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RECONSTITUIÇÃO ESPAÇO-TEMPORAL DO ALAGADO DO PIRY DE JUSSARA, BELÉM-PA: evolução e impacto na urbanização
Space-temporal reconstitution of Alagado Piry de Jussara, Belém-PA: evolution and impact on urbanization
Reconstitución espacial-temporal de Alagado Piry de Jussara, Belém-PA: evolución e impacto en la urbanización
Revista Cerrados (Unimontes), vol. 19, núm. 1, 2021
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos


Recepção: 08 Maio 2020

Aprovação: 27 Agosto 2020

Publicado: 10 Fevereiro 2021

DOI: https://doi.org/10.46551/rc24482692202105%20

Resumo: Historicamente, a cidade de Belém tem lidado com a dinâmica hídrica, características da região amazônica. Relatos apontam que no decorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX os que chegavam na cidade defrontavam-se com uma superabundância de águas, provenientes de uma área alagada denominada de Alagado do Piry de Jussara. Nesse sentido, o referido estudo buscou, através do geoprocessamento, reconstituir espacialmente a área e a geometria do alagado, bem como espacializar a ocupação urbana sobre o mesmo. Dessa forma, através da elaboração de mapas nos anos de 1631, 1700, 1760, 1791, 1844 e 1905 foi possível identificar que as obras de dessecamento do Piry ocorreram durante todo o século XIX, e que a área que outrora foi ocupada pelo Alagado, hoje abrange três bairros do centro de Belém, os quais sofrem com enchentes e inundações rotineiramente. Assim, ao fim do estudo, questiona-se a forma com que os gestores lidam com a superabundância de água na região, uma vez que foi possível concluir que a cidade de Belém cresceu e expandiu-se sobre as águas, e que até hoje tende a conviver com problemas relacionados ao fator hidrográfico da região.

Palavras-chave: Dessecamento, Alagado do Piry de Jussara, Colonização, Geoprocessamento.

Abstract: Historically, the city of Belém has dealt with water dynamics, characteristics of the Amazon region. Reports point out that during the 17th, 18th and 19th centuries those who arrived in the city were faced with an overabundance of waters, coming from a flooded area called Alagado do Piry de Jussara. In this sense, the aforementioned study sought, through geoprocessing, to spatially reconstitute the area and the geometry of the flooded, as well as to spatialize the urban occupation over it. Thus, through the elaboration of maps in the years 1631, 1700, 1760, 1791, 1844 and 1905 it was possible to identify that the desiccation works of Piry occurred throughout the 19th century, and that the area that was once occupied by Alagado, today it covers three neighborhoods in the center of Belém, which routinely suffer from floods and floods. Thus, at the end of the study, it is questioned the way in which the managers deal with the overabundance of water in the region, since it was possible to conclude that the city of Belém grew and expanded over the waters, and that until today it tends to live with problems related to the hydrographic factor of the region.

Keywords: Desiccation, Alagado do Piry de Jussara, Colonization, Geoprocessing.

Resumen: Históricamente, la ciudad de Belém se ha ocupado de la dinámica del agua, característica de la región amazónica. Los informes señalan que durante los siglos XVII, XVIII y XIX quienes llegaron a la ciudad se enfrentaron a una sobreabundancia de aguas, provenientes de una zona inundada denominada Alagado do Piry de Jussara. En este sentido, el estudio mencionado buscó, a través del geoprocesamiento, reconstituir espacialmente el área inundada y la geometría, así como espacializar la ocupación urbana sobre ella. Así, mediante la elaboración de mapas en los años 1631, 1700, 1760, 1791, 1844 y 1905 se pudo identificar que los trabajos de desecación de Piry ocurrieron a lo largo del siglo XIX, y que la zona que alguna vez fue ocupada por Alagado, hoy abarca tres barrios del centro de Belém, que habitualmente sufren inundaciones e inundaciones. Así, al final del estudio, se cuestiona la forma en que los gestores afrontan la sobreabundancia de agua en la región, ya que se pudo concluir que la ciudad de Belém creció y se expandió sobre las aguas, y que hasta hoy tiende vivir con problemas relacionados con el factor hidrográfico de la región.

Palabras clave: Desecación, Alagado do Piry de Jussara, Colonización, Geoprocesamiento.

Introdução

Nos últimos 250 anos, “a economia global cresceu 135 vezes, a população mundial 9,2 vezes e a renda per capta 15 vezes”, apontando que esta evolução demoeconômica é a maior já ocorrida nos últimos 200 mil anos (surgimento do Homo sapiens), classificando esse período da história do planeta como Antropoceno, que é marcado pela atuação do ser humano como a principal força de modificação da Terra, uma vez que este, expandiu as atividades agrícolas e a domesticação dos animais, ergueu cidades e estabeleceu uma máquina de produção e consumo de bens e serviços nunca antes vista (ARTAXO, 2014; VIOLA; BASSO, 2016; ALVES, 2020).

A sociedade como um todo – ou pode-se dizer o homem – é responsável por organizar o espaço e o ambiente de inúmeras maneiras, transformando, intensificando ou até mesmo criando formas e processos sobre ambientes naturais. Ou seja, com o processo de dominação, expansão e urbanização, o ser humano alterou e altera ambientes naturais para criar ambientes artificiais, pode-se dizer urbanizados, visando o atendimento das suas necessidades como grupo social. (ARAÚJO JÚNIOR, 2013a; SALLES et al., 2013).

Nesse contexto, o processo de urbanização no Brasil teve seu auge em meados do século XX, a partir de 1950, tal cenário ficou marcado pelo aumento da demanda por moradia, por empregos e por serviços públicos de qualidade, sendo um desafio para a gestão e a organização espacial dos principais centros urbanos do país (HONDA et al., 2015). Contudo, Comitre (2017) aponta que os modelos de desenvolvimento urbano das grandes cidades estão ligados diretamente com as relações sociais e a atuação do poder público em cada momento da história, conotando apropriações distintas para cada cidade.

O território Amazônico por ser marcado pela presença de uma extensa e complexa rede hidrográfica, teve sua ocupação e a formação de seus assentamentos urbanos seculares a partir de cidades ribeirinhas, e por conta disso, os que ali chegaram e os que ali vivem, adaptaram-se ao habitat ribeirinho, como modo de convivência e viabilização (RODRIGUES et al., 2018).

Historicamente as cidades amazônicas estão localizadas às margens dos rios e tendem a crescer margeando os mesmos, neste contexto, a cidade de Belém desde suas origens apresentou uma localização bastante singular na região. Inserida no Estuário Amazônico (complexo hidrográfico formado por baías, furos e ilhas), Belém está edificada sob uma península fluvial contornada ao sul pelo rio Guamá e à oeste pela baía do Guajará (SANTOS; ROCHA, 2013). Luz et al. (2015) ainda afirmam que a fundação da cidade é marcada por mudanças profundas em seu sítio natural.

Frente a isso, desde sua colonização em 1616 (século XVII), Belém precisou conviver com a superabundância de água contida na região. Devido à proximidade de rios, às chuvas frequentes, à formação de áreas alagadiças e a existência de terrenos de cota baixa, a história da fundação, estruturação e expansão de Belém demonstra como a presença dos cursos d’água no ambiente configurou os primeiros traçados da cidade (ALMEIDA, 2011; PONTE, 2015).

Almeida (2011) ainda declara que durante o processo de expansão do até então pequeno núcleo urbano, chamado de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, as águas eram vistas como obstáculos ao crescimento da cidade, e por conta disso durante todo o século XIX adotou-se uma postura de enfrentamento das mesmas. Desta forma, o princípio básico é de que era necessário controlar as águas, contê-las, drená-las e acomodá-las em valas.

Naquele momento da história, na visão dos expansionistas da época, o principal obstáculo natural que interrompia a irradiação do núcleo urbano de Belém, era o chamado Alagado do Piry de Jussara (nomenclatura oriunda da cultura indígena), uma vez que este impedia a integração física entres os dois primeiros bairros da cidade: Campina e Cidade Velha. Ademais, devido sua extensão, o Piry impossibilitava o crescimento do até então núcleo urbano, para os sentidos nordeste, leste, e sudeste, fazendo com que o desenvolvimento de Belém fosse similar ao de uma área insular. Com isso, acabou-se criando uma visão depreciativa sobre o Piry, pois por muitos, esse elemento natural foi visto como um empecilho ao crescimento de Belém (PENTEADO, 1968;ARAÚJO JUNIOR; AZEVEDO, 2012).

Foi então que a partir dessa convicção, no século XIX ocorreu o dessecamento do Alagado do Piry, considerado pelos gestores e engenheiros da época um marco vitorioso na “guerra” contra as águas da região (ALMEIDA, 2011). Assim sendo, traz-se a importância da cartografia e das geotecnologias, esse ferramental é visto como viabilizador de novas propostas de planejamento urbano, visto que proporciona a geração e a análise de informação espacial, auxiliando na tomada de decisão (FARINA, 2006).

Oliveira et al. (2008) aponta que o termo geoprocessamento representa qualquer tipo de processamento de dados georreferenciados (que detêm coordenadas geográficas), e que além disso, abrange técnicas e conceitos de cartografia, sensoriamento remoto, fotogrametria, GNSS (Global Navigation Satellite System) e SIG (Sistema de Informações Geográficas). Nesse sentido, pode-se dizer que os SIG’s são ferramentas que são utilizadas para manipular qualquer tipo de feição geográfica bem como os seus atributos, os quais compõe um banco de dados (SOARES; MORAIVA, 2015).

Capaz de armazenar e correlacionar diversas informações no ambiente SIG, há quem diga que a sua principal vantagem é poder integrar em uma única base de dados informações alfanuméricas com informações espaciais. Tais dados podem ser qualitativos, quantitativos, físicos, sociais, culturais, meteorológicos, entre outros, desde que sejam atribuídas coordenadas geográficas ao dado que está sendo processado (OLIVEIRA et al., 2008; CARVALHO et al., 2012).

Assim sendo, a espacialização de fenômenos e dados georreferenciados, bem como o uso das geotecnologias, assumem relevância, pois auxiliam e possibilitam a gestão do território de forma mais eficaz e racional, e é de grande valia na elaboração de políticas públicas, pois propicia a identificação espacial, o controle e uso do solo e a elaboração de diagnósticos e prognósticos voltados para a área demandada (FARINA, 2006;POLIDORO; BARROS, 2010). Visando associar as geotecnologias ao estudo do território Amazônico o presente estudo teve por objetivo reconstituir espacialmente a área outrora ocupada pelo Alagado do Piry de Jussara, no município de Belém, estado do Pará, bem como ilustrar através de mapas, como ocorreu a ocupação urbana sobre o mesmo.

Para isso, a metodologia do estudo buscou através da pesquisa literária e bibliográfica de dados secundários, adquirir plantas, mapas e imagens históricas de Belém que ilustrassem – ou norteassem – como se deu a ocupação urbana na cidade preteritamente. Para que posteriormente, fossem aplicadas técnicas de geoprocessamento, afim de reconstituir espacialmente e ilustrar através de mapas coropléticos, de forma coesa, em uma linha temporal, a ocupação urbana sobre a área alagada que existirá, denominada de Piry de Jussara.

Área de estudo

Localização e aspectos gerais

A área de estudo do referido trabalho é a região onde no século XVII (período colonial) se encontrava a Bacia do Alagado do Piry de Jussara, na região central do município de Belém, no estado do Pará, como evidencia o mapa exposto na Figura 1.


Figura 1
Mapa de Localização do Alagado do Piry de Jussara
Autores, 2020

Fundada em 12 de janeiro de 1616, Belém é a capital do estado do Pará, e a segunda maior metrópole da Amazônia legal. Segundo o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010 o município de Belém detinha uma população de 1.393.399 habitantes, contudo, segundo estimativas para o ano de 2019, esse número aumentou para 1.492.745 habitantes, apresentando um crescimento de aproximadamente 100.000 pessoas (IBGE, 2019).

Limita-se ao norte com a Baía do Marajó, a leste com o município de Ananindeua, ao sul com o Rio Guamá e a oeste com a Baía do Guajará, além disso, apresenta um território de aproximadamente 1.059,458 Km², em que apenas 34,6% correspondem à porção continental e 65,4% a porção insular composta por 39 ilhas (CDP, 2016;IBGE, 2019).

Belém apresenta parte expressiva do seu território com altitudes inferiores a 10 m, conforme demonstrado por Pontes et al. (2017), o que torna toda a zona em que historicamente a cidade se desenvolveu, classificada como de ambiente de várzea, explicando a adequação topográfica do Alagado do Piry de Jussara. A interação entre as drenagens superficiais de Belém e a movimentação das marés, acaba por resultar na transformação dos corpos d’água superficiais em espécies de barragens hídricas naturais a partir do momento que o nível das águas é elevado. Com isso, o processo de escoamento é paralisado e algumas vezes revertido, gerando alagamentos e inundações nas cotas mais elevadas do terreno (CDP, 2016). De forma complementar destaca-se a influência da precipitação pluviométrica, que contribui para a recarga hídrica no período chuvoso e o reabastecimento a partir do sistema subterrâneo, no período menos chuvoso.

Franco et al. (2019) no referente a climatologia sazonal da precipitação, para o período de 1982 a 2016 (34 anos de dados), identificaram que em Belém ocorre no trimestre DJF (Dezembro-Janeiro-Fevereiro) os maiores volumes de precipitação, com valores são superiores a 1000 mm, este se devem à influência da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT). No trimestre MAM (março-abril-maio) o regime pluviométrico sazonal apresenta um aumento com volumes pluviométricos superiores a 1200 mm, dada a posição mais ao sul da ZCIT no mês de março. Costa et al. (2019) descrevem o trimestre JJA (Junho-Julho-Agosto) como caracterizado por uma redução significativa na precipitação na Amazônia oriental, configurando a estação de seca, com valores menores de precipitação (1-4 mm/dia), podendo ter uma leve melhoria pela ocorrência de Linhas de Instabilidade (LIs) no litoral da região.

Alagado do Piry de Jussara

Segundo Luz et al. (2015), relatos históricos evidenciam que Castelo Branco ao chegar em Belém em 1616, encontrou uma ponta de terra acessível pelo mar e protegida pela terra por um extenso igarapé que nascia em uma região alagada e desembocava onde é hoje a doca do Ver-o-Peso (Figura 2). Tal relato se tratava do Alagado do Piry, que como expõe as Figuras 2 e 3, apresentava dois braços, um vindo de onde hoje desemboca o canal da Avenida Almirante Tamandaré e outro que desembocava onde atualmente se encontra a denominada doca do Ver-o-Peso, seguindo para as Avenidas Portugal/16 de Novembro, de tal forma, que isolava o pedaço de terra entre esses dois cursos d’água do restante do continente.


Figura 2
Belém retratada em 1631
Meira Filho, 1976.


Figura 3
Mapa de Localização do Alagado do Piry de Jussara, com base na divisão dos Bairros
Autores, 2020

Com as seguintes coordenadas geográficas centrais: Latitude 01° 27’ 31,93” S e Longitude 48° 29’ 58,66” W; estima-se que a área onde outrora foi ocupada pelo Alagado do Piry, atualmente abranja 3 bairros de Belém, como mostra a Figura 4, são eles: Cidade Velha, Campina e Batista Campos. Segundo os dados do Anuário Estatístico do Município de Belém (2011), infere-se que 37.420 pessoas residem nos bairros de abrangência da área do Alagado, uma vez que, em 2010 o bairro da Cidade Velha detinha uma população de 12.128 habitantes, enquanto Batista Campos e Campina, 19.136 e 6.156 habitantes, respectivamente.

Crescendo sobre as águas: a ocupação urbana de Belém

Em 25 de dezembro de 1615, Francisco Caldeira de Castelo Branco, partiu do Forte de São Luiz no Maranhão, em expedição rumo a região norte até então pouco conhecida. O Arcebispo de Lisboa, então Vice-rei de Portugal, comunicou por meio de uma carta a D. Luiz de Souza, Governador geral do Brasil, a chegada de Castelo Branco a Belém, nas palavras do Arcebispo: “...em que me dá conta haver chegado a ele em salvamento, os três navios com que partiu em 18 dias, e com a armada entrar pelo primeiro braço que aquele rio faz...” (MEIRA FILHO, 1976, p. 51). Com isso, conclui-se que após partir do Forte de São Luiz em 25 de dezembro de 1615, Castelo Branco levou apenas 18 dias para ancorar em Belém (MEIRA FILHO, 1976).

Segundo Penteado (1968), Santa Maria de Belém do Grão Pará foi o primeiro núcleo cristão no extremo norte do Brasil. Assim como muitas cidades que ainda viriam a ser fundadas na Amazônia, em 1616 Belém teve seu ponto de partida a sombra de um Forte, além de constitui-se de antigos aldeamentos onde missionários trabalhavam na catequização e pacificação da população nativa.

Narrativas afirmam que ao adentrar na Baía do Marajó e passar por entre as ilhas que originam a Baía de Guajará, Castelo Branco avistou uma porção de terra com características propícias à edificação de um forte, pois, segundo Luz, Rodrigues e Ponte (2015, p. 1), a mesma era composta por “uma ponta de terra inacessível pela parte do mar e defendida pela parte da terra por um extenso igarapé, que nascendo do alagado do Piry ia desembocar onde hoje é a doca do Ver-o-Peso”. Contudo, com o passar dos anos aquele elemento natural, que até então era visto como uma vantagem para os colonizadores, viria a se tornar um obstáculo para a expansão urbana do núcleo (PENTEADO, 1968;ARAÚJO JUNIOR; AZEVEDO, 2012).

Naquele momento via-se a implantação de uma cidade com características costeira e estuarina, uma vez que o Rio Guamá se prendia ao continente e o estuário Guajarino ligava-se ao Oceano Atlântico. Desta forma, Belém nasceu e expandiu-se sobre influência do interior e do mar, o que segundo Ponte (2015), nitidamente estava vinculado à defesa da Colônia e a possibilidade de troca comercial. Nesse sentido, por localizar-se em um terraço fluvial, protegido de fenômenos marítimos e estar “na porta de entrada” da até então desconhecida Amazônia, tem-se aí o início da formação da cidade de Belém do Grão Pará. A princípio, Belém apresentou um processo de ocupação mais voltado para o rio Guamá do que para a Baía do Guajará, sofrendo com a ação antropogênica (ARAÚJO JÚNIOR, 2013b) em razão da expansão urbana, sendo que as áreas topograficamente mais favoráveis (que nesta época já eram ausentes) neste momento faziam parte da ocupação urbana (ARAÚJO JÚNIOR; AZEVEDO, 2012; ARAÚJO JÚNIOR, 2013a).

O Forte do Presépio foi o ponto irradiador para o nascimento e desenvolvimento do núcleo urbano, o trabalho de penetração na mata densa era cansativo, porém não desanimou os colonos. Cruz (1973) afirma que por volta de 1650 já estavam abertas as primeiras ruas, todas paralelas ao rio (como evidência a Figura 4). Naquele momento, via-se a consolidação do primeiro bairro de Belém, chamado de Cidade.

Deve-se ressaltar que as missões religiosas foram primordiais para a expansão do núcleo urbano, uma vez que segundo Araújo Júnior e Azevedo (2012), todo o conjunto arquitetônico de Igrejas, Catedrais e Conventos seguia a um traçado bastante peculiar, como exposto nas Figuras 4 e 5, retratando muito bem o período conhecido como “entre a cruz e a espada”, e evidenciando o papel da Igreja na colonização.

Desta forma, impulsionada pela chegada de 50 famílias dos Açores, em 1676, entre o final do século XVII e início do século XVIII, Belém era apenas um povoado com uma população ínfima. O núcleo urbano era composto por apenas dois assentamentos (que mais tarde evoluíram para bairros), a Cidade e a Campina[1](Figura 5), sendo estes separados por um rio e um Pântano, o Alagado do Piry (PENTEADO, 1968; CRUZ, 1973; PONTE, 2015).


Figura 4
Croqui do início do processo de ocupação do núcleo urbano de Belém, tendo o alagado do Piry como um de seus primeiros “obstáculos” naturais à expansão urbana
Meira Filho, 1976.


Figura 5
Croqui de reconstituição de Belém no fim século VXII
Penteado, 1968.

(...) O Largo da Matriz da Campina é mais alto que o da Sé seis palmos, e o aparta mento estes dois Templos de 376 braças. Entre os dois bairros decorre por meio do Largo de Palácio da praia ao alagadiço chamado Píri terreno baixo ao olival do mesmo Píri; e deste começa terra firme, que dirigindo-se para leste chega a ter quinze palmos de altura: igual terreno baixo existe ao Oriente do bairro da Campina entre a praia e o Largo da Pólvora e a dita terra firme, que se estira do Píri para o Nascente. Tal é a índole topográfica da terra que sustém a cidade; e cuja altura sobre a preamar pouco excede a vinte palmos da banda do Largo de Santo Antônio e a trinta da banda do Largo da Sé (BAENA, 2004, p. 184).

Naquele momento, o processo de ocupação que ocorria em Belém era de forma não contínua, uma vez existiam obstáculos naturais que impediam a radiação da cidade. Como já dito anteriormente, o Alagado do Piry de Jussara foi um desses obstáculos, se não o principal, pois impedia a integração física entres os bairros da Cidade e o da Campina, bem como a expansão do núcleo urbano no sentido nordeste, leste e sudeste. Com isso, Penteado afirma que a maior distância a partir do Forte do Presépio era até Igreja de Santo Antônio (Figura 5), reafirmando que o eixo norte era considerado o vetor de expansão urbana mais importante na época (PENTEADO, 1968;ARAÚJO JÚNIOR; AZEVEDO, 2012).

Segundo Cruz (1973), os poucos que ousavam ultrapassar para além do Bairro Campina, tinham que atravessar matas densas, onde alguns moradores construíam habitações modestas e desconfortáveis, e ali cultivavam para os membros reais. Com isso, Almeida (2011) aponta que no período entre o século XVII e início do século XIX, aqueles que chegavam na cidade defrontavam-se com uma superabundância de água, provenientes do Alagado do Piry, acrescidas com as águas resultantes da precipitação e de seu acumulo natural. Ademais, Belém era é uma cidade baixa e por conta disso, era repleta de terrenos baixos e áreas consideradas pantanosas, a quais denominavam-se Igapós e Igarapés.

Desse modo, com o avanço dos séculos XVIII e XIX, os habitantes de Belém já não eram poucos e a ausência de habitações para todos já era uma realidade, como solução para o aumento da população no pequeno e limitado núcleo urbano, buscaram-se alternativas para um espraiamento massivo da mesma. Assim sendo, a partir da segunda metade do século XVIII até meados do século XIX, a área central de Belém foi marcada por grandes obras de drenagem e insecamento do Alagado do Piry (PENTEADO, 1968; ARAÚJO JÚNIOR, 2013). Vale ressaltar, que além da falta de habitações, Belém convivia com a inundação de terrenos próximos ao Piry, visto que segundo Baena (2004), o Piry era um terreno de aluvião inteiramente horizontal e de cota baixa, e que duas vezes ao dia as águas da preamar penetravam o a área do Alagado.

Nesse sentido, o processo de dessecamento do Alagado era iminente, contudo, ainda no fim no século XVIII, muito se discutia sobre o assunto, pois haviam aqueles que discordavam do projeto de insecamento. Dentre esses o que mais se destacou foi o Major Engenheiro Gaspar João Geraldo Gronsfeld (CRUZ, 1973;BAENA, 2004;ALMEIDA, 2011). Em 1771 Gronsfeld apresentou ao Governador Fernando da Costa de Ataíde Teive um plano de transformação urbana, que tinha como intuito transformar Belém em uma segunda Veneza, aproveitando o Alagado do Piry para abrir canais em torno da cidade, por onde deslizariam as gôndolas, como pode ser observado na Figura 6(a)(CRUZ, 1973;BAENA, 2004).

Almeida (2011) declara ainda, que Gaspar Gronsfeld confeccionou um segundo projeto, alternativo ao anterior, no qual neste, o Alagado do Piry seria transformado em um lago permanente e a parte mais antiga da cidade seria protegida por muros (Figura 6 (b)).


Figura 6
Plantas da Cidade de Belém do Grão-Pará fortificada pelo método mais simples e de menor despesas, apresentada por Gaspar João Geraldo Gronsfeld (1773)
Almeida, 2011 (Fonte Original: Reis Filho, 1999) e Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (CODEM).

Segundo Baena (2004), Gronsfeld acreditava que ao invés de empregar trabalhos hidráulicos no intuito de exsicar o Alagado, era melhor seguir os cursos da natureza, e aperfeiçoar a sua obra, fazendo um lagamar[2]. Contudo, ainda que a ideia de Gronsfeld tivesse fundamento, muitos moradores consideravam que os pântanos eram espaços propícios ao desenvolvimento de enfermidades e vetores de doenças diversas, sendo um argumento a mais para a ratificação do dessecamento do Piry (BAENA, 2004; ALMEIDA, 2011).

Foi então que sob o comando do Governador e Capitão General do Grão-Pará e Rio Negro, Conde dos Arcos, a tarefa de dessecamento do Alagado do Piry de Jussara foi atribuída ao Engenheiro Militar João Rafael Nogueira, cabendo aos escravos e livres desafortunados o trabalho braçal (CRUZ, 1973; ALMEIDA, 2011). Ainda segundo Almeida (2011), durante o processo de dessecamento, com o intuito de promover a drenagem do Alagado, foram construídas valas, como expõe a Figura 7, estas foram abertas à custa do trabalho de moradores não abastados e do uso de instrumentos como “balde de vallador”[3] e pá. O objetivo desse mecanismo era escorrer às águas advindas do alagado, fazendo com que estas percorressem o caminho até o desague.


Figura 7
Projeto de Dessecamento do Alagado do Piry, proposta por Nogueira
Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (CODEM).

As obras de dessecamento do Piry demandaram vários anos, à proporção que as obras ocorriam e as extensas valas do Alagado eram convertidas em áreas sólidas iam aparecendo novas edificações (CRUZ, 1973;ALMEIDA, 2011). Com base na Figura 7, Almeida (2011) e Cruz (1973) explicam que a planta proposta por Nogueira apresentava três longas estradas horizontais sobre o Alagado, nas quais foram plantados taperebazeiros, laranjeiras e mongubeiras. Ademais, outras estradas foram implantadas, dentre estas a principal era a estrada denominada de “São José”, a qual se estendia do “Palácio” ao “São José”. Cruz aponta ainda que por ordem de Conde dos Arcos foram levantadas paredes de acapu de onde pendiam as trepadeiras que davam um aspecto mais formoso ao local (Estrada São José).

A respeito do novo trecho que antes era ocupado pelo Alagado, segundo a descrição do naturalista Henry Bates (1979) citado por Almeida (2011),

(...) Esse trecho é cortado por estradas pavimentadas, sendo a principal delas a estrada das Mongubeiras, com cerca de um quilômetro e meio de extensão. (...) Essa bela avenida foi construída por volta de 1812, durante o governo do Conde dos Arcos. Ela é cortada perpendicularmente por vários caminhos estreitos e verdejantes, sendo a região inteira drenada por um sistema de pequenos canais e fossos, através dos quais a maré flui e reflui, o que mostra como são baixas as terras. (grifos meus). (BATES, 1979, p.14 apud ALMEIDA, 2011, p.7).

A descrição de Bates reforça a ideia de que naquele período a Avenida citada é conhecida atualmente como a Avenida Almirante Tamandaré, uma vez que segundo informações da Prefeitura de Belém, outrora a mesma foi denominada de Estrada das Mongubeiras (PREFEITURA DE BELÉM, 2020).

Nesse seguimento, Almeida (2011) aponta que o processo de dessecamento do Piry estendeu-se durante todo o período do século XIX, e não apenas este, uma vez que a dinâmica das águas na região onde outrora se encontrava o Alagado são discutidas até hoje. Além disso, a autora ainda esclarece que no fim século XIX, mapas de Belém ainda indicavam a existência de terrenos baixos e igapós na área que no passado foi ocupada pelo Piry, indicando a permanência de áreas alagadiças (ALMEIDA, 2011).

Materiais e métodos

Por se tratar de uma pesquisa retrospectiva espaço-temporal, uma vez que foram analisados fatores históricos, físicos e antropogênicos, a reconstituição da área do Alagado do Piry de Jussara, assim como a expansão urbana ocorrida sobre o mesmo, consistiu inicialmente na busca documental e bibliográfica de plantas, imagens e mapas históricos, além de relatos pretéritos, que vieram servir de base para o georreferenciamento e vetorização espacial.

Para isso, tais materiais foram adquiridos em órgãos de planejamento e gestão de Belém, como a Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (CODEM) e a Secretaria Municipal de Saneamento (SESAN), ressaltando também a aquisição dos materiais por meio de buscas digitais, como evidencia o Quadro 1.

Quadro 1
Base cartográfica associada a área Alagado do Piry de Jussara

Autores, 2020.

Além dos dados históricos já citados, também foram utilizadas as bases vetoriais (dados no formato shapefile) expostas no Quadro 2.

Quadro 2
Bases Cartográficas secundárias utilizadas como referências.

Autores, 2020.

Estas serviram de alicerce tanto para a etapa de georreferenciamento como para a vetorização, além de serem elementos gráficos e de referências nos mapas finais. Com exceção da base vetorial da Estrutura Urbana de Belém, todas as demais foram adquiridas por meio de buscas e consultas digitais, nas páginas dos referidos órgãos. Os mesmos foram reprojetados para o Datum SIRGAS 2000 Sistema de coordenadas UTM zona 22 S, bem como todos os outros dados que viriam a ser produzidos, adotando assim essa projeção para todo o projeto.

Procedimentos metodológicos

Após a aquisição dos dados, foi realizada a análise de todo o material histórico adquirido, uma vez que se fazia necessário a estruturação da linha temporal de estudo que seria abordada. Com isso, através de softwares de geoprocessamento, foi realizada a digitalização, seguido do georreferenciamento dos dados obtidos (mapas, plantas e imagens).

Desta forma, utilizando as bases já citadas no Quadro 2 e imagens de satélite disponibilizadas pelo programa Google Earth Pro, realizou-se a captura de pontos foto identificáveis de locais já conhecidos e que já se encontravam na cidade pouco após sua fundação, como a Igreja da Sé, Forte do Presépio, Igreja das Mercês, Igreja do Carmo, Capela de Santo Antônio, entre outros. Além disso, por se tratar do Centro histórico da cidade, algumas ruas e quadras ainda mantêm a mesma geometria desde o período colonial, desta forma, com o auxílio da Base cartográfica da Estrutura urbana de Belém, foi possível realizar o georreferenciamento dos materiais históricos (plantas, mapas e imagens).

Por conseguinte, ainda com a utilização de softwares de geoprocessamento, foi realizada a vetorização das feições (ruas, quadras, cursos d’água e canais de drenagem), no qual foi possível identificar a área ocupada pelo Alagado do Piry de Jussara, bem como a ocupação urbana ao decorrer do tempo na área de estudo. À vista disso, construiu-se um banco de dados geográficos, subdividido cronologicamente pelos anos que seriam mapeados, no qual cada pasta era composta pelas feições identificadas naquele período de estudo. Desse modo, foram plotados os mapas para os anos que viriam compor a linha temporal de estudo, possibilitando realizar a Reconstituição cartográfica da ocupação urbana sobre o Alagado do Piry de Jussara.

Resultados e discussões

A partir dos mapas plotados para os anos de 1631, 1700, 1760, 1791, 1844 e 1905, foi possível realizar a Reconstituição da ocupação urbana sobre o Alagado do Piry de Jussara, exposto da Figura 8.


Figura 8
Mapa da Reconstituição da ocupação urbana do Alagado do Piry de Jussara
Autores, 2020.

Com base nos mapas ilustrados na Figura 8, é possível observar que os relatos históricos apontados pelos autores já supracitados como Penteado (1968), Meira Filho (1976), Araújo Júnior e Azevedo (2012), Ponte (2015), entre outros, corroboram com o ilustrado na Figura.

Nota-se que em 1631 o núcleo urbano que mais tarde viria a se torna a cidade de Belém, resumia-se a uma ponta de terra isolada pelo Alagado do Piry e seus dois braços de deságue. Nesse sentido, ao sobrepor a reconstituição hidrográfica produzida à estrutura urbana de Belém, constata-se que onde outrora corriam esses dois cursos d’águas, hoje se encontram a Avenida Almirante Tamandaré (Figura 9, a e b) e as Avenidas Portugal e parte da 16 de Novembro, sendo ambas avenidas de extrema importância para o fluxo no centro da cidade.


Figura 9
Canal da Avenida Almirante Tamandaré nos anos de 1960 (a) e 2017 (b)
Fonte: Meira Filho, 1976.

Ainda com base na Figura 8, é possível observar que a partir de 1700 (século XVIII) ocorre um maior avanço para o norte e nordeste do pequeno núcleo urbano, tal crescimento evidencia o nascimento do que mais tarde se tornaria o bairro da Campina.

Contudo, por conta dos obstáculos naturais que ali existiam, logo essa expansão foi limitada, pois se de um lado havia o Piry do outro havia o Lago do Reduto (como pode ser visto no mapa exposto na Figura 8). Desta forma, por volta de 1760, os primeiros canais para conter os níveis dos cursos d’água provenientes do Piry logo foram edificados, porém, estes eram bem precários. Além disso, também nesse período, houve a abertura das primeiras trilhas e rotas além do Piry, estas por sua vez, contornavam a região alagada.

Foi então que ao fim do século XVIII deu-se início ao projeto apresentado pelo Engenheiro Militar João Rafael Nogueira, de dessecamento do Piry, como foi apontado por Cruz e Almeida (1973 e 2011, respectivamente). Diante disso, chama-se a atenção para o mapa referente ao ano de 1791 (Figura 8), que talvez seja o mais importante nesse trabalho, pois nele é possível observar o início do período das grandes obras de insecamento do Alagado do Piry de Jussara.

Nesse sentido, já se identifica a abertura das valas (e/ou canais) que serviram de caminhos para drenar a água contida no Alagado, além disso, é possível observar que parte do “braço” d’água que antes desaguava na doca do Ver-o-Peso já não existia mais, inferindo que o processo de dessecamento do Piry ocorreu voltado para o Rio Guamá.

Ademais, ainda em 1791, através da Figura 8, constata-se o aumento do número de rotas além do Piry, bem como a ocupação ao redor do mesmo. Com base nisso, vale citar Veríssimo (1895), que aponta na Amazônia a ocorrência de peixes que só podiam ser encontrados em lagos, lagoas, igapós e igarapés cobertos de mato, e que por conta disso, muitos moradores aproveitavam para realizar a pesca individual de subsistência ao redor dessas áreas.

Posteriormente, em 1844, já se enxerga uma redução consolidada da área que outrora foi ocupada pelo Alagado, seguida da acelerada ocupação urbana sobre a mesma área. Contudo, ainda é possível observar uma extensão do corpo d’água na área mais central, ilustrando que em meados do século XIX, o trabalho de dessecamento do Piry ainda não estava finalizado.

Chama-se a atenção também para o vetor de expansão urbana que ocorrera ao leste, pois ali onde hoje se encontra a Avenida Governador José Malcher, ao fim do século XIX e início do século XX passaria a Estrada de Ferro Belém-Bragança, nesse momento vale elucidar que Belém estava prestes a entrar no período conhecido como Belle époque, e que já era perceptível as primeiras influências francesas na cidade (COELHO, 2011;MOREIRA et al., 2014).

Foi então que nos primeiros anos do século XX deu-se a ocupação consolidada da região que no passado próximo já fora ocupada pelo Alagado do Piry de Jussara, como pode ser visto no mapa de 1905, na Figura 8. Vale ressaltar que naquele momento Belém, assim como Manaus, vivia o auge da Belle époque.

Embalados pela extração do látex na Amazônia, cidades como Belém, Manaus, Rio Branco e até mesmo o Rio de Janeiro, viviam uma era considerada de ouro, com base nisso, Coelho (2011) aponta que,

A belle époque, entendida como manifestação da Idade de Ouro da cultura urbana da burguesia contemporânea, e cujos quadros tradicionais, como visto, remetem para a Paris do final do século XIX e começo do XX, sempre foi um domínio visitado pela narrativa social brasileira. As próprias transformações urbanas de cidades como Belém e Rio de Janeiro no mesmo período foram tratadas como dimensões especulares da belle époque matricial, parisiense, nas latitudes sociais e mentais do trópico brasileiro (COELHO, 2011, p. 142).

Impulsionada pela forte economia e pelo fluxo de viajantes e de produtos, a Belém da era da Borracha viu-se obrigada a crescer, desse mordo tornou-se essencial o empenho de lidar com as águas. Na Região onde hoje se encontra o ponto Turístico da Estação das Docas, fora construído o Porto de Belém, que naquele momento fez-se necessário, pois era preciso escoar o látex que chegava a Belém pela Estrada de Ferro (ALMEIDA, 2011;THE GREEN CLUB, 2011).

Desta forma, como pode ser observado na Figura 8, a região marginal alagada que nos anos anteriores não havia sofrido nenhum tipo de antropização, com a chegada do século XX passou pelo processo de aterramento e dessecamento, pois ali foi construído o Porto de Belém (THE GREEN CLUB, 2011).

Nesse sentido, pode-se afirmar que Belém cresceu e expandiu-se sobre as águas, pois assim como ocorreu no Alagado do Piry de Jussara, muitas outras áreas da cidade que outrora já foram alagadas e cortadas por cursos d’água hoje abrigam milhares de moradores nos mais diferentes bairros, seja residindo em Palafitas[4] sobre áreas alagadas, seja na beira de canais e igarapés ou em áreas baixas que sofreram o processo de aterramento.

As consequências desta geometria podem ser observadas nos trabalhos de Pontes et al. (2017), Sadeck et al. (2017) e Moreira et al. (2019) que apresentam e discutem os efeitos dos alagamentos em Belém. A cidade cresceu sem considerar o efeito do fluxo das águas superficiais, aterrando diversos canais de escoamento e propiciando o surgimento de áreas alagadas de origem natural (pelo transbordo de canais) e antrópica, esta última principalmente decorrente da impermeabilização e obstrução dos sistemas de drenagem local.

Considerações finais

Constatou-se que Belém surgiu e cresceu sobre as águas, uma vez que em 1616 aquele curso d’água que isolava o pedaço de terra em que foi construído um Forte, era visto como uma vantagem militar, contudo, com o passar dos anos, para fins de crescimento e expansão urbana, os corpos d’água – que vale ressaltar são característicos das cidades Amazônicas – foram vistos como obstáculos naturais para a irradiação da cidade. Desta forma, com base na avaliação histórica e cartográfica realizada, foi possível observar que a partir do final do século XVIII até o início do século XX, a área central de Belém foi marcada por grandes obras de dessecamento do Alagado do Piry de Jussara, bem como em outros pontos da cidade.

Com base na atual realidade da cidade, pode-se afirmar que essa idealização expansionista persiste até hoje, não apenas em Belém, mais também na conurbação que ocorre entre os municípios de Belém, Ananindeua e Marituba. Como pôde ser observado nos resultados do referido trabalho, em que avenidas de intenso fluxo de mobilização e urbanização como a Almirante Tamandaré e a Portugal, preteritamente eram cursos das águas que faziam parte da bacia do Piry, e mesmo após mais de um século do seu dessecamento, ainda há a ocorrência de enchentes e inundações nessas áreas.

A vista disso, levanta-se a seguintes questões: Será que a forma com que os gestores vêm lhe-dando com a superabundância de água da região, desde a colonização, é a mais apropriada? E se ao invés do projeto de Nogueira que dessecou e aterrou o Piry, o projeto de Gronsfeld, que visava transformar o alagado em um lago permanente, tivesse sido implantado?

É inegável que deve-se considerar todas as características naturais da região, como: elevada precipitação pluviométrica, cota altimétrica baixa e o aumento do nível da maré em determinadas épocas do ano. Porém, as indagações acima carecem, e abrem caminho para estudos futuros, entres estes um levantamento geomorfológico da região, e um estudo mais aprofundado dos principais vetores de crescimento de Belém e Região Metropolitana.

Dito isto, vale enaltecer a utilização das geotecnologias no presente estudo, uma vez que através das técnicas de geoprocessamento e do uso de Sistemas de informações geográficas, foi viável extrair informações, até então sem nenhum tipo de coordenadas geográficas, e elaborar um banco de dados, reconstituindo a hidrografia da região central de Belém desde o século XVII.

Por fim, tal trabalho fez-se necessário, pois, acredita-se que identificar e compreender a forma de ocupação de uma determinada região, bem como as mudanças que ocorreram na mesma, auxilia na elaboração e na decisão de políticas públicas de planejamento e gestão urbana, afim de prevenir ou solucionar problemas socioambientais, que nesse caso são as enchentes e inundações que – infelizmente – já fazem parte da rotina do Belenense.

Agradecimentos

Ao CNPq, pelo apoio financeiro para a pesquisa; ao Programa de Pós-graduação em Ciências Ambientais - PPGCA, vinculado à Universidade Federal do Pará, a EMBRAPA, e ao Museu Paraense Emílio Goeldi; e à Companhia de Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém (CODEM) e a Secretaria Municipal de Saneamento (SESAN).

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Notas

[1] Tais assentamentos também eram classificados como “Freguesias”, e recebiam o nome de Sé e Senhora Santa Anna da Campina, respectivamente (BAENA, 2004, p. 184).
[2] Lagamar: Baía ou golfo abrigado no interior de um rio ou numa enseada (DICIO, 2020).
[3] Balde de Vallador: Um tipo de balde muito utilizado na construção de valados e fossos. Sua utilização consiste na retirada de terra do fosso e lançamento no sítio do valado (ACADÊMIA REAL DAS CIÊNCIAS DE LISBOA, 2018).
[4] Palafitas: Habitação construída sobre troncos ou pilares, comum em áreas alagadiças, pois deixa a residência em uma altura que a água não alcança (ESCOLA BRITANNICA, 2020).

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