavaleiros, conforme determinadas regras, correm em uma arena em busca do boi para derrubá-lo pelo rabo (MENEZES, 2009); a pega de boi, enquanto ritual festivo popular, surgiu da atividade diária do vaqueiro composta pela busca e apartação do gado na caatinga (MENEZES e ALMEIDA, 2008); e a cavalhada, enquanto encenação de batalha entre cristãos e mouros, faz referência aos combates religiosos da Idade Média e finda com o batismo dos mouros (islâmicos) (NUNES e SANTOS, 2001). Estas quatro manifestações têm em comum a centralidade da figura do cavaleiro e a destreza com seu cavalo, mas apresentam origens, enredos e motivações distintas e, por essas características, traçamos apontamentos que orientam os temas aqui tratados: apropriação, ressignificação e (re)invenção de manifestações tradicionais, com o objetivo de compreender a ressignificação e a (re)invenção de tradições no processo de apropriação de manifestações culturais em Sergipe que se fazem com animais de montaria, a saber: cavalgada, vaquejada, pega de boi e cavalhada.

Se inventar é “ser o primeiro a ter a ideia de algo” (FERREIRA, 2001, p. 400), concordamos com Halbwachs (2006) ao entender que a instrumentalização política-empresarial manipula a memória ao reinventar tradições, tais como nos novos moldes das citadas manifestações ocorrentes em Sergipe. Todavia, apropriar-se é “tornar próprio, seu; apoderar-se” (FERREIRA, 2001, p. 54). O termo reinventar, como colocado por Hobsbawm e Ranger (2008), insere-se nesse sentido. Ao expressar e exprimir sentidos simbólicos com clara demonstração política-empresarial, subentende-se que suas ações ressignificam as manifestações culturais, atribuindo-lhes outras intenções.

Ao entender que, em todo o território sergipano a manutenção da cavalgada, vaquejada, pega de boi e cavalhada ocorre, até mesmo, pela persistente satisfação e sentido simbólico dado pelos participantes e, em parte, pelo crescente interesse da iniciativa privada e de gestões municipais e estaduais, buscamos diálogo com autores de forma a compreender os sentidos das apropriações na dinâmica da produção cultural: apropriação enquanto sentimento de posse e pertencimento, de reconhecer algo como seu e de se reconhecer pertencente a algo (GEERTZ, 1989); e também, apropriação inserida no jogo de poder como propriedade material (RAFFESTIN, 1993) ou no contexto da manipulação político-ideológica da memória (HALBWACHS, 2006).

A aproximação dos termos/conceitos apropriação, ressignificação e (re)invenção vem sendo considerada à luz dos pressupostos fenomenológicos que nos exigem, de pronto, a preparação de um caminho metodológico de observação e levantamento bibliográfico. A observação livre enquanto técnica de coleta de dados é uma fonte rica para a construção de hipóteses baseada nas informações obtidas de determinados aspectos da realidade, enquanto o levantamento bibliográfico possibilita a busca, análise e descrição de um corpo do conhecimento que auxilia em nossas reflexões. Para a produção deste texto, elencamos como aliados, além dos citados autores, Haesbaert (2012), Claval (2013) e Bonnemaison (2002), por tratarem sobre o território e sua conformação relacional, advinda, entre outros, de sentimentos, materializações, políticas e crenças. Halbwachs (2006), Pollak (1989), Hobsbawm e Ranger (2008) abordam as relações no campo político-ideológico e trazem as múltiplas memórias sobredeterminadas por uma contínua apropriação do “velho pelo novo”. Vargas e Neves (2009) mostram, pela realização de um inventário, a ressignificação das formas de expressão de inúmeras manifestações tradicionais ocorrentes em Sergipe e, mesmo sem adentrarem nos aspectos relacionais de suas (re)invenções, nos aproximam do chão de nosso estudo que se principia, proporcionando-nos motivações para aprofundarmos nos interstícios e nas explicitações de suas apropriações.

Tratamos de manifestações que se fazem e se desfazem no espaço, mas cujas intenções, sentidos e preparações permanecem no campo relacional e, como tal, entendemos pertinente abordar e inserir como substantivos para a compreensão da (re)invenção das manifestações tradicionais, mesmo que breve, a economia da cultura com o auxílio de Machado (2009), Gibson (2012) e Lins (2011), bem como a “turistificação” e “entreterimentalização” da cultura pelas colocações, respectivamente, de Almeida (2018) e Farias (2005). Portanto, uma seleção de autores de grande relevância para a Geografia Cultural e suas ramificações, bem como para a Sociologia, a História, a Economia e o Turismo.

Além da introdução, o texto está estruturado em outras quatro seções. Inicialmente, tratamos das relações dos sujeitos envolvidos na manutenção e ressignificação da cavalgada, vaquejada, pega de boi e cavalhada em Sergipe. Em sequência, nos dedicamos a compreender o uso da memória no processo de (re)invenção de tradições por políticos e empresários. Posteriormente, demonstramos como essas manipulações resultam em sobreposições e coexistências que essencializam a transtemporalidade de manifestações culturais no território. E, por último, apresentamos as considerações finais, na expectativa de contribuir para a compreensão das motivações e das relações engendradas na (re)invenção de manifestações culturais.

Cultura e território: ressignificações de manifestações culturais

O interesse pela cavalgada, vaquejada, pega de boi e cavalhada levou a um envolvimento com as discussões em torno da geograficidade, das apropriações e variações da cultura popular. Os principais conceitos de cultura a descrevem pelas singularidades e peculiaridades do sujeito, tal como colocado por Claval (2014, p.71), ao tecer importantes contribuições a esse respeito, entendendo-a como “a soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas, dos conhecimentos e dos valores acumulados pelos indivíduos durante suas vidas e em outras escalas, pelo conjunto dos grupos de que fazem parte”. Ele afirma que a cultura é uma construção coletiva, transmitida de uma geração a outra, que molda e é moldada pelos indivíduos. Nesse sentido, compreendemos que a cultura é inventiva, é histórica, é processo e mudança.

Os estudos sobre a temática cultural, sob este ponto de vista, têm o objetivo de compreender como a cultura interage com a natureza, ou como as diferentes culturas se manifestam no espaço. Ela está intimamente ligada ao sistema de representações, de significados, de valores que criam uma identidade que se manifesta mediante construções compartilhadas socialmente e expressas espacialmente, isto é, construída pelas ações e inter-relações sociais. Representa todo o modo de vida de uma sociedade, o que não inclui somente a produção de objetos materiais, mas um sistema cultural, simbólico e imaginário que constitui a identidade de um grupo (CLAVAL, 2007).

Juntos, os sujeitos constroem uma história de vida em que hábitos, costumes, manifestações, expressões, sentimentos, valores e outros elementos estão inseridos determinando o seu modo de viver e de ser. Esse modo de viver e de ser é impresso no território que, por sua vez, é constituído envolto de intencionalidades e significações decorrentes das territorialidades. O próprio Claval (2013) enfatiza a relação da cultura com a constituição dos territórios, sendo estes:

[...] lugares de memória; seu valor simbólico é mais ou menos nobre, local, nacional, internacional, mundial, ou próprio à uma religião, à uma cultura; eles são frequentemente fontes de identidade coletiva e também de atividades econômicas (BRUNET apud CLAVAL, 2013, p. 125).

Com isso, o autor principia a ideia de que “os grupos só existem pelos territórios com os quais se identificam” (CLAVAL, 2013, p.126). Nesse sentido, a cultura é responsável pelas diferentes formas de relações, de ordem material e simbólica, entre os sujeitos e seus territórios. Estes últimos, no que lhes concernem, refletem a imagem dos sujeitos, permitindo que eles tomem consciência e fortaleçam suas relações, representações e símbolos.

Tal pensamento leva às contribuições de Bonnemaison (2002), para quem os territórios são, ao mesmo tempo, “espaço social” e “espaço cultural”, produzidos e vivenciados, “concebidos em termo de organização e produção” e “em termos de significação e produção simbólica” (ibidem, p. 104). Segundo o autor, a compreensão do território perpassa por um sistema de símbolos, organizado e hierarquizado, correspondente às necessidades e funcionalidades assumidas pelos sujeitos que o constituem. Isto é, a composição dos espaços está em conformidade com as necessidades dos sujeitos e sua cultura, que, por sua vez, determina e é determinada pela forma como as territorialidades e os territórios se apresentam.

No tocante à cultura popular, Burke (2010) afirma que, nas ciências, não há uma homogeneidade com relação ao termo e, por não se tratar de uma unicidade, muitos utilizam a expressão no plural: culturas populares. Também “são muitos os seus significados e bastante heterogêneos e variáveis os eventos que essa expressão recorre” (ARANTES, 1998, p. 7).

É comum associar a cultura popular àquilo que é tradição. Essa ideia é correta, desde que não se entenda como tradicional única e exclusivamente tudo aquilo que for imutável. Hobsbawn e Ranger (2008) afirmam que a tradição é o conjunto de práticas, ritos e símbolos construídos no passado e que continuam a ser aceitos e atuantes no presente, “muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas” (ibidem, p. 9). O termo tradição inventada faz referência tanto “às ‘tradições’ realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto às que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo - às vezes, coisa de poucos anos apenas - e se estabeleceram com enorme rapidez” (ibidem, p. 9). Nesse contexto, Almeida (2008) e Ratts (2003) convergem para a afirmação de que as formas de manifestações da cultura popular são tão inúmeras quanto sua dinamicidade, e isso não necessariamente as desqualifica enquanto tradições.

Pereira e Gomes (2002) salientam que o processo de transformação da cultura popular possui um caráter dialético, posto que as tensões que afloram nos embates e nas interações socioespaciais determinam um sistema dinâmico, afeito à manutenção e transformação. A cultura popular a que os autores se referem se apoia no princípio de que os anseios de preservação e de transformação interagem, isto é, “[...] o aparente paradoxo é, na verdade, uma maneira dinâmica de afirmar que, para preservar, às vezes, é necessário mudar.” (Ibidem, p. 12). Num processo de insurgência, os sujeitos se relacionam numa rede de transformação inerente à cultura de grupo ou dos grupos com os quais interagem em uma constante reconfiguração de experiência social e cultural. Uma troca que dá sentido às suas experiências e está para além da oposição entre cultura popular e cultura erudita ou entre cultura popular e cultura de massa. Portanto, quando aqui mencionarmos cultura popular, estaremos nos referirmos especialmente à cultura da maioria da sociedade, com caráter mobilizador e que desperta o senso de pertença.

Porém, esse processo de transformação da cultura ganha complexidade quando levamos em consideração as ações e as interferências externas. A “evolução” da cavalgada, vaquejada, pega de boi e cavalhada em Sergipe nos revela que a sua realização não é mais uma expressão da cultura de indivíduos interioranos com modo de vida típico do ambiente rural, nem sequer dos vaqueiros do campo, pois, atualmente, em sua organização, intervêm líderes comunitários, vereadores, empresários e, principalmente, os gestores municipais (SANTOS, 2018). Além da política, destacamos a lógica mercadológica de venda e lucro que sustenta a realização dessas manifestações independentemente se promovidas por líderes comunitários e políticos, prefeitura e empresários.

O lazer, a religiosidade, a musicalidade, a destreza e a labuta justificam a origem da cavalgada, vaquejada, pega de boi e cavalhada em Sergipe, que têm em comum a presença do cavalo e sua expressividade no ambiente rural. A permanência (firmeza de continuidade) e a manutenção (constância de conservação) dessas manifestações culturais enquanto tradição se estabelecem pela valorização dos significados e influência dos sentidos postos pelas comunidades, ou seja, o material e o simbólico no contexto da origem, manutenção e permanência dessas manifestações. Pela dimensão da cultura, como feito anteriormente, é possível delimitar e distinguir as quatro manifestações. Porém, atualmente, as diferentes formas de apropriação e o grau de elementos introduzidos nessas manifestações conduziram ressignificações em suas estruturas e formas, e congruências entre elas de modo que, em determinadas situações, torna-se difícil separá-las.

Na Geografia, ainda são escassos os estudos que abordam alguma dessas manifestações culturais. As pesquisas documentais realizadas apontam a Antropologia como a área da ciência que mais produz sobre tais fenômenos, porém, encontramos estudos também em outras áreas como Ciências Sociais, História, Biologia e Psicologia. Entre elas, destacamos dissertações de Mestrado: A Cavalgada do Santo Guerreiro: duas festas de São Jorge em São Gonçalo, Rio De Janeiro, de Costa (1997), na Antropologia; Renovando a tradição: o caso da cavalhada mirim na comunidade de Morro Vermelho, de Lisboa (2014), na Psicologia; As Cavalhadas de Nova Lima: entre tradição, transformação e revitalização de Madeira (2017), nas Ciências Sociais; O espaço do consumo e o consumo do espaço no município de Macaíba-RN a partir das festas de vaquejada (1980-2012), de Silva (2013), na Geografia; “Um Boi Zepelim Enfeitiçado…”: trajetória de vida do vaqueiro “Doutor de Vito” e as vaquejadas “pega-de-boi no mato” no Sertão sergipano dos anos 1950, de Santos (2018), na História e, ainda, a tese de Doutorado de Aires (2018) “Sob à Luz da Cultura e do Negócio”: Vaqueiros e Patrões nas Vaquejadas Contemporâneas no Rio Grande do Norte-RN, nas Ciências Sociais.

Diante do exposto, posicionamos o encadeamento de nosso estudo na possibilidade de compreender a cavalgada, vaquejada, pega de boi, cavalhada e afins enquanto expressões da cultura popular, mas também pela complexidade que envolve a ressignificação e a (re)invenção dessas tradições em seu processo de apropriação. Redes de relações, territorialidades, permanências, manutenções, apropriações, ressignificações, (re)invenções que resultam em coexistências, entendidas pela existência de maneira simultânea, harmoniosa ou de maneira pacífica e, em sobreposições entendidas como imposição de uma coisa sobre outra, nem sempre de forma pacífica das manifestações culturais. E, acrescenta-se, nesse contexto, que coexistências e sobreposições configuram ainda a transtemporalidade, ou seja, a transcendência dos limites entre o passado e o presente dessas manifestações no território.

(Re)invenções de tradições: a instrumentalização da memória para a ação política e econômica

As motivações mantenedoras das manifestações culturais têm sido alteradas pelos interesses intrínsecos de seus realizadores, que agem sobre os modos de fazer, de estar e de participar delas. Ao propor a realização dessas manifestações, líderes comunitários, vereadores, empresários, políticos, entre outros, tendem a “repaginar” essas e enquadrá-las nos moldes de eventos mercadológicos. Farias (2005) destaca que manifestações culturais têm sido direcionadas a diferentes nichos de mercado. Para ele, a redefinição dessas práticas significativas ocorre na alteração das instâncias que as legitima e visibiliza, cada vez mais, os sujeitos e grupos realizadores são dispostos às pressões políticas, econômicas e culturais variadas, ligados aos ramos comerciais do entretenimento. Nesse processo, as manifestações culturais são reajustadas ao padrão de acumulação do capital e tornadas compatíveis aos interesses que motivaram as mudanças, situadas, sobretudo, nas dimensões econômica e política. Com isso, entendemos o uso da memória, sua instrumentalização política-empresarial e a (re)invenção de tradições como estratégias utilizadas por esses grupos, que definem suas territorialidades e legitimam seus territórios.

De acordo com Halbwachs (2006), a memória ultrapassa a fronteira do passado e das lembranças que marcam, positiva ou negativamente, um indivíduo ou uma coletividade. Ela é o próprio passado presentificado, impregnada de ideologias, interesses e disputas inerentes ao momento de sua ativação. Nesse contexto, não se pode afirmar um resgate da memória porque ela é acionada com os interesses do presente. O mais adequado é enfatizar que ela é revivida, reconstruída e rememorada, frequentemente vulnerável às subversões. Em seus estudos, o autor desloca a memória do campo da Psicologia e deixa aflorar o seu dinamismo social e coletivo. Para ele, a memória é individual e coletiva, não enquanto somatório, mas, sim, enquanto construção dialética, pois nós lembramos, mas lembramos com as lembranças de outros. Pode-se dizer então que a memória é, ao mesmo tempo, produto e determinante da produção do espaço.

O mesmo autor nos chama a atenção para o uso e a manipulação política/ideológica da memória. Ele enfatiza que as tradições são uma invenção da esfera política difundida pela memória oficial, que a impõe e a mantém. Deve ser considerado também o processo de apagamento de memórias em função da acumulação. O capitalismo cria mecanismo de vender a tradição por meio da sua (re)invenção e transformação em mercadoria, substituindo o valor de uso pelo valor de troca. Podemos comprovar essa colocação do autor quando nos debruçamos sobre as quatro manifestações aqui tratadas, conquanto originalmente têm relação direta com o trabalho e a atividade no campo, necessários para a existência dos sujeitos como valor de uso, porém, ao serem apropriadas pelos grupos políticos e empresariais, são “reenquadradas” às necessidades partidárias e de mercado como valor de troca.

No município sergipano de Itaporanga d’Ajuda, por exemplo, no ano de 2006, foi criada a Cavalgada D’Ajuda pelo então vereador e posteriormente proprietário da Produtora de Eventos BS Produções. O empresário apropriou-se do percurso de maior importância no município e, desde o início a “sua” cavalgada, apresenta características ligadas à contemporaneidade. Ela é organizada para atrair um público jovem. As atrações contratadas cantam e tocam tradicionais aboios e o ritmo contemporâneo conhecido como vaquejada ostentação. Diferentemente das demais que são realizadas pela Prefeitura ou pela população, é cobrada uma taxa àqueles que desejam assistir ao show que acontece após o percurso a cavalo.

A Cavalgada D’Ajuda se tornou um dos maiores eventos realizados pela “BS Produções e Eventos” e uma das mais conhecidas no estado no quesito “evento particular”. O interesse do empresário não é competir com as demais cavalgadas que são realizadas pela Prefeitura, mas, sim, aproveitar o potencial econômico da tradição no município. Isso fica claro pelo fato de a Cavalgada D’Ajuda acontecer fora da temporada de cavalgadas, quando não há outra para disputar preferência e público. Em 2019, ela foi vendida pela produtora de eventos com o slogan “14 anos de história e tradição”, um exemplo concreto de (re)invenção de tradição por meio da manipulação de uma memória do passado, ligada às antigas cavalgadas quando se realizavam com cortejos de Casamentos de Tabaréus e Matutos, entre tantos outros existentes no estado de Sergipe.

Pollak (1989), por sua vez, destaca a pluralidade de memórias, ao afirmar que há tantas memórias quanto interesses em disputa e, por isso, não se deve negar que a memória é impregnada de contradições sociais e ideológicas. Deve ser considerado que a lembrança, o esquecimento, a omissão e o silêncio da memória não são frutos do acaso e, sim, de intencionalidades distintas. Novamente, remetemos às manifestações culturais, as suas ressignificações, (re)invenções e as memórias atreladas a elas em decorrência da apropriação simbólica pela tradição e da apropriação material pelas relações de poder.

Segundo Hobsbawn e Ranger (2008), as rápidas transformações na sociedade vêm produzindo novos padrões incompatíveis com “velhas” tradições que, consequentemente, vão sendo eliminadas ao menos que consigam se adaptar. E por isso, as (re)invenções de tradições são mais frequentes quanto mais amplas e rápidas são as transformações na sociedade. Todavia, os autores chamam a atenção para não cairmos no erro de afirmar veementemente que as “novas” tradições surgiram simplesmente em decorrência de a incapacidade das tradições velhas serem utilizadas e adaptadas, atribuindo-lhe caráteres de obsoletas. Em outras palavras, não é porque as “velhas” tradições são ultrapassadas e obsoletas que elas estão sendo eliminadas e substituídas por “novas” tradições. Entretanto, é porque as transformações no contexto da modernidade estão tornando a sociedade e suas práticas incompatíveis com essas “velhas” tradições, ou elas são adaptadas e flexibilizadas ou desaparecerão.

Nesse processo de adaptação, as cavalgadas e vaquejadas em Sergipe têm atraído mais atenção dos líderes comunitários, vereadores, políticos e empresários se comparadas com as pegas de boi e cavalhadas. Dessa forma, não é por acaso que as primeiras têm se sobressaído e se sobreposto às últimas. As vaquejadas e cavalgadas são mais facilmente apropriadas pela lógica mercadológica, são mais adaptáveis aos interesses do mercado de entretenimento e de turismo, por isso, é comum no interior sergipano, especialmente no Alto Sertão, a disseminação de vaquejadas e de cavalgadas e, nelas, são dissolvidas a cavalhada e pega de boi que vêm se mantendo mais próximas das “velhas” tradições.

A compreensão de Hobsbawn e Ranger (2008), em torno das tradições inventadas converge para um conjunto de práticas, ritos e símbolos regulados que são subentendidos ou abertamente aceitos, visa imprimir certos valores e normas de comportamento por meio da repetição de algo construído no passado, longínquo ou recente e que continuam a ser aceitos e atuantes no presente. Quando possível, são articulados a um passado histórico apropriado que garanta as “tradições inventadas” à ideia de continuidade, ainda que artificial, dessa maneira, nesse caso, tradições forjadas. Eles enfatizam que, muitas vezes, tradições são inventadas porque os velhos costumes não são usados nem adaptados propositalmente, ou seja, não é necessário que os velhos costumes de fato desapareçam. Quando nos colocamos conscientemente contra a tradição e a favor das inovações radicais, geramos vácuos que podem ser preenchidos por tradições inventadas. Assim, não é necessário recuperar, inventar ou reinventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam” (HOBSBAWN; RANGER, 2008, p. 16).

Os atores citados até então nos ajudam a compreender que as tradições inventadas são indícios de que, nas sociedades atuais, o passado vem tornando-se gradativamente menos importante como modelo da maioria do comportamento humano. Este, por sua vez, tem sido regido pelos impulsos externos da economia, da tecnologia, do aparelho burocrático estatal, das decisões políticas que não dependem da tradição, problemas que, de outra forma, poderiam não ser detectados nem localizados no tempo. Por isso, o estudo interdisciplinar das tradições (re)inventadas não pode ser separado do contexto da história da sociedade, um estudo que esclareça as relações humanas com o passado, posto que toda tradição inventada, na medida do possível, se utiliza da história para legitimar as ações e cimentar a coesão grupal.

Para entender essa conformação e organização da sociedade, consideramos ainda as contribuições de Haesbaert (2012), o qual destaca os processos complementares na conformação dos territórios em um caráter contínuo. Para o autor, na análise dos territórios e territorialidades, deve ser considerado seu caráter dinâmico, processual e relacional, conduzindo-nos para a compreensão dos processos territoriais sob uma visão integradora dos fenômenos naturais, econômicos, políticos e culturais-simbólicos. É, pois, na concepção do território que se dá a integração contínua das diferentes dimensões materiais e imateriais que envolvem a sociedade. É no território que são estabelecidas, conectadas e modificadas as territorialidades. É nele que se legitima as ações e são cimentados os grupos. É pelo território que conseguimos enxergar as sobreposições e coexistência das manifestações culturais e consequentemente de suas transtemporalidades, porque é no território que são expressas as relações, intenções e apropriações de tradições.

Transtemporalidades de manifestações culturais no território

A manipulação da memória pelos sujeitos pode resultar em (re)invenções de tradições, estas, como já dito, podem ser expressas pelas coexistências e pelas sobreposições que configuram a transtemporalidade de manifestações culturais no território, ou seja, o “antigo” e o “novo”, o “conservador” e o “moderno” que ora coexistem ora se sobrepõem revelando um passado que é presentificado e apropriado conforme os interesses em disputa.

Silva e Bezerra (2016) ressaltam que é preciso dedicarmos à dialética dos processos territoriais sem desconsiderar as superposições e coexistências que configuram as transtemporalidades. Em uma análise clássica, o tradicional e o moderno, o antigo e o novo são separados e tratados de formas diferenciadas assim como, por exemplo, o rural e o urbano por muito tempo foram tratados na geografia. No contexto das cavalgadas, vaquejadas, pegas de bois e cavalhadas em Sergipe, a confluência existente entre elas, entre os condicionantes tradicionais e modernos, nos faz questionar também a existência de manifestações culturais do rural e do urbano. Aquilo que originalmente nasceu no espaço rural, carregado de um simbolismo e ligado ao imaginário de quem é do campo, hoje, é expandido para os espaços urbanos atrelado ao mercado de entretenimento e de turismo que responde às necessidades de acumulação de capital.

O mundo rural, na sociedade urbana, se expressa distintamente em contextos culturais, sociais e econômicos heterogêneos. Não obstante, a expansão da “racionalidade urbana” sobre o rural traz efeitos não só no campo material referente aos quesitos socioeconômicos e políticos, mas também, no campo imaterial referente às práticas, representações e expressões de valores culturais/simbólicos. O campo que no passado esteve associado, entre outros aspectos, à lida com a terra, atividades de plantio e criação de animais passou a ser consumido à ideia de espaço de lazer. As suas práticas e, consequentemente, suas manifestações culturais, passaram a despertar interesses voltados para a lucratividade, ligados especialmente aos setores de turismo e entretenimento.

Assim sendo, Farias (2005) levanta a hipótese de que há um interesse sobre os espaços que reúnem as manifestações culturais, denominadas por ele de práticas lúdico-artísticas populares. E que há um rastro de transformações nos suportes de expressão dos símbolos, no instante em que são inseridos em circuitos mais cosmopolitas, por meio da sintonia entre políticas públicas e a atuação da iniciativa privada empresarial. Ao tratar o tradicional e o moderno nas condições urbano-industriais e de serviços, ele enfatiza que as expressões da cultura popular na contemporaneidade estariam na fissura do presente com o antigo, do bárbaro com o civilizado, portanto, ele reforça o seu caráter transtemporal produzido no vácuo, como coloca Hobsbawn e Ranger (2008). Ao longo do último século, essa dualidade em torno da “cultura do povo” ganhou complexidades com a expansão dos conglomerados metropolitanos e de instituições da modernidade que geraram alterações na estrutura social e no plano simbólico. A lógica mercadológica passou a ditar um mercado nacional, com repercussões sobretudo nas dimensões cognitivas, expressivas e comunicacionais.

Por conseguinte, para melhor compreensão da (re)invenção das manifestações culturais, seu valor simbólico e também econômico, julgamos pertinente abordar a economia da cultura. Essa é uma área de estudos e de formulações políticas que, embora pouco explorada no Brasil, desperta uma grande e crescente atenção no plano internacional. Segundo Machado (2009, p. 98), trata-se de um ramo da economia o qual tem por princípio que “os bens e os serviços culturais trazem em si um valor cultural e um valor econômico” e, por isso, busca desenvolver estudos e políticas que contemplem a penetração da lógica mercadológica no mundo da cultura, mais especificamente, na produção, comercialização e consumo de bens e serviços culturais.

Gibson (2012) afirma que, por muito tempo, os geógrafos economistas ignoraram que os produtos da cultura possuíam relativo valor simbólico e “utilitarista”. A economia da cultura surge na geografia apenas em meados da década de 1990 e ganha escopo entremeando as novas formas culturais e as mudanças na organização capitalista. Para o autor, “a economia da cultura compreende todos os setores do capitalismo moderno que atendem às demandas dos consumidores por diversão, ornamentação, autoafirmação, exibição social e assim por diante” (GIBSON, 2012, p. 283, tradução nossa).

De acordo com Lins (2011, p. 228), esse ramo da economia evoca uma complexidade porque os objetos da cultura (mercadorias e serviços) possuem, por um lado, uma dimensão ou significação simbólica relacionada a desejos e valores culturais que se traduzem nos princípios, ações e práticas da vida; por outro lado, uma dimensão ou significação econômica relacionada à quantificação que se traduz nas riquezas geradas, contingentes empregados, impostos recolhidos, entre outros.

A abordagem da economia da cultura que abrange a dimensão espacial tem trazido contribuições importantes para o desenvolvimento socioeconômico. Nela, explora-se os vínculos entre atividades culturais e criação de oportunidades de dinamização econômica principalmente em meio urbano, inclusive em ações de revitalização de ambientes nas cidades. Há exemplos no mundo de distritos culturais, que, segundo Lins (2011, p.230), são áreas de concentração geográfica de atividades de produção, comercialização e consumo de bens e serviços culturais, em que o desenvolvimento socioeconômico está centrado na produção cultural. As empresas instaladas nesses distritos são atraídas pela concessão de vantagens tributárias, pelo potencial cultural e econômico local. Nesse contexto, especialmente nos países desenvolvidos nos quais a economia da cultura surgiu, “a própria ‘cultura’ se tornou um produto” (JAMESON, 1997, p.14), mas, ao mesmo tempo, tem sido usada para reviver economias urbanas engajando comunidades e revitalizando vizinhanças.

Lins (2011) enfatiza que, de acordo com a literatura, a conformação desses distritos culturais não se diferencia dos processos de cluster de atividades industriais, ou seja, da concentração de empresas e serviços que possuem características semelhantes e se comunicam em uma dinâmica de colaboração tornando o cluster mais eficiente. Ao fazermos uma analogia com a realidade que envolve as manifestações culturais aqui abordadas, percebemos que, nas localidades em que elas ganham expressividade, o comércio e a disponibilidade de serviços locais em parte se reajustam às necessidades demandadas por suas práticas. Por exemplo, no entorno de parque de vaquejadas, pode ser observado um crescente número de estabelecimentos voltados para atividades de manejo de animais de monta, como lojas de produtos agrícolas e zootécnicos, assim como de equipamentos e acessórios de montaria em um efeito conhecido como spin-off, isto é, a criação de algo a partir de outro já consolidado.

No que se refere ao uso de manifestações da cultura para o favorecimento do desenvolvimento de determinadas localidades, reforçamos nosso pensar com as contribuições de Almeida (2018) que, ao tratar das festa rurais e do turismo em territórios emergentes, destaca que, nos últimos tempos, o caráter de valorização cultural local tem se agregado ao turismo e contribuído para a preservação do patrimônio de população rurícola. As festas rurais, assim como a cavalgada, vaquejada, pega de boi e cavalhada em Sergipe, tidas como patrimônio cultural, são expressões humanas da cultura e têm despertado o interesse dos gestores municipais em investir nelas no sentido de transformá-las em um evento-vitrine do sucesso de sua gestão. A autora reforça a relação entre o turismo e a dinamização da economia em localidades rurais, ao destacar que:

O turismo no espaço rural é considerado um fator importante para tentar, de alguma forma, dinamizar a economia de pequenas propriedades rurais, ao se tornar uma atividade complementar de renda entre as famílias, desacelerar o êxodo rural e proporcionar uma melhoria na qualidade de vida da população local” (ALMEIDA, 2018, p. 201).

Isto é, as manifestações culturais, além de serem um bem cultural de dimensão ou significação simbólica para a população, têm se revelado na condição de produto turístico com dimensão ou significação econômica para empresários. Vêm sendo utilizadas como instrumento de ação política em prol do desenvolvimento de determinadas localidades, mas ainda de ação partidária vinculada ao desejo de projeção e visibilidade de gestões governamentais.

A autora é incisiva ao defender que a crescente turistificação do patrimônio contribui para sua mercantilização. O valor que os bens culturais possuem, por um lado, é o que a sociedade, por suas práticas sociais, lhe atribui e, por outro lado, é o valor definido pelos interesses da lógica do mercado. Assim, o turismo, na sua lógica consumista, reinventa o patrimônio cultural.

Ao aproximar as ideias de Almeida (2018) e Farias (2005), enfatiza-se que, no interior dos espaços de manifestações festivas culturais, há a reatualização dos significados das práticas lúdico-artísticas populares na integração com aqueles mercados relativos aos ramos do lazer. Diríamos ainda que não seria propriamente uma “reatualização”, porque entendemos que o ato de reatualizar é substituir algo por uma versão melhor, aprimorada e evoluída, porém, o que vem acontecendo é uma “ressignificação”, uma alteração no significado e no sentido das motivações para a realização dessas práticas.

Segundo Farias (2005), a coligação entre as manifestações culturais e as instâncias financeiras/empresariais voltadas ao comércio é orientada para o lucro, obtido por meio da prestação de serviços, monetarização de diversão, integrando a dimensão da modernização mercadológica. Assim, a cultura do povo é transformada em entretenimento, que, por sua vez, é convertida em um serviço turístico que busca o lucro.

Os modos de ser e viver, básicos no delineamento de uma identidade local, tornam-se alvo do mercado capitalista empenhado em metamorfosear as diferenças culturais nas atrações promovidas pelo marketing. Para Farias (2005), essa metamorfose não pode ser evitada. A saída proposta por ele é que a (re)invenção de tradições se dê por parte da “comunidade”, ou seja, os objetos da estima coletiva tornem-se núcleos de exposição da singularidade local, atrativos de públicos externos. Porém, sabe-se que, em uma “negociação” que envolve sujeitos locais e externos em torno de valores como tradição e inovação, há a prevalência dos interesses de grupos e setores do entretenimento, evento e turismo.

O autor discorda que há uma incompatibilidade entre festas populares e modernidade, posicionamento que pode levar à polêmica discussão sobre festa popular e festa de massa, que, por hora, não é nosso objetivo. Para ele, no contexto da cultura e da economia, vários festejos brasileiros surgem em determinadas pautas de desenvolvimento socioeconômico e são defendidos enquanto fatores de modernização local e regional, em contraponto à imagem do “atraso”. Todavia, ele reconhece que a conexão de matrizes culturais com o entretenimento trai a peculiaridade institucional das festas populares regionais enquanto festivais de diversão e lazer.

Os interesses que determinam as diferentes formas de apropriação das manifestações culturais são determinantes de relações conflituosas especialmente entre os sujeitos locais e os sujeitos externos. Mas é de frisar que os desacordos também existem no núcleo de cada grupo, não há um consenso entre os que tradicionalmente fazem parte dessas manifestações em relação à aprovação da modernização ou “entretenimentalização” de suas práticas, assim como não há entre aqueles que estrategicamente se utilizam dessas manifestações para a obtenção de vantagens políticas e econômicas. Esses desacordos alimentam ainda mais as coexistências e sobreposições de modos e fazeres de manifestações culturais no território.

Comungamos com Haesbaert (2012) e Silva & Bezerra (2016), os quais defendem uma análise em torno do continuum multidimensional - sobre as relações que engendram o território e suas territorialidades advindas das formas de apropriação e uso do espaço. Essa visão integradora nos permite ler o território como um espaço apropriado e construído por coexistências e sobreposições, mas, sobretudo, por contradições oriundas das relações de poder, estas, por sua vez, tal como Raffestin (1993) as compreendem. Esse último influenciado pelas ideias de Foucault afirmou a multidimensionalidade do poder, incentivou um olhar para as relações cotidianas e para as relações de poder em todas as escalas.

É importante considerar, concomitantemente, “o tempo, o espaço e o território, e aspectos da economia, da política e da cultura ([i]materialidade)” (ibidem, p. 127), para desenvolver uma abordagem geográfica do território. É nessa perspectiva da multidimensionalidade que buscamos compreender a cavalgada, vaquejada, pega de boi e cavalhada e as diferentes formas que são apropriadas no território.

Considerações finais

As cavalgadas, vaquejadas, pegas de boi e cavalhadas são singularizadas como manifestações populares, no sentido de serem manifestações do povo e de se manifestarem por grupos formados espontaneamente. Mas, ao observar as diferentes formas que são apropriadas, suas (re)invenções e a instrumentalização da memória para a ação política e econômica são tomadas como fenômenos complexos que, para além da adequação singular a determinados grupos e comunidades, a apropriação assume o caráter ora de pertença, ora de consolidação ou vinculação a jogos de poder. Nesse processo, novas manifestações se materializam (inventadas), outras se mantêm (conservadas) e outras se ressignificam (reinventadas).

O estudo sobre a evolução cronológica, funcional, estrutural e espacial dessas manifestações em Sergipe possibilita observar situações em que elas transcendem a dimensão cultural/simbólica. Não só o cultural/simbólico, mas também o econômico e o político as movem, determinam as territorialidades dos sujeitos que garantem sua manutenção e promovem mudanças. Entendemos que as alianças, os interesses, os acordos firmados pelos sujeitos, os sentidos e os significados atribuídos por eles tornam essas manifestações culturais ora mistas ora uniformes, numa contínua sobreposição e coexistência de características de suas materialidades e imaterialidades que justificam sua permanência.

Observa-se, com efeito, que as formas de apropriação possuem função decisiva no contexto da ressignificação e (re)invenção de manifestações culturais, processo pelo qual elas podem ser metamorfoseadas em um produto de entretenimento ou em um serviço do turismo, porém essas mudanças não anulam o seu valor simbólico para aqueles que encontram nelas um sentido além do material. Por esse motivo, buscamos compreender a cavalgada, vaquejada, pega de boi e cavalhada não apenas por uma de suas dimensões ou significações, por entendermos que, no atual cenário de sua manutenção, ressignificação e (re)invenção, as relações articulam simultaneamente aspectos culturais/simbólicos, econômicos e políticos/partidários.

As cavalgadas, vaquejadas, pegas de boi e cavalhadas vêm se mantendo por meio das múltiplas ações e interesses de múltiplos sujeitos. Além da política, percebe-se o destaque da lógica mercadológica de venda e lucro que prepondera na realização dessas manifestações, independentemente de quem as promove, e que a economia da cultura nos ajuda a compreender. Chamamos a atenção para a ação de sujeitos do setores de evento, entretenimento e turismo na transformação dessas manifestações em produtos rentáveis e, enquanto produto, sua produção, comercialização e consumo contribuem para as relações de poder multiescalares e multidimensionais entre todos esses sujeitos que estabelecem múltiplos territórios e interferem direta e indiretamente em onde, como e quando as cavalgadas, vaquejadas, pegas de boi e cavalhadas ocorrem.

Agradecimentos

Agradecemos a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES pelo fomento à nossa pesquisa.

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Notas

Daniele Luciano Santos É Graduada em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Atualmente é Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Endereço: Avenida Marechal Rondon Jardim s/n - Rosa Elze, São Cristóvão - SE, 49100-000.

Maria Augusta Mundim Vargas É Graduada em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutora em Geografia pela Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Atualmente é Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Endereço: Avenida Marechal Rondon Jardim s/n - Rosa Elze, São Cristóvão - SE, 49100-000.



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