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A terceira margem do rio: território e territorialidades nas vazantes da comunidade de Bom Jardim da Prata – São Francisco/MG
The third margin of the river: territory and territorialities in the dreams of the community of Bom Jardim da Prata – São Francisco/MG
El tercer margen del río: territorio y territorialidades en los sueños de la comunidad de Bom Jardim da Prata - São Francisco /MG
Revista Cerrados (Unimontes), vol. 20, núm. 01, pp. 221-235, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros



Recepción: 09 Octubre 2021

Aprobación: 01 Febrero 2022

Publicación: 01 Marzo 2022

DOI: https://doi.org/10.46551/rc24482692202209

Resumo: Este artigo tem como objetivo contribuir com a discussão acerca da comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata, localizada no município de São Francisco, norte de Minas Gerais, das disputas territoriais envolvendo recursos hídricos. Assim, a análise toma como base o espaço de interação e sobrevivência, transformando-o em lugar do saber e do fazer no qual o trabalho torna-se modo de ser que se transfigura em relações socioafetivas e socioculturais entre homem e natureza. É a partir do rio que os vazanteiros atribuem a concepção do existir com uma organização social estabelecida por regras de uso do território. Embora haja uma divisão territorial das águas e de suas margens, esses grupos não se mantêm isolados. Há interações e fluxos constantes de pessoas no rio, no qual é possível identificar outros atores sociais, como balseiros, barqueiros e pescadores. Este estudo fez uma análise de como se dá o processo da agricultura de vazante no rio São Francisco, a função do vazanteiro enquanto sujeito agente no sertão e as dinâmicas sociais estabelecidas na comunidade. Para tanto, foi realizada uma análise bibliográfica para fins de compreensão desse conflito e como o mesmo pode contribuir na discussão desse tema.

Palavras-chave: s: Rio São Francisco, Vazanteiros, Território.

Abstract: This article aims to present and contribute to the discussion about the quilombola community of Bom Jardim da Prata, located in the municipality of São Francisco, north of Minas Gerais, and about territorial disputes involving water resources. Thus, the analysis is based on the space for interaction and survival, transforming it into a place of knowledge and action in which work becomes a way of being that is transfigured into socio-affective and sociocultural relations between man and nature. It is from the river that the vazanteiros attribute the concept of existing to a social organization established by rules for the use of the territory. Although there is a territorial division of the waters and its margins, these groups do not remain isolated, there are constant interactions and flows of people in the river, in which it is possible to identify other social actors, such as ferrymen, boatmen and fishermen. This study analyzed how the process of low-water agriculture takes place in the São Francisco River, the role of the low-lying river as an agent in the sertão and the social dynamics established in the community. Therefore, a bibliographic analysis was carried out in order to understand this conflict and how it can contribute to the discussion of this topic.

Keywords: São Francisco River, Vazanteiros, Territory.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo contribuir a la discusión sobre la comunidad quilombola de Bom Jardim da Prata, ubicada en el municipio de São Francisco, al norte de Minas Gerais, en disputas territoriales relacionadas con los recursos hídricos. Así, el análisis se basa en el espacio de interacción y supervivencia, transformándolo en un lugar de conocimiento y acción en el que el trabajo se convierte en una forma de ser que se transfigura en relaciones socio-afectivas y socioculturales entre el hombre y la naturaleza. Es desde el río que los vazanteiros atribuyen el concepto de existir a una organización social establecida por reglas de uso del territorio. Si bien existe una división territorial de las aguas y sus márgenes, estos grupos no permanecen aislados. Hay constantes interacciones y flujos de personas en el río, en los que es posible identificar a otros actores sociales, como balseros, barqueros y pescadores. Este estudio analizó cómo se desarrolla el proceso de agricultura de aguas bajas en el río São Francisco, el papel del río bajo como agente en el sertão y la dinámica social establecida en la comunidad. Por ello, se realizó un análisis bibliográfico con el fin de comprender este conflicto y cómo puede contribuir a la discusión de este tema.

Palabras clave: Río São Francisco, Espacios vacíos, Territorio.

Introdução

O processo de formação das comunidades tradicionais do Norte de Minas, principalmente dos municípios do sertão molhado, estão ligados aos cursos d’águas, sendo o Rio São Francisco o mais importante. Possui 2700 Km de extensão em sua totalidade, cuja bacia hidrográfica é caracterizada como uma das mais importantes do território brasileiro, uma vez que abrange seis Unidades da Federação, por essa razão ele ficou conhecido como “Rio da Integração Nacional” (IBAMA, 2007).

A bacia do São Francisco é subdivida em quatro regiões entre elas estão: Alto São Francisco (da nascente até a cidade de Pirapora – MG), Médio São Francisco (de Pirapora – MG até Remanso – BA), Sub-Médio São Francisco (de Remanso – BA até Paulo Afonso – BA) e Baixo São Francisco (de Paulo Afonso – BA até a foz). Ela contempla fragmentos dos biomas: Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga e Litoral (GODINHO e GODINHO, 2003).

Por ser o maior rio inteiramente brasileiro, o “Velho Chico” apresenta um longo trecho navegável entre os municípios de Pirapora – MG e Juazeiro – BA e, ao mesmo tempo, tem grande potencial hidrelétrico, diversificando o uso de sua bacia. Representa para o Brasil um caminho de integração de extraordinária importância, por unir regiões de diferentes aspectos naturais e econômicos e aproximar as mais diversas populações com suas características, peculiaridades socioculturais e interesses diversos. Nesse contexto a agricultura de vazante é primordial para sobrevivência dos povos ribeiros, sobretudo, as comunidades tradicionais remanescentes de quilombos.

A agricultura de vazante se caracteriza como uma forma de produção que visa prioritariamente o cultivo de alimentos para subsistência. Sua forma de produzir, através de técnicas simples e conhecimentos antigos, permite ao agricultor uma produção de alimentos de forma eficaz.

Assim, segundo Luz (2005) os vazanteiros se caracterizam como populações residentes nas áreas inundáveis das margens e ilhas do Rio São Francisco que possuem um modo de vida específico, construído a partir do manejo dos ecossistemas são-franciscanos, combinando, nos diversos ambientes que constituem o seu território, atividades de agricultura de vazante e sequeiro como a pesca, a criação animal e o extrativismo.

Atualmente devido a introdução de novos agentes e do modo de produção econômica no Rio São Francisco, sobretudo o do agronegócio viabilizados por grandes projetos de irrigação, é revelado a intensificação dos processos de expropriação e expulsão das comunidades tradicionais dessa área, bem como o processo de degradação do rio no qual impacta diretamente o modo de vida e o trabalho do vazanteiro.

Pesquisar essa comunidade, identificando o seu trabalho, seu lazer, sua família, suas experiências, suas expectativas e frustrações, torna-se objeto de interesse e importância para a compreensão da mobilidade urbana em cidades ribeirinhas, uma vez que a prática da travessia é presente no Sertão e lhe confere peculiaridades entre as demais cidades desta região.

O presente estudo é necessário para a análise da realidade local e do viver no rio, enquanto processo de (re)existência da Comunidade Quilombola Bom Jardim da Prata, bem como compreender como se dá a agricultura de vazante enquanto função social, e a relação da comunidade e o rio, através dos aspectos sociais, culturais, econômicos e territoriais. Para tanto, foi adotado como metodologia a pesquisa quanti-qualitativa através de coleta de dados por meio da execução de entrevistas com moradores e observação participante.

Essa pesquisa foi estruturada em duas etapas: primeiramente realizou-se um levantamento preliminar de dados coletados por meio de uma entrevista livre não organizada com alguns membros da Comunidade de Bom Jardim da Prata. No segundo momento foram feitos acompanhamentos durante o processo de cultivo nas vazantes, com o intuito de caracterizar o ambiente, a organização do trabalho, viagens e a sociabilidade entre a comunidade, nesse momento também, estabeleceu-se um diálogo com os vazanteiros no qual relatavam as vivências no rio, o saber-fazer e a relação com o lugar. E por fim as considerações finais.

A cidade de São Francisco-MG: Quilombo Bom Jardim da Prata

Fundada em 1877 por Domingos do Prado e Oliveira, nasce a Fazenda Pedras de Cima, entre a beleza do rio das Pedras e dos Angicos, que posteriormente se transformou em uma cidade. Com decorrer dos anos ela foi batizada por vários nomes como: Pedras de Cima, Pedras dos Angicos, São José das Pedras dos Angicos, São Francisco das Pedras e por fim numa homenagem ao rio, foi sacramentado o nome definitivo, São Francisco (BRAZ, 1977). Assim, São Francisco é um município brasileiro situado às margens do rio São Francisco, localizado na Região Imediata de São Francisco (IBGE, 2017), no Norte de Minas Gerais, cuja sede se localiza à margem direita, conforme a figura 01.


Figura 1
Localização do Município
elaborado pelos autores, 2021.

De acordo com o Censo do IBGE (2010), a população de São Francisco corresponde a aproximadamente 53.898 habitantes, em uma área total de 3.308 Km², cerca de 42% reside na área rural, o que corresponde a um total aproximado de 19.663 habitantes[1] em uma área de 3.291,767 Km², nota-se que o meio rural possui uma grande extensão territorial e alto contingente populacional. Estando numa região semiárida, suas características a colocam num contexto geográfico que interfere na paisagem econômica da cidade, revelando uma conjuntura de seca, pobreza e com poucas alternativas de sobrevivência para a maior parte da população, uma vez que há pouca atuação do Estado no que diz respeito a políticas públicas sociais para redução das consequências da seca, principalmente porque que há comunidades rurais cujo acesso a água é escasso.

A base econômica do município é agropecuária com ênfase a pecuária de leite e produção agrícola, sendo grande parte da agricultura familiar, contudo essa atividade exerce pouco destaque econômico. Desse modo, deduz-se que o município possui pouca relevância na economia mineira, como a maioria dos municípios do norte-mineiros, tem como o Produto Interno Bruto (PIB) tem uma renda per capita em torno de 6.525,77 reais anual. Muitos habitantes procuram outras alternativas econômicas, e no rio se destacam a agricultura de vazante, a pesca, o ofício da travessia entre outras. Pescadores e barqueiros retiram do rio sua principal fonte de renda e alimento.

Bom Jardim da Prata é território remanescente de quilombo, localizado em uma área rural à esquerda da margem do Rio São Francisco. O território é composto por quinze comunidades rurais, sendo cinco mais distantes e dez que se encontram situadas nas proximidades dos cursos d'água, dentre elas a Comunidade de Bom Jardim da Prata. São em média 630 famílias, cerca de 230 sobrevivem da agricultura de vazante associada a outros tipos de atividades, como o extrativismo e pesca. (COSTA et al, 2015).


Figura 2
Localização das Principais comunidades rurais da margem esquerda.
elaborado pelos autores, 2021.

Vivência e dinâmica territorial nas margens do rio São Francisco – São Francisco - MG

“... Afagar a terra Conhecer os desejos da terra Cio da terra, propícia estação E fecundar o chão..”

“... Afagar a terra Conhecer os desejos da terra Cio da terra, propícia estação E fecundar o chão..”

(Cio da Terra – Chico Buarque e Milton Nascimento)

A agricultura é a atividade de grande importância para a sobrevivência da comunidade ribeirinha. São nas vazantes que se cultivam grande parte dos alimentos responsáveis pela nutrição e o sustento de diversas famílias na comunidade de Bom Jardim da Prata. Plantam-se abóbora, melancia, hortaliças, quiabo, feijão, milho entre outras culturas. O plantio na vazante ocorre em função da dinâmica do ciclo das águas, onde é possível observar que no processo de cultivar os “lameiros”[2] os vazanteiros criam uma simbiose com o rio.

O processo de cultivo nessas áreas geralmente se inicia em abril, após os períodos das cheias no rio São Francisco, no entanto, nos últimos anos segundo relatos de alguns moradores, é possível notar uma alteração no ciclo das águas, o que tem causado danos à produção alimentar.

Além da alteração no ciclo das águas, sendo praticamente escassas as chuvas, os ribeirinhos têm que enfrentar as construções de barragens ao longo do Alto-Médio do Rio São Francisco, que tem prejudicado as plantações nas vazantes, uma vez que “soltar a água represada” interfere no plantio e muitas vezes ocasiona prejuízos às suas produções.

O ato de plantar nas beiras e ilhas do Rio São Francisco é uma função para além do âmbito econômico, é possível notar nas falas dos vazanteiros que estar no rio no exercício diário da agricultura de vazante e pesca abarca também relações de vizinhança e compadrio entre os membros da comunidade. O processo de apropriação do espaço-rio pelo ribeirinho deixa em evidência a relação intrínseca entre homem e natureza, no qual se constrói uma identidade que segundo Haesbaert,

trata-se de uma identidade em que um dos aspetos fundamentais para a sua estruturação está na alusão ou referência a um território tanto no sentido simbólico quanto concreto. Assim a identidade social é uma identidade territorial quando o referente simbólico central para construção desta identidade parte do ou transpassa o território (HAESBAERT, 1999, p. 178).

Essas identidades se efetivam na apreensão do mundo, o espaço inato enquanto ambiente natural torna-se uma teia de significados que se constroem no convívio com o lugar enquanto ambiente cultural do cotidiano, das tradições inventadas ao longo do tempo. O que confirma com Haesbaert,

Todas as identidades estão localizadas no tempo e no espaço simbólico. Elas têm aquilo que Edward Said chama de suas “geografias imaginárias”: suas “paisagens” características, seu senso de lugar, de casa/lar, de heimat, bem como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas (...) (HAESBAERT, 1999 p. 179).

Ao “habitar” e cultivar o rio, o vazanteiro se junta ao processo de formação do território e se torna um componente primordial na paisagem cultural que segundo Bunkse apud Holzer “é a expressão da mente humana e da evolução da natureza, numa conexão recíproca e indissociável” (BUNKSE apud HOLZER, 1999, p. 157 (Evitar apud, é uma artigo de periódico, ir na fonte original)). Dessa forma (Forma, Função, Processo e Estrutura, categorias de análise, não devem ser utilizadas como no senso comum), a relação entre organismo e ambiente é uma propriedade emergente do processo de desenvolvimento da evolução, de modo que o espaço-rio se transforma em lugar de intermédio entre o barqueiro e o Mundo da Vida.

Em Primeiras Estórias (2001) no conto A Terceira Margem do Rio, Guimarães Rosa, através da metáfora do “eu rio-rio rio”, posteriormente transformado em música por Milton Nascimento e Caetano Veloso é possível perceber que o barqueiro se transforma em uma nova margem através de uma fusão cosmológica entre homem e meio “oco de pau que diz: Eu sou madeira, beira...Meio a meio o rio ri por entre as árvores da vida. O rio riu, ri por sob a risca da canoa, ouvi ouvi ouvi a voz das águas...Tora da palavra, rio pau enorme, nosso pai”[3]. É o barqueiro que dá a vida ao rio e o rio que dá a vida ao barqueiro em uma simbiose constante que efetiva o poder do laço territorial entre ambos.

Quando eu chego aqui, o rio está parado, vazio. Vez ou outra aparece algum pescador. Eu pesco, e também planto na vazante, eu sou vazanteiro. Logo começa o movimento, e ai o rio fica colorido, gente de uma lado e de outro, na vazante.. Mas eu acho bonito o que faço. Uma vez uma senhora chegou e eu não estava, estive doente esse dia, noutro dia quando veio e disse que achou estranho, que as águas do rio sentiu minha falta, disse que parecia que faltava alguma coisa no rio. O rio é parte de mim e eu sou parte dele (Sr. Juarez – vazanteiro do Quilombo de Bom Jardim da Prata).

O laço territorial revela que o rio enquanto lugar está investido não somente em valor econômico, mas em valores espirituais e afetivos. Pode-se dizer que o território cultural precede o território político e econômico. O rio é mais que um lugar de trabalho, é um lugar que ele encontra satisfação, assim as atividades simbólicas lhe concedem existência, cuja o Onde determina o Ser, porque o Ser significa presença (HEIDEGGER apud SANTOS, 2001, p. 60). Quando os vazanteiros se deslocam para as vazantes é comum saudar as águas e agradecer pelo “pão”.

É no interacionismo simbólico de cada plantio que a vida acontece, são nos caminhos das águas que o mundo se apresenta para os agricultores enquanto organismo vivo. João Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas afirma que a vida acontece na travessia e quando o vazanteiro constrói laços afetivos com rio, esse se torna uma terceira margem (ARAÚJO, 2013), faz um paralelo metafórico das fases que o sujeito tem que atravessar e que são primordiais para o bem viver, para superar as adversidades do mundo e existir no mundo e o cultivar e permanecer no rio.

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mais vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?” (ROSA, 1994, p.51).

O cultivo das vazantes é o intermédio entre o vazanteiro e o mundo da vida, ele acaba se tornando uma pessoa integrante do organismo vivo, um sujeito agente no mundo, através da sociabilidade que se cria (COSTA apud INGOLD, 2011). Na Figura 03 é possível observar a socialidade durante a travessia.


Figura 3
Agricultura de vazante
(Relatório Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica, Ambiental e Sóciocultural da Comunidade Remanescente do Quilombo Bom Jardim da Prata – São Francisco/MG (Unimontes e INCRA, 2015).

A concepção de sujeito no mundo, está na apropriação do lugar construído nas relações sociais que se estabelecem, nas relações de amizade e compadrio que se criam no cotidiano da travessia. Quanto mais intensa essas relações, mais densa é a socialidade. Ingold define a socialidade dessa relação:

“Como imanente ao campo dentro de cada vida humana e inaugurada mediante a qual procura-se completar, desse modo, a socialidade é o potencial gerador de um campo relacional, na qual todo ser humano cresce e tem como premissa o ativo engajamento do ser no mundo. Dentro do movimento da vida social, nos contextos de entrosamentos práticos uns com os outros, e com os seres não humanos, é que formas institucionais são geradas, inclusive aquelas que usam o nome de sociedade”. (INGOLD, 2003 p. 127-128).

Ao analisar as narrativas do Sr. Juarez, foi possível compreender o quão estreitos são os laços de amizade que se criaram entre eles, assim como os pescadores, quanto entre ambos e o rio.

Olha moça, viver da vanzante não é fácil, mas é bom. Daqui tiro parte do sustento, aqui tenho compadres. As vezes essas margens ficam movitadas, é gente pescando, é gente que planta, é gente que vai para a cidade resolver os problemas que não dá para resolver aqui. Eu gosto de plantar, é bom ter alimento fresco.

Durante o plantio, nós conta causos, fala sobre as coisas da vida, se estão boas ou ruins. Se estão boas, a gente sorrir, se estão ruins pedimos a Deus melhorar. (Sr. Manoel, morador da comunidade Bom Jardim, 42 anos).

Cada um deles no decorrer do cotidiano se torna amigo do rio. Assim todos os seres viventes e não viventes dão existência a uma comunidade entre margens, mesmo que essa esteja em um território mutável em função do cotidiano e suas especificidades, materializada no plantio. A vazante é o principal elemento do trabalho, e também o que torna possível a vida em movimento no espaço do rio. Muitas pessoas procuram os alimentos produzidos nessas áreas por conta da qualidade, entre eles o milho fora de época, melancia de abóbora.

De acordo com Ingold (2012), na vida cotidiana participamos na coisificação do mundo, pois há um precedente da visão da coisa como reunião em um lugar onde as pessoas se interagem para resolver suas questões pessoais e cada uma tece um fio no mundo. Os aconteceres que se entrelaçam, formam uma malha de crescimento e movimento em um espaço vital.

Nessa perspectiva, barqueiro, barco, rio, objetos, pessoas e travessias se unem na coisificação do rio enquanto lugar no qual os sujeitos do rio se integram com mundo urbano e rural, onde “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispões para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1994, p.51).

Considerações finais

Foi percebido, durante a execução desse trabalho, a dinâmica vital do Rio São Francisco na perspectiva das diversas formas de inter-relações entre homem e meio. O homem, como ser social molda o espaço transformando em lugar, vivência múltiplas territorialidades, nota-se uma integração entre homem e meio natural que se dá além da função econômica.

No convívio cotidiano com o rio, o vazanteiro conecta trabalho com o lazer, mas o trabalho é de suma importância para a subsistência da unidade familiar e demais membros da comunidade. Muitos compradores preferem as hortaliças produzidas nas vazantes devido a relação custo-benefício, por serem mais saudáveis e, principalmente por terem criado um vínculo de compadrio entre os membros das comunidades. As relações socioambientais e socioculturais se dão por meio de simbiose entre os sujeitos e o rio.

Cultivar a terra é importante para o mundo. Interagir com o meio natural é ir além da perspectiva ambiental, é compreender e apreender o mundo. Para as pessoas que são atravessadas todos os dias pelo o barqueiro é primordial esse movimento da vida no rio e além desse. O mundo é mais que uma conexão de lugares, é mais que um deslocamento entre o urbano e o rural. No viver entre as margens é que a dinâmica do existir se configura, as pessoas não imaginam o rio sem o vazanteiro, como relata o Sr. E, eles reconhecem o quão o seu trabalho é importante para essas pessoas do rio, para as comunidades rurais.

É na vazante que se constitui um emaranhamento de fios que dão ao rio e as pessoas um dinamismo vital. Cada plantio é único, e é essa diversidade de pessoas oriundas das comunidades rurais, através do vai-e-vem das terras firmes, faz com que as coisas aconteçam e perpassam a história.

Espera-se que as informações pautadas nesse trabalho tenham contribuído para um maior conhecimento de como é a vida nas comunidades entre margens de rios e suas dinâmicas e como é realizada a agricultura na vazante, cuja a interação entre homem e o meio se apresenta como um ambiente diverso que merece ter uma maior visibilidade dos demais habitantes do município, enquanto valorização e manutenção da função do vazanteiro no seu lugar, bem como na preservação socioambiental do rio. É nesse contexto que a reprodução sociocultural é propagada, que as identidades dos povos e comunidades ribeirinhas são preservadas e o ambiente é sustentavelmente conservado.

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Notas

[1] IBGE Cidades@. O Brasil Município por Município. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em . Acesso em 29 de Abril de 2016.
[2] [2] “Lameiros”: são as áreas compostas por lama fértil após o período das cheias dos rios, no qual as margens do rio e ilhas ficam cobertos por húmus.
[3] Música A Terceira Margem do Rio de autoria do Milton Nascimento, na voz de Milton Nascimento e Caetano Veloso, Disponível em www.letras.mus.com.br. Acesso em Maio, 2016.
Mariana Aparecida Farias Almeida É Graduada em Geografia pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Atualmente é Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).

Endereço: Campus Universitário Prof. Darcy Ribeiro, Av. Prof. Rui Braga, s/n - Vila Mauriceia, Montes Claros - MG, 39401-089.

Kaline da Silva Moreira É Graduada em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente é Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).

Endereço: Campus Universitário Prof. Darcy Ribeiro, Av. Prof. Rui Braga, s/n - Vila Mauriceia, Montes Claros - MG, 39401-089.



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