Recepción: 28 Enero 2021
Aprobación: 18 Mayo 2021
Publicación: 01 Julio 2021
DOI: https://doi.org/10.46551/rc2448269220212020
Resumo: O Rio São Francisco perpassa pela Mesorregião do Norte de Minas/MG e contribui para sobrevivência e perpetuação de comunidades tradicionais que ocupam suas imediações. O Norte de Minas concentra uma pluralidade de povos tradicionais que dependem do rio para desenvolvimento de suas atividades cotidianas e para sobrevivência, dentre esses povos, destaca-se a Comunidade Quilombola Bom Jardim da Prata, que ocupa uma área rural situada no município de São Francisco. Não obstante, apesar da importância que o Rio São Francisco desempenha na região, têm sido frequentes os impactos socioambientais decorrentes de disputas territoriais e usos predatórios de seus recursos naturais, sobretudo por parte de fazendeiros e grandes empresas, que almejam benefícios econômicos, o que dificulta as ações de manejo sustentável. Assim, define-se como objetivo principal deste artigo analisar os conflitos socioambientais provenientes da relação estabelecida entre comunidades tradicionais e agentes econômicos com o Rio São Francisco. Como procedimentos de pesquisa, adota-se a abordagem qualitativa, com ênfase na consulta às fontes bibliográficas provenientes de teses, dissertações e artigos que tratam dessa temática, produção de mapeamentos e análise crítica oriunda de pesquisa de campo. Como reflexões, destaca-se que o uso indiscriminado dos recursos naturais nas imediações do Rio São Francisco para atender aos interesses econômicos de grandes empresas, associado aos conflitos territoriais travados entre comunidades tradicionais, fazendeiros, sitieiros e grandes empresas vinculadas ao agronegócio, têm resultado em impactos ambientais, bem como, na dificuldade de sobrevivência das comunidades tradicionais e de perpetuação de seus saberes.
Palavras-chave: Rio São Francisco, Comunidades Tradicionais, Norte de Minas/MG.
Abstract: The São Francisco River runs through the mesoregion of the north of Minas Gerais and contributes to the survival and perpetuation of traditional communities that occupy its surroundings. The north region of Minas Gerais concentrates a plurality of traditional peoples that rely on the river for their daily activities and survival. Among these peoples, the Quilombo community Bom Jardim da Prata stands out, occupying a rural area located in the municipality of São Francisco. Despite the importance of the São Francisco River in the region, socio-environmental impacts have been frequent. Those results from territorial disputes and predatory uses of its natural resources, especially by farmers and large companies aiming for economic benefits, also creating difficulty for sustainable management actions. Thus, the main objective of this article is to analyze the socio-environmental conflicts arising from the relationship established among traditional communities, economic agents and the São Francisco River. The research is qualitative, emphasizing bibliographic sources from theses, dissertations and articles dealing with this theme, mappings, and critical analysis from field research. As considerations, the indiscriminate use of natural resources of the São Francisco river surroundings causes environmental impact and difficulty the survival of traditional communities and the perpetuation of their knowledge. Big companies' economic interests alongside territorial conflicts between communities, farmers, landowners and large agribusiness companies are also responsible for those impacts.
Keywords: São Francisco river, Traditional Communities, North of Minas Gerais.
Resumen: El río São Francisco atraviesa la Mesorregión de Norte de Minas / MG y contribuye a la supervivencia y perpetuación de las comunidades tradicionales que ocupan sus alrededores. El norte de Minas Gerais concentra una pluralidad de pueblos tradicionales que dependen del río para el desarrollo de sus actividades cotidianas y para la supervivencia, entre estos pueblos se destaca la Comunidad Quilombola Bom Jardim da Prata, que ocupa una zona rural ubicada en el municipio de São Francisco. Sin embargo, a pesar de la importancia que juega el río São Francisco en la región, los impactos socioambientales derivados de las disputas territoriales y los usos predatorios de sus recursos naturales han sido frecuentes, especialmente por parte de los agricultores y las grandes empresas, que buscan beneficios económicos, lo que la convierte en difíciles acciones de gestión sostenible. Así, el principal objetivo de este artículo es analizar los conflictos socioambientales derivados de la relación que se establece entre las comunidades tradicionales y los agentes económicos con el río São Francisco. Como procedimientos de investigación se adopta el enfoque cualitativo, con énfasis en la consulta de fuentes bibliográficas de tesis, disertaciones y artículos que abordan esta temática, elaboración de mapeos y análisis crítico a partir de investigaciones de campo. Como reflexiones, cabe señalar que el uso indiscriminado de los recursos naturales en las cercanías del río São Francisco para atender los intereses económicos de las grandes empresas, asociado a los conflictos territoriales entre comunidades tradicionales, agricultores, terratenientes y grandes empresas vinculadas a la agroindustria, han tenido como resultado impactos ambientales, así como la dificultad de supervivencia de las comunidades tradicionales y la perpetuación de sus conocimientos.
Palabras clave: Río São Francisco, Comunidades Tradicionales, Norte de Minas / MG.
Introdução
São denominadas de comunidades tradicionais os povos que constituem vínculo direto com o território onde se inserem utilizando seus recursos naturais como fonte de subsistência nas práticas cotidianas e para manifestação de suas tradições culturais, que são passadas de geração para geração na comunidade da qual fazem parte (BRASIL, 2007).
O Norte de Minas/MG, Mesorregião foco de estudo do artigo proposto, concentra pluralidade de comunidades tradicionais – quilombolas, vazanteiras, ribeirinhas, etc. que estabelecem forte vínculo com o Rio São Francisco e seus afluentes (Figura 1), de modo que suas atividades cotidianas e culturais dependem essencialmente da interação dos indivíduos com esses cursos d’água.
Importante elemento integrador de comunidades tradicionais, o Rio São Francisco perpassa por parte significativa dos municípios que integram o Norte de Minas e, ao longo de suas margens, define características peculiares de ocupação de comunidades que se relacionam com suas cheias e vazantes, cotidianamente, na realização de travessias, nas atividades domésticas, como a pesca e as diversas formas de cultivo, no uso de seus simbolismos para manifestação de suas tradições culturais. É no Rio São Francisco, elemento dinâmico, que homens, mulheres e crianças estabelecem íntima relação utilizando o curso d’água como fonte de sustento, nas práticas de higiene, nas brincadeiras, no transporte, na perpetuação das crenças, narrativas e rituais (ARAÚJO, 2009).
Historicamente, o rio exerceu influência no desenvolvimento dos municípios que fazem parte do Norte de Minas, tendo como abrangência de atuação:
[...] o Alto São Francisco – das nascentes na Serra da Canastra (MG) até a cidade de Pirapora (MG); o Médio São Francisco – de Pirapora (MG) até Remanso (BA); O Submédio São Francisco – de Remanso (BA) até Paulo Afonso (BA); e o Baixo São Francisco – de Paulo Afonso (BA) até a foz, entre Sergipe e Alagoas (IEPHA, 2015, p. 25-26).
Como parte dos povos tradicionais mencionados, na região do Médio São Francisco encontra-se inserida a Comunidade Quilombola Bom Jardim da Prata, que ocupa a área rural do Município de São Francisco. Essa comunidade tem lidado com desafios vinculados ao direito de permanência no território onde se encontram inseridas e na perpetuação de suas tradições diante da dissolução de seus laços sociais e ameaças frequentes de remoção.
Nesse sentido, é importante mencionar que, ao mesmo tempo em que o Rio São Francisco constitui importante fonte de sustento para comunidades tradicionais, a riqueza de suas terras adjacentes para cultivo e a possibilidade de apropriação desse curso natural para geração de energia, transporte, alimentação, entre outros recursos vinculados ao rio, tem induzido a constantes disputas pelo território e provocado usos predatórios, sobretudo por parte de grandes empresas e fazendeiros que fazem uso indiscriminado dessa fonte de vida para obtenção de benefícios econômicos. Não obstante, torna-se comprometido o manejo sustentável do Rio São Francisco e seus afluentes diante dos riscos socioambientais oriundos dessa relação exploratória.
Assim, define-se como objetivo deste artigo analisar os conflitos socioambientais provenientes da relação estabelecida entre comunidades tradicionais e agentes econômicos com o Rio São Francisco.
Considera-se relevante essa abordagem tendo em vista que, apesar de já serem desenvolvidas algumas pesquisas sobre Comunidades Tradicionais e conflitos socioambientais no Norte de Minas, como exemplo as produções acadêmicas de Anaya (2012); Araújo (2009); Dourado (2015); entre outros importantes exemplares para compreensão dessa temática, a carência de pesquisas sobre a Comunidade Quilombola Bom Jardim da Prata e sua relação com o Rio São Francisco/MG, bem como os conflitos fundiários existentes tornam essencial o estudo proposto diante das ameaças de remoção que a comunidade está sujeita e necessidade iminente de legalização da sua permanência no território.
Destaca-se também que o artigo proposto constitui desdobramento de tese de doutorado defendida na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) por Amaro Sérgio Marques, em 2018, e de estudos conduzidos em grupo de pesquisa denominado Espaços Rurais e Povos Tradicionais, na Faculdade Santo Agostinho - Montes Claros/MG, além de pesquisas realizadas de modo informal. Ressalta-se que as pesquisas de campo foram realizadas entre os anos de 2015 e 2018, durante o período que compreende o desenvolvimento da tese de doutorado de Amaro Sérgio Marques e a realização das reuniões no grupo de estudo mencionado.
Materiais e métodos
Sobre os métodos de pesquisa, é proposta investigação de base qualitativa e utiliza-se como fontes de consulta principais teses, dissertações e artigos que abordam o histórico e conflitos socioambientais relacionados com o Rio São Francisco, bem como a sua relação com as comunidades tradicionais. Para tanto, recorre-se como principais fontes bibliográficas, dentre outras publicações relevantes para a discussão proposta, o inventário cultural do Rio São Francisco produzido pelo IEPHA (2015); e as teses que tratam sobre conflitos socioambientais relacionados com o Rio São Francisco e características culturais de comunidades tradicionais produzidas por Souza (2013); Marques (2018) e Silva (2017). Se encontram inseridas ao longo do trabalho fotos e cartografia de autoria própria, resultado de pesquisas de campo realizadas, que possibilitam espacializar as peculiaridades do território em questão.
No que tange à estrutura do artigo, na primeira parte será abordada a importância do Rio São Francisco como elemento integrador das comunidades tradicionais do Norte de Minas e manejo de seus recursos sob a perspectiva da sustentabilidade, dando destaque para o histórico de ocupação das suas margens e os impactos socioambientais que tem influenciado negativamente na sua manutenção; já na segunda parte serão analisadas as Comunidades Tradicionais do Norte de Minas e questões relacionadas com territorialidade e perpetuação de seus saberes; e, por fim, em considerações finais é apresentada uma análise crítica sobre as condições atuais do Rio São Francisco, com ênfase para os conflitos socioambientais e de território.
Nesse sentido, será abordado o conceito de território à partir da apreciação dos trabalhos de Raffestin (2005), Suertgaray (2001) e Santos (2006), todos de grande importância para a análise da relação entre a Comunidade Quilombola Bom Jardim da Prata, os agentes econômicos e a porção do território pertencente a bacia hidrográfica do Rio São Francisco.
O conceito de território e o Rio São Francisco
Para a Geografia, o conceito clássico de Território[1] pode ser definido como o domínio e apropriação de uma área, em que se predominam relações de poder (SUERTEGARAY, 2001). Nesse sentido, o poder hegemônico exerce grande influência na produção do espaço ocupado, voltado, sobretudo, ao atendimento dos seus interesses econômicos e políticos.
Tal situação provoca uma visão reducionista do espaço na sua complexidade social e cultural e resulta na prevalência de interesses individuais em detrimento aos coletivos, ou seja, muitas vezes são frequentes conflitos entre dirigentes e a sociedade civil ou comunidades que imprimem outras perspectivas sobre o conceito de território, tendo em vista sua valorização enquanto suporte para manifestações socioculturais construídas cotidianamente.
Santos (2006) coloca que “com a presente democracia de Mercado, o território é suporte de redes que transportam as verticalidades, isto é, regras e normas egoísticas e utilitárias (do ponto de vista dos atores hegemônicos), enquanto as horizontalidades levam em conta a totalidade dos atores e das ações”. Assim, de acordo com o autor, o território engloba inúmeras forças que estão em constante transformação e ressignificação. Nesse contexto, as forças verticais que incidem conforme interesses de mercado, muitas vezes não estabelecem vínculos com a realidade local e podem provocar reações contrárias a essa lógica tecnocrática e hegemônica de apropriação do espaço.
Portanto, entende-se que para a compreensão das questões territoriais é necessário que as reflexões envolvam tanto os macroatores, que constituem estruturas organizacionais verticais, quanto também os microatores, que na escala do lugar promovem relações horizontais por meio de ações colaborativas que são construídas coletivamente (SANTOS, 2006). Nessa conjuntura, Bessa (2011, p.37) define o lugar como “[...] a parte do território que, obrigatoriamente, resulta das relações afetivas dos homens com o meio, ecológico e/ou técnico, dos homens com os homens, onde se cria uma relação de pertencimento [...], uma identidade entre comunidade e sítio”.
Ou seja, no território se encontram vinculadas as memórias afetivas e as relações sociais que fortalecem o sentimento de pertença de indivíduos ou comunidades em relação a um lugar, ressaltando que na contemporaneidade esse campo de forças que atua na construção de um território promovem, não só relações de dominação, mas também redes de relações (SUERTEGARAY, 2001) que expressam “[...] vínculos sociais, simbólicos e rituais que os diversos grupos sociais diferenciados mantêm com seus respectivos ambientes biofísicos” (LITTLE, 2002, p. 263).
Para Raffestin (2005), o território é produzido por atores através da energia e da informação, ou seja, da efetivação no espaço, das redes de circulação-comunicação, das relações de poder, das atividades produtivas, das representações simbólicas e das malhas. Para o autor, o território é o lugar de todas as relações, espaço político onde há coesão, hierarquia e integração através do sistema territorial.
Sobre as relações que as comunidades estabelecem com o território, Little (2002) observa que as apropriações se vinculam ao entendimento da terra como espaço de uso comum, o que difere da visão hegemônica que distingue terras de domínio público de propriedades que são reconhecidas como de posse individual e privada. Nesse sentido, é frequente em comunidades tradicionais o uso coletivo de terras, que muitas vezes foram ocupadas por seus ancestrais sem a demarcação de propriedades, bem como conflitos agrários oriundos dos interesses de grileiros, sitieiros, fazendeiros, entre outros, agentes interessados em estabelecer posse sobre territórios economicamente importantes. Ademais, a manutenção desses povos tradicionais em seus territórios torna-se um desafio, bem como, a perpetuação de seus modos de viver, de seus saberes e de suas tradições.
Algumas comunidades estabelecem forte vínculo com os seus ambientes biofísicos por dependerem diretamente de seus recursos para subsistência e para manterem vivas tradições, rituais, simbolismos que estão imbricados nas relações cotidianas construídas entre os indivíduos e o meio onde se inserem. Conceitualmente conhecidos como Povos e Comunidades Tradicionais, de acordo com o Decreto Federal nº. 6.040 de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, esses grupos estabelecem forte vínculo com seus territórios tradicionais, já que dependem do meio para reprodução de suas tradições culturais, para vivência social e para economia de subsistência (BRASIL, 2007).
No Norte de Minas/MG é frequente a presença de comunidades tradicionais como “geraizeiros, pescadores, ribeirinhos, barranqueiros, quilombolas, indígenas, remeiros, vazanteiros, veredeiros, campineiros, catingueiros, chapadeiros” (IEPHA, 2015, p.32) que se estabelecem nas margens do Rio São Francisco. Ainda, no decorrer do curso d’água, que perpassa por vários municípios e que é dividido em quatro zonas de influência - Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco, são peculiares as formas de ocupação e de manifestação de práticas culturais (IEPHA, 2015).
É importante destacar que a posição estratégica do Rio São Francisco, que historicamente favoreceu o processo de interiorização da ocupação do território brasileiro por meio do estabelecimento de povoados e fazendas em suas margens induziu, tanto a abertura de estradas e caminhos ao longo dos séculos XVIII e XIX (ARRAES, 2013), como também contribuiu para a pluralidade cultural pela diversidade étnica territorial presente no Norte de Minas, onde o curso d’água atua de maneira histórica como elemento integrador das comunidades tradicionais.
O Rio São Francisco como elemento integrador das comunidades tradicionais do norte de minas e manejo de seus recursos sob a perspectiva da sustentabilidade
O Rio São Francisco possui grande importância para a ocupação do território mineiro, uma vez que as primeiras incursões com finalidades de povoamento do território ocorrem no seu eixo no sentido sul, a partir das bandeiras que partiram do Recôncavo Baiano na segunda metade do século XVI e da expansão pastoril realizada pelos baianos, que adentraram o território do médio São Francisco após as incursões bandeirantes (MOREIRA, 2010).
Anterior à chegada dos portugueses ao Brasil, às margens do Rio São Francisco foram foco de ocupação por diversos povos nativos, que encontraram às suas margens condicionantes positivas para o estabelecimento de assentamentos, provisórios e permanentes, ressaltando ainda que as expedições bandeirantes, formadores dos núcleos urbanos atuais e de comunidades tradicionais que, em maior ou menor intensidade, exerceram impactos na estrutura do curso d’água e na sua relação com a paisagem circundante (IEPHA, 2015).
A ocupação do médio São Francisco se iniciou na segunda metade do século XVII, a partir das expedições baianas que tinham como objetivo cessar as invasões dos nativos e dos negros aquilombados no sertão (COSTA, 2000), dentre os quais Matias Cardoso de Almeida, que fundou diversos arraiais e fazendas ao longo do Rio São Francisco, destacando-se o arraial de Morrinhos, posteriormente batizado com o nome do bandeirante de origem açoriana.
O desenvolvimento da região se deu a partir da expansão pastoril realizada pelos baianos, que adentraram o território do médio São Francisco. Essa situação foi impulsionada pelo interesse de ocupação da área do vale, já que apresenta topografia favorável e a falta do recurso hídrico, que se verifica a poucos quilômetros do eixo do curso d’água, não seria um empecilho para as criações de gado. Reforçando a importância do povoamento da região vinculado à prática pastoril, Pedro Taques de Almeida, no ano de 1700, classificou o Rio São Francisco como rio dos currais (MAGALHÃES, 1944), ressaltando que a ocupação se deu em período anterior à descoberta do ouro em Minas Gerais, ou seja, a expansão pastoril tinha como finalidade abastecer de carne e couro os principais núcleos urbanos litorâneos das Capitanias localizadas no nordeste do Brasil (ARRAES, 2013).
Com a ocupação e o povoamento das margens do Rio São Francisco, iniciados na segunda metade do século XVII originaram-se inúmeros povoados às margens do São Francisco além do povoado de Morrinhos, destacando-se os povoados de Brejo do Salgado (Januária), São Romão e Pedras dos Angicos (São Francisco), fundados entre o último quartel do século XVII e o primeiro quartel do século XVIII. Nesse contexto, é importante observar a importância do eixo do rio São Francisco como estratégia para o povoamento das terras do interior do Brasil (CAMELO FILHO, 2005), ao mesmo tempo que a vocação agropastoril do vale do São Francisco garantiu o abastecimento de carne da região das minas, ressaltando que a descoberta e o povoamento da região se deu a posteriori ao início da ocupação do médio São Francisco.
A descoberta do ouro na região central de Minas Gerais e a consequente intensificação das relações comerciais entre o sertão dos currais e a região das minas, fatores que fizeram do médio São Francisco um caminho natural e de tráfego constante (ANTONIL, 1837), contribuiu não só para a consolidação dos povoados e das fazendas de gado, sal, aguardente e couro da região do Rio São Francisco, mas também para o poderio dos grandes fazendeiros, que passaram a exercer influência na região das minas, principalmente no sertão mineiro, uma vez que a presença da Coroa Portuguesa na região era quase inexistente (SAINT HILAIRE, 1975).
Ao longo do século XVIII e primeira metade do século XIX, o vasto território do médio São Francisco se encontrava povoado de maneira esparsa, concentrando ao longo do curso d’água as principais povoações e na porção do território mais afastada alguns povoados e as fazendas de gado. Nesse contexto, a consolidação dos povoados e das fazendas localizadas no médio São Francisco mineiro deve-se não só ao fato do desenvolvimento das estradas e caminhos terrestres, mas também à navegação fluvial, intensificada ao longo dos séculos XVIII e XIX com a região central de Minas Gerais via rio das Velhas, uma região onde se concentrava grande parte dos depósitos auríferos, ao mesmo tempo em que a diversidade racial na região, povoada por índios, africanos escravizados e portugueses (ARRAES, 2013), possibilitou a formação de uma paisagem singular em Minas Gerais, com características multiculturais.
É importante observar que a partir do eixo do Rio São Francisco irradiou-se o povoamento de grande parte do Norte de Minas Gerais, dentre as quais se destacam as cidades de São Francisco, São Romão, Januária, Coração de Jesus e Montes Claros, núcleos urbanos surgidos no período compreendido entre a segunda metade do século XVII e a primeira metade do século XVIII e que ainda exercem notável influência na porção do médio São Francisco localizada no estado de Minas Gerais. O curso d’água, ao longo do século XIX, passou a despertar o interesse do governo imperial, que sob a alcunha “rio da integração nacional”, patrocinou inúmeros estudos e pesquisas que visavam o desenvolvimento da navegação e da economia, em um momento em que se buscava a construção de uma identidade nacional a partir de uma forte base de imaginação e expansão territorial, no qual o extenso curso d’água se apresentava como um dos principais símbolos da integração brasileira (KIDDY, 2010).
Dentre essas apropriações do Rio São Francisco, ganham destaque, principalmente a partir do século XX, as intervenções técnicas que o curso d’água sofreu em relação aos interesses econômicos de produção de energia e de urbanização para controle de sua vazão. Assim, com exceção do trecho que percorre o Parque Nacional da Serra da Canastra, presencia-se, ao longo do seu trajeto, a construção de usinas que evidenciam o potencial econômico da perenidade do rio como fonte de alimentação de centrais hidrelétricas (SILVA, 2017).
Contudo, se por um lado a construção dessas represas representam poder econômico e progresso no desenvolvimento nas regiões onde são implantadas, por outra perspectiva, resultam em impactos ambientais em função das alterações nas condições naturais do rio e consequências socioculturais, visto que muitas famílias rurais acabam sendo removidas de seus locais de origem para a realização dessas obras de grande magnitude (SILVA, 2017). Nessas condições se presenciam não só implicações negativas na manutenção do ecossistema e equilíbrio ambiental dessas regiões, como também a perda de laços sociais, das condições de subsistência e de valores simbólicos que se encontravam enraizados nas comunidades que se estabeleciam próximas ao rio.
Além disso, a apropriação das águas do Velho Chico por meio de projetos de irrigação vinculados ao agronegócio, como é o caso dos Projetos Jaíba, Lagoa Grande e Gorutuba, empreendidos pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (CODEVASF), mostram o interesse de exploração de suas águas para suprir, sobretudo, demandas de mercado relacionado à exportação de produtos agrícolas. Nesse sentido, apesar de tais intervenções propiciarem o aumento de produtividade na área delimitada pelo Polígono das Secas, tornaram-se frequentes problemas decorrentes do uso de fertilizantes e agrotóxicos que alteram significativamente o meio natural, resultando em maiores oscilações do volume de água do rio, na perda de qualidade da água e do solo, que se torna mais salino, e no comprometimento da biodiversidade (OLIVEIRA, 2012).
Ademais, além de serem crescentes os conflitos agrários manifestados por diferentes grupos sociais que se apropriam de áreas adjacentes ao São Francisco como grileiros, posseiros e fazendeiros e que, muitas vezes, mostram interesses divergentes de apropriações do rio e seus recursos vinculados ao caráter de exploração predatória, essas intervenções técnicas que têm sido realizadas na trajetória de vida do Rio São Francisco tem provocado impactos nas suas condições de cheias e vazantes, na redução de peixes diante da mudança das rotas migratórias com as barreiras físicas provenientes da instalação das usinas, na devastação das matas ciliares, das lagoas marginais e dos modos de vida de comunidades tradicionais que dependem diretamente de seus recursos para sobrevivência (SILVA, 2017).
Nessa perspectiva desequilibrada de manutenção do Rio São Francisco, que já se encontra debilitado, os interesses econômicos de empresas multinacionais que se beneficiam com a produtividade associada ao curso d’água acabam sobrepondo os interesses coletivos de utilização sustentável de seus recursos por comunidades rurais e tradicionais para subsistência (Figura 2).
Vale destacar que no Norte de Minas sobressai uma diversidade social de comunidades que se apropriam das margens do Velho Chico como “quilombolas, indígenas, ribeirinhos, barranqueiros, vazanteiros, geraizeiros, veredeiros [...]” (IEPHA, 2015, p. 35), que estabelecem contato direto e permanente com o meio natural onde se situam.
Essas comunidades, que detém amplo conhecimento sobre o território e que utilizam técnicas tradicionais para manejo dos recursos naturais, muitas vezes contribuem para manutenção da cobertura vegetal e da biodiversidade em função do uso consciente dos recursos naturais e de ações de monitoramento e de conservação da paisagem, além de estabelecerem uma relação peculiar com o meio onde se encontram, já que utilizam parte de suas terras de modo coletivo, sem a instituição de propriedade privada. Tal situação tem influenciado em ameaças de remoção por conta de impasses fundiários. Desse modo, além da progressiva escassez de recursos que as comunidades tradicionais e rurais têm lidado diariamente por conta das ações predatórias no Rio São Francisco, convivem também com as incertezas de permanência no território, bem como de perpetuação de seus saberes tradicionais.
Nessa perspectiva, destaca-se como Comunidade que se estabelece nas margens do Rio São Francisco a Comunidade Quilombola Bom Jardim da Prata, que ocupa sua porção Média, inserida dentro dos limites rurais do município São Francisco.
Comunidades tradicionais do Norte de Minas: territorialidade e relações simbólicas inerentes ao Rio São Francisco
O vale do Rio São Francisco, conhecido também como o Velho Chico ou por muitos indígenas como Opará, têm sido ocupado desde o século XVI por diversas comunidades tradicionais que se estabeleceram ao longo de seu curso (ROCHA, 2004).
No norte do Estado de Minas Gerais, na zona rural do município de São Francisco, está situada na margem esquerda do Velho Chico a comunidade quilombola de Bom Jardim da Prata (Figura 3), que teria se constituído no final do século XIX, conforme relatos dos moradores da região. Como tantas outras, essa comunidade possui forte vínculo com o rio e suas margens. Nesse ponto, é importante destacar que além dos quilombolas, vivem ainda nesse território - numa espécie de mosaico, - vazanteiros, agricultores familiares, sitieiros, fazendeiros e outros moradores dispersos ou agrupados em pequenas vilas. Nesse contexto, também foi apontado que não existe consenso quanto à criação do território quilombola, uma vez que muitos moradores da região não se filiaram à associação quilombola de Bom Jardim da Prata, bem como não se reconhecem ainda como quilombolas.
Assim, para o cotidiano dos moradores, o rio torna-se o meio de transporte, fonte de abastecimento, lazer, e contribui para o exercício de outras tantas atividades corriqueiras como local para lavar vasilhas e roupas, tomar banho, realizar a pesca no barranco e nas canoas e o plantio nas vazantes e várzeas.
Nesse território quilombola, os espaços domésticos são ampliados e compartilhados pela comunidade, tornando-se indispensáveis para o sustento das famílias que lá vivem. Então, além da casa e dos quintais, o forte vínculo dessas comunidades com os rios, ilhas, veredas, lagoas, várzeas e vazantes são fundamentais para a compreensão das questões territoriais estabelecidas no vale do médio Rio São Francisco.
No contexto do uso do rio e de suas margens, incluindo ainda as lagoas, ilhas e veredas, é fundamental situar o processo de cheias do Velho Chico. Assim, no período das chuvas, o rio pode extravasar do seu leito normal e inundar uma enorme planície que formam as várzeas e as vazantes, onde vivem os moradores do Bom Jardim da Prata. Essas áreas inundadas tornam-se extremamente férteis, sendo assim disputadas por fazendeiros, sitieiros e por membros de comunidades tradicionais.
Outros elementos que conformam pontos de referências territorial no quilombo são as antigas casas de farinha. Esses espaços quase sempre estão localizados próximos às casas dos moradores da comunidade, sendo construídas com materiais do lugar, como madeiras retiradas nas matas e cobertura em palha da palmeira do buriti. Nessas locais, é comum a colheita da mandioca de forma coletiva e o preparo da farinha de modo semelhante. Todos esses processos são uma forma de perpetuação dos saberes tradicionais que ainda estão sendo difundidos no vale do médio São Francisco. Percebe-se ainda o uso das técnicas de construção vernaculares, como o uso do pau-a-pique e da taipa de mão. Além do uso de madeira nativa retirada nas matas da região para construção de currais, chiqueiros, galinheiros e paióis.
Todavia, é importante salientar que a dinâmica de uso desse território foi profundamente alterada com o processo de cercamento e a chegada das grandes firmas agropastoris e de reflorestamento, desde os anos de 1960. Os antigos moradores do quilombo sofreram o impacto das novas relações econômicas que modernizaram a região, em um processo de encurralamento, no qual os quilombolas, vazanteiros e outros moradores de comunidades rurais foram perdendo suas terras e o acesso aos rios existentes nos territórios ocupados (MARQUES, 2018).
Além do acirramento da disputa pela posse de terras, ainda ocorre o crescente interesse dos grandes grupos econômicos da região e de outras partes do país pelo domínio e uso dos recursos hídricos. Nesse caso, os fazendeiros e sitieiros restringem o acesso dos moradores de Bom Jardim às veredas, rios e lagoas, outrora utilizados pela comunidade antes do cercamento das terras. Então, a disputa por terras passou também para o controle e uso dos recursos hídricos.
No semiárido mineiro, a água também é um elemento de cobiça e de grande valor econômico. Não é sem motivo, que cada vez mais, grandes empreendimentos que utilizam da irrigação, através de pivôs centrais, têm se estabelecido no vale do Médio São Francisco com o plantio de produtos para o mercado interno e para a exportação.
Os territórios, outrora de uso comum, tornaram-se particulares e onde os quilombolas de Bom Jardim da Prata não podem mais utilizar para a coleta de frutos do cerrado, bem como, fazer uso da caça e da pesca, elementos fundamentais para o sustento de suas famílias. No período de dezembro a fevereiro, os moradores da comunidade fazem a colheita do pequi, não respeitando muitas vezes as novas cercas e limites estabelecidos pelos fazendeiros e sitieiros da região. Nesse processo, adultos, crianças e jovens unem-se com o objetivo de incremento de renda através da extração do pequi (que pode ser comercializado na forma de fruto ou do óleo). Para tanto, fazem a travessia do São Francisco por balsa (Figura 4), canoas ou pelos barquinhos, situados próximo à Vila de São Francisco de Assis e ao Restaurante Peixe Vivo, já na margem direita do rio (MARQUES, 2018).
Também, é através do Velho Chico que os membros das comunidades tradicionais fazem os longos percursos para visitar seus parentes de outras localidades. Então, o rio torna-se a única forma de conexão do quilombo com a sede do município de São Francisco, onde estão os serviços essenciais que os moradores necessitam para sua sobrevivência.
Relatos dos antigos moradores mostram que essa ligação com o rio São Francisco era também estabelecida de forma econômica. Na época da navegação, principalmente no início do século XX, os barcos a vapor (como o Guimarães Rosa - ancorado atualmente no porto de Pirapora), faziam a ligação dos estados do nordeste com a região sudeste através dessa importante rota fluvial. Os moradores das margens, que na época não eram conhecidos ainda como quilombolas, possuíam pequenos portos, que abasteciam de lenha, carne de sol, aguardente, rapadura, farinha de mandioca, e outros produtos que eram comercializados nesta região. Com a construção da barragem de Três Marias, bem como os longos períodos de seca, além do incentivo ao transporte rodoviário, houve o abandono do transporte pelo rio São Francisco, colocando essa região no ostracismo e depressão econômica (MARQUES, 2018).
Outro aspecto importante da relação dos quilombolas com o Velho Chico, diz respeito às narrativas do lugar. Para os mais idosos da comunidade de Bom Jardim da Prata, existiriam seres míticos, como o caboclo d'água e a mãe d'água com função de “guardiões” do rio. Nessa perspectiva, o caboclo d'água, também chamado de "cumpadi", seria um homem, baixo, negro, que apareceria nas margens ou dentro do rio São Francisco, assustando os ribeirinhos. Ele teria poderes sobrenaturais, como o poder de afundar barcos, romper as redes de pesca e parar embarcações no meio do rio. Por ser muito exigente e melindroso, o "cumpadi" deveria ser agradado com mimos, como cachaça e fumo de rolo; e, caso ele aceitasse essa espécie de oferta, os moradores poderiam fazer a travessia do rio em segurança, ou mesmo obter sucesso em uma pescaria. Com isso, essas narrativas foram sendo passadas dos mais velhos aos mais jovens da comunidade até o tempo presente, sendo parte do patrimônio imaterial do quilombo.
O território do quilombo também engloba algumas ilhas, que são formadas dependendo do período de cheias e das vazantes do rio. Os quilombolas utilizam as ilhas para plantar feijão, mandioca, arroz e abóbora, e para a criação de pequenos animais. Essas áreas são cobiçadas pelos moradores da comunidade por serem mais férteis que as demais áreas da região. Os quilombolas utilizam canoas rústicas para fazer a travessia às ilhas e apenas algumas famílias mais tradicionais fazem uso efetivo dessas terras. A divisão desse território é feita com pequenos marcos de madeira fincadas ao solo, mas não existem cercas, e todos parecem respeitar os limites. Não existe atualmente o sistema de plantio em forma de mutirão, cabendo o cultivo da terra aos membros de cada família.
Sobre o manejo sustentável do Rio São Francisco e os impactos decorrentes de seu uso predatório, nas últimas décadas os moradores do quilombo vêm percebendo alterações significativas com relação a disponibilidade dos recursos naturais - principalmente com o ciclo das cheias e vazantes do rio São Francisco, bem como outros problemas ambientais que impactam todo o vale. Em certa medida, como ocorre em outras comunidades quilombolas pelo Brasil, os moradores de Bom Jardim da Prata afirmam perceber o aumento dos períodos de seca, o desaparecimento das veredas, a diminuição do volume de vazão dos córregos e rios que cortam o território, a menor qualidade da água e a diminuição da disponibilidade de peixes no São Francisco e em seus afluentes, além do aumento do desmatamento no vale (FIDELIS; BERGAMASCO, 2013, p. 93-94).
Ademais, apontamos os impactos socioambientais nos principais afluentes do São Francisco na área do quilombo, como nos rios Pardo, Bom Jardim e Acari. Desde a década de 1950, a margem esquerda do São Francisco vêm sendo explorada economicamente de forma predatória. Assim, parte da cobertura natural cedeu espaço às áreas de pasto, com fins a criação de gado de corte (MARQUES, 2018).
Já nas décadas de 1970 e 1980, grandes empresas de silvicultura atuaram no território quilombola e, suas ações exploratórias, resultaram no desmatamento e substituição de mata nativa por espécies exógenas, como o eucalipto. Muitos desses empreendimentos foram abandonados em virtude da baixa fertilidade do solo, todavia, não foram recuperadas as áreas degradadas por essas empresas. Nesse contexto, foram instalados grandes projetos de irrigação para fruticultura, com fins ao mercado interno e para exportação, por meio da retirada de expressivo volume de água das lagoas e das veredas do São Francisco e dos afluentes já citados. Esses projetos de irrigação, conforme relatos dos moradores do quilombo, ocasionaram a seca de algumas fontes de água (MARQUES, 2018).
Ademais, é importante mencionar que apesar desses empreendimentos oferecerem empregos para os moradores do município de São Francisco e do quilombo, geraram impactos decorrentes do uso de defensivos agrícolas, bem como, devido à ampliação do desmatamento, principalmente ao longo dos cursos d'água da região. Não menos importante e danoso ao meio ambiente foram as construções de estradas rurais, que vêm contribuindo para o assoreamento das veredas e cursos d’água, além da ampliação de vilas de forma desordenada e do turismo através de sítios para pescaria, cercando as margens dos rios e lagoas da região.
É possível apontar que os problemas socioambientais no Vale podem estar associados à construção de barramentos, como o da represa de Três Marias, que desde 1956 é responsável por regular o volume de água no rio São Francisco. Anteriormente, eram comuns as cheias e as vazantes e, com isso, era possível o sustento das populações tradicionais e ribeirinhas que ocupavam essa região, ora plantando nas ilhas, nas várzeas ou nos terrenos mais altos, dependendo do ciclo natural do rio. Com a alteração do volume de águas causada pela barragem de Três Marias, os moradores têm encontrado dificuldade de obter o seu sustento, uma vez que sem as vazantes e com a ampliação dos períodos de seca, o cultivo depende quase que exclusivamente de métodos de irrigação, dos quais os moradores do quilombo não têm acesso (MARQUES, 2018).
Assim, a problemática que envolve a apropriação dos recursos naturais do Rio São Francisco e seus impactos decorrentes envolve, entre outras questões, a construção da barragem de Três Marias, que provocou a alteração nas cheias e vazantes do rio, e o desaparecimento de parte das ilhas e das lagoas, que eram consideradas os berçários naturais do rio. Ainda, verifica-se como consequências dessa ação a diminuição da pesca e, como outros usos predatórios decorrentes do avanço da silvicultura e da criação de gado, o aumento da retirada de areia para a construção civil - facilmente detectado pelo fluxo constante de caminhões - e da água do rio para irrigação. Essas condições reforçam a busca das comunidades tradicionais por outras fontes de sustento, evidenciado por meio do avanço do trabalho sazonal (principalmente para a região de São Gotardo) e os processos migratórios, que têm provocado o esvaziamento do quilombo.
Nesse sentido, se o Rio São Francisco era visto, ao longo do histórico das apropriações que ocorriam nas suas margens, como elemento integrador e fonte de sustento de comunidades tradicionais, no contexto atual, cada vez mais se depara com a apropriação indiscriminada de seus recursos voltado, sobretudo, a obtenção de lucros por meio da implantação de Usinas Hidrelétricas, que tem resultado no descontrole das cheias periódicas do rio e no empobrecimento do solo de suas margens em função das atividades agrícolas de monocultura voltadas à exportação.
O rio tem sido, nesse contexto, visto como elemento de disputa por grandes proprietários de terra e empresas interessadas em processos de exportação de produtos agrícolas (leia-se aqui o agronegócio) e vinculadas à implantação de barragens, o que tem intensificado a fragmentação do território ocupado por comunidades tradicionais, bem como, provocado a perda de seus laços sociais e a rarefação dos recursos destinados à subsistência. Não obstante, povos como da comunidade quilombola Bom Jardim da Prata lidam com ameaças de remoção de seus territórios historicamente ocupados diante dos impasses fundiários existentes.
Assim, torna-se cada vez mais emergente a adoção de políticas públicas que reconheçam o direito dos povos tradicionais de usufruírem dos recursos naturais de seus territórios para subsistência, bem como, que assegure o direito à permanência. Nesse contexto, apesar de haver esforços por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) no processo de reconhecimento de posse do território por comunidades tradicionais, o processo burocrático resulta em um longo percurso nesse reconhecimento, tendo em vista os trâmites legais de demarcação territorial, na elaboração de laudo antropológico e na identificação dos proprietários e comunidades ocupantes da região. No caso específico da Comunidade Quilombola de Bom Jardim da Prata, um dos critérios utilizado pelo INCRA para demarcação das terras é a análise da rede hidrográfica, considerando marcos e limites naturais existentes como córregos, lagoas, rios que inclusive são relatados como fonte de sustento por comunidades. Contudo, apesar da luta dos quilombolas no reconhecimento da posse do território desde 2015, a ausência de prazo de finalização desse processo tem contribuído para o enfraquecimento dos laços sociais da comunidade, para o aumento da especulação imobiliária, para a permanência de grileiros na área e para instaurar permanente tensão nos quilombolas diante das ameaças de remoção (MARQUES, 2018).
Além disso, o direito à permanência nesses territórios muitas vezes é visto como inviável devido à ocupação por comunidades tradicionais de áreas que são consideradas de proteção ambiental (conhecidas como Área de Marinha - pertencentes à União), o que torna um impasse do ponto de vista legal ainda que a permanência das comunidades nessas áreas contribuam para a manutenção da cobertura vegetal e monitoramento de ações predatórias por parte de grandes empresas e proprietários de terra nas imediações das áreas de interesse ambiental.
Já em relação ao uso sustentável do Rio São Francisco, têm sido recorrente as discussões referentes aos impactos ambientais proveniente de políticas públicas, como o Projeto de Transposição do Rio São Francisco. O projeto, que tem origem nos anos de 1980 como ação desenvolvimentista do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), foi criado com o objetivo de trazer melhorias para as condições de seca da região do semiárido nordestino. Contudo, esse polêmico projeto de irrigação tem gerado posicionamentos controversos diante dos impactos ambientais decorrentes desse processo. Assim, a ampliação das culturas irrigadas com ênfase no interesse em potencializar as exportações pode resultar na maior contaminação do solo e dos recursos hídricos pelo seu uso indiscriminado, na valorização das terras nas margens do rio e, consequentemente, em processos de especulação, bem como, na perda de biodiversidade devido às alterações provocadas em seu curso natural (ROSSONI; ROSSONI; LIMA, 2013).
Considerações finais
O Vale do Médio São Francisco tem sido atravessado historicamente por diferentes processos de exploração econômica que causaram inúmeros impactos de natureza socioambientais, como já descrito neste trabalho. O que parece estar em jogo são as diferentes formas impostas para o desenvolvimento dessa região. Nesse contexto, as formas tradicionais de exploração do território (muitas delas ainda vinculadas às relações de solidariedade intrínsecas às comunidades ribeirinhas e quilombolas), e os processos ligados às relações econômicas dentro do capitalismo global, acabam por entrar em colisão, ao mesmo tempo em que a terra, os recursos hídricos e a biodiversidade da região são atualmente tratados como mercadorias, sendo, assim, fontes de disputa pelos diferentes atores sociais do vale.
Nessa disputa pelos recursos naturais, os antigos moradores do quilombo de Bom Jardim da Prata precisam se organizar através de associações e dos movimentos sociais para garantia do uso e da posse de seus antigos territórios, instituindo forças de resistência às tendências de exploração predatória do Rio São Francisco e suas adjacências. Atualmente com a chegada de um grande empresário (fazendeiro e dono de usina de álcool da região de Patos de Minas/MG) e de outros grileiros de terra ao território do quilombo, mais especificamente no Lajedo, criou-se um novo foco de tensão e de disputa territorial. Esse empresário em associação com os donos de cartório do município sede, bem como, com o apoio do aparato policial do Estado, já fizeram a prisão de membros da comunidade, bem como retiraram parte das antigas cercas e instituíram uma guarita com seguranças armados no acesso principal ao território.
Nessa perspectiva, o setor empresarial amplia seu raio de abrangência de atuação na região, evidenciado na implantação de usinas e na intensificação de novas atividades de pecuária e de agricultura de exportação vinculadas ao agronegócio. Destarte, podemos citar a ampliação da área irrigada no território do quilombo, do desmatamento e plantio de novas áreas de pastagens na margem esquerda do São Francisco, através das grandes firmas como do Grupo Araújo (da rede de drogarias); da CROS Agroindustrial, a maior empregadora do território do quilombo, ligada aos ramos da mineração e da construção civil; do Laticínios Caroba; do Grupo Indústria Siderúrgica Viana Ltda. (INSIVI), cuja sede fica em Sete Lagoas; e do Grupo Plantar, que cultivam extensas áreas de reflorestamento de eucalipto na região em estudo.
Assim, vivencia-se um cenário de degradação do Rio São Francisco, de suas margens e do território pleiteado pela comunidade de Bom jardim da Prata, em função das variações do volume de água de seu curso, no decréscimo da biodiversidade, do empobrecimento do solo e das ações de desmatamento. Em paralelo, as comunidades tradicionais que estabelecem relação direta com o território onde estão inseridas e que dependem da natureza para sobrevivência lidam com a escassez de recursos, com as limitações para perpetuação de seus saberes e das suas manifestações culturais diante da exploração predatória do rio e dos impasses fundiários existentes. Fato confirmado com a diminuição da produção da castanha do baru e da coleta dos frutos do cerrado, em função do desmatamento e da substituição da cobertura natural devido à expansão da agropecuária.
Apesar desse conflito entre forças econômicas e comunidades tradicionais estar bem delineado, espera-se por parte do poder público uma maior celeridade no encaminhamento dos diversos processos de titulação e de formação de territórios tradicionais nesta região. Quem sabe assim, com a mediação dos poderes constituídos, seja possível delinear uma nova conformação dos territórios em disputa, que possa garantir uma utilização dos recursos naturais de forma sustentável e com os princípios do etnodesenvolvimento.
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