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O SAGRADO E A CIDADE: OLHARES SIMBÓLICOS RELIGIOSOS
The sacred and the city: religious symbolic looks
Lo sagrado y la ciudad: miradas simbólicas religiosas
Revista Cerrados (Unimontes), vol. 19, núm. 1, 2021
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos


Recepção: 17 Abril 2021

Aprovação: 27 Maio 2021

Publicado: 01 Junho 2021

DOI: https://doi.org/10.46551/rc24482692202116%20

Resumo: Durante um determinado período os estudos geográficos referentes as relações existentes entre o sagrado e o urbano foram negligenciados, relegando o fenômeno religioso no urbano a um plano secundário, focado apenas na visão holística de que toda cidade surge através de uma lógica de mercado, que cresce, se reproduz, agrega valores e capitais, favorecendo o processo de acumulação de capital, o desenvolvimento e a expansão do capitalismo. Assim, o objetivo principal deste trabalho é apresentar ao leitor uma outra visão relacionada a abordagem sobre o urbano, ou seja, a análise do sagrado como elo de formação das cidades. Desta maneira, caminharemos em busca de um resgate histórico e geográfico da formação e gênese das primeiras cidades, bem como os fatores que contribuíram para que determinadas localidades passassem a ser conhecidas como hierópolis ou cidades-santuário, devido a vivência de seus habitantes e frequentadores estarem relacionadas diretamente a uma determinada experiência religiosa, predominantes frente as outras funções econômicas. Porém, neste artigo, também debateremos que determinadas estratégias territoriais, também buscam oprimir o outro que não compartilha com as mesmas ideias religiosas impostas por um dado grupo.

Palavras-chave: Sagrado, Urbano, Lugar, Território.

Abstract: For a certain period, the geographic studies concerning the existing relations between the sacred and the urban were neglected, relegating the religious phenomenon in the urban to a secondary plan, focusing only on the holistic view that every city arises through a market logic, which grows, reproduces, adds values and capital, favoring the process of capital accumulation, the development and expansion of capitalism. Thus, the main objective of this work is to present to the reader another view related to the approach about the urban, that is, the analysis of the sacred as a link in the formation of cities. In this way, we will walk in search of a historical and geographic rescue of the formation and genesis of the first cities, as well as the factors that contributed for certain localities to become known as hieropolis or sanctuary cities, due to the experience of its inhabitants and visitors being directly related to a certain religious experience, predominant before the other economic functions. However, in this article, we will also discuss that certain territorial strategies also seek to oppress the Other who does not share the same religious ideas imposed by a given group.

Keywords: Sacred, Urban, Place, Territory.

Resumen: Durante un cierto período, se descuidaron los estudios geográficos sobre las relaciones existentes entre lo sagrado y lo urbano, relegando el fenómeno religioso en lo urbano a un plano secundario, centrándose únicamente en la visión holística de que toda ciudad surge a través de una lógica de mercado, que crece, se reproduce, añade valores y capital, favoreciendo el proceso de acumulación de capital, desarrollo y expansión del capitalismo. Así, el objetivo principal de este trabajo es presentar al lector otra visión relacionada con el enfoque sobre lo urbano, es decir, el análisis de lo sagrado como vínculo en la formación de las ciudades. De este modo, caminaremos en busca de un rescate histórico y geográfico de la formación y génesis de las primeras ciudades, así como de los factores que contribuyeron a que determinadas localidades pasaran a ser conocidas como hieropolis o ciudades santuario, debido a que la experiencia de sus habitantes y frecuentadores está directamente relacionada con una determinada experiencia religiosa, predominante antes que las demás funciones económicas. Sin embargo, en este artículo también discutiremos que ciertas estrategias territoriales también buscan oprimir al Otro que no comparte las mismas ideas religiosas impuestas por un grupo determinado.

Palabras clave: Sagrado, Urbano, Lugar, Territorio.

Passos Iniciais

A Geografia como ciência é rica em estudos e diferentes análises acerca da perspectiva espacial das relações existentes entre o homem e o seu meio. O geógrafo através das diferentes maneiras de compreensão, possui interesse nos estudos relacionados a cultura, ao meio urbano, ao meio rural, para citarmos apenas alguns entre os mais variados temas que percorrem as diferentes correntes do pensamento geográfico. Essa pluralidade, alavancou-se através dos estudos da Geografia Cultural pós-1980, ou geografia cultural renovada, pesquisas e temas antes esquecidos, ou de não interesse geográfico como a religião, a música, a literatura, entre outros temas, se tornaram inteligíveis (OLIVEIRA, 2017).

O objetivo principal deste trabalho é apresentar ao leitor uma outra visão relacionada a abordagem sobre o urbano. Está caminhando em busca de um resgate histórico e geográfico da formação e gênese das primeiras cidades. Em diferentes estudos, autores destacam que o surgimento das cidades estaria interligado a um processo de acumulação de capitais, assim como, o processo de desenvolvimento do sistema capitalista de produção. Esse olhar de certa maneira, não se voltou para outros aspectos que também podem ser considerados fundamentais na gênese das cidades, e que estão interligados ao próprio modo de agir que possuímos e que influencia decisivamente o nosso cotidiano.

Entre os aspectos que não foram observados ou mesmo negligenciados por nós geógrafos, encontra-se a importância da religião como um dos fatores fundantes para a gênese das cidades. Porém, ao longo deste artigo, enfatizaremos, a perspectiva da importância do sagrado, na contribuição para o surgimento das primeiras comunidades interligadas, mediante o culto aos mortos, a adoração de um dado Deus ou Deuses e ao fogo sagrado, este como elo e pertencimento de diferentes grupos a uma divindade antes familiar e depois coletiva. Essas ações favoreceram o surgimento dos primeiros grupos domésticos e em seguida, as primeiras comunidades. Neste sentido, para um melhor entendimento realizaremos um breve resgate da gênese da cidade e de como as relações entre os grupos sociais contribuem, a partir da vivência para transformarem esses locais.

A inportância da instituição religiosa no urbano

O meio urbano é um tema de interesse e pesquisa em diversas ciências. Para a geografia esse campo de estudo recai principalmente, para os interessados nas questões urbanas e seus processos de construção e reprodução do espaço. Na Geografia Urbana, diversas são as causas que contribuíram para o processo de transformação, remodelação e crescimento do espaço urbano. Os agentes modeladores do espaço, segundo Corrêa (1999), como o Estado, os proprietários dos meios de produção, os proprietários fundiários, os promotores imobiliários, os grupos sociais excluídos, entre outros foram analisados a partir dessa perspectiva. Assim, a origem da cidade, ligada ao processo de diferenciação social e apropriação de excedentes (ROSENDAHL, 2009).

O interessante nessas análises é que muitas vezes, o componente religioso é abstraído dessas correlações. Desta maneira, tentaremos trazer uma correlação entre o sagrado e urbano, para constatar a sua validação. Uma citação de nosso interesse sobre a origem das cidades é passada por Carlos (2009), no que competem as funções de cada cidade, onde podem ser de função religiosa, industrial, portuária, universitária, entre outras. A autora menciona cidades com função religiosa, em sua maioria hierópolis ou cidades-santuário. Na citação encontramos que,

Na literatura urbana da década de 60 e na quase totalidade dos livros didáticos de hoje, a origem da cidade vincula-se à existência de uma ou mais funções urbanas. Nessa perspectiva, a origem de uma cidade pode ser: industrial caso do ABCD paulista (conjunto formado pelos municípios de Santo André, São Bernardo, São Caetano e Diadema); cultural e aqui temos, segundo alguns autores, a subdivisão entre a) religiosas (caso de Jerusalém, Meca, Aparecida do Norte); b) cidades universitárias como Oxford ou Cambridge; c) cidades – museus como Versalhes (França) e Veneza (na Itália); ou ainda as cidades cujas origens ligam-se às atividades comerciais, administrativas ou políticas, as capitais de estados ou país, ou as que têm origem em estações de águas, lugar de veraneio ou sanatórios (CARLOS, 2009, p.59).

Podemos trazer essa visão para a análise de um exemplo, Cachoeira Paulista, uma cidade que ao longo do período colonial, até a atualidade, teve em seus cenários períodos marcados por diferentes funções, uma de passagem no período colonial, outra vinculada à produção do café, uma do declínio econômico dessa produção cafeeira e um período referente, ao crescimento da cidade diante de uma nova função religiosa, a partir da chegada de um grupo social religioso, pertencentes a comunidade Canção Nova. Nesse entendimento podemos considerar, Cachoeira Paulista, como uma hierópolis ou cidade-santuário ligada a prática religiosa do catolicismo renovado, a partir do movimento da Renovação Carismática Católica – RCC (OLIVEIRA, 2015).

Ainda que fosse destacada em diversos trabalhos a perspectiva do urbano nas cidades e seu processo de acumulação de capital, podemos observar no trabalho de Carlos (2009), que a autora traz uma análise em relação às cidades que poderiam necessariamente ter uma função, e está podendo ser religiosa, como vemos também em Singer (1990).

Diversos autores que abordam a gênese e o processo de evolução das cidades, não mencionam que o modo de ser religioso, poderia ter contribuído com o crescimento e desenvolvimento das cidades. Desta maneira, deve ser considerado a importância do sagrado como um constituinte das cidades, sendo essa uma visão diferenciada em relação ao sagrado e o urbano. Não desconsideramos o capitalismo como um processo fundamental para o crescimento e evolução das cidades, mas ressaltando, que também existe outro fator, o religioso, que possibilitou o surgimento de cidades e posteriormente seus processos de acumulação e capital.

Nas primeiras comunidades, assim como, os povos nômades antes mesmo de existir propriamente dito um Deus cristão, já realizavam rituais e cultos para determinadas divindades, que para eles era um ser superior, normalmente considerado doméstico, ligado a um fogo sagrado, existente em cada família. À medida que ocorriam casamentos, ampliavam-se as relações coletivas. Contribuindo com o nascimento das primeiras comunidades que em alguns casos conduziam para o surgimento daquilo que seriam as atuais cidades (ROSENDAHL, 2009).

Os estudos de Rosendahl (2009), nos conduz a uma visão diferenciada, em conformidade com outros autores que comungam com as ideias de origem das cidades, a partir de uma interpretação que observa na religião a base genética para essa construção. Entre os autores, podemos destacar os estudos de Coulanges (1974), Eliade (2008), Munford (1991) e Tuan (1983).

No caso brasileiro, temos os estudos de Vasconcelos (2006), o autor aborda as cidades brasileiras no período colonial, destacando a importância da Igreja Católica Apostólica Romana, e da sua visão de mundo em relação a imposição territorial em determinadas localidades, contribuindo na constituição das cidades.

Ainda em relação ao período colonial, Vasconcelos (2006), destaca como influenciadores para a conformação das cidades: a Igreja, as ordens leigas, o Estado, os agentes econômicos, a população e os movimentos sociais. Lembrando que as relações entre eles, não ocorriam sempre de maneira pacífica, como exemplo, podemos citar a os conflitos entre populares, os representantes do Estado e os monges beneditinos no século XVII na cidade do Rio de Janeiro (PACHECO JUNIOR, 2013).

A Igreja Católica no Brasil possui uma trajetória histórica que se diferenciava de acordo com as diferentes conjunturas históricas. Desta maneira, observamos que a Igreja teve e tem a importância, para o crescimento das cidades. Devemos lembrar que nesse período, a Igreja ainda estava ligada a Coroa, ou seja, no período colonial brasileiro, havia um acordo entre o Papado e o Governo através do Padroado, onde a Igreja tinha seu dízimo recolhido pela Coroa, onde a mesma tornava-se responsável pela manutenção das despesas da Igreja (VASCONCELOS, 2006).

Para Vasconcelos (2006), as ordens religiosas tiveram grande destaque no processo de expansão e espraiamento das cidades coloniais no Brasil, posto que,

As ordens que se estabeleceram em primeiro lugar, como a dos jesuítas, localizaram-se pero dos núcleos iniciais (Salvador, Rio de Janeiro, Olinda), e as que chegaram posteriormente foram se instalando nas periferias imediatas das cidades, inclusive extramuros, como no caso de Salvador (beneditinos e carmelitas). Mas, sendo grandes consumidores de terrenos, tanto pelo seu porte como pelas suas atividades complementares (hortas, estábulos etc.), os conventos tiveram um papel de ponta na expansão urbana colonial: localizados nas periferias, nos finais dos eixos de crescimento urbano, tendiam a atrair o crescimento das cidades em sua direção. (VASCONCELOS, 2006, p. 252)

Uma citação muito relevante em seu trabalho, que, de certa maneira, corrobora com nossas análises, é que,

[...] em São Paulo, finalmente, o convento dos jesuítas, junto ao colégio, deu origem à cidade. Os conventos dos beneditinos, das carmelitas e dos franciscanos formavam o “triângulo” que delimitava o atual centro de São Paulo, na elevação entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú (VASCONCELOS, 2006, p. 253)

A citação acima vem corroborar com aquilo que vimos discorrendo ao longo de nosso trabalho, para que, assim, possamos ter uma certeza do modo de ser religioso, como elo de formação das cidades. O poder religioso era administrado tanto pela Instituição Eclesiástica como pela gestão das Irmandades e Ordens Religiosas.

Assim, a Igreja Católica detinha ou mesmo detém, uma importância fundamental em relação ao espraiamento das cidades, como exemplo, o que explicita Vasconcelos (2006), que a cidade do Rio de Janeiro, coberta de morros, possuía em suas partes altas, grande parte da concentração de estabelecimentos religiosos, dando a importância ao sagrado como algo superior, e a cidade, abaixo dos morros. Em diversas cidades, suas funções religiosas, seus fixos e monumentos, estavam destacados nas altas localidades delas, o que ratifica a presença institucional da Igreja Católica.

Apesar de toda importância institucional, esta não é suficiente para imprimir a marca do sagrado no urbano, pois são as pessoas e o modo de ser que cada um possui, que verdadeiramente faz vir à luz a influência do sagrado na gênese de cada localidade que compõem a cidade. Sendo assim indagamos: Como o fazer sagrado se manifesta e qual a sua importância como contribuinte na gênese e desenvolvimento das cidades, pensando a partir das pessoas que habitam as mesmas?

O Sagrado e o Urbano: gênese e função das Cidades

Rosendahl (2009), em seus estudos sobre o Sagrado e o Urbano, aborda que é possível reconhecer no sagrado, um elemento de constituição das cidades. Lewandowski (1984) e alguns autores sustentam tais afirmações ao dizer que as construções são moldadas pelas ideias da sociedade.

Uma citação de Rosendahl (2009, p.18), torna-se interessante posto que comunga com esse ideal de cidade, ligada a uma divindade quando a geógrafa menciona que antes das principais invenções e instituições neolíticas a serem criadas, “o sagrado estava visivelmente presente nos santuários. Anteriormente não encontramos o mercado ou a fortaleza, mas sim a ideia da criação sobrenatural do mundo”. Assim:

Os rituais religiosos do paleolítico não se apagaram com a ascensão da cidade pelo contrário, o sagrado permaneceu e aplicou a sua eficácia e alcance. O que efetivamente foi verificado com o surgimento das cidades foi a concentração de diversas funções até ali dispersas e desorganizadas dentro de uma área limitada. Essa concentração, realizada no interior de muralhas, já continha partes da protocidade: santuário, fonte, aldeia, mercado e fortificação. A cidade se revelou não simplesmente um meio de expressar em termos concretos a ampliação do poder sagrado e secular, mas também um meio de expressão ampliado de todas as dimensões da vida. Começando por ser uma representação do cosmo, “um meio de trazer o céu à terra, a cidade passou a ser um símbolo do possível” (MUMFORD, 1991, p. 39).

Desta maneira, para fazermos uma interpretação da origem das cidades devemos tratar igualmente da técnica, da política e da religião, principalmente do aspecto religioso da transformação. A partir dos estudos de Munford (1991) e Tuan (1980), fica clara a importância do sagrado como elo de fundação das cidades, posto que em documentos encontrados, monumentos, entre outros, salientam tais afirmações, onde as inscrições encontradas entre as ruínas, eram mais de natureza religiosa do que política ou econômica. O que corrobora para a ideia da cidade erguida pela vontade de Deus e do sacerdote-rei que era o detentor de um simbolismo de poder e dominação, como se ele possuísse algo de semidivino, um elo de mediação necessária para uma conexão entre o céu e a terra.

Com o passar dos anos, as cidades foram se constituindo não apenas por motivações religiosas, mas também, devido ao desenvolvimento do capitalismo e por questões políticas, sendo assim, elas passaram em muitos casos a serem representadas pela função que a maioria dos seus habitantes determinaram que cada uma deveria possuir. Esse fato não ficou restrito ao sentido político ou econômico que cada cidade possui, emergiram também as consideradas cidades que possuem uma função religiosa no contexto do cotidiano.

Do profano ao sagrado: a cidade como hierópolis

Nos mais diversos estudos em relação aos cotidianos existentes nas grandes cidades, é possível nos transparecer, ou não, diversas maneiras como as pessoas buscam vivenciar seu dia a dia no urbano. Em algumas localidades, a ligação entre os modos de viver de seus habitantes e visitantes com a experiencia fática religiosa, contribui para que a identidade da cidade, seja diretamente relacionada ao acontecer religioso.

Nesse contexto existem as cidades consideradas como especializadas religiosas, onde encontramos nelas uma ordem espiritual predominante, sendo marcadas pela prática religiosa da peregrinação[1] ao lugar sagrado.

Em relação ao como podemos considerar o lugar como sagrado, entendemos este como aborda Tuan (1978), como sendo ritualmente extraordinário, onde o religioso mantém uma ligação com a sua crença e com o outro, que compartilha a experiencia religiosa. A questão do lugar sacralizado é de uma importância ímpar, pois é notória a busca pelo adepto no processo de sacralização do lugar onde “as paisagens são criadas por determinados grupos religiosos, no desejo de reproduzir sua própria visão de mundo” (ROSENDAHL, 2002).

Fato este rico em diversidade quando pensamos que cada localidade é composta por diferentes pessoas, que por sua vez possuem cada um à sua maneira de ser e estar no mundo (HEIDEGGER, 2018). Assim, cada lugar sagrado tem a sua característica própria, não apenas pelos diferentes habitantes e frequentadores que cada um possui, mas pela experiencia religiosa vivenciada.

Ressaltando que a experiencia religiosa é sempre dotada de simbolismo que se transparece no lugar, porém concordamos com Bonnemaison (2012, p.29), que “parte deste permanece invisível, porque está ligada ao mundo subjacente da afetividade, das atividades mentais e das representações culturais”.

A parte visível, no lugar, que assume a dimensão simbólica que fortalece a identidade de um dado grupo religioso, pode ser considerada como um geossímbolo (BoNnemaison, 2012), que também exerce a função simbólica de demarcar uma dada territorialidade religiosa, como exemplo, as igrejas missionárias protestantes em alguns países do continente africano, que particularmente, destoam na paisagem (PACHECO JUNIOR, 2020).

A importância do lugar sagrado para as lugaridades exercidas pelas pessoas no cotidiano, não se restringe apenas ao ritual ou ao culto religioso, ele também é simbolicamente considerado como um “fornecedor de regras e significados em que os grupos encontram sentido para as suas práticas religiosas” (ROSENDAHL, 2018).

Assim, as cidades possuem determinadas características que a qualificam como função religiosa predominante, pelo simbolismo religioso que elas possuem e pelo caráter sagrado que o espaço atribui; temos nesses casos o exemplo das cidades que são hierópolis ou cidades-santuário. Ou seja, suas funções em grande parte obedecem à lógica do sagrado, são exemplos cidades como Jerusalém, Meca, Lourdes, entre outras. Essas cidades são centros de convergência de peregrinos ou romeiros que com suas práticas, vivências do sagrado, materializam no espaço uma peculiar organização funcional (ROSENDAHL, 1994).

A partir dos estudos de Rosendahl, observamos que o sagrado ainda impõe respeito e admiração no lugar, onde até os dias atuais, mesmo inseridas em uma ótica de mercado, existem cidades cujas funções estão extremamente ligadas à lógica do sagrado. Nesse sentido, Carballo (2010), Costa (2010), Rosendahl (1994, 2002, 2003, 2008, 2009) e Santos (2008), nos trazem em seus estudos exemplos de hierópolis ou cidades-santuários, onde “por hierópolis, entendem-se aqueles lugares considerados sagrados por uma dada população local, regional ou nacional. As hierópolis constituem lugares de peregrinação de diferentes religiões” (ROSENDAHL, 2009, p. 9).

Esses estudos possuem uma temática relevante para a geografia cultural, de maneira que contribui para o desvendar das múltiplas funcionalidades urbanas, ou seja, indicando com clareza a natureza simbólica, sagrada, de uma construção realizada pelo homem (ROSENDAHL, 2009). Essa experiencia religiosa por parte do adepto nas hierópolis, normalmente, ultrapassam os simples fatos da visita a localidade.

Na verdade, nota-se a existência de uma ligação, de amor com o lugar sagrado, buscando valorizá-lo, fato esse normalmente expresso na experiencia religiosa do adepto, que em nosso entendimento, conduz a um sentimento de geopiedade, que segundo Tuan (1968, 1976), ocorre mediante ao relacionamento entre os homens, Deus(es) e a natureza, que contribui para com o apego ao lugar, o qualificando e o sacralizando.

Outra ressalva importante é que devemos considerar que uma dada localidade não necessariamente depende de uma intuição religiosa para ser sacralizado, a fé do adepto como modo de experiencia fática da vida religiosa (HEIDEGGER, 2014), já pode ser suficiente para que este venha a ter um sentido sagrado para o quem o vivencia. Pois, se considerarmos como Meslin (2014), que o sagrado apenas pode ser descrito por quem o sente, por que não uma determinada localidade não poderia se tornar um lugar sagrado para um dado adepto, seja qual for o seu pensamento religioso?

Não podemos esquecer que existem localidades situadas em determinadas áreas urbanas, e em países que proíbem determinadas práticas religiosas, assim em diversas situações, em um cômodo residencial, um galpão, uma área escondida em uma dada floresta, também podem ser tornadas em lugares sagrados para o fiel que acredita em uma dada divindade.

Do sagrado ao profano: Quando a religiosidade oprime o outro

Ao depender de cada contexto vivenciado, determinados modos de ser podem afrontar ou não uma dada ideia, aqui nesse caso, essa afronta mediante a um determinado ponto de vista religioso pode ser considerado profano, entendendo este como oposto a um pensamento de um determinado grupo social que pode se considerar detentor do “certo” de que para os mesmos seriam o “verdadeiro” sagrado.

Em determinadas localidades, devido a maioria ou quase totalidade de seus habitantes concordarem com um determinado modo de ser religioso, atrelado a influência de uma dada instituição, estes podem de certa maneira oprimir o Outro que não compartilha com as suas ideias. Sendo assim, ocorre praticamente uma restrição ao direito que este outro deve possuir de exercer o seu modo de vida, bem como a sua experiencia fática religiosa.

Mas como uma determinada instituição consegue se sobrepor a este Outro de maneira que consiga conduzir ou mesmo determinar, a maneira de como se vive o cotidiano da localidade onde a mesma está inserida?

Rosendahl (2010), apresentou que a prática religiosa possui a característica de percolar as mais diversas áreas da nossa vivência, influenciando o nosso modo de ser-no-mundo, considerando este a partir do sentido proposto por Heidegger (2018). Nesse sentido, visando uma contribuição para a reflexão em relação a indagação que propomos, devemos buscar o auxílio da análise de como a busca pela imposição de uma dada visão de mundo por uma instituição, se transparece no lugar.

Uma das estratégias adotadas pelas instituições que se consideram detentoras da verdadeira prática religiosa, ocorre através de estratégias no âmbito da dimensão politica no lugar (ROSENDAHL, 2010), que traz um contributo ímpar quando pensamos a experiencia religiosa, pois e a partir da mesma, que observamos que diversas práticas de religiosidade, principalmente as coletivas, são normalmente organizadas, por exemplo, por denominações religiosas (Protestantes), Mesquitas (muçulmanos) e pela Igreja Católica, entre outras.

Esse conjunto de práticas coletivas realizadas no lugar, contribui para a instituição de uma territorialidade religiosa. Ressaltamos que nesse estudo o entendimento em relação ao território, ocorre considerando o mesmo como vivido, ou seja, sendo experienciado a partir das relações existentes entre as pessoas no lugar (BERNARDES; AGUIAR, 2020). Essas interações pensadas a partir do ser-com o Outro, no sentido heideggeriano, nos conduz a compreensão que a constituição de territórios é fundamental para a afirmação da identidade de um dado grupo, como cita Holzer (2013, p.25), pois, “os territórios se apresentam como a afirmação da identidade, do comum-pertencer de um determinado grupo, ou mesmo de um indivíduo a partir do lugar”.

Devido as diferentes maneiras de como são vivenciadas as experiências religiosas, cada territorialidade nos demonstra que um dado território será constituído a partir da particularidade dos modos de viver das pessoas que lhe concedem a sua identidade. Esse entendimento corrobora com as colocações de Holzer (2013), ao abordar que cada território possui a sua particularidade, seguindo as proposições de Bonnemaison (2012), assim:

Esses territórios não constituem um todo coeso e uniforme, na verdade compõem, como propõe Bonnemaison (2012), arquipélagos de lugares determinados pelas lugaridades individuais e de grupos, cuja fluidez varia segundo a mobilidade que possuem (HOLZER, 2013, p.26).

Assim, mediante ao nosso modo de ser-com o Outro no lugar, a partir da convivência, emerge a territorialidade religiosa que “significa o conjunto de práticas desenvolvidas pelas instituições ou grupos no sentido de controlar um dado território” (ROSENDAHL, 2010, p. 195).

Porém, esse conjunto de práticas que visam controlar o território por uma dada instituição em diversas situações, conduzem ao velamento do Outro que não compartilha com determinadas ideias religiosas do grupo que as impõem. Essa conjuntura contribui para que a convivência entre os diferentes ocorra mediante a tensionamentos, pois essa tentativa de impor um pensamento, constitui um ferimento quase que letal à alteridade que cada um de nós possuímos.

Compreendemos esta como um modo de se colocar na posição do Outro respeitando a existência de cada individualidade, cultura e maneira de pensar (LIMA, 2019). Assim, Levinas (2020, p.26), ao abordar essa questão explicita que “[...] para que a alteridade se produza no ser que é necessário um “pensamento” e que é preciso um Eu”.

Considerações finais

Como apresentamos brevemente, é inegável a importância da religião no contexto de origem das cidades. O próprio dinamismo do urbano é indissociavelmente atrelado a questão da religião. Alguns ainda há de se questionarem: Por que o dinamismo do urbano é atrelado a religião e de possíveis manifestações do sagrado? Diversas poderiam ser as colocações em relação a tal indagação, entre elas, acreditamos que tanto o dinamismo do urbano como a questão religiosa estão intrinsecamente ligadas, a partir da consideração que ambas se transparecem a partir dos modos de vida de cada pessoa que vive nas cidades.

Não podemos negar o fato que o urbano e a religião, não teriam “vida própria”, sem a nossa presença no mundo, pois como citado no texto, somos nós que vivenciamos o sagrado, e este se expressa através do nosso cotidiano, se revelando no urbano, principalmente no período inicial do surgimento das primeiras cidades, onde quase todas as formas construídas das cidades de certa maneira, simbolizavam um certo caráter religioso.

Fica notória com o passar dos anos que as instituições religiosas foram de fundamental importância na constituição do urbano, ao ponto de diversas localidades atreladas a algum acontecimento religioso ou crença se tornaram sagradas, constituindo mediante as lugaridades exercidas em lugares sagrados. Ressaltando sempre que as instituições religiosas, a partir dos seus adeptos, que contribuíram para a sacralização desses lugares, também se tornaram responsáveis como citamos, em oprimir determinados grupos de pessoas que não compartilham de seus princípios, fazendo com que venha a existir um movimento onde um verdadeiro sagrado pode vir a oprimir o Outro que tem à sua maneira de pensar o sagrado, divergente em relação ao verdadeiro.

Existem diversos caminhos de pesquisa que nos conduzem às mais variadas perspectivas de pensar e vivenciar o sagrado, e de refletir como este, influencia no cotidiano das pessoas nas cidades. Apenas devemos ter o cuidado de não oprimir o Outro que pensa de maneira divergente, pois cada um é diferente do Outro no mundo. É essa diferença que contribui para a existência e a riqueza do diverso no urbano.

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Notas

[1] Romaria ou peregrinação “é uma prática religiosa que consiste em uma visita na qual o visitante tem uma nítida intenção de devoção. Essa visita é feita a um lugar sagrado e vem acompanhada do comportamento religioso de pedir graças ou de agradecimento por uma graça obtida.” (ROSENDAHL, 2009, p.27).

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