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PROCESSOS DE TERRITORIALIZACAO E EFEITOS DA REGULARIZACAO FUNDIÁRIA RURAL NO NORTE DO ESTADO DE MINAS GERAIS: MEMÓRIAS DE DESAPROPRIACAO
Processos de territorialização e efeitos da regularização fundiária rural no Norte de Minas Gerais: memórias de desapropriação
Processos de territorialização e efeitos da regularização de terras rurais no Norte de Minas Gerais: relatórios de desapropriação
Revista Cerrados (Unimontes), vol. 19, núm. 1, 2021
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos


Recepção: 28 Setembro 2020

Aprovação: 07 Dezembro 2020

Publicado: 01 Janeiro 2021

DOI: https://doi.org/10.46551/rc24482692202102%20

Resumo: Ou apresentar artigo propée um estudo acerca das memórias de expropriao que deu cor e t'nica aos complexos processos de territorialização e, ainda, tra'aar os efeitos concretos das políticas de governo voltadas individualmente consideradas e também aos povos e comunidades tradicionais. A partir de uma abordagem dedutiva, prop-se a usa um método quantitativo-decritivo e a realizcao de uma pesquisa documental, exploratória e historiográfica, por meio de tratamento de rabo de cavalo e dados. A regularizacao fundiária rural de terras devolutas é marcada por um tensionamento decorrente das rela'es travadas entre os proprietários de terras (poder público), quer sob o prisma da contradi'o entre a bandeira, forma típica da ocupacao do interior, empresa privada e dirigida para fins e não interessa propriedade privada, e o próprio Estado. Como memórias de desapropriação, com cabelos xamântidos fundamentados "tempos", provocaram uma reconfigura.o do espacao agrário norte-mineiro e incidiram principalmente sobem como as populações tradicionais que viviam em regime de terras comuns. Nesse contexto, o pode-se também pensa em regularizar a fundição rural de terras devolutas com um territóriono qual tem agentes, indivíduos, atores e, consequentemente, posies e disputas simbólicas de um grande jogo social.

Palavras-chave: Territorialização, Regularização fundiária rural, Terras devolutas, Norte de Minas.

Abstract: Este artigo propõe um estudo sobre as memórias da desapropriação que deram cor e tônica aos complexos processos de territorialização e, também, para delinear os efeitos concretos das políticas governamentais voltadas para as pessoas consideradas individualmente e também para os povos e comunidades tradicionais. A partir de uma abordagem dedutiva, propõe-se utilizar um método quantitativo-descritivo e realizar uma pesquisa documental, exploratória e historiográfica, por meio da coleta e tratamento de dados. A regularização fundiária rural de terras desocupadas é marcada por uma tensão decorrente das relações entre os proprietários rurais (poder privado) e o Estado (poder público), seja sob o prisma da contradição entre a bandeira, forma típica da ocupação do interior, empresa privada e direcionada para fins e no interesse da propriedade privada, e do próprio Estado. As memórias da desapropriação, encarnadas pelos chamados "tempos", provocaram uma reconfiguração do espaço agrário norte-mineiro e se concentraram principalmente nas populações tradicionais que viviam sob o regime de terras comuns. Nesse contexto, pode-se pensar também na regularização fundiária rural de terras desocupadas com um território em que há agentes, indivíduos, atores e, consequentemente, posições simbólicas e disputas de um grande jogo social.

Keywords: Territorialization, Rural land regularization, Vacant lands, Northern Minas.

Resumen: Este artículo propone un estudio sobre las memorias de expropiación que dieron color y tónico a los complejos procesos de territorialización y, además, esbozar los efectos concretos de las políticas gubernamentales dirigidas a las personas consideradas individualmente y también a los pueblos y comunidades tradicionales. Desde un enfoque deductivo, se propone utilizar un método cuantitativo-descriptivo y realizar una investigación documental, exploratoria e historiográfica, mediante la recolección y tratamiento de datos. La regularización agraria de los terrenos baldíos está marcada por una tensión resultante de las relaciones entre los terratenientes (poder privado) y el Estado (poder público), ya sea bajo el prisma de la contradicción entre la bandera, forma típica de la ocupación del interior, empresa privada y dirigida a los fines y en interés de la propiedad privada, y del propio Estado. Los recuerdos de la expropiación, encarnados por los llamados “tiempos”, provocaron una reconfiguración del espacio agrario norte-minero y se centró principalmente en las poblaciones tradicionales que vivían bajo el régimen de comunas. En este contexto, también se puede pensar en la regularización del suelo rural de terrenos baldíos con un territorio en el que hay agentes, individuos, actores y, en consecuencia, posiciones simbólicas y disputas de un gran juego social.

Palabras clave: Territorialización, Regularización de tierras rurales, Terrenos baldíos, Norte de Minas.

Introdução

O ordenamento territorial mineiro possui um marco específico no século XVIII quando o norte de Minas Gerais ainda estava subjugado aos limites das Capitanias de Pernambuco e Bahia e, com a descoberta dos corpos minerários na região diamantífera, instaurou-se uma preocupação interna e externa (pela Coroa Portuguesa) em definir os contornos da Capitania de Minas Gerais, ordenar a fundação de Vilas e demarcar a jurisdição das freguesias para, a partir daí, estabelecer uma maior ingerência sobre as terras a serem exploradas pela atividade minerária (COSTA, 2019).

A partir do declínio do regime das sesmarias, perpassando pelo processo de formação da apropriação privada da propriedade (Constituição Imperial de 1824 e Lei de Terras de 1850) até se chegar ao período republicano, não se verificou a necessária e salutar separação das terras particulares das terras devolutas, circunstância que ensejou, a um só tempo, especulação imobiliária e conflitos fundiários que se perpetuam no tempo e no espaço.

Nesse contexto, apresenta-se a regularização fundiária como o conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à correção de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Portanto, o presente trabalho tem como objeto de investigação as memórias de expropriação que marcaram (e ainda marcam) os processos de territorialização e os efeitos práticos da regularização fundiária rural de terras devolutas no norte de Minas Gerais. Com isso, busca-se o exame dos efeitos práticos das políticas de regularização fundiária rural de terras devolutas implementadas pelo Estado de Minas Gerais e, principalmente, revelar, ainda que de forma aproximada, o estoque atual de terras devolutas que podem ser arrecadadas e franqueadas aos destinatários, individuais e coletivos, em todas as modalidades previstas em lei, como se verá ao longo do trabalho.

Os caminhos metodológicos percorridos para que os objetivos propostos fossem alcançados podem ser divididos em três etapas, sendo a primeira delas preparatória e apropriatória de toda temática e as demais relacionadas à coleta e tratamento dos dados bem como à revisão teórica em cotejo analítico com os dados coletados. Além disso, realizou-se pesquisa documental, exploratória e historiográfica.


Mapa 1
Minas Gerais Norte Mesorregiao[1]
Bispo (2020).

Ou acesso inicial a documentos, dados e relatórios tratados neste artigo deu-se, e não ânus de 2019, pela intermédio de profissionais do Centro de Referência em Direitos Humanos (CDRH Norte) e ex-servidores da antiga Superintendência de Territórios Coletivos (SUTEC). A partir daí, estabeleceram-se conexs diretas com atuais servidores y assessores da Subsecretaria de Assuntos Fundiários e da Superintendência de Arrecadacao e Gestcao Fundiária, ambos dão à Secretaria de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SEAPA) do Estado de Minas Gerais, além de membros da Comiss.o Especial Permanente com atribuição de identificação, descrimining, delimitação e detentor de territórios tradicionalmente ocupados por povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais.

Foram acessados os bancos de dados de 94 contratos de locação firmados com empresas e cooperativas, bem como processos administrativos e judiciais. Para complementar dois dados (e também conhecidos como um all), dialogou-se permanentemente com outras disserta'e teses sobre o tema. Tais etapas foram necessárias para demonstrar políticas de regularização rural de fundição rural de terras desvolute implementadas cabelo Estado de Minas Gerais e, principalmente, revelar, indicam que aproximadamente, ou atual stoque de terras devolute que podem ser alugadas e fraqueadas aos destinatários, individuais e coletivos, em todas as modalidades previstas em lei, como será visto ao longo do trabalho.

Territorialidade, tradi-o e memórias de desapropriação

A imensa diversidade sociocultural do Brasil é acompanhada por uma extraordinária diversidade fundiária. Como múltiplas sociedades indígenas e quilombolas, xamãs "terras de preto", "terras de santo" e como "terras de índio" que Almeida (1989) e os caboclos, caipiras, campeiros, jangadeiros, pescadores como quer Diegues e Arruda (2001),sem esquecer dois veredeiros, vazanteiros, apanhadores de flores, caatingueiros, quilombos sanfranciscanos, indígenas e geraizeiros, todos eles integrantes dos chamados "sete povos" (DAYRELL, 2019),t.o.

Como bases teóricas do pluralismo jurídico, segundo o que ou dereito produzido pelo Estado no é o único, ganhou vigorda CRFB/1988. Juntamente com elas e com as críticas ao positivismo, que historicamente confunde chamadas minorias dentro de docao de povo, também contemplaram foi ou direito diferenciado, enunciado ou reconhecimento de diaratos étnicos.

Ou diálogo que avansou ou limiar do novo mil'nino já estava colhendo os frutos da eclética Constitui'o cidad'e trouxe ' baila um novo ingrediente: uma perspectiva antropológica dois territórios. O caldo teórico-argumentativo que formou semeado daí serviria de lastro para a cria'o da chamada Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), instituído em 2007, pelo Meio do Decreto nº 6.040, numa clara demonstracao da relacao fato-norma.

A renovação da teoria da territorialidade ' luz da Antropologia parte de uma abordagem segundo a conduta territorial como parte integrante de todos os grupos humanos, para além dos limites geofísicos. Nessa ordem de ideias, Little (2002, p. 253) entende a territorialidade como ou "trabalho coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e identificar com um enredo específico de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu 'território' ou pátria".

Portanto, ou território pode, sim, ser visto como um produto das condutas de territorialidade de um grupo social, isto é, um resultado de processos social e políticos historicamente concatenados. Daí o porqué de Little (2002) valer-se dos noes de "condutas de territorialidade" e de "cosmografia" para justificar que, sem a historicidade dos grupos, nessas dimens-es culturais, não pode ser adquirido ou processo de formao dos territórios e, por lógica, das territorialidades.

Como transforma cabelo experiente O Brasil dura seculos é imbricado com processo incessante de expansão fronteiras. Com efeito, a história das fronteiras em expansão-o no Brasil e no Norte de Minas Gerais é, necessariamente territorial, já que às custas de um determinado grupo social, com sua própria conduta territorial, entra em choque com as territorialidades dois grupos que aí residem (LITTLE, 2002).

Nesse (re)fluxo, duas origens xamânicas "processos de territorializacao" (OLIVEIRA, 1998)emanando de contextos intersocietários de conflito, nós que uma conduta territorial surge quando terras de um grupo esto estão sendo invadidas, numa din'mica em que, sob o ponto de vista interna, a defesa do território torna-se fator um de a'o grupo ao passo que, externamente, como presses exercidas por outros grupos classes dominantes molda (ou imp-em) tipologias

Costa Filho (2013, p. 10),traz um não preambular de povos e comunidades tradicionais como "grupos culturalmente diferenciados, que possuem condi'es sociais, culturais e economia próprias, mantiveram rela'es específicas com o território e com o meio ambiente no qual está inserido".

Ele também apresenta uma abordagem interessante comensiva dos territórios tradicionalis como lugares de dimens simbólica onde s'o impressos os acontecimentos ou fatos que mantem viva a memória do grupo (COSTA FILHO, 2013). Além disso, é no território que se encontra como ancestrais enterrados, spas sagrados e também é onde é determinado ou modo de vida tradicional e é configurado como um lugar onde é passado os conhecem locais. Portanto, como conexões específicas que são grupos stabelecem com como terras tradicionalmente ocupadas e seus recursos naturais os tornam mais do que terras ou simples bens economicamente apreciáveis e passam a assumir, assim, a qualificacao de território.

Por isso diz-se que ou território implica dimens simbólico. Nele é impressos os acontecimentos ou fatos históricos que mant'm viva a memória do grupo; Nele é enterrado os ancestrais e encontra-se sagrado; ele determina ou modo de vida e pontos de vista do homem e do mundo; ou território é também apreendido e viveu a partir de dois sistemas de conhecimento local, ou seja, n'o há povo ou comunidade tradicional que n'o conheca profundamente seu território (SILVEIRA, 2014).

Frequência, povo territórios e comunidades tradicionalis ultrapassam, como político-administrativo (municipios) divisivos. Um território tradicional pode, assim, como explica Silveira (2014), find-se na confluncia de dois, tr's ou mais municípios, estados ou mesmo países. Portanto, nesse contexto, é considerar e respeitar a distribuição demográfica tradicional desses povos, quaisquer que sejam como unidades geopolíticas definidas estado de cabelo.

Por forca dessa circunst.ncia, não pode ser reduzido ou lugar para garoupador local, como já advertiu Escobar (2005). Ou colocar se faz na conexcao com os outros lugares e tantos englobando outros processos – "cosmoviscao"(ESCOBAR, 2005). Com efeito, sob a perspectiva dessa categoria lugar, e, consequentemente, tradicional do território, é que se pode compreender, com mais facilidade, como noes de tempo e espacao, como reivindicas de n'o isolamento dos grupos sociais enfim, romper como amarras típicas de uma zona de conforto que é enxerga ou que n'o se tem, ou que nos falta, e, aus. Dê uma necessidade premente para olhar para nossa lente para ou processo social de territorialização.

Já sob um novo contexto histórico, social e legislativo,Brandcao (2010), de suas pesquisas no regicao do Norte de Minas Gerais, define comunidades tradicionais como:

Sociocíticas grupos locais que desenvolvem: a) territoriais dinâmicos de vínculos com um espacao físico que se torna território coletivo pelo transformacao da natureza por meio do trabalho de seus fundadores que se instalam; b) um conhecer peculiar, resultando em múltiplas formas de relações integradas, eleitorais, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradi'o ou pela interface com como din'micas da sociedade envolvente; c) uma autonomia relativa para a reprodução de seus membros e da coletividade como uma articulação social totale com ou "mundo de para a", ainda que quase invisíveis; d) reconheciment de se como uma comunidade apresentar herdeira de nomes, tradiées, lugares socializados, direito de posses e provideito de um território ancestral; e) a atualidade pela memória da historicidade de lutas e de resisténcia não passado e nenhum presente para permanecer território não ancestral; f À experiência de vida em um território cercado e/ou ameacaado; g) atuais stratigias do acesso aos direitos, a mercados para bens menos periféricos e conservação ambiental. (BRANDo, 2010, p. 360-361) .

Os povos e comunidades tradicionais s'o, portanto, na esteira das liées de Little (2002),grupos culturalmente diferenciados, dotados de condi'es sociais, culturais e econômicos que lhe s'o próprios, relacionando-é especificamente com ou território e com o meio ambiente em que estao inseró. Preservam a sustentabilidade e, por isso mesmo, uma sobrevivência das geracaes apresentam sob os aspectos físicos, culturais e econômicos, asguring como pós-disponibilidade mesmo para como geracaes vindouras.

Assim, ou conceito de povos tradicionais é indissociately empiricamente e politicamente imbricado. Afigura-se como mecanismo analítico relevante para a realidade brasileira atual e também como instrumento estratégico não campo das lutas territoriais dos grupos sociais que buscam o reconhecimento da "legitimidade de seus regimes de propriedade comum e das leis consuetudinárias que os fundamentam" (LITTLE, 2002, p. 18).

No ponto de vista histórico, deve-se notar que esses povos e comunidades são marcados pela exclusão apenas por fatores étnicos-raciais, além de, supersoundadas, descascando terras de difícil acesso por povos tradicionalmente ocupados, em grande medida usurpada por indivíduos, por interessados em desenvolver interesses ou até mesmo.

Registra que, com o advento da Lei de Terras, que é um registro necessário de registro cartorial e documento de compra e curativo para configurar dominialidade, instaurou-se um discrep.ncia no acesso e manuten.o da terra por comunitários no meio rural. A Constituição'o Federal de 1891 transferiu para os Estados da Federacao como ditas terras devolutas, em como que até ent'o n'o havia foi reivindicado a propriedade, reconhecendo ou "dia de compra preferencial" pelos posseiros. Hodiernamente, como formas de desapropriação de territórios, como será visto mais adiante, abrangem interesses do agronegócio, processos de exploração minerária, criacao de unidades de proteção integral e outros empreendimentos.

No Estado de Minas Gerais, tem-se os povos indígenas, as comunidades quilombolas, os pescadores artesanais, os povos de terreiro, os geraizeiros, os vazanteiros (moradores tradicionais da vazante, que sempre consorciaram o uso de terras altas e baixas, atualmente restritos a ilhas e pequenas parcelas de terra nas beiras de grandes rios que cortam o estado), os veredeiros (que ocupam, usam e preservam tradicionalmente as veredas, subunidade do bioma cerrado/gerais), os apanhadores de flores sempre-vivas, os faiscadores (que exercem o garimpo artesanal), entre outros.

Dessa forma, Brandão (2010) expõe o ponto central densamente recorrente nas histórias das comunidades tradicionais, qual seja: a memória de lutas passadas e o processo de resistência. Essa memória envolve as frentes expropriadoras do passado mais remoto ou mais próximo.

Nessa esteira, discorrer-se-á um pouco sobre as memórias de expropriações citadas por Brandão (2010) a partir de três tempos principais: “tempo do agrimensor”, “tempo da RURALMINAS” e “tempo dos parques” para se chegar ao “tempo de agora”, com uma abordagem das políticas públicas empreendidas pelo Estado de Minas Gerais no tocante à regularização fundiária rural de terras devolutas. Para tanto, faz-se necessário uma brevíssima retomada da história territorial brasileira a partir da Lei de Terras e os seus efeitos concretos.

Tempo do agrimensor

A grande diferença da Lei de Terras para o regime de sesmarias que antes vigorava foi: o acesso à terra agora não se daria por meio de “concessões” da Coroa ou do Poder Público, mas exclusivamente por meio de compra e, em relação às terras devolutas, estabeleceu-se que: a) a compra era a única forma legal de adquiri-las; b) seriam definidas por exclusão das terras particulares; c) haveria uma reserva de terras devolutas para fins de colonização, fundação de povoações, aberturas de estradas, construção naval. (ARAÚJO, 2009)

Ainda, é importante recapitular que dois elementos formais essenciais passaram a integrar o negócio jurídico de concessão de terras no império: o contrato e o título. O mero contrato não aperfeiçoava a concessão, exigindo-se a presença do título. Tratava-se de formalidade essencial à transferência de terras, que foi até mesmo incorporada no Código Civil brasileiro de 1916, por Clóvis Bevilácqua. O título dá a segurança necessária à transação, além do que a sua transcrição gera a publicidade indispensável à sua concretização.

Com esta nova perspectiva, a terra transforma-se numa valiosa mercadoria, capaz de gerar lucro tanto por seu caráter específico quanto pela sua capacidade de produzir outros bens. Assim, no Brasil também o caráter comercial passa a preponderar com esta regulamentação, quando na teoria, a obtenção de glebas passou a ser definida exclusivamente pela compra e venda (MEDEIROS, 2002).

As antigas sesmarias que não foram registradas em 1850 tornaram-se terras devolutas pelos contornos dados da própria Lei de Terras. Posteriormente, fazendeiros passam a solicitar a regulamentação das terras que ocupavam dando origem a conflitos entre famílias mais influentes e os sertanejos. Aí que os fazendeiros ganham expressão.

De acordo com a pesquisa de Araújo (2009), no Norte de Minas Gerais, a Lei de Terras só teve grande efeito com a chegada dos Agrimensores por volta de 1920. Esse período, que marca os efeitos da Lei de 1850, é nominado pelos diversos estudos sobre a região norte mineira como: o “tempo dos fazendeiros” Costa (1999); da “domesticação do sertão” Pimentel (1997); como o “tempo do cercamento” e “tempo da grilagem, do fazendamento e tempo do apertamento” Costa Filho (2009) e ‘tempos dos coronéis”.

Mais especificamente na região norte mineira apontou-se, a partir dos estudos realizados, três fases significativas da medição de terras: a primeira, com início por volta de 1920 a 1930; uma segunda entre 1933 a 1960 e a terceira com a chegada da RURALMINAS na década de 1970 (SILVEIRA, 2014). Na opinião de Costa (1999), o “tempo dos fazendeiros” marca a ruptura do modo de vida e a perda de domínio territorial das comunidades tradicionais negras.

Silveira (2014) esclarece que a primeira fase do tempo da medição decorreu da iniciativa de estudantes de engenharia da escola mineira de Ouro Preto. Esses acadêmicos adentraram sertão a fora prestando serviço como agrimensores para regularização das posses. É sob tal cenário que surge a figura de Antônio Dó, uma espécie de Lampião do Norte de Minas, o qual foi convocado em diversas oportunidades, juntamente com seu bando, para interferir em litígios fundiários em toda região.

Explica Silva (1996) que, na luta entre grileiro e posseiro, ou entre posseiros, a judicialização não era a melhor saída. As elites políticas exerciam grandes domínios sobre os demais atores do drama da terra: agrimensores, juízes comissários, delegados de polícia, donos de cartório.

Enfim, os processos de medição experimentados em Minas foi o mesmo do Brasil a fora. Silva (1996) dá o exemplo dos paulistas, cuja conduta dos grileiros e posseiros era respaldada pela política local, quase sempre cúmplice dos mandos e desmandos que os mais poderosos exerciam sobre os mais fracos. Ora, sem a proteção de políticos influentes, os posseiros não tinham a certeza de permanecer nas suas parcelas de terras e estavam sempre sobressaltados, temendo a grilagem ou a disputa com posseiros mais poderosos (SILVA, 1996). O Estado deixava a cargo da classe política dominante a resolução das pendencias fundiárias, em vez de exercer seu múnus de garantidor da Lei.

Tempo da Ruralminas e dos fazendeiros

A RURALMINAS foi instituída em 21 de novembro de 1966 pela Lei Estadual nº 4278 com o objetivo de realizar “a colonização e o desenvolvimento rural no Estado de Minas Gerais”. Tinha como responsabilidade executar e incentivar diferentes programas do Estado e particulares em terras públicas ou privadas. Enfim, a Fundação passou a representar o Estado nos processos de legitimação de propriedade e na discriminação de terras públicas dominicais e devolutas.

Com efeito, as comunidades rurais foram esvaziadas e passaram a ser alvo da expansão da fronteira do agronegócio, criação extensiva de gado e do monocultivo de eucalipto. A velha conhecida expropriação fundiária retornou ao norte de Minas travestida de desenvolvimento e legitimada pelo discurso progressista financiada pelo próprio Estado. (SILVEIRA, 2014).

Na década de 1970, programas e projetos federais e estaduais foram implementados[2] sob o discurso da integração da região à dinâmica econômica do sudeste do país. Como efeito disso, o uso comunitário e extrativista que há muito era feito nas regiões de chapada foi ignorado e as comunidades encurraladas nos vales e nas grotas.

Passados quase 50 anos, informações obtidas junto à Superintendência de Territórios Coletivos (SUTEC) em 2019, permitiram identificar 94 contratos de arrendamento totalizando 258.682,14ha de terras arrendadas, oriundos do Programa Distritos Florestais. Isto é, decorrentes das áreas destinadas à monocultura de eucalipto em largar escala.

Como se extrai do gráfico 01, do universo de 94 contratos, 78 deles encontram-se vencidos/expirados e 16 em vigor. Em aprofundamento na análise dos dados coletados, verificou-se, ainda, que do total de contratos vencidos/expirados (78), 22 tiveram seus prazos originais dilatados mediante aditamento. Portanto, todos esses 78 contratos encontram-se, em tese, aptos a serem executados pelo Estado de Minas Gerais (arrendante).


Gráfico 01
Contratos de arrendamento
SUTEC (2019)

Analisando com acuidade os 16 contratos que estão em plena vigência, verificou-se que 11 deles assim o estão por força de aditivo contratual que prorrogou o vencimento originário, sendo 3 contratos firmados com Cia. Suzano Papel e Celulose até 28/04/2020, com área total de 6.650,77ha no Município de Turmalina, e 8 contratos entabulados com a empresa Replasa Reflorestamento S/A, cujas áreas estão distribuídas nos Municípios de São João do Paraíso e Rio Pardo de Minas, perfazendo um quantitativo total de 11.387,70ha e também com prazo de expiração previsto para 2022.

Interessante notar que os contratos ativos, especialmente os 5 firmados mais recentemente, contemplam grandes áreas concentradas na região do Alto Rio Pardo, o que reforça a caracterização daquela região como foco de terras presumivelmente devolutas, mas que, de alguma forma, estão sendo destinadas ao uso sustentável, como no caso das cooperativas de agricultores familiares.

É possível, portanto, ter um panorama global do quantitativo de hectares de terras cedidas para cada uma das 25 empresas/cooperativas acima listadas, a maioria delas possuindo mais de um contrato. Percebe-se o total de 258.682,14ha de área arrendada que é um indicativo seguro das terras devolutas pertencentes ao Estado de Minas Gerais. Também foi possível estabelecer uma distribuição espacial Municípios do Norte de Minas (e alguns do Vale do Jequitinhonha) que ainda possuem contratos administrativos de arrendamento de terras bem como um cotejo analítico.

Tabela 1
Relação das empresas/cooperativas e quantitativo de terra arrendada

SUTEC (2019).


Mapa 2
Municípios que possuem contratos de arrendamento



*o imóvel localiza-se em zonas limítrofes dos municípios

SUTEC (2019)

Tabela 2
Municípios e quantitativo de contratos

SUTEC (2019). *o imóvel localizase em zonas limítrofes dos municípios

No mapa 2 e na tabela 2 pode se ter um visão clara de como de como os 94 contratos firmados com as 25 empresas/cooperativas estão distribuídos ao longo de 14 municípios com um quantitativo estimado de 258.682,14ha de terras devolutas. Percebe-se claramente uma concentração de contratos espalhados nos Municípios de Rio Pardo de Minas (27), São João do Paraíso (17), Grão Mogol (13) e Taiobeiras (12), localidades bem conhecidas pela prática da monocultura de eucalipto, valendo destacar, ainda, que alguns imóveis estão localizados em zonas limítrofes de Municípios, como se vê dos destaques apontados na tabela, o que reforça ainda mais a concentração nessas áreas.

Concordando com Silveira (2014), a paz imperou relativamente estável para algumas comunidades até a década de 1990, quando novos atores expropriadores no campo surgiram: as chamadas Unidades de Conservação Permanente. Inaugura-se, portanto, uma nova dimensão temporal do rearranjo fundiário na região, desencadeando novos desafios e conflitos para as comunidades rurais norte mineira

Tempo do agora

O Estado de Minas Gerais possui dois regimes de regularização de terras devolutas: a regularização fundiária individual e a regularização coletiva de territórios tradicionais. A regularização fundiária individual é abarcada pelo programa de regularização fundiária e acesso à terra executado pela Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SEAPA) com arrimo na Lei Estadual nº 11.020/1193, ao passo que a regularização fundiária de territórios de povos e comunidades tradicionais se dá por meio de titulação coletiva por meio da política para o desenvolvimento sustentável previsto na Constituição do Estado e na Lei Estadual n° 21.147/2014.

Programa estadual de Regularização Fundiária e Acesso à Terra: regularização fundiária rural individual

Entende-se por Programa de Regularização Fundiária e Acesso a Terra o conjunto de atividades desenvolvidas pelos órgãos públicos do Estado de Minas Gerais e pela sociedade civil organizada, no sentido de cumprir o estabelecido pela Constituição do Estado de Minas Gerais, pela adoção de programas de desenvolvimento rural destinados a fomentar a produção agropecuária, organizar o abastecimento alimentar, promover o bem-estar de quem vive do trabalho da terra, compatibilizados com a política agrícola e com o plano de reforma agrária estabelecidos pela União.

Para a consecução dos objetivos constitucionais, leva-se em conta, a concessão gratuita ou alienação preferencial de terra devoluta estadual a quem a torna economicamente produtiva e comprova sua vinculação pessoal a ela, até a área de 250 (duzentos e cinquenta) hectares.

Dessa forma, exerce-se a função social da propriedade, alcança-se a segurança jurídica e resolução de potenciais conflitos no campo, estimula-se a ampliação do acesso a linhas de crédito e políticas públicas para os agricultores, aumenta-se a produção contribuindo para a geração de renda e empregos, reduz-se o êxodo rural estimulando a permanência das famílias no campo e contribui-se para o reordenamento fundiário do Estado, trazendo maior qualidade de vida e cidadania para o trabalhador rural. O Programa de Regularização Fundiária é executado por meio de etapas, a saber:

1. Seleção dos municípios por meio de Edital de Chamamento Público;

2. Realização de Audiência Pública para apresentação do plano de trabalho no município dando maior transparência ao processo;

3. Realização de mutirão de cadastramento dos posseiros, em parceria com a EMATER-MG;

4. Execução do Georreferenciamento dos posseiros cadastrados;

5. Análises técnicas dos processos de regularização fundiária;

6. Caso o posseiro se enquadre no programa, o título de propriedade rural é emitido e assinado pelo Governador do Estado de Minas Gerais.

De acordo com dados coletados junto à SEAPA, em 2019 foram entregues 983 títulos particulares, a maioria deles em municípios do Norte de Minas (114) e do Vale do Jequitinhonha/Mucuri. Estes títulos referem-se a processos anteriores ao governo de Romeu Zema.

Tabela 3
Títulos particulares concedidos em 2019

SEAPA (2020).

No gráfico 2 detalha-se a distribuição dos títulos particulares nos Municípios do Norte de Minas, com destaque para Bocaiúva, Januária e Claros que receberam, respectivamente, 72, 25 e 7 títulos individuais. Forçoso observar, ainda, que para esses três Municípios não foram localizados contratos de arrendamentos, quer vencidos, quer ativos, o que denota uma certa mansidão no exercício da dominialidade dos sujeitos em questão.


Gráfico 02
Total de títulos particulares concedidos no ano de 2019 (mesorregião Norte de Minas)
SEAPA (2020)

Em 02/10/2019, foi publicado o Edital de chamamento público nº 01/2019 (Processo SEI nº 1230.01.0002471/2019-96), cujo objeto é a seleção de municípios para participarem do Programa de Regularização Fundiária e Acesso à Terra.

Segundo dados obtidos no sítio eletrônico da SEAPA, houve a adesão de 152 municípios, dos quais 109 já foram classificados com base em critérios estabelecidos, como por exemplo, a realização ou não de audiência pública e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), na proporção entre população urbana e rural.

Analisando-se a legislação pertinente, mormente o Decreto 34.801/1993, verifica-se que a identificação de terras públicas, dominicais e devolutas, necessárias à operacionalização da política, far-se-á consoante o princípio de regionalização da ação administrativa do Estado, com observância das seguintes prioridades quanto à sua destinação: I - assentamento de trabalhadores rurais e urbanos; II - proteção dos ecossistemas naturais e preservação de sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, espeleológico, paleontológico, ecológico e científico; III - regularização fundiária; IV – colonização. [3]

Ainda conforme o Decreto 34.801/1993 são formas de alienação ou de concessão de terra devoluta: I - concessão gratuita de domínio; II - alienação por preferência; III - legitimação de posse; IV - concessão de direito real de uso. O título resultante do procedimento de alienação ou de concessão de terras devolutas, bem como o de reconhecimento de domínio, serão assinados pelo Governador do Estado.

Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária, bem como para assentamento, receberão títulos de domínio ou de concessão de direito real de uso inegociáveis pelo prazo de 10 (dez) anos. O título de concessão gratuita de domínio será outorgado a quem, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por 5 (cinco) anos ininterruptos, sem oposição, área de terra devoluta rural ou de expansão urbana não superior a 50ha (cinquenta hectares), tenha nela sua moradia e a tenha tornado produtiva.[4]

O beneficiário deverá comprovar que a terra é a sua principal fonte de renda e a de sua família e instruirá o pedido com as seguintes declarações, que farão parte do requerimento de medição: 1 - declaração referente às vedações a que se refere o artigo 31 deste Decreto; 2 - declaração de que não é proprietário de imóvel urbano ou rural. Os demais requisitos da concessão gratuita serão apurados através de vistoria in loco com o respectivo laudo de identificação fundiária. A gratuidade da concessão se refere ao valor das terras, ficando condicionada a entrega do título definitivo ao pagamento dos emolumentos dos serviços de medição, demarcação, cálculo, memorial descritivo e planta.

A alienação por preferência caberá àquele interessado que tornar economicamente produtiva terra devoluta estadual e comprovar sua vinculação pessoal à terra terá preferência para adquirir-lhe o domínio, até a área de 250ha (duzentos e cinquenta hectares), mediante o pagamento do seu valor, acrescido dos emolumentos (Decreto 34.801/1993).

Nos terrenos para agricultura, o ocupante provará a utilização econômica de, no mínimo, 30% (trinta por cento) da área aproveitável. Nos terrenos para pecuária, o ocupante provará a utilização econômica de, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) da área aproveitável como área de pastagem que comporte 3 (três) cabeças de gado “vacum” ou similar por alqueire geométrico. No caso de exploração mista da área, o percentual mínimo de utilização econômica é de 40% (quarenta por cento) da área aproveitável (Decreto 34.801/1993).

O replantio de matas e os pastos artificiais serão considerados benfeitorias, o que não ocorrerá com os simples roçados ou a queima de matas e campos. Considera-se vinculação pessoal à terra, para os efeitos da Lei, a residência em localidade próxima que permita ao ocupante ou a seus familiares assistência permanente à área e a sua efetiva utilização econômica.

Terá direito à legitimação de posse quem, não sendo proprietário de imóvel rural, ocupe terra devoluta, cuja área não exceda 250ha (duzentos e cinquenta hectares), tornando-a produtiva com o seu trabalho e o de sua família e tendo-a como principal fonte de renda.

O beneficiário da legitimação de posse após processo discriminatório, instruirá o pedido com declarações de que nunca foi beneficiário de qualquer outra terra devoluta, seja urbana ou rural e que não é proprietário de imóvel rural. Os demais requisitos da legitimação de posse serão apurados após vistoria in loco com o respectivo laudo de identificação fundiária.

A legitimação de posse consiste no fornecimento de licença de ocupação pelo prazo mínimo de 4 (quatro) anos, findo o qual o ocupante terá direito à compra preferencial do lote, mediante pagamento dos emolumentos dos serviços de medição, demarcação, cálculo, memorial descritivo e planta. A licença de ocupação será intransferível inter vivos e inegociável, não podendo ser objeto de penhora ou de arresto, constituindo documento hábil para obtenção de licença necessária ao uso da terra e crédito rural.

Por fim, a concessão de direito real de uso de terra devoluta estadual, por tempo certo de até 10 (dez) anos, como direito real resolúvel, para fins específicos de uso e cultivo da terra, até o limite de 250ha (duzentos e cinquenta hectares), será outorgada a quem comprovar exploração efetiva e vinculação pessoal à terra e será formalizada após processo discriminatório, por meio de instrumento particular de contrato, expedido pela SEAPA.

De posse do contrato de concessão de direito real de uso assinado pelas partes, o concessionário o levará à inscrição em livro especial no registro de imóveis da comarca em que se situar o imóvel, a partir de quando, fruirá plenamente do terreno para os fins estabelecidos no contrato ou termo administrativo e responderá por todos os encargos civis, administrativos e tributários que vierem a incidir sobre o imóvel e suas rendas.

O concessionário recolherá, mensalmente, o valor correspondente à renda de ocupação prevista no contrato, sendo-lhe vedado dar destinação diversa ao bem sob pena de cancelamento da concessão. Decorrido o prazo previsto no contrato e cumpridas as condições de exploração efetiva e vinculação pessoal à terra, estabelecidas no contrato de concessão de direito real de uso, ao concessionário será outorgado título de propriedade, após o pagamento do valor da terra, acrescido dos emolumentos. A concessão de direito real de uso é nominal e intransferível, exceto causa mortis, situação em que o cônjuge supérstite ou os herdeiros, desde que domiciliados no imóvel, poderão assinar termo, tomando a si as obrigações do falecido.

Registra-se, por fim, que o processo administrativo para regularização fundiária inicia-se por provocação do interessado mediante requerimento nos moldes definidos pelo art. 247 e seguintes da Constituição do Estado, da Lei Estadual n° 11.020/93 e do Decreto Estadual n° 34.801/93, objetivando a concessão de uma das quatro formas de alienação ou concessão de terras devolutas vistas acima.

Regularização Fundiária para Povos e Comunidades Tradicionais

A Regularização Fundiária de Territórios de Povos e Comunidades Tradicionais é uma das atribuições do Estado de Minas Gerais e se dá por meio de titulação coletiva, gratuita, inalienável, indivisível e por prazo indeterminado. A política para o desenvolvimento sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais está previsto na Constituição do Estado e na Lei Estadual n° 21.147/2014.

Para solicitar o início do processo administrativo para titulação coletiva de território tradicional na SEAPA, a comunidade deve ter uma Certidão de Autodefinição emitida pela Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais (CEPCT), pela Fundação Cultural Palmares (no caso dos quilombolas) ou pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI (no caso dos indígenas). Para solicitar a Certidão de Autodefinição, a comunidade deve encaminhar um ofício à Presidência da Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais em que conste um breve relato histórico da comunidade, a caracterização da comunidade a ser reconhecida formalmente, o local onde se encontra o povo ou a comunidade, e formas de acesso à comunidade.

Recebido esse ofício, os membros da CEPCT irão à comunidade para discutir e aprofundar o entendimento do povo ou da comunidade solicitante quanto ao processo de emissão da Certidão de Autodefinição. Depois disso, os membros que foram à comunidade farão um relatório sobre a visita e apresentarão esse relatório na reunião da CEPCT-MG para que os demais membros tomem conhecimento das informações sobre a comunidade e aprovem ou não a emissão da Certidão de Autodefinição. Essa certidão emitida é encaminhada ao endereço da comunidade solicitante ou entregue ao seu presidente.


Fluxograma 1
Etapas da regularização fundiária rural coletiva
SEAPA (2020).

Em pesquisa realizada junto ao banco de dados da SEAPA/SEI, foram encontrados 26 processos de certificação de autodefinição para reconhecimento formal de comunidades concluídos em todo o Estado de Minas Gerais de 2018 até a presente data. (Quadro1)

Quadro 1
Certificações de Comunidades Tradicionais

SUTEC/SEAPA/SEI (2020)

A ausência dessa delimitação, seja no estudo antropológico, seja no histórico apresentando pode ser justificado pelo fato que a maioria dessas comunidades tradicionais como as ciganas Calon ou dos apanhadores de flores sempre-vivas estarem dispersas à margem de rios, como o Jequitinhonha, o que se coaduna com as noções de territorialidade para além de circunscrições geográficas. O mapa 3 permite observar a localização espacial dessas comunidades.


Mapa 3
Espacialização das Comunidades Tradicionais certificadas
SUTEC/SEAPA/SEI (2020)

Merece registro que o processo administrativo tramita perante a SEAPA, via SEI, e tem início mediante provocação do interessado contendo a ata, devidamente assinada, da reunião em que o povo ou comunidade tenha deliberado pela regularização fundiária do território tradicional; a Certidão de Autodefinição.

Instaurado o processo, será elaborado um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação Territorial (RTID) que também pode ser produzido em parceria com órgãos públicos, organização da sociedade civil e profissionais cuja área de atuação esteja ligada à temática de povos e comunidades tradicionais.

Seguindo o roteiro da Resolução nº 39 da SEDA, o RTID contemplará histórico da ocupação tradicional, a caracterização de esbulho das terras tradicionalmente ocupadas, os usos tradicionais e atuais dos territórios que justificam a sua regularização, os limites totais das áreas ocupadas e a identificação de seus ocupantes, conforme territorialidade indicada por povo ou comunidade tradicional, levando-se em consideração os espaços de moradia, exploração econômica, social, cultural e os destinados aos cultos religiosos.

A SEAPA deverá abrir, ainda e simultaneamente, um procedimento de discriminação de terras administrativo cujo objetivo, como já visto, é identificar quais são as terras particulares e quais são as terras devolutas ou públicas localizadas dentro de uma área ou território, nos termos da Lei 6.383/1976.

Enquanto o RTID não for concluído, as terras devolutas ou públicas identificadas na Ação Discriminatória Administrativa serão destinadas à Associação legalmente constituída que represente a comunidade tradicional. Essa destinação será feita via Termo de Permissão de Uso ou de Licença de Ocupação (art. 9º do Decreto Estadual 47.289/2017).

Com efeito, identificadas as terras devolutas ou públicas localizadas dentro do território tradicional pleiteado, a SEAPA poderá encaminhar à Secretaria de Estado de Casa Civil a solicitação de Decreto declarando essas terras públicas ou devolutas como de interesse social para a comunidade tradicional. Esse Decreto tem como objetivo reservar a terra pública ou devoluta à futura criação formal do território tradicional, que se efetivará mediante Titulação.

Importante consignar que, se no processo administrativo for constatado que o território tradicional pleiteado está sobreposto por Unidade de Conservação Estadual (Ex: Parque, Reserva Biológica, Área de Proteção Ambiental e outras categorias estabelecidas pela Lei 9985/2000) o Estado encaminhará à Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais (ALMG) projeto de lei sobre a Recategorização da Unidade de Conservação ou Desafetação da Área.

A titulação do território tradicional será efetivada após a homologação do RTID. O título, gratuito, inalienável (não pode ser vendido), indivisível e, autoriza a concessão do domínio da terra pública ou devoluta para a Associação que represente a comunidade tradicional por prazo indeterminado.

A pesquisa apurou que ainda não houve concessão de titulação coletiva. Na tabela e gráfico abaixo, pode-se verificar, porém, a lista de 13 processos administrativos nos quais já houve, por parte de comunidades certificadas, solicitação expressa, ao Estado, da regularização fundiária de seus respectivos territórios. Todos esses processos estão em curso e até o fechamento da presente pesquisa paralisados em virtude da publicação do Decreto Estadual nº. 47.890, de 19 de março de 2020, que dispõe sobre medidas durante a situação de emergência em saúde pública do Estado, em virtude do COVID-19.

Quadro 2
Regularização Fundiária de Territórios Tradicionais

SUTEC/SEAPA/SEI (2020)


Mapa 4
Espacialização das Comunidades que pleitearam a regularização fundiária
SUTEC/SEAPA/SEI (2020).

Em 18 de maio de 2020, a SEAPA editou a Portaria nº 18, publicada no Diário Oficial do dia 23/05/2020[5], que dispõe sobre atualização de valores para pagamento, pelas empresas originariamente arrendatárias, a título de indenização, pela concessão de uso de terras devolutas rurais estaduais, prevista nos contratos de arrendamento de terras devolutas rurais estaduais do Programa dos Distritos Florestais da extinta RURALMINAS.

Tabela 4
Valor do hectare da terra nua por Município

Portaria SEAPA nº 18/2020.

Conforme se apurou junto à SEAPA, os valores dispostos na Tabela 4 tiveram como base o Relatório de Valor de Terra Nua publicado anualmente pela EMATER, que é elaborado em conjunto com Sindicatos Rurais, Prefeitura, Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável, Cooperativas, Representantes de Associações Comunitárias, Corretores de Imóveis, Imobiliárias, Lideranças Locais e Produtores Rurais, refletindo o valor do imóvel praticado no mercado, para a cultura a que se destina.

Apesar de todo esse “esforço arrecadatório”, porém, segundo informações verbais obtidas junto à SEAPA, o Estado de Minas Gerais não concedeu até o presente momento nenhum título de domínio coletivo para povos e comunidades tradicionais. Do mesmo modo, não há uma compilação de dados ou um estudo consolidado que informe com exatidão o quantitativo de terras devolutas arrecadadas. O Estado promove a arrecadação de imóveis para uma destinação específica (criação de parques, por exemplo) ou após uma ação discriminatória, como ocorrera no Município de Rio Pardo de Minas.

Considerações finais

Evidentemente, a imensa diversidade sociocultural mineira é acompanhada por uma extraordinária diversidade fundiária. As teorias do pluralismo jurídico, para as quais o direito produzido pelo Estado não é o único, ganharam força com a CRFB/1988 que também contemplou o direito à diferença e enunciou o reconhecimento de direitos étnicos. Todos esses tempos provocaram uma reconfiguração do espaço agrário norte-mineiro e incidiram principalmente sobre as populações tradicionais que viviam em regime de terras comuns, porque a maioria das populações tradicionais não regularizaram suas posses nas épocas estabelecidas pelo Estado, no caso a partir de 1850.

Portanto, há uma clara opção político-legislativa do Estado de Minas Gerais pelo implemento da regularização fundiária individual em detrimento da coletiva. E foi possível elencar alguns motivos. O primeiro deles refere-se ao tamanho das terras objeto de cada procedimento. A individual refere-se à pequenas posses (até 250ha), enquanto a coletiva abrange extensas áreas, delimitadas ou não, dada a fluidez conceitual da territorialidade, o que potencializa os conflitos fundiários. Segundo, o procedimento da regularização individual é muito menos burocrático do que o da regularização de territórios coletivos. Aquele é praticamente concluído “dentro dos gabinetes”, via expedientes administrativos, ao passo que este, além de envolver complexos estudos antropológicos, na maioria das vezes, exige que o Estado rompa a sua inércia e promova a arrecadação de suas terras, por meio da ação discriminatória, seja administrativa, seja judicialmente, o que pode ensejar discussões delongadas. Terceiro, como visto no procedimento de titulação coletiva, o Estado pode ter que desapropriar uma determinada área declarada de interesse social e, na esteira do art. 6º, §3º da Lei Estadual nº 21.147/2014 e da CRFB/1988, terá que indenizar o proprietário. Ora, como fazê-lo diante da grave situação de calamidade financeira reconhecida pelo Decreto nº 47.101/2016?

Por fim, apontou-se, a defasagem da legislação de regência dos procedimentos que já carece de uma reforma e uma adaptação às modernas técnicas de medição e, sobretudo, aos procedimentos eletrônicos para tramitação.

Quanto à busca pela mensuração do estoque de terras devolutas do Estado (reitera-se que nem o Estado possui esses dados consolidados), parte-se do pressuposto que elas equivalem ao quantitativo de hectares dados em arrendamento às empresas e às cooperativas. Portanto, presumi tanto a devolutividade dessas terras quanto a sua estimativa. Nesse particular, cotejou-se esses dados com os apresentados em outras pesquisas de relevo e conclui que o estoque de terras devolutas pode ser bem maior do que os 258.682,14ha estimados, porque nas décadas de 1970 ou 1980, quando da celebração dos contratos, as terras não foram medidas com o rigor e a precisão dos processos hodiernos de georreferenciamento, por exemplo. No passado, as técnicas dos agrimensores lançavam mão de teodolitos ou até mesmo aeronaves que sobrevoavam as áreas. Portanto, a imprecisão dos marcos é um fator a se considerar nesse processo.

Não se descartam, ainda, as práticas de grilagem, de desmembramentos ou fusões de matrículas e retificações de registros com alteração dos limites planimétricos e, consequentemente, dos assentamentos do fólio real, o que demandaria maior fôlego e profundidade.

Referências

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Notas

[1] Embora aqui se opte pela denominação mesorregião, desde 2017 o IBGE criou a divisão em regiões imediatas e regiões intermediárias. O espaço composto por municípios da mesorregião Norte de Minas foi reorganizado como Região Intermediária de Montes Claros.
[2] Por exemplo: projetos de monocultura de eucalipto e de modernização da agropecuária regional financiados com recursos da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste-SUDENE.
[3] Decreto 34.801/1993.
[4] Decreto 34.801/1993.
[5] Disponível em: http://jornal.iof.mg.gov.br/


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