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Aroldo de Azevedo: breve biografia e algumas considerações de natureza epistemológica da obra didática O Mundo em que vivemos
Aroldo de Azevedo: Brief biography and some epistemological considerations of the textbook O Mundo em que vivemos
Aroldo de Azevedo : Courte biographie et quelques considérations épistémologiques au régard du manuel scolaire O Mundo em que vivemos
Revista Cerrados (Unimontes), vol. 19, núm. 02, pp. 485-507, 2021
Universidade Estadual de Montes Claros



Recepción: 01 Julio 2021

Aprobación: 07 Octubre 2021

Publicación: 15 Noviembre 2021

DOI: https://doi.org/10.46551/rc24482692202135

Resumo: Aroldo de Azevedo foi um importante autor de livros didáticos de Geografia, cuja produção mais significativa ocorreu entre as décadas de 1940 e 1970. Suas obras foram amplamente adotadas nas escolas brasileiras, e o autor gozava de muito prestígio tanto no meio acadêmico quanto no meio escolar. Neste artigo, fruto de pesquisa mais ampla, apresentamos a biografia do autor e breve inventário de sua produção. A leitura de uma de suas obras de grande difusão, intitulada O Mundo em que vivemos, da década de 1960, possibilita interpretar alguns trechos, em que o autor revela certas posturas consideradas elitistas, bem como equívocos conceituais acerca do possibilismo e do determinismo geográfico. Na perspectiva do paradigma indiciário, com base em pesquisa documental, foi observada a apresentação de um texto didático de excelente qualidade técnica. Contudo, a despeito de ser obra destinada a fim escolar, para um público leitor em processo de formação acadêmica básica, sua qualidade técnica obnubila seu fim escolar e escamoteia sua mensagem ideológica elitista.

Palavras-chave: Currículo, Livro didático, Possibilismo, Determinismo.

Abstract: Aroldo de Azevedo was an important author of geography textbooks, whose most significant production took place between the 1940s and 1970s. His works were widely adopted in Brazilian schools, and the author enjoyed a great deal of prestige both in academia and in school. In this article, result of more extensive research, we present the author's biography and a brief inventory of his production. The reading of one of his widely disseminated works, entitled "O Mundo em que vivemos" – The World in which we live, 1960s decade, makes it possible to interpret some passages, in which the author reveals certain postures considered elitist, as well as conceptual mistake about possibilism and geographic determinism. In the perspective of the indiciaire paradigm, based on documentary research, the presentation of a didactic text of excellent technical quality was observed. However, despite being a work intended for school purposes, for a reading public in the process of basic academic training, its technical quality obscures its school purpose and conceals its elitist ideological message.

Keywords: Curriculum, Textbook, Possibilism, Determinism.

Résumé: Aroldo de Azevedo fut un auteur important de manuels scolaires de géographie, dont la production la plus importante a eu lieu entre les années 1940 et 1970. Ses œuvres ont été largement adoptées dans les écoles brésiliennes et l'auteur jouissait d'un grand prestige aussi bien dans les universités que dans les écoles. Dans cet article, fruit d'une recherche plus large, on présente la biographie de l'auteur et un bref inventaire de sa production. La lecture d'un de ses ouvrages largement diffusés, intitulé « O Mundo em que vivemos » – Le Monde dans lequel nous vivons, des années 1960, permet d'en interpréter quelques extraits, dans lesquels l'auteur révèle certaines postures jugées élitistes, ainsi que des équivoques conceptuelles sur le possibilisme géographique et le déterminisme. Du point de vue du paradigme indiciaire, basé sur la recherche documentaire, la présentation d'un manuel scolaire d'excellente qualité technique a été observée. Cependant, bien qu'il s'agisse d'un ouvrage à vocation scolaire, destiné à un lectorat en voie de formation académique de base, sa qualité technique bouleverse sa vocation scolaire et recele son message idéologique élitiste.

Mots clés: Curriculum, Manuel scolaire, Possibilisme, Déterminisme.

Introdução

O livro didático é considerado “obra complexa”, dadas as suas características de produto editorial em constante atualização técnica, de ser apontado como veículo de transmissão ideológica e, entre outras propriedades, de ter grande influência na configuração da cultura escolar. Ele é um veículo de destaque, pois, em grande parte, influencia a seleção de conteúdos que ocorrem no cotidiano escolar das redes públicas e privadas de ensino. Nesse sentido, a investigação proposta tem por objetivo produzir uma leitura acerca de excertos escolhidos do livro didático O Mundo em que vivemos. A escrita empregada nessa obra, creditada a Aroldo de Azevedo, e apresentada aqui em trechos específicos, evidencia algumas concepções de ciência e de sociedade do autor e/ou do corpo editorial, que também é responsável pela publicação da obra.

A esse tocante, servimo-nos do paradigma indiciário, método de investigação de tipo hermenêutico, oriundo da História, cuja fundamentação se baseia na interpretação de sinais, símbolos, indícios e demais elementos conjuntivos, visando à construção do sentido do objeto investigado.

Em linhas gerais, os fundamentos desse paradigma remetem à publicação de relatos de crítica proferidas pelo médico e especialista de arte italiano Giovanni Morelli entre 1874 e 1876, cuja técnica investigativa de atenção aos detalhes e pormenores de obras artísticas consagradas rendeu-lhe, à sua época, a distinção precisa de obras de arte originais e copiadas, levando à reorganização de exposições em vários museus da Europa (GINZBURG, 2016).

Partindo do pressuposto de que os falsários de obras de arte prestavam muita atenção a características mais chamativas de obras consagradas (como olhares, sorrisos ou paisagens) e não davam a mesma atenção a detalhes que poucos observariam, Morelli compreendeu que a chave para a descoberta da autenticidade estava nos detalhes ignorados, nos pormenores, ou seja, nos signos pictóricos que estão visíveis, mas que só os mais atentos observam.

Assim, o paradigma indiciário propõe a observação de pequenas pistas que permitam capturar uma realidade mais profunda e, até então, desconhecida ou inatingível de determinado fenômeno observado. A fim de proceder à investigação proposta, o currículo foi tomado como objeto cultural que representa uma dimensão da cultura escolar na medida em que a escola produz uma cultura original que perpassa a cultura social mais ampla, como apontam Chervel (1990) e Goodson (1997), e também como campo de disputas político-ideológicas, como aponta Apple (1989).

O que a biografia de Aroldo de Azevedo nos revela

Se não chegou a ser um dos precursores da Geografia escolar no Brasil, Aroldo Edgard de Azevedo imprimiu seu nome no rol dos grandes mestres dessa disciplina. Dono de uma trajetória singular, oriundo de tradicionais famílias paulistas[1], Aroldo dedicou boa parte de sua carreira a escrever livros didáticos de Geografia, embora atuasse como professor no Ensino Superior.

De acordo com Santos[2] (1984, p. 8-9), em uma apresentação de editores sobre o autor, retirada de um de seus livros, o professor Aroldo nasceu na cidade de Lorena, São Paulo, em 1910. Iniciou naquela cidade os seus estudos primários, tendo-os completado na cidade do Rio de Janeiro, onde residiu de 1919 a 1934. Durante sua estadia no Rio de Janeiro, fez um curso preparatório no Instituto La Fayette, prestando exame de ingresso ao Colégio Pedro II. Com 21 anos, diplomou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela então Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Em 1935, Aroldo de Azevedo transfere-se para a capital paulista, onde constitui família. Apesar de sua formação em Direito, decide fazer Geografia e licencia-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCLUSP) em 1939, onde passa a lecionar Geografia do Brasil em 1942.

Prossegue Santos[3], assinalando que

Atraído pelo magistério, a ele se dedicou desde 1931. Foi professor do antigo curso secundário por vários anos, em diversas escolas de São Paulo, consideradas de elite, na época: Des Oiseaux, N. Sra. do Sion, Colégio Universitário da USP etc. Desde 1936 ensinou Geografia para o curso superior, sucessivamente na Faculdade de Ciências Econômicas de São Paulo, Sedes Sapientae, Universidade Católica de Campinas e FFCLUSP. Foi, ainda, diretor do Instituto de Geografia – IG da USP, de 1963 a 1967, além de membro efetivo e presidente de honra da Comissão Nacional do Brasil da União Geográfica Internacional – UGI. Faleceu em 1974, na capital paulista, aos 64 anos de idade.

Tratava-se de um homem erudito e bem versado em vários campos do conhecimento, como não poderia deixar de ser, dada a sua posição social. Segundo Santos[4], Aroldo de Azevedo foi um homem proveniente da elite paulista de sua época, a saber, o período entre o fim do Segundo Reinado e a Primeira República (aproximadamente entre 1880 e 1930). Era neto, do lado paterno, de Antonio Rodrigues de Azevedo, o Barão de Santa Eulália, rico cafeicultor do Vale do Paraíba paulista e político da então província de São Paulo, no tempo do Segundo Reinado. Pertencia, naturalmente, ao Partido Conservador.

O pai de Aroldo, Arnolfo Rodrigues de Azevedo, foi um proeminente parlamentar da Primeira República, na época da política que ficou conhecida como “café com leite”, dada a alternância de poder entre São Paulo e Minas Gerais. Arnolfo foi, sucessivamente, acadêmico de Direito, político municipal, deputado estadual e senador, além de progressista fazendeiro. Foi afastado da política na Revolução de 1930, que conduziu Getúlio Vargas ao poder e pôs termo à política da Primeira República. Ele apoiou, posteriormente, a fracassada Revolução Constitucionalista de 1932. Os fatos de sua vida são narrados em cinco documentos biográficos produzidos por Aroldo.

Sua mãe também provinha de família abastada e tradicional. Ela era filha do urbanista Ignácio Cochrane, este oriundo de antiga estirpe paulista e monarquista, cujas origens podem ser remontadas aos tempos coloniais e cujos descendentes destacaram-se como embaixadores, diplomatas e em altos postos em cargos públicos. Aroldo apreciava sua ascendência, externando orgulho em suas obras biográficas. Conforme enuncia Santos,

É evidente que essa preocupação do autor em sistematizar esses relatos familiares, cujos textos se repetem, por muitas vezes, as mesmas informações, busca recuperar, no final das contas, a sua ascendência rural-aristocrata. Reflete, assim, a classe socioeconômica a que pertenceu e detém um explícito cunho elitista que, sob várias formas, deve ter influído em suas atividades sociais, no seu pensamento, na sua obra [...] Todos os elementos biográficos apresentados parecem conduzir o autor a uma determinada postura elitista (grifo nosso).[5]

Naturalmente, qualquer análise que se faça da obra de Aroldo de Azevedo, como a de Santos (1984), que tomamos por referência, deve levar em conta sua origem aristocrática e considerar que isso se reflete em sua obra. Afinal, não seria conveniente a uma análise dissociar o autor de sua produção. É admissível iniciar a análise considerando que Aroldo e sua produção são frutos da sua época, da sua destacada (e privilegiada) posição social, do meio e dos valores em que foi criado e da educação, familiar e institucional, que recebeu.

No tocante à produção do professor Aroldo, é mister destacarmos, de acordo com levantamento feito por Santos[6], que ela abrange o período de 1934 a 1974, perfazendo o total de 127 livros, dos quais 97 são de nível superior e 30 referentes a livros didáticos para o Ensino Médio. Essas 97 produções correspondem a comentários, artigos, livros e coletâneas. A maior produção de Aroldo ocorreu na década de 1950, a saber, 45% do total dos 97 documentos para o nível superior. Curiosamente, apenas 4 desses 97 documentos são relacionados diretamente à Geografia Física, contra 93 voltados a questões socio-humanas e de Geografia Humana, com destaque para os estudos urbanos, que correspondem a 30 documentos ao longo de sua carreira.

A temática urbana destacou-se na produção do professor Aroldo e representa 31% em relação ao total de sua produção para o nível superior. Ele ainda versou sobre outros temas da Geografia, como Ensino, Pensamento e Método, Geografia Regional, Geografia Econômica etc. Em relação aos livros didáticos, revela Santos (1984) que sua produção foi parte importante da obra de Aroldo, dada a extensão temporal – de 1934 a 1974 – e pelo número de edições e exemplares publicados. Durante esse período, foram editados 30 livros de Geografia, lançados no mercado editorial em sucessivas edições até 1980, sempre pela Editora Companhia Nacional, de São Paulo.

Especificamente sobre os livros didáticos do professor Aroldo, Santos[7] avalia (embora eles não sejam o escopo de seu trabalho, como bem frisa) que uma simples leitura deles mostra haver um grande distanciamento entre os textos e a clientela a que se destinam, isto é, a alunos do Ensino Médio. Tais textos, em seu entender, enfatizam muito mais os aspectos científicos do que os propriamente didáticos, tornando o ensino deveras maçante, abstrato e de difícil compreensão. Tratar-se-ia, desse modo, muito mais de uma transplantação de um conteúdo acadêmico do que de uma adequação da ciência de referência ao universo escolar, no tocante às finalidades dessa etapa de ensino.[8]

Embora Aroldo utilize, eventualmente, uma linguagem mais tendente à academia, conforme observamos em nossa análise, tendemos a não concordar totalmente com Santos (1984) a esse respeito. Em nossa avaliação da obra O Mundo em que vivemos, consideramos que Aroldo de Azevedo procurou trazer qualidade técnica aos seus conteúdos, recorrendo, se preciso fosse, a autoridades acadêmicas para lhe dar aporte. A despeito das críticas que se lhe possam dirigir sobre seu elitismo ou sobre seu quase silêncio a respeito de temas que envolvem a organização social, não se pode negar que os conteúdos veiculados primam pela precisão conceitual, mesmo que esses conteúdos não dialoguem imediatamente com o universo escolar.

Algumas vinculações teórico-metodológicas de Aroldo de Azevedo

Elegemos o paradigma indiciário como metodologia mais viável para a busca de sinais e indícios a respeito das concepções de ciência e de sociedade no livro didático de Aroldo de Azevedo, O Mundo em que vivemos, publicado para o nível de ensino correspondente ao Ensino Médio, conforme a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

Com base no paradigma indiciário, a leitura da obra de Aroldo de Azevedo possibilitou, por exemplo, observar que a adesão explícita do geógrafo ao procedimento indutivo de produção de conhecimento, fiel à tradição de seu grande inspirador, Paul Vidal de La Blache, percorre o conteúdo de seu texto escolar de forma a ofuscar uma adesão mais evidente das correntes pedagógicas em evidência em sua época, até mesmo a despeito da forte influência do professor e escritor de obras didáticas e adepto das ideias da Escola Nova, Delgado de Carvalho.

O professor Carlos Miguel Delgado de Carvalho, catedrático do importante Colégio Pedro II e prolífico autor de livros didáticos de Geografia, foi, possivelmente, o primeiro autor a se dedicar à produção de obras didáticas de Geografia genuinamente brasileiras, encerrando a era dos pastiches franceses utilizados nas salas de aula (PONTUSCHKA ET AL., 2007, p. 46-47). A vinculação de Aroldo de Azevedo a Delgado de Carvalho foi apontada por Issler (1973, apud SANTOS, 1984, p. 19-20[9]), bem como a possível inadequação de linguagem de Aroldo ao público escolar:

O período em que vigorou a reforma Capanema, de 1942 a 1962, foi a época de maior repercussão dos livros didáticos de Geografia de autoria do prof. Aroldo de Azevedo [...]. O trabalho [...] se caracteriza por uma renovação nos padrões gráficos de apresentação dos conteúdos geográficos, seguindo a linha pioneira de Delgado de Carvalho. [...] Os trabalhos do prof. Aroldo de Azevedo, muito embora elaborados em linguagem didaticamente adequada aos níveis de escolaridade a que se destinavam, filiam-se muito mais ao espírito da Geografia como ciência, do que como conteúdo geográfico voltado para intenções pedagógicas. Seu apego e devoção ao espírito da ciência geográfica, inspirado nos grandes autores deste século[10] [...] levou-o a produzir obras cujo maior mérito foi o de divulgar a Geografia sem fazer concessões a exageros ou fantasias. Essa tendência predominou sobre o possível tratamento que as obras poderiam ter recebido no sentido de tornarem mais prático e menos textual o ensino de Geografia.

O próprio Aroldo de Azevedo não poupa elogios a Delgado de Carvalho e destaca o seu papel pioneiro na Geografia brasileira, como fica evidenciado neste trecho selecionado por Santos[11]:

[...] nesse período, a figura central, a grande personalidade da Geografia brasileira foi, sem a menor dúvida, o ilustre professor Carlos Delgado de Carvalho. Todas as vezes que leio suas obras, escritas nessa época, maior se torna minha admiração por esse grande brasileiro, já por todos proclamado o pioneiro da moderna Geografia no Brasil (grifo do autor).

Os dois trechos transcritos evidenciam a influência que as obras didáticas precursoras e vanguardistas de Delgado de Carvalho exerceram sobre Aroldo de Azevedo. Porém, há uma diferença fundamental entre esses dois autores que é preciso destacar: Delgado de Carvalho era claramente adepto do movimento Escola Nova (ALBUQUERQUE, 2011, p. 20), movimento este que, como se sabe, aspirava a proporcionar aos alunos uma educação prática, voltada para a vida, partindo do meio vivido e das condições dos educandos.

Aroldo, por seu turno, não estava vinculado ao movimento Escola Nova. Apesar de concordar com a importância de estudar os temas brasileiros (conhecimentos mais vinculados à realidade), subsidiado pelo estudo preliminar da Terra, conforme torna manifesto no prefácio da obra O Mundo em que vivemos[12], sua formação aristocrática e altamente formal não lhe permitia – talvez – conceber um método de ensino que visasse a uma educação prática ou que tivesse o enfoque no desenvolvimento e aprimoramento das atividades cotidianas. O rigor do formalismo parece impedir-lhe de assim pensar. A visão de mundo dele e dos intelectuais universitários provindos dos antigos grupos oligárquicos dos quais ele mesmo saíra era elitista, conservadora e autoritária, no que concerne ao trato das questões culturais e educacionais correlacionadas ao país, à sociedade e ao povo brasileiro.[13] Visão bem ao contrário, portanto, do ideário progressista, emancipador e autonomista da Escola Nova.

Outro ponto importante a levarmos em conta na análise das obras do professor Aroldo é sua adesão à escola francesa de Geografia[14], de Paul Vidal de La Blache, e ao positivismo. Essa adesão não é intencional: parte significativa da Geografia brasileira das primeiras décadas do século XX esteve sob a influência direta da escola francesa tradicional, de orientação lablachiana, sobretudo a Geografia desenvolvida na Universidade de São Paulo, de onde ele foi egresso e posteriormente docente; quanto ao positivismo, destacamos a assertiva de Santos acerca do momento histórico de Aroldo:

[...] no Brasil, a escola tradicional é de tendência positivista-funcionalista[15] [...]. Na prática geográfico-científica, o método é empírico, mas a base é dada pelo positivismo e pelo funcionalismo. Outros elementos constituintes desse modelo, tais como o espírito liberal, a crença no papel da ciência para a solução dos problemas da realidade, o esquema sintético, classificatório e principista, além da busca da neutralidade científica e o pragmatismo levando a Geografia a uma ciência técnica, também podem ser enquadrados no tripé positivismo-funcionalismo-empirismo.[16]

Essa pretensa neutralidade fica evidente quando observamos a pouca correlação feita entre os conteúdos e o contexto histórico vivido pelo autor, isto é, a não vinculação do que está no texto com o que ocorre no mundo concreto. Assim, ao tratar de conteúdos de Geografia Física, por exemplo, Aroldo não aborda temas como alagamentos ou deslizamento de encostas, consequências diretas do excesso de chuvas, que acarretam enormes transtornos – quando não tragédias – e que ocorrem, normalmente, nas áreas mais pobres das cidades, atingindo de forma mais drástica as populações mais vulneráveis (principalmente do ponto de vista econômico). Ele apenas discorre sobre a chuva, sem a vincular às possíveis consequências para os homens.

No exemplo da Figura 1, Aroldo discorre a respeito dos conceitos de umidade atmosférica, saturação do ar e formação de nuvens, e após isso apresenta os tipos de nuvens existentes. A partir dessas premissas, principia a explicar as formas de precipitação atmosférica, as quais ele divide em dois tipos: as da superfície terrestre, isto é, orvalho e geada, e as das alturas, isto é, o granizo, a neve e a chuva. Aroldo dá destaque para as chuvas, não oferecendo maiores explicações a respeito das outras formas de precipitação atmosférica (isto é, orvalho, geada, granizo e neve). Todavia, uma possível correlação entre chuvas e problemas socioambientais não é sequer cogitada, nem nas páginas em destaque nem nas seguintes. É um claro indício da prática de uma Geografia separatista e descritiva, que já fora anteriormente criticada por autores como Delgado de Carvalho.


Figura 1
Formação da chuva e climas da Terra
AZEVEDO, Aroldo de. O Mundo em que vivemos. 5ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

Reforcemos, a título de esclarecimento, que a crença na neutralidade das ciências, grosso modo, e da Geografia, em particular, é uma das tônicas da obra analisada do professor Aroldo. Isso é facilmente verificável na sua pouca iniciativa de tecer críticas aos problemas sociais – com pequenas exceções – que assolavam a sociedade brasileira da sua época (que não deixam de ser, de certa forma, os mesmos que se veem hoje, porém mais agravados com a questão da violência urbana e da cada vez maior concentração de renda). Além disso, verificamos trechos, como na Figura 2, que revelam sua visão elitista do mundo. Santos[17] sustenta que o discurso racista é um elemento constante nas obras de Aroldo.


Figura 2
A vida humana
AZEVEDO, Aroldo. O Mundo em que vivemos. 5ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

No trecho selecionado da Figura 2, Aroldo divide os povos em graus de civilização. Chama os menos civilizados de selvagens ou primitivos, que conhecem somente as formas mais rudimentares de cultura. Os semicivilizados, ou bárbaros, são aqueles que possuem, a seu entender, algumas atividades culturais: o respeito à família, a profissão de alguma fé religiosa – politeísta ou monoteísta –, a busca pelo aprimoramento da linguagem e pela instituição de leis e, ainda, um governo organizado.

A categoria “civilizados” abrange aqueles povos cuja cultura alcançou as mais altas manifestações. Para Aroldo, as mais altas manifestações compreendem fortalecer e honrar a instituição da família, adotar as religiões mais puras e perfeitas – preocupando-se em difundi-las –, aperfeiçoar ao máximo a língua e a literatura, cultivar tradições populares, codificar leis a fim de torná-las mais sábias e humanas, preocupar-se em encontrar a forma ideal de governo, em benefício do país e de seu povo, e preocupar-se em estender a todos a instrução e a educação.

Na primeira coluna da página 146 já é possível notar os traços que distinguem os civilizados dos não civilizados, na visão do autor. Enquanto os selvagens não dispõem de leis para a ordem social, os bárbaros já possuem algumas, ainda que incompletas ou limitadas. Os civilizados é que disporiam das leis as mais elaboradas e acabadas para uso em sua sociedade e, por que não, para a tutela dos não civilizados. Chama a atenção, igualmente, o trecho em que ele diz serem as religiões dos povos civilizados as mais puras e perfeitas, cabendo-lhes a sua difusão. Ora – podemos nos questionar –, e o que seria uma religião mais pura e perfeita, em relação a religiões praticadas por povos considerados atrasados? Aroldo não chega a apontar que religião é essa, mas fica explícito que a religião do civilizado deve se impor à do não civilizado.

Porém, o trecho mais chamativo é aquele em que Aroldo assim diz, no penúltimo parágrafo da segunda coluna da página 146:

Todavia, em muitas regiões do Mundo e mesmo no interior de nossas fronteiras, milhões de homens ainda desconhecem, parcial ou totalmente, as mais elevadas manifestações do espírito humano. Mongóis e árabes da Ásia, esquimós e ameríndios, povos primitivos da África e da Oceânia (sic) estão em tal caso. Cumpre levar-lhes nossa civilização e nossa cultura (grifo nosso).

Evidentemente, nosso momento histórico atual não mais permite inferências tão explícitas como a que está em destaque no trecho, por portar uma visão elitista e imperialista, e talvez até maniqueísta, do que é civilização e cultura. Poderíamos nos questionar o porquê de termos de levar nossa civilização e nossa cultura àqueles que cultivam outras tradições. Essa obsessão de Aroldo em destacar a superioridade da cultura ocidental frente a outras culturas – asiática, árabe, ameríndia, africana – e de levá-las aos menos favorecidos faz-nos recordar, guardadas as devidas proporções, as missões religiosas dos séculos XVI, XVII e XVIII, que partiam a aculturar e a tutelar o gentio das terras desbravadas pelos povos europeus.

Esse é um trecho que denota a visão elitista do professor Aroldo. Quando ele pugna a necessidade de expansão da “nossa civilização e nossa cultura” (no caso, a cultura ocidental) sobre os povos considerados menos afortunados, ele expõe a seu público – alunos do Ensino Médio – uma visão de mundo bastante particular, baseada na sua formação e nos seus valores pessoais. Afinal, quem de nós está habilitado, em um exercício de comparação, a julgar uma cultura inferior à outra a ponto de intentar substituí-la pela sua?

Na Figura 3, nas páginas 148 e 149 do livro, Aroldo deixa explícita sua rejeição ao determinismo geográfico e sua total adesão, em tom claramente dogmático, ao possibilismo que é costumeiramente atribuído à escola lablachiana de Geografia:

A partir do século XIX, muitos pensadores ilustres exageraram tais influências, chegando a afirmar que o meio natural determinava de maneira imperiosa a própria maneira de viver e o próprio destino dos povos. Essa doutrina, chamada determinismo geográfico, não pode mais ser aceita hoje. [...] Seria negar a evidência considerar o homem uma pobre vítima do meio que o cerca. Tudo depende das possibilidades de que dispunha ou com que venha a contar. É essa a doutrina chamada possibilismo geográfico, que os modernos não podem deixar de aceitar e de reconhecer como a verdadeira (grifo nosso).


Figura 3
O possibilismo geográfico
AZEVEDO, Aroldo. O Mundo em que vivemos. 5ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

A questão determinismo versus possibilismo é um dos pontos mais controversos da Geografia. Não é incomum aprendermos, nos cursos de graduação, que existe uma dicotomia entre a abordagem determinista, em que o meio físico tem papel fundamental no desenvolvimento das sociedades humanas, no sentido de limitar-lhes as ações e fixar-lhes os rumos da existência, e entre a abordagem possibilista, em que o homem, enquanto ser dotado de cultura e capaz de produzir técnicas, moldaria o meio físico de modo a domesticar a natureza, sujeitando-a às suas necessidades.

Santos (2004, p. 32)[18] argumenta, em contraponto a essa ideia simplista, que “as noções de determinismo, de região, de gênero de vida, de áreas culturais, aparentemente inocentes e disparatadas, seguem todas a mesma direção”. O que isso quer dizer? Que, na verdade, a dicotomia entre determinismo (comumente ligado à vertente alemã) e possibilismo (ligado à vertente francesa, notadamente lablachiana) é falsa. Para o autor, a noção de determinismo não suprime a ideia de possibilidade; ao contrário, ela a reforça.[19] Ou seja: o meio físico tem influência sobre os homens, mas não a ponto de lhes ditar o modo de agir; igualmente, o homem tem condições de atuar e transformar a natureza, embora ele não possa controlar todas as forças naturais, tendo de se adaptar às circunstâncias e usá-las a seu favor. É uma moeda de duas faces. A frase empregada pelos possibilistas para expressar a ideia central da base filosófica possibilista, de acordo com Bernardes (1982, p. 397) foi: “a natureza dá as cartas, o homem faz o jogo”.

A esse respeito, Carvalho Junior e Moraes Sobrinho (2017, p. 168-170)[20] afirmam, em consonância com Santos, que o determinismo ambiental não é de modo algum contrário ao possibilismo. Sobre esse conflito, os autores sustentam que críticas mais severas a essa falsa dicotomia emergiram a partir dos anos 1950, ganhando mais difusão a partir nos anos 1960, quando alguns autores, como Lewthwaite (1966); Martin (1955); Speth (1978); Spate (1952); Peet (1985; 1993) e Montefiori (1955), escreveram artigos para demonstrar a fragilidade de sustentá-la com base em pressupostos antinômicos e suscitar novos debates a esse respeito.

Considerando que o livro O Mundo em que vivemos é da década de 1960, e que Aroldo era um homem da universidade, fica claro que ele ignorou (não sabemos se por desconhecimento ou orientado pelo dogmatismo) os debates acadêmicos que ocorriam a respeito da querela determinismo/possibilismo. Aroldo preferiu, por seu turno, ater-se à visão de que entre ambas existia um abismo epistemológico, o qual se mostra insustentável, de acordo com Carvalho Junior e Moraes Sobrinho, à medida que os autores clássicos da Geografia, rotulados a uma ou a outra vertente, são submetidos a uma análise histórica:

Sobre a dualidade determinismo/possibilismo, Lucien Febvre (1925), historiador francês, em seu livro “A Terra e a Evolução Humana”, foi um dos grandes colaboradores na criação e disseminação dessa falsa dualidade, que é fruto da redução do conflito teórico-ideológico de sua época, estabelecido entre as enclausuradas geografias nacionais da Alemanha e da França. Assim, cada uma dessas escolas ficou impregnada com os rótulos: determinismo (imposto a Ratzel) e possibilismo (imposto a La Blache), respectivamente. Essa estigmatização contribuiu para criar imagens errôneas dos dois autores, e por muito tempo Ratzel foi rotulado como um “voraz determinista geográfico” e La Blache como um “inocente possibilista geográfico”. Hoje essa concepção foi superada e o recorte abstrato de Febvre foi relativizado, afinal, nenhum dos dois geógrafos enquadrava-se nas “escolas” a eles atribuídas. [...] A exacerbação da dualidade determinismo-possibilismo só ocorreu por rixas acadêmicas e contendas político-ideológicas, e também porque se fixou em demasia os seus conceitos-modelo, que não passam de abstrações que fazem sentido apenas num contexto metafísico [...].[21]

Prosseguindo, os autores afirmam que em algumas obras de Febvre (1925), Brunhes (1962) e La Blache (1946), tradicionalmente classificados como possibilistas, é dada tamanha importância aos fatores ambientais que se pode questionar até que ponto eles se enquadrariam como possibilistas ou como deterministas. Mesmo Febvre e Ellen Semple – geógrafa norte-americana rotulada de determinista –, quando colocados em escrutínio, expressam as mesmas ideias com palavras distintas, demonstrando admirável similaridade[22]. Desse modo,

O falso antagonismo possibilismo/determinismo que tem se arrastado por quase um século é certamente falso e pode ser diluído quando abordamos o estudo da relação homem-meio na Geografia levando em consideração três premissas lógicas e inevitáveis: a. A natureza atua inexoravelmente dentro de circunstâncias; b. O ser humano atua inexoravelmente dentro de circunstâncias; c. Essas circunstâncias comportam fenômenos humanos e naturais, regidos por sistemas probabilísticos, e tais fenômenos envolvem sociedade e natureza, em perpétua interação, comportando ordem, desordem, leis e acaso, caos e complexidade, ciclicidades, entropia, incertezas. [...] O possibilismo não é uma teoria, e sim, um discurso que tampouco pode ser oposto e concorrente ao determinismo, visto que dele quase não difere, ou difere apenas quanto à intensidade do foco ou ênfase, uma vez que comporta a pergunta: até que ponto o homem pode atuar sobre a natureza para seu próprio benefício e para amenizar ou suprimir suas influências? Ou seja, a ênfase não seria o grau de influência do ambiente, mas sim o grau de influência humana sobre o ambiente. A única resposta segura a esse questionamento é a de que ao homem sempre cabe atuar/reagir diante das influências do ambiente ou sobre elas, nem que essa atuação ocorra apenas na forma de adaptação a determinados efeitos da natureza.[23]

Aroldo utiliza a expressão gêneros de vida – indício claro de orientação lablachiana – para demostrar sua adesão à escola francesa de Geografia, e consequentemente ao possibilismo. Certamente nosso objeto não é diminuir o valor da obra de Aroldo por causa de sua adesão à vertente francesa da Geografia, mas apenas deixar clara a sua orientação, que ele mesmo deixa manifesta. Porém, é preciso ressaltar que o público a que se destina sua obra – alunos do Ensino Médio, recordemos – não tem conhecimento da epistemologia da ciência geográfica e não tem acesso ao tipo de debate que acabamos de discorrer. Assim, quem estudou Geografia pela obra de Aroldo terá como certo que determinismo e possibilismo são duas correntes antagônicas e que uma é, como o próprio autor pontua, mais verdadeira do que a outra.

Aroldo exagera quando escreve que o determinismo ambiental coloca o homem na condição de simples vítima da condição que o cerca, e se equivoca quando tenta colocar o possibilismo como contraponto e como única via sensata aos estudos da relação homem-meio. Quando faz alusão aos gêneros de vida, ele quer ligar-se à Geografia de matriz lablachiana. É o modo que ele encontra para justificar as diferenças culturais, econômicas e sociais dos povos. Aroldo admite a influência do meio físico, mas rejeita seu império absoluto; desse modo, a seu entender, cada grupo humano se desenvolve aproveitando as ofertas do seu ambiente circundante, moldando a natureza a seu favor. No fundo, o que ele faz é admitir o que expressam Carvalho Junior e Moraes Sobrinho:

Um determinismo ambiental absoluto e radical jamais existiu senão em conjecturações (sic) filosóficas e nunca foi advogado por ninguém no terreno da realidade e da empiria. Do que se infere que parte das controvérsias determinismo/possibilismo e determinação/livre-arbítrio não se sustenta senão num patamar metafísico (LEWTHWAITE, 1966; MARTIN, 1951; SPROUT, 1965). Como as controvérsias tiveram em geral um caráter bastante desvinculado das discussões em nível metafísico, nota-se que uma parte delas estava fundamentada em um devaneio que alimentava a ideia de que deterministas ambientais negavam a liberdade humana. Tal fantasia ainda atribuía aos deterministas a capacidade de considerar o ser humano o elemento passivo de uma relação com um ambiente ativo e imperioso.[24]

O que difere, então, deterministas e possibilistas é apenas o peso dado aos fatores ambientais/físicos e humanos/culturais. O cerne da Geografia clássica permanece o mesmo: a relação homem-meio, analisada ora com maior ênfase nos fatores ambientais, ora com maior ênfase nos fatores culturais, sendo que não existe a propalada exclusão mútua das vertentes, como Aroldo coloca em seu livro didático. Nesse sentido, para concluir esse raciocínio, é oportuno mais uma vez transcrever as palavras de Carvalho Junior e Moraes Sobrinho:

Olhando para as minúcias dos discursos, notou-se, pelo contrário, que nenhum dos lados foi capaz de negar os principais argumentos do adversário, pois houve apenas algumas diferenças na ênfase dada, e principalmente, na retórica. Na verdade, a ênfase não foi tão distinta; a real diferença esteve no espaço e empenho dedicados a cada um dos fatores (ambientais/físicos & humanos). Assim, deterministas esmiuçaram os fatores ambientais em primeiro plano, enquanto possibilistas enfatizavam a capacidade de adaptação humana e as forças da tecnologia para amenizar os impactos dos fatores ambientais e aumentar o número de possibilidades oferecidas pela natureza. Ambos reconheciam a liberdade humana com igual ênfase, muito embora os deterministas, em suas retóricas, ora desastradas ou apenas mal compreendidas, fossem acusados de propor uma relação extremamente desigual, com uma natureza ativa e tirana exercendo influência impiedosa sobre uma sociedade passiva e um homem débil.[25]

Sendo a diferença entre determinismo e possibilismo uma questão de ênfase ou de ponto de vista, não se sustenta, afinal, a adesão apaixonada a uma ou a outra vertente, como faz Aroldo na obra O Mundo em que vivemos. Infere-se que a razão para ele se vincular ao possibilismo e rejeitar vivamente o determinismo está ligada, fundamentalmente, à sua formação de matriz francesa, conforme destacado. A necessidade de tornar explícita a sua vinculação ao possibilismo sugere uma crença bastante otimista nas capacidades de superação do homem sobre o meio em que vive, pensamento que se mostra equivocado quando possibilismo e determinismo são colocados à prova.

Considerações finais

Os livros didáticos do professor Aroldo de Azevedo foram importantes marcos na consolidação da Geografia escolar brasileira, entre as décadas de 1940 e 1970. Como parte do que se chama “cultura escolar”, os livros didáticos, por meio de dispositivos curriculares diversos, como leis e documentos técnicos, veiculam conteúdos que expressam os conceitos e os debates de uma época, bem como reverberam as ideias, implícitas ou não, dos seus autores.

No caso analisado, percebe-se que Aroldo de Azevedo foi um homem de formação tradicional e conservadora, como sua biografia atesta. Mesmo estando ligado ao universo acadêmico, manteve sua vinculação com o universo escolar, fazendo uma espécie de “ponte” entre os conteúdos acadêmicos e os conteúdos escolares.

Com base nas informações de sua vida pregressa, na observação de aspectos significativos de sua trajetória profissional e acadêmica e, em especial, mediante a leitura de uma de suas obras didáticas, fragmentos considerados como indicativos de suas vinculações filosóficas, sua visão de mundo e suas convicções de ciência e sociedade foram evidenciados. Um escrutínio, ainda que breve, desses fragmentos nos leva a crer que Aroldo em tudo procurou se vincular à escola francesa de Geografia – que ele chama de “possibilista” – e se esforçou em manter a neutralidade na abordagem dos assuntos, denotando uma perspectiva positivista. Dessa forma, é possível afirmar que sua produção escolar e acadêmica manteve coerência aos paradigmas de sua formação profissional.

Porém, a pretensa neutralidade que perpassa o livro didático em questão escamoteia uma Geografia separatista, estática e acrítica, coisas que o próprio autor condenava, na esteira de Delgado de Carvalho, um de seus inspiradores. Assim, o conservadorismo pessoal de Aroldo de Azevedo acaba por se refletir em sua obra em frases, sentenças, silêncios ou mesmo imagens.

Outro aspecto a ser ressaltado é seu compromisso com a ciência de referência, em que se destaca a notável qualidade técnica de seu texto quando observado pelo viés da Geografia acadêmica. Por outro lado, fica evidente seu distanciamento com relação aos programas e projetos pedagógicos. Com texto eminentemente voltado para a transmissão de informações e conteúdo da ciência de referência, o autor fica apartado de qualquer preocupação com seu publico alvo: alunos em processo de formação escolar.

A análise de obras didáticas voltadas para a Geografia escolar está em franco desenvolvimento nas pesquisas acadêmicas e, nessa seara, é fundamental o surgimento de trabalhos que venham a apresentar operações conceituais objetivas a respeito das especificidades dos estudos no campo. Para a consolidação da pesquisa, no campo da Geografia escolar, é necessário o esforço permanente de crítica mútua de pontos de vista divergentes (AZANHA, 1992, p. 121).

Esperamos que este artigo possa contribuir, quer como estudo de caso, quer como procedimento metodológico, para que novas pesquisas sejam encetadas, a fim de trazer a lume as diversas questões curriculares que envolvem os livros didáticos e o ensino de Geografia.

Notas

[1] Em nossa pesquisa, deparamos com um Aroldo de Azevedo de perfil conservador e, ao final de sua vida, já aposentado, ocupado com questões genealógicas. A esse respeito, para melhor entendimento do perfil conservador de Aroldo e seus arroubos nobiliárquicos, sugerimos a consulta a duas obras importantes sobre a colonização de São Paulo, diretamente ligadas a questões genealógicas: LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica. São Paulo: Livraria Martins, 1953, 3 volumes; LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana. São Paulo: Duprat, 1903, 11 volumes (disponível em <http://www.arvore.net.br/Paulistana/>. Acesso em 18 mar. 2019).

[2] SANTOS, Wilson dos. A obra de Aroldo de Azevedo – uma avaliação. 1984. 98 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1984.

[3] SANTOS (1984), op. cit., p. 9.

[4] SANTOS (1984), op. cit, p. 10-12.

[5] SANTOS (1984), op. cit., p. 11-12.

[6] SANTOS (1984), op. cit., p 16-17.

[7] SANTOS (1984), op. cit., p. 19.

[8] Não podemos esquecer que Aroldo de Azevedo lecionava na universidade, para um público distinto daquele pertencente à hoje chamada Educação Básica.

[9] SANTOS (1984), op. cit., p. 19-20.

[10] No caso, trata-se do século XX.

[11] SANTOS (1984), op. cit., p. 23.

[12] Não transcrevemos o prefácio por questão de economia de espaço, mas ele se encontra disponível na pesquisa de Mello (2020).

[13] SANTOS (1984), op. cit., p. 20.

[14] SANTOS (1984), op. cit., p. 26.

[15] Apenas a título de informação adicional, a fim de situar o leitor, esclarecemos que o funcionalismo é um método de investigação social desenvolvido pelo sociólogo Émile Durkheim, cujo objetivo é explicar a sociedade, ou seja, as ações coletivas e individuais, a partir de causalidades – as funções. A sociedade é compreendida como um organismo composto por órgãos relacionados e com funções específicas, que, à semelhança das engrenagens de um relógio, precisam atuar em conjunto para que o funcionamento seja eficaz (extraído de ARAÚJO, Marcele Juliane Frossard de. Funcionalismo. In: InfoEscola. Disponível em: <https://www.infoescola.com/sociologia/funcionalismo/>. Acesso em: 04 abr. 2021).

[16] SANTOS (1984), op. cit., p. 29-30.

[17] SANTOS (1984), op. cit., p. 51.

[18] SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: Da crítica da Geografia a uma Geografia crítica. 6ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004.

[19] Ibidem, p. 44.

[20] CARVALHO JUNIOR, Ilton Jardim de e MORAES SOBRINHO, Aparecido Pires. A perpetuação de mitos no pensamento geográfico: a ideia das influências ambientais e a falsa dicotomia determinismo/possibilismo. Revista da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege), v. 13, n. 22, set./dez. 2017, p. 164-197.

[21] CARVALHO JUNIOR e MORAES SOBRINHO, op. cit., p. 172-173.

[22] CARVALHO JUNIOR e MORAES SOBRINHO, op. cit., p. 172-173.

[23] CARVALHO JUNIOR e MORAES SOBRINHO, op. cit., p. 173-174.

[24] CARVALHO JUNIOR e MORAES SOBRINHO, op. cit., p. 184-185.

[25] CARVALHO JUNIOR e MORAES SOBRINHO, op. cit., p. 194.

Referências

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CARVALHO JUNIOR, Ilton Jardim de e MORAES SOBRINHO, Aparecido Pires. A perpetuação de mitos no pensamento geográfico: a ideia das influências ambientais e a falsa dicotomia determinismo/possibilismo. Revista da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia (Anpege), v. 13, n. 22, p. 164-197, set./dez. 2017.

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MELLO, Bruno Falararo de. Uma leitura da climatologia escolar em livros didáticos de Geografia (1967-2013). 2020, 274f. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, São Paulo, 2020.

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SANTOS, Wilson dos. A obra de Aroldo de Azevedo – uma avaliação. 1984. 98 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, São Paulo, 1984.

Notas

Bruno Falararo de Mello É Graduado em Geografia – Licenciatura pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista Filho (UNESP/Rio Claro) e em Geografia – Bacharelado pelo Centro Universitário Internacional (Uninter), Mestre em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista Filho (UNESP/Rio Claro) e Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista Filho (UNESP/Rio Claro). É pesquisador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Linguagem, Experiência e Formação, vinculado aos Programas de Pós-Graduação em Educação e de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista Filho (UNESP/Rio Claro), e lecionou na rede municipal de educação de Rio Claro.

Endereço: Av. 24 A, 1515 - Bela Vista, Rio Claro - SP, CEP 13506-752

João Pedro Pezzato É Graduado em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista Filho (Unesp/Rio Claro), Mestre e Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). É professor associado do Departamento de Educação da Unesp/Rio Claro, e coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Linguagem, Experiência e Formação, vinculado aos Programas de Pós-Graduação em Educação e de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista Filho (UNESP/Rio Claro).

Endereço: Av. 24 A, 1515 - Bela Vista, Rio Claro - SP, CEP 13506-752

Christiane Fernanda da Costa É Graduada em Geografia e em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista Filho (UNESP/Rio Claro), Mestra e Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista Filho (UNESP/Rio Claro). É pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Linguagem, Experiência e Formação, vinculado aos Programas de Pós-Graduação em Educação e de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista Filho (UNESP/Rio Claro), e leciona na rede municipal de educação de Rio Claro/SP.

Endereço: Av. 24 A, 1515 - Bela Vista, Rio Claro - SP, 13506-752



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