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ENTRE “CANTOS” E “BATUQUES”: territórios e territorialidades negro-africanas na cidade de salvador no século XIX[1]
BETWEEN “CANTOS” AND “BATUQUES”: territories and territorialities black african in the city of salvador in the XIX century
ENTRE “CANTOS” Y “BATUQUES”: territorios y territorialidades negro africanos en la ciudad de salvador en el siglo xix
Revista Cerrados (Unimontes), vol. 17, núm. 2, pp. 3-24, 2019
Universidade Estadual de Montes Claros

https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/

Recepción: 11 Junio 2019

Aprobación: 10 Julio 2019

Publicación: 17 Julio 2019

DOI: https://doi.org/10.22238/rc24482692201917020324

Resumo: En este artículo se propone resaltar las huellas de movimientos de territorialización peculiares, realizado por los esclavos de gano y los criollos en la constitución de los “cantos” de trabajo y los batuques de “esparcimiento” repartidos por toda la ciudad de Salvador en el siglo XIX. Se cree que estos temas, en otros tiempos, han alimentado una compleja red de articulación multicultural que contribuyó a la formación de territorios de resistencia y, en consecuencia, a la organización de levantamientos e insurrecciones contra el modelo económico en vigor, que en el ámbito geográfico hace que el debate sea relevante teniendo en cuenta la escasez de fuentes sobre las diferentes geografías de los negros en Brasil antes de la abolición. Para eso, la discusión aquí fue delineada, basada en estudios bibliográficos inherentes al tema presentado.

Palavras-chave: Movimentos de Territorialização, Escravo de ganho, Cantos de trabalho, Batuques, Territorialidades Negras.

Abstract: The proposed article aims to highlight the traces of peculiar territorialization movements performed by the money-earling slave and Creoles in the constitution of the cantos de trabalho and the batuques de lazer scattered throughout the city of Salvador in the nineteenth century. It is believed that these subjects, in other times, have fed a complex network of multicultural articulation that contributed to the formation of territories of resistance and, consequently, to the organization of uprisings and insurrections against the current economic model, which in geographic scope makes the debate relevant considering the scarcity of sources about the different geographies of black people in Brazil pre-abolition. For that, the discussion here was delineated, based on bibliographical studies inherent to the theme presented.

Keywords: Territorialization movements, Money-earning slave, Cantos de trabalho, Batuques, Black territorialities.

Resumen: En este artículo se propone resaltar las huellas de movimientos de territorialización peculiares, realizado por los esclavos de gano y los criollos en la constitución de los “cantos” de trabajo y los batuques de “esparcimiento” repartidos por toda la ciudad de Salvador en el siglo XIX. Se cree que estos temas, en otros tiempos, han alimentado una compleja red de articulación multicultural que contribuyó a la formación de territorios de resistencia y, en consecuencia, a la organización de levantamientos e insurrecciones contra el modelo económico en vigor, que en el ámbito geográfico hace que el debate sea relevante teniendo en cuenta la escasez de fuentes sobre las diferentes geografías de los negros en Brasil antes de la abolición. Para eso, la discusión aquí fue delineada, basada en estudios bibliográficos inherentes al tema presentado.

Palabras clave: Movimientos de territorialización, Esclavo de ganho, “Cantos” de trabajo, Batuques, Territorialidades negras.

INTRODUÇÃO

Nas duas últimas décadas, os estudos sobre os territórios da gente negra, ou os chamados territórios étnico-culturais e/ou tradicionais, têm ganhado visibilidade no âmbito da Ciência Geográfica. A emergência de tais estudos se faz relevante visto a ausência de pesquisas geográficas dedicadas a tal temática, principalmente no que se refere às abordagens sobre o protagonismo do agente negro como produtor de espacialidades, ou seja, compreendendo a realidade territorial de tais sujeitos a partir de sua autonomia frente as peculiaridades de um sistema branco-hegemônico judaico-cristão, o qual subjugou historicamente o produto cultural, político, econômico e religioso de origem negro-africano.

É sob tal crítica que se desdobra a proposta do artigo aqui apresentado, ou seja, sobre a necessidade de se refletir sobre aspectos de territorialidades negras consolidadas a partir de movimentos de (des)(re)territorialização na cidade de Salvador no século XIX, que contribuíram para a configuração de territórios como os cantos de trabalho e os batuques de lazer onde negros africanos, entre poucos crioulos e até mesmo, alguns indígenas, se articulavam em movimentos de resistência e libertação contra o Governo da Bahia e, consequentemente, no Brasil. Um estudo que para além de seu objetivo específico pretende, (in)diretamente, ampliar o debate acerca das diferentes espacialidades do agente negro na atualidade.

No que tange a constituição dos cantos de trabalho e dos batuques, tratam-se de territórios originados a partir do encontro de sujeitos e de identidades negras, culturalmente híbridas (HALL, 2003) e dinâmicas, que não se constroem apenas da memória transcendente dos povos africanos, ou do trauma original da escravidão e, ainda, da violência racial, mas sim de uma experiência radical de desterritorialização seguida de uma “metamorfose” cultural inerente ao processo de reterritorialização, favorecendo inclusive a formação de um circuito comunicativo que ultrapassou fronteiras étnicas, permitindo a tais populações na capital baiana conversar, interagir e efetuar trocas culturais que se concretizavam a partir de diferentes organizações socioespaciais.

Neste sentido, considerando o espaço como o “resultado da acumulação desigual de tempos” (SANTOS, 1996), faz-se preciso analisar as dinâmicas e as diferentes formas de organização da gente negra para compreender suas ações no tempo e, consequentemente, no espaço, principalmente para analisar suas rupturas e permanências independentes de suas temporalidades. Assim sendo, os movimentos de (des)(re)territorialização, aqui em debate, foram realizados a partir da análise de referencial bibliográfico, considerando como elementos principais da pesquisa os movimentos de transposição e/ou ressignificação de valores e imaginários de origem negro-africanos em terras brasileiras, como uma estratégia e/ou alternativa para compreender novas e outras geograficidades de tais sujeitos.

O escravo de ganho: um agente produtor de espacialidades

No início do século XIX, a cidade de Salvador se tornou o principal entreposto comercial inter-regional do país, constituindo-se num importante centro (re)distribuidor de manufaturas, alimentos e escravos servindo, ainda, de escritório para o “mercado” agroexportador, o que contribuiu diretamente para a intensificação da circulação de mercadorias na zona portuária, alterando, substancialmente a paisagem da cidade.

É neste contexto que a escravaria doméstica diminui consideravelmente no ambiente urbano, cedendo espaço para um novo personagem - o escravo ou negro de ganho - denominação aplicada aos negros que trabalhavam com as atividades de ganho, na prestação de serviços como carpinteiros, pedreiros, ferreiros, padeiros, sapateiros, cocheiros, alfaiates, artesãos, cavaleiros, fabricantes de carvão, barbeiros, vendedores ambulantes e carregadores, que trabalhavam no transporte de cargas, tanto nos carretos como, de pessoas, nas famosas cadeiras de arruar, havendo, ainda, uma complexa rede de prestação de serviços organizada por mulheres negras para atender às necessidades desses “trabalhadores”, principalmente no trato da alimentação com as chamadas negras-do-tabuleiro.

Para além dos serviços oferecidos nos cantos, enquanto aguardavam pelos chamados de trabalho, os negros incumbiam-se da confecção de rosários de coquinhos; pulseiras de couro enfeitadas de búzios; fabricavam gaiolas para pássaros e correntes de arame para prender papagaios; trançavam esteiras, cestos e chapéus de palha, vassouras de piaçaba; esculpiam em peças de madeira símbolos fetichistas de sua seita, além de finalizar as etapas de produção do pano da Costa de origem africana que “vinham crespos, e eles os estendiam sobre um toro de madeira, em forma de cilindro, e com outro menor, batiam-nos para abrandar a aspereza e dar-lhes o lustro. Também renovavam os mesmos panos, tingindo-os” (QUERINO, [1916]2006, p. 32).

Trata-se do trabalho realizado sem a supervisão e/ou fiscalização dos senhores, o que permitia a tais sujeitos transitar por diferentes lugares e criar estratégias e/ou alternativas para sua reterritorialização. Salienta-se que o processo de reterritorialização, aqui em foco, corresponde ao movimento de transposição de um imaginário geográfico cultural peculiar, que possibilitou ao agente negro reconstituir novos territórios moldados e/ou estruturados a partir de suas próprias tradições e hierarquias, resistindo à pressão do modelo político econômico imposto pelo agente branco-europeu (CORRÊA, 2004) e, ao mesmo tempo, retomar sua humanidade, uma vez que o negro fora desumanizado para à agregação de valor enquanto mercadoria (MELO, 2014).

Robert Avé-Lallemant (1859) em passagem pela cidade de Salvador no século XIX registrou as seguintes impressões sobre tais personagens,

Basta portar-se perto do arsenal [...] e esperar que chegue uma turma de negros para levarem uma pipa ou uma caixa pesada para o bairro alto. [...] carregar um peso é quase uma dança; o ritmo da marcha nesse trabalho é quase como o dum cortejo sálio. Os próprios gritos têm de ser rítmicos, os musculos do peito têm que ajudar; quando o braço leva a mão para frente, o pé tem que mover-se no mesmo sentido, do contrário o trabalho do negro não se pode fazer (AVÉ-LALLEMANT, 185, p. 22-23).

Neste sentido, Wetherell, vice-cônsul britânico que residiu na Bahia de 1843 a 1857, fez o seguinte relato sobre os negros carregadores: “ao carregar esses pesadíssimos fardos, através das ruas, os pretos cantam uma espécie de coro, que não deixa de ser uma maneira muito útil de prevenir o transeunte para que saia da frente” (apud. VERGER, 1999, p. 216).

Sobre a peculiaridade das práticas africanas no trabalho, Reis (2003) destaca que a melodia improvisada e repetida pelos negros, estava relacionada às atividades do cotidiano e ao histórico dos sujeitos. Logo, a exaltação de bens comuns, ou os versos sobre a relação entre senhores e escravos, muitas vezes oculta aos ouvidos desatentos daqueles que não estavam familiarizados com o sotaque dos negros, ou ainda, as lembranças de sua terra de origem entoadas na forma de ladainhas, correspondem ao acionamento da memória coletiva a qual permite aos sujeitos se localizar temporalmente reafirmando no espaço suas identidades, ou seja, se reterritorializando.

Faz-se relevante recordar, mesmo sob uma perspectiva pejorativa e/ou preconceituosa, a presença e importância dos carregadores de cadeiras em tal contexto:

Dois negros vigorosos, vestidos de uniformes antediluvianos, a grenha enterrada em cartolas de couro negro ornadas de fitas de cor, empunham a cadeira de arruar. Eles caminham descalços, o que é próprio do homem-animal. A cadeira pende de uma vara cujas extremidades repousam sobre os ombros dos dois carregadores. Uma cortina azul e dourada é drapeada em redor. Ao ver aproximar-se esse imponente veículo, poder-se-ia crer que alguma coisa de sagrado é carregada neste repositório flutuante. Mas subitamente o andar rápido e a brisa entreabrem a cortina e vemos o passageiro pançudo, vestido de uma sobrecasaca e de um chapéu de feltro e agitando indolentemente um leque (HABSBURGO, 1860. Apud. VERGER, 1999, p. 24).

É importante ressaltar que até o final do século XIX, a cadeira de arruar era o principal meio de transporte utilizado na cidade de Salvador. Devido ao relevo acidentado e com o mal calçamento das ruas, o uso de outros meios de transporte era inviável. Somente após meados do século o transporte movido por tração animal foi implantado, e apenas nas suas últimas décadas o sistema de bondes urbanos locais foi efetivado. Neste cenário, apenas os mais pobres andavam a pé, pois as cadeiras de arruar, expostas em frente aos casarios, refletiam o status social e econômico das famílias senhoriais.

Recorda-se que o exercício e função de ganho executado pelo negro estava condicionado a licença emitida pela Câmara Municipal, uma espécie de registro de controle sob aqueles que circulavam pelos becos e vielas da cidade a oferecer seus serviços. Ressalta-se, também, que dentre os ganhadores escravizados, circulavam negros livres e forros que vendiam sua força de trabalho, no entanto, ainda dependentes das licenças que eram emitidas ou renovadas de acordo com o perfil de cada solicitante. Neste caso, tanto o senhor de escravo como o negro livre e forro encaminhavam o pedido de licença para a Câmara Municipal, sendo liberadas as “licenças eram pagas à Câmara e, em seguida, o escravo recebia uma chapa, constando aí seu número de matrícula, a qual deveria levar consigo no exercício de sua atividade de ganho; e caso o escravo fosse pego sem esta chapa receberia uma multa” (COSTA, 1989, p. 45).

Com o crescente aumento de negros circulando na cidade exercendo o ganho, as mudanças na conjuntura econômica eram inevitáveis, o que contribuiu para alterações significativas das relações entre o senhor e escravo, na qual o cativo deixou de ser especificamente de uso doméstico para assumir o papel de principal agente econômico atuando nas ruas, o que contribuiria posteriormente para a sua independência e libertação.

Tal situação lhe proporcionaria condições para juntar pequenos pecúlios, na medida em que pagava diariamente ou semanalmente parte de seu ganho para o senhor, ficando com o excedente que era utilizado tanto para a sua própria manutenção, como para a elaboração de um fundo para a compra de sua própria alforria (REIS, 2003). Salienta-se que em tal relação, o senhor tinha o controle sobre o produto de seu trabalho apenas mediante o recebimento da quantia preestabelecida, mas era o escravo quem decidia como exercer o seu trabalho (COSTA, 1989), o que esboça traços de sua autonomia visto sua condição de escravização.

A partir da ótica escravagista tal relação constituía-se num processo extremamente cruel de exploração, no entanto o negro deixava o papel e função de mercadoria para ascender a condição de capital vivo, pois “semelhante investimento se fazia acessível até as famílias pobres, cuja única fonte de renda residia na exploração via escravização de um ou dois negros de ganho” (GORENDER, 1985, p. 476). Neste sentido, Silva (1988, p. 21) é categórica ao afirmar que tal atividade apresentava-se como “uma grande oportunidade de lucros, pois o senhor, além de livrar-se dos custos do sustento deste escravo, muitas vezes ainda era mantido pelo trabalho deste nas ruas da cidade” e, como assinalado por Costa (1989), o controle das atividades de ganho na cidade era o melhor investimento dos Senhores para obtenção de lucro sobre a especulação do capital humano escravizado. Neste caso, é possível considerar a cidade de Salvador no século XIX, como importante laboratório para a compreensão da transição do sistema mercantil-escravagista para pré-capitalista e/ou capitalista moderno, tendo o negro de ganho como principal referência de transição de modelos de escravização da mercadoria (des)humana para exploração de mão-de-obra e “expropriação de capital”.

Acrescenta-se ainda que o intenso movimento comercial nos portos e a presença do escravo de ganho na cidade deixaram impressionados muitos dos viajantes europeus que passaram pela capital baiana no século XIX. Johann Von Spix e Karl Friedrich Von Martius, ao desenbarcarem no porto de Salvador entre, ficaram bestificados com a presença do negro na organização do comércio, principalmente por serem os responsáveis pela circulação das mercadorias que eram desembarcadas nos portos e pela elaboração de uma complexa rede de serviços que garantia o funcionamento das atividades econômicas, não só na zona portuária, como em toda a cidade. Situação que lhes permitiu a reflexão: “tristíssima a condição dos que são obrigados a ganhar diariamente uma certa quantia ‘uns 240 réis’ para os seus senhores; são considerados como capital vivo em ação, e, como os seus senhores querem recuperar dentro de certo prazo, o Capital e juros empregados, não os poupam” (SPIX; MARTIUS, [1817-1820]1981, p. 158); cenário que também causou surpresa a Avé-Lallemant (1980):

De feito, poucas cidades pode haver tão originalmente povoadas como a Bahía. Se não se soubesse que ela fica no Brasil, poder-se-ia tomá-la sem muita imaginação, por uma capital africana, residência de poderoso príncipe negro, na qual passa inteiramente despercebida uma população de forasteiros brancos puros. Tudo parece negro: negros na praia, negros na cidade, negro na parte baixa, negros nos bairros altos (p. 22).

Deste modo, considera-se que os negros que circulavam pela capital baiana estavam para além da condição de prestadores de serviços, eles se integravam à paisagem; eram neste sentido, complementares a organização e funcionalidade da cidade, pois faziam parte da economia e da “confusão das casas e vielas”, das tortuosas travessas que constituem, ainda hoje, labirintos que cortam a escarpa ligando a cidade alta à baixa. Em suma, as relações de trabalho que envolviam o escravo de ganho desdobravam-se em relações socioeconômicas que contribuiam para a sua territorialização. Neste caso, a presença do negro em tal paisagem coloca em evidência o uso e apropriação do espaço por tais sujeitos que circulavam e amontoavam-se em diferentes lugares, principalmente nos chamados cantos de trabalho.

Os cantos da gente negra

Em “Os africanos no Brasil”, públicado em 1932 post mortem, Nina Rodrigues apontou as diferentes formas de ocupação de trabalho das populações negras na cidade de Salvador, chamando atenção para a formação dos cantos de trabalho, espaços de aglutinação dos negros divididos por nações ou familiaridades etnicoculturais dentre elas a língua. Trata-se do que se pode chamar de microterritórios de resistência que rompem com a lógica escravagista e sua operacionalidade.

Não se vá crer, no entanto, que isolados da população mestiça e crioula, se fundam todos os africanos em uma colônia estrangeira grande e uniforme. Cada qual procura e vive com os de sua terra e são os sentimentos e as afinidades da pátria que nesta cidade repartem os derradeiros africanos em pequenos círculos ou sociedades. As nações ainda numerosas possuem os seus cantos, sítios da cidade onde, a tecer chapéus ou cestas de palha e a praticar das gratas recordações da mocidade, os velhinhos aguardam fretes (NINA RODRIGUES, [1932] 1982, p. 110).

Sendo os cantos de trabalho espaços de aglutinação cultural de neções específicas, mostra-se relevante apontar que, a ideia de nação aplicada em tal situação corresponde à agregação de grupos e subgrupos étnico-africanos que foram trazidos para o Brasil. Portanto, os termos comuns que designaram, e ainda prevalecem na literatura africanista ou brasilianista, correspondem a construções, muitas das vezes, alógenas à realidade cultural dos sujeitos. Matory (1999, p. 58) aponta que “essas nações eram frequentemente agrupamentos impostos a diversos povos e a distintas ordens de categorias políticas, linguísticas e culturais que foram unificados primariamente para os propósitos dos traficantes de escravos”.

Acredita-se que a necessidade de sobrevivência de tais sujeitos, visto o modelo político-econômico o qual foram submetidos, tenha contribuído para a formação dos cantos de trabalho em territórios étnico-culturais resultantes da busca e/ou à procura de seus iguais, já que estes eram “livres” para exercer suas atividades de ganho pela cidade sem ponto fixo. Especula-se, então, que o escravo de ganho represente em tal processo a contradição da relação escravagista tradicional, pois ele era “autonômo” no que se refere ao tipo de trabalho que queria realizar; possuía uma economia própria (o que lhe permitia negociar com seu dono) e estava inserido numa complexa rede de serviços junto a outros companheiros que percorriam toda a cidade, o que contribuiu para a constituição de novas territorialidades rumo à apropriação do espaço, pois foi neste pequeno universo de relações que o negro conseguiu morar com sua companheira ou demais companheiros, constituir círculos de amizade, manter seus costumes e ter uma vida própria relativamente independente (REIS, 2003). É neste cenário ainda que emerge o que Castells (1999, p. 24) denomina como as identidades de resistência, geradas por sujeitos que ocupam “posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade”.

Tais processos devem ser entendidos ainda, como um movimento de territorialização, onde a população negra a partir da recriação e/ou ressignificação de seus territórios originais em terras brasileiras, conseguiram se reterritorializar sob outros valores socioculturais, uma vez que estavam em constante processo de (re)existência (CORRÊA, 2004); e principalmente ao considerar que tais sujeitos foram deportados da África para América tendo de lidar com as mazelas de sua desterritorialização, enquanto um processo de expropriação cultural e de desumanização consequente às políticas mercantis-escravagistas pré-capitalistas. Deste modo, como fora apontado Haesbaert (2006, p. 133), “a desterritorialização que ocorre em uma escala geográfica geralmente implica em uma reterritorialização em outra escala, por isto a relação entre redes e território é permanente e indissociável”, questão de pode ser evidenciada no processo de constituição dos cantos de trabalho e na configuração das redes de prestação de serviços que conectavam os diversos pontos da cidade.

Territórios em construção e territorialidades em movimento

Embora os cantos funcionassem com o aval da municipalidade, geralmente em uma esquina ou em um cruzamento, eram os próprios negros que cuidavam da sua administração. Deste modo, cada canto tinha um chefe, o “capitão do canto”, que tinha como principal função intermediar as relações entre o ganhador e o contratador, devendo acertar o preço dos serviços e fazer o pagamento dos trabalhadores (VERGER, 1999). Provavelmente tratava-se de um negro bem articulado e com boas relações sociais com a comunidade local e demais comerciantes da cidade. Segundo Querino ([1916]2006), a escolha do capitão do canto consistia em uma cerimônia que transcendia o universo cultural do branco,

Nos cantos do bairro comercial, esse ato revestia-se de certa solenidade à moda africana: os membros do canto tomavam de empréstimo uma pipa vazia em um dos trapiches da Rua Julião ou do Pilar, enchiam-na de água do mar, amarravam-na de cordas e por estas enfiavam um grosso e comprido caibro. Oito ou doze etíopes, comumente os de musculatura mais possante, suspendiam a pipa, e sobre ela montava o novo capitão do canto, tendo em uma das mãos um ramo de arbusto e na outra uma garrafa de aguardente. Todo canto desfilava em direção ao bairro das Pedreiras, entoando os carregadores monótona cantilena, em dialeto ou patuá africano. Na mesma ordem, tornavam ao ponto de partida. O capitão recém-eleito recebia as saudações dos membros de outros cantos, e nessa ocasião fazia uma espécie de exorcismo com a garrafa de aguardente, deixando cair algumas gotas do liquido. Estava assim confirmada a eleição (p. 32).

Se a organização e divisão dos cantos em nações apresentavam-se como a própria materialidade do movimento de (des)(re)territorialização do negro, o registro de tal celebração corresponde à configuração de uma territorialidade simbólica ressignificada, fundamentada sobre os costumes das tradições africanas, pois, como registrado por Hampaté Ba (2003), saudar um homem africano pelo seu nome família trata-se de uma revência a todos os seus ancestrais, atitude que era repetida pelo capitão que ao ser saudado pelos “membros de outros cantos” derramava sobre o chão um pouco de aguardente, um produto “nobre” a ser ofertado aos seus antepassados.

Com aumento do comércio de importação e exportação de produtos no porto baiano e, ainda, com a chegada de mercadorias vindas do interior de diferentes regiões do país, o número de escravos de ganho na cidade seguia rumo crescente, o que intensificava o movimento dos negros nos cantos que, além de se aglomerarem na espera de trabalho, alimentavam uma rede de prestadores de serviços exclusivamente destinada à população negra da cidade.

Nas primeiras horas da manhã surgiam nos ‘cantos’ negras conduzindo grandes panelas de mingau de milho e tapioca, que os ganhadores consumiam com pão. Das quatorze horas para as quinze horas apareciam outras pretas a vender arroz de haussá com carne seca frita aos pedacinhos e o respectivo molho, preparado com pimenta seca ralada na pedra e levada ao fogo com azeite de dendê; bolas de inhame que, dissolvidas na água eram consumidas com açúcar; carne de baleia moqueada; inhame cozido, caruru, etc. (VERGER, 1999, p. 220).

Cabe mencionar que a mulher negra tanto africana como crioula, assumiu papel de destaque na sociedade baiana do século XIX, como uma articuladora de processos e movimentos gerenciados pelos pequenos grupos negros. Pois, como apontado por Nina Rodrigues ([1932] 1982, p. 111), “em geral não se separavam tanto [as mulheres], como os homens, segundo as suas nacionalidades”, o que lhes permitia constituir uma intensa e complexa rede de contatos e de comunicação que interligava os sujeitos de diferentes “cantos” e nações.

O modelo de organização do trabalho na cidade era familiar aos negros submetidos ao ganho, pois lhes remetiam, em muitos casos, às suas experiências com o comércio, nas grandes feiras que ocorriam nos mercados de diversas cidades africanas, questão apontada por Pierre Verger (1999, p. 221) quando indagou o protagonismo da mulher negra nagô na formação dos primeiros terreiros de candomblé “as mulheres nagôs e seus descendentes na Bahia têm o mesmo espírito empreendedor que as caracteriza na África”. Tratam-se de mulheres ativas que geralmente conseguiam acumular mais riquezas que os homens, o que lhes dava autonomia total nas relações familiares e era no entorno delas que se formava a família, podendo elas morarem com “companheiros e pais sucessíveis de seus filhos, sem que se possa por isso tachá-las de mulheres libertinas”.

A condição de ganho dos negros não só favorecu a mobilidade de tais sujeitos, como contribuiu para a manutenção de seus costumes, ideologias e religião, pois a contínua circulação destes sujeitos espalhados pelos diversos cantos da cidade, contribuiu para a formação de uma rede de informações e de comércio informal, pela qual, trabalhadores que se instalavam na parte alta da cidade mantinham acordos com os trabalhadores da parte baixa e do porto e, estes, por sua vez, faziam negócios com marinheiros cativos ou não, possibilitando a importação de diversos produtos de origem africana, dentre eles os de uso ritual e religioso.

Deve-se acrescentar também que foi em meio às atividades nos “cantos” que os negros conseguiram desenvolver associações de solidariedade coletiva como as “juntas de alforrias, uma forma de organização de crédito que visava libertar africanos escravizados e que era provavelmente, no caso dos nagôs, estruturada com base nas ègbé - associações tradicionais -, ou ainda no esusu, instituição de crédito yorubá. Segundo a historiografia baiana, a Sociedade Protetora dos Desvalidos, ainda existente em Salvador, teria sido fundada em 1832, por Manoel Victor Serra, africano, ganhador no “canto” da Preguiça.

Tendo em vista as alternativas elaboradas para driblar o modelo de organização dominante, pode-se afirmar que a organização de distintas “associações” negras tenha conduzido a ruptura e libertação de tais sujeitos frente a lógica existente entre senhor e escravo, na tentativa do estabelecimento de sua autonomia e, porque não dizer, da sua tomada de consciência enquanto homem livre. Deste modo, apresenta-se aqui mais um exemplo dos mecanismos de resistência particulares ao negro que levariam não só à liberdade individual, como coletiva.

Recorda-se, ainda, que a luta do negro pela conquista de territórios na efetivação de sua reterritorialização, ou até mesmo, da afirmação de sua identidade étnica em nações, extrapola os limites de sua condição de escravo e de sua relação com o senhoril. Diferentemente da escravaria doméstica que tinha como principais características de resistência estratagemas menos expressivos, porém que minava paulatinamente as relações de poder, pois mesmo sob a pena do castigo, os negros realizavam boicotes à produção, destruíam as plantações, simulavam doenças (o chamado corpo mole), manchavam roupas, salgavam ou apimentavam a comida, “utilizavam-se do choro” como alternativa para bulir com o castigo, entre outras maneiras (REIS, 2003), as quais podem ser analisadas como atitudes autônomas do sujeito em contraposição a lógica dominante, eram comuns estratégias de resistência como o suicídio entre os africanos que preferiam a morte ao viver sob tal condição, a realização de abortos entre as mulheres que evitavam o aumento da prole do senhor e a exploração de seu descendente e, em algumas situações, haviam ainda os casos de envenenamento dos senhores.

Embora estas fossem ações pontuais, caracterizadas como formas primárias de resistência, nas ruas, o encontro de nações nos cantos de trabalho contribuía para a organização de eventos mais elaborados, organizados de acordo com os interesses dos povos neles envolvidos. Entretanto, é preciso frisar que tais movimentos, revoltas ou levantes gerenciados pelos negros, não eram homogêneos e nem possuíam interesses comuns, pois a cidade de Salvador no século XIX estava dividida entre uma classe dominante (branca hegemônica) movida por interesses econômicos, e outra negra (livre, liberta e escravizada) dividida entre distintos tons de preto, estabelecidos pela origem étnica e religiosa dos diversos povos aqui chegados entre os nascidos na terra (fruto do próprio sistema escravagista), mas todos com o único objetivo, o de lutar por sua liberdade e sobrevivência contra o branco. Mesmo diante as diferenças entre os pretos, sejam africanos ou crioulos, o fator contrário a lógica dominante permitia a tais sujeitos, livres, libertos ou escravizados estabelecer alianças que contribuíssem para os seus objetivos.

Sobre o trânsito dos trabalhadores negros na cidade, não se sabe ao certo se parte da escravaria que servia nas atividades do ganho, pelo menos aquela desventurada do lucro, que se recusava a viver com seus senhores, não pernoitava no próprio local onde se instalavam os cantos gerando um volume de andarilhos nas noites da cidade. Porém, acredita-se que, ao anoitecer, longe dos olhares dos seus senhores e da administração pública, os cantos de trabalho, assim como os becos e vielas da cidade se transformavam em espaços de articulação perfeitos para agenciamentos de identidades individuais e coletivas via a necessidade de territorialização. Neste sentido, vale ressaltar que até o ano de 1826 a cidade de Salvador não dispunha de nenhuma luminosidade e foi, somente em 1829, que instalaram pela cidade lampiões a óleo de baleia, que ainda não iluminavam o suficiente.

Mattoso (1992, p. 443) enfatiza que “era preciso coragem para sair à rua depois que o sol se punha, um tropeção ou um assalto eram perigos menores: a cidade estava entregue a marginais que não hesitavam em puxar a faca”. A segurança da cidade, pelo menos nas áreas centrais da parte baixa e alta, era feita, desde 1812, pela companhia dos voluntários e milicianos. Foi somente em 1825 que apareceu o primeiro Corpo de Polícia para atender a região do centro e suas imediações. E, em decorrência do aumento da criminalidade em 1857, foi incorporada ao corpo policial a guarda urbana, “escolhida entre os cidadãos ativos que funcionavam como inspetores de quarteirão [...], embora nada disso tenha resolvido o problema da segurança em Salvador”.

No cenário apontando, a possibilidade da insurgência dos negros preocupava a população baiana, principalmente àqueles que eram donos de grandes investimentos na economia escravagista que, além de recearem uma crise econômica, temiam pela vida de seus entes diante das revoltas. De certo modo, a cidade de Salvador, de 1800 até o final da década de 1830, era um local de constantes conflitos entre as nações africanas e os negros da terra, contra o sistema que os submetia à escravidão. Diante dos rumores sobre possíveis revoltas que se espalhavam pelas ruas da cidade, a população andava à espreita e, com o entardecer recolhiam-se em suas casas onde permaneciam, saindo de lá apenas ao amanhecer do outro dia, pois como já assinalado, a rua não era um local seguro para se estar depois do pôr do sol e é neste contexto que surgem os “enfrentamentos das correntes políticas de ordem moderada e tirânica (Cf. SILVEIRA, 2006), representadas historicamente pelas diferentes abordagens políticas do Conde da Ponte, das políticas do Conde dos Arcos, seu sucessor.

Para além da prática dos batuques

Como apontado anteriormente, a cidade de Salvador no século XIX fora palco de muitos movimentos de (re)territorialização da gente negra e, atrelado a organização dos cantos de trabalho, estava a prática dos batuques. Tido como um “espaço de lazer e recreação”, os batuques estavam espalhados por toda a cidade, constituídos em torno de ritmos percussivos de tambores, melodias e dos passos de dançarinos. Em muitos dos casos, o próprio canto servia como um ponto de batuque, entretanto, a caracterização dos batuques como espaços de lazer, limita às ações a eles possíveis, principalmente de encontro e de articulação de ideias entre os sujeitos envolvidos em suas práticas.

Neste sentido, os “espaços” dos batuques, assim como os cantos de trabalho, devem ser interpretados como territórios de aglutinação culturais, os quais envolvem a elaboração de estratégias de resistência frente ao regime escravagista, possibilitando a população negra, reconstituírem modelos de organizações sócio-espaciais de culto aos seus deuses e ancestrais e, consequentemente, contribuindo ainda, para a (re)estruturação de modelos políticos e hierárquicos que assegurassem sua sobrevivência. Aspectos de um movimento peculiar - comum as diferentes nações africanas submetidas à escravização em terras brasileiras -, que segundo Melo (2019) serviram de base para a constituição de territorialidades tipicamente negras, ou, mais precisamente, para o (re)desenhar de suas “afro-territorialidades”, um modelo de organização político, cultural e econômico que tinha como base a retomada de sua humanidade e, consequentemente, de sua liberdade frente ao sistema.

Indo além dos batuques praticados nos cantos, eram comuns que tais práticas estivessem inseridas no universo das procissões e demais festividades da Igreja. Neste sentido, era difícil definir os limites entre o “sagrado e o profano” presente na musicalidade e na festa dos negros, pois a maioria de suas comemorações, inclusive as religiosas, estavam repletas de ritmos dançantes que chamavam a atenção de toda a população baiana. No mais, os batuques realizados tanto pelos povos negros africanos, como crioulos apresentavam-se em constante interação com a cultura dominante, o que não pode ser compreendido ou reduzido a caracterização de um processo sincrético ou simplesmente de assimilação cultural, mas, sim, como o encontro de territorialidades religiosas distintas que se articulam entre o limiar de “fronteiras porosas” onde é possível o conviver de práticas distintas num mesmo espaço, estando ora em interação, noutras não, questão apontada por Corrêa (2004) ao analisar a formação da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte.

Assim como os cantos, os batuques estavam espalhados por vários pontos da cidade, principalmente na frente das igrejas, nos fundos das casas, ou ainda em terreiros, onde se reuniam homens e mulheres para a realização de suas danças, o que não excluía o culto de seus ancestrais, nem o sentido de festejá-los. Assim sendo, vale enfatizar que os povos negro-africanos trazidos para o Brasil no século XIX, os últimos do ciclo negreiro, provindos da região do Golfo do Benin, encontraram na cidade de Salvador organizações socioespaciais e culturais de origem africana pré-estabelecidas pelos povos outrora chegados, principalmente os bantu da África Central, com diferentes graus de articulação com outros povos da Costa da Mina como os ewe, os “jeje”, o que contribuiu diretamente para a sua territorialização, uma vez que poderiam se apropriar de modelos já “institucionalizados”.

Embora tais movimentos fossem possíveis aparentemente, em diversos momentos as políticas de controle dos espaços de lazer da população negra, ora se apresentavam permissivas no que se refere à concessão de “liberdade” aos negros para realizarem seus festejos aos domingos e dias santos; e outras extremamente restritivas, proibindo efetivamente os batuques. Sobre a movimentação dos negros nas cidades e a sua “liberdade excessiva”, Dom João Saldanha da Gama Mello e Torres Guedes de Brito, o Conde da Ponte (1805-1810), decidiu organizar o que, para ele, estava completamente errado, pondo fim às festividades dos negros: “não parece ser muito acerto em política, o tolerar pelas ruas, e terreiros da cidade façam multidões de negros de um, e outro sexo, os seus batuques bárbaros a toque de muitos, e horrorosos atabaques, dançando desonestamente” (REIS, 2003, p. 69).

Em relatório encaminhado ao Conselho Ultramarino Português em abril de 1807, o Conde da Ponte relatou que os inúmeros negros fugidos se aglutinavam em pequenos quilombos e terreiros clandestinos que se localizavam nas regiões ao redor da cidade. Assim, de forma violenta, o Conde da Ponte repudiou a política de permissibilidade a prática de batuques e lançou-se em uma severa investida repressora contra os negros, a qual puniu “os vadios” da cidade, cercou os arraiais, destruindo casebres e prendendo um número considerável de africanos. Embora houvessem sido severas as restrições impostas pela administração pública local, ainda no ano de 1807, informantes negros que circulavam pelos cantos de trabalho e pelos batuques da cidade alertaram o Conde da Ponte, sobre o possível levante proposto pelos haussás escravizados nas cidades de Salvador e de Santo Amaro, o qual conseguiu impedir, porém resultando na morte de alguns revoltosos, e na proibição efetiva das reuniões e festas africanas, na imposição de limites à circulação dos libertos, estabelecendo com pena de cento e cinquenta açoites todo o escravo encontrado na rua após as nove horas da noite (SILVEIRA, 2006).

No tocante, as políticas de Dom João Saldanha foram incisivas contra a “relativa liberdade” de circulação dos negros. Porém com a sua morte em 1809, entrou em cena o novo governador da Bahia, Dom Marcos de Noronha Brito (1810-1818), o Conde dos Arcos que, ao contrário de seu antecessor, assumiu um perfil político distinto. Suas ações alteraram significativamente a cidade da Bahia. Empreendedor de visão, realizou obras nos setores político, econômico e cultural da cidade, sendo o responsável pela introdução dos navios a vapor na economia portuária brasileira, da máquina a vapor na produção do açúcar e, ainda, pelo cultivo de novas espécies de cana e algodão. Com a abertura dos portos, propôs reformas no setor financeiro, criou a primeira cavalaria brasileira, fundou a Faculdade de Medicina do Seminário Arquidiocesano e a primeira biblioteca pública da cidade, construiu e inaugurou o Teatro São João, e o jornal Idade d’Ouro do Brasil para o qual “ele próprio se encarregou de traçar as diretrizes que deveriam orientar a linha editorial do periódico, documento que atesta a sua inclinação liberal” (SILVEIRA, 2006, p. 256).

Logo, a política do Conde dos Arcos trouxe mudanças significativas para a economia da cidade, porém muitos de seus patrícios não estavam contentes com sua posição em relação a realização dos batuques que, mesmo diante as repressões de seu antecessor, estes eram ouvidos durante a noite em diversos lugares da cidade, vindo o som dos atabaques dos fundos e porões das casas onde moravam negros, crioulos e mestiços.

Nina Rodrigues ([1932] 1982), neste quesito, assinala que o Conde dos Arcos possuía uma visão peculiar sobre a realização dos festejos dos negros, questão registrada pelo próprio Conde em documento redigido em maio de 1814:

Batuques olhados pelo Governo são uma coisa, e olhados pelos Particulares da Bahia são outra differentissima. Estes olham para os batuques como para hum Acto offensivo dos Direitos dominicaes, huns porque querem empregar seus Escravos em serviço util ao Domingo tambem, e outros porque os querem ter naquelles dias ociozos á sua porta, para assim fazer parada de sua riqueza. O Governo, porém, olha para os batuques como para hum ato que obriga os Negros, insensível e machinalmente de oito em oito dias, a renovar as idéas de aversão reciproca que lhes eram naturaes desde que nasceram, e que todavia se vão apagando pouco a pouco com a desgraça commum; idéas que podem considerar-se como o Garante mais poderoso da segurança das Grandes cidades do Brasil, pois que se uma vez as, differentes Naçoens da África se esquecerem totalmente da raiva com que a natureza as desuniu, e então os de Agomés vierem a ser Irmãos com os Nagôs, os Gêges com os Aussás, os Tapas com os Sentys, e assim os demais; grandissimo e inevitavel perigo desde então assombrará e desolará o Brasil. E quem haverá que duvide que a desgraça tem poder de fraternizar os desgraçados? Ora, pois, prohibir o unico Acto de desunião entre os Negros vem a ser o mesmo que promover o Governo indirectamente a união entre eles, do que não posso ver senão terríveis conseqüências (p. 166).

Conforme explicitado, o Conde dos Arcos optava pela permissibilidade das festividades negras, como um meio de conter a injúria e os possíveis levantes, como o ocorrido em fevereiro do mesmo ano (a chamada rebelião de 1814), na peixaria de Manuel Ignácio da Cunha Menezes, que resultou no agrupamento de mais de seiscentos negros das plantações do entorno que invadiram as instalações de seus senhores ateando-lhes fogo, enquanto gritavam: “Liberdade! Viva os negros e seu rei” e “Morte aos brancos e aos mulatos!” movimento que resultou na morte de treze brancos, além de oito feridos e “depois de um combate de várias horas, cinquenta e seis negros, quase todos ussás, foram mortos” (VERGER, 1987, p. 334).

Entretanto, o próprio Conde dos Arcos acreditava que a divisão dos povos africanos em nações serviria como uma forma de se aniquilar possíveis alianças e estruturas de organização intergrupais de resistência dos negros que poderiam vir a gerar levantes contra os seus senhores, colocando em risco não só a segurança da população, como toda a base da economia da época. Em síntese, o posicionamento do Conde dos Arcos perante os batuques tinha um único objetivo, estabelecer o controle dos negros por meio da permissibilidade de suas práticas culturais. A partir de tal referencial, mesmo sem agradar aos seus patrícios, decretou: “o ajuntamento de escravos [os batuques] não serão impedidos em dois lugares da cidade, aquele da Graça e do Barbalho, onde poderão realizá-los, até a hora da Ave Maria, momento em que terão que se retirar para a casa de seus senhores” (VERGER, 1987, p. 335).

Contudo, a institucionalização de locais específicos para a realização dos batuques, ao contrário do que imaginava o Conde dos Arcos, contribuiu para o (re)encontro de grupos e subgrupos étnicos africanos e ainda para a consolidação de um território de difusão de informações e de práticas culturais que possibilitariam a permanência das estruturas hierárquicas político-culturais e religiosas dos povos negro africanos. Pois, neste contexto, os negros que se reuniam em pequenos grupos “onde queriam”, para dançar, cantar e articular suas ideias, estavam proibidos de realizar tais atividades fora do local indicado pelo Governo, caso contrário estariam sujeitos a rigorosas penas, restando-lhes apenas a organização de um espaço comum de práticas socioculturais alimentada por uma rede intercultural, eliminando com as ideias previstas pelo governo baiano, onde o encontro de tais sujeitos e atividades alimentariam a discórdia existente entre as nações africanas, que rememorariam às suas origens e trajetórias ainda no continente negro, impossibilitando o agrupamento e a articulação dos negros numa unidade cultural comum no Brasil.

De certo modo, a política para centralizar os batuques em espaços específicos que permitiam o controle por parte da administração pública foi efetiva para a organização das atividades, principalmente durante o dia, mas ao contrário do que se esperava, durante a noite ainda se ouviam o som dos atabaques estalando, o que levou a elite local, contrária às políticas do Conde, a realizar uma petição, na qual enfatizava as brechas das políticas de Dom Marcos, considerando o contingente negro em relação ao branco que circulava pela cidade, o que causava medo para a população, “os negros atacavam ‘sem vergonha’ as mulheres brancas na rua e chegavam a retirar prisioneiros das mãos da justiça”, além de reclamarem do livre trânsito dos negros pela cidade e de seus falares africanos, ou ainda em língua portuguesa onde ameaçavam a população local.

Não era por acaso que os opositores de Dom Marcos estavam preocupados, a cidade estava sob uma atmosfera perturbadora. Foi então que no final de maio, uma denúncia sobre uma revolta agendada para o mês junho chegaria aos ouvidos do Conde e, assim como, em 1807, colocaria as autoridades da capital em sinal de alerta. Pois, “muitos dos haussás que escaparam em fevereiro haviam se aquilombado nas imediações de Salvador” (REIS, 2003, p. 88) e se organizavam para tomar a cidade no dia 24 de junho, na noite de São João.

Deste feito, é possível notar que existia uma rede de comunicação bem estabelecida entre os revoltosos e os negros que exerciam função de ganho que “cobria toda a cidade, onde capitães do canto e seus liderados, os escravos de ganho, formavam a base principal” e, que entre estes, os negros dos cantos e de alguns batuques, provavelmente onde se agrupavam os haussás e demais partidários da causa, existia “uma caixa para a rebelião que recebia contribuições regulares desses ganhadores” (p. 88) com o objetivo de financiar a guerra. Pois conforme registrado pela historiografia baiana, os espiões infiltrados em meio aos revoltosos relataram que os líderes do levante eram os haussás de Salvador e do Recôncavo e que entre eles estavam outras nações africanas, como os Tápà (também mulçumanos), os nagôs e alguns mulatos e crioulos.

Entre as denúncias foi indicado o apoio de indígenas ao levante, o que para Reis (2003) tratava-se de uma aliança inédita na história. Os índios em tal contexto lutariam ao lado dos negros pela retomada de suas terras que lhes tinham sido tomadas pelos portugueses. Neste caso, pode-se dizer que a Rebelião de 1814 organizava-se sobre as bases daquilo que Dom Marcos mais temia: a união entre as diferentes nações africanas e a possibilidade de integração com os “negros da terra”, configurando um movimento pluriétnico e multicultural com um único objetivo, o de promover a guerra contra os brancos efetivando a máxima de um processo de reterritorialização a partir da constituição de um novo poder gerado com a liberdade dos povos outrora escravizados pela cultura hegemônica (MELO, 2014).

Mesmo diante as incertezas da revolta, o Conde dos Arcos manteve certa discrição sobre os fatos que vinham à tona (provavelmente por temer as críticas de seus patrícios) e foi somente após a apuração da denúncia de armas escondidas no mato tendo sido encontrados os “molhos de varas para arcos e as pontas de flecha de ferro” (REIS, 2003, p. 89) que suas dúvidas esvaíram-se. A batida da polícia no esconderijo das armas e sua constante movimentação e espreita pela cidade, possivelmente chamaram a atenção dos líderes da revolta que “ao ver seus planos descobertos” resolveram cancelá-la.

Conforme assinalado, a Rebelião de 1814 além de apresentar os movimentos de libertação das nações africanas frente ao sistema que as reprimia pelo seu caráter hegemônico escravagista, colocou em evidência a capacidade de organização particular e intergrupal de tais sujeitos, que possuíam complexas redes de comunicação e de arrecadação de fundos para arcar com os custos da guerra. E não é possível desconsiderar que entre eles já houvessem estruturas hierárquicas de mando e poder pré-estabelecidas e concebidas para viabilizar o sucesso de suas campanhas. Deste modo, vale recordar, como já apontado, que as formas de organização do trabalho nos cantos, assim como as atividades de lazer nos batuques, contribuíram não só para a organização ou encontro de grupos e subgrupos africanos em nações, mas, também, para que estes sujeitos criassem condições, diante as brechas das relações entre senhor e escravo para sua (re)territorialização, apropriando-se marginalmente do espaço da cidade e do seu entorno, rompendo com a lógica dominante à qual estavam submetidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme exposto, o processo de constituição dos cantos de trabalhos e dos batuques na cidade de Salvador, ainda no século XIX, constituem-se como evidências de processos de territorialização, outrora estabelecidos, que demonstram a autonomia e protagonismo do agente negro na constituição de territórios, onde os sujeitos envolvidos em tal processo puderam reproduzir, mesmo que de forma ressignificada e/ou adaptada, as estruturas e hierarquias necessárias para sua (re)organização enquanto coletivo, resistindo a imposição das políticas escravagistas da época.

Embora os cantos tenham se constituído a partir da necessidade de organização das atividades do ganho, “pré-estabelecidos” pela municipalidade como locais de prestação de serviços oferecidos pelos negros, estes estavam estruturados sob referenciais que transcendiam as relações de poder da administração pública local. Neste sentido, os cantos corresponderam a territórios tipicamente negros que possibilitou a tais sujeitos reavivar suas formas de organização socioculturais contribuindo para sua apropriação, identificação via processo de reterritorialização nas brechas dos espaços da cidade.

Mesmo que organizado sob outros referenciais, os batuques, somados aos cantos, garantiam a permanência das tradições religiosas e dos costumes de distintos povos negros, contribuindo assim para (re)articulação de estratégias junto a seus pares. Deste modo, pode-se considerar que foi no interior da informalidade das relações do trabalho no ganho e das práticas de “lazer” que o negro conseguiu articular meios para superar as angústias geradas pelo trauma da economia mercantil-escravagista à qual fora submetido. Em suma, foi a partir de tais movimentos que tais sujeitos criaram condições para a elaboração de seus próprios agenciamentos na constituição de territórios de resistência contra a lógica dominante.

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Notas

[1] O presente artigo faz parte da dissertação de Mestrado intitulada “Entre territórios e terreiros: Yorubá, velhos deuses no Novo Mundo”, na qual fora abordado o movimento de (des)(re)territorialização dos povos Yorubá no processo de constituição do Terreiro da Barroquinha - Ìyá Omi Àse Àirá Intilè -, o primeiro terreiro de candomblé de nação Kétu do Brasil, fundado no final do século XVIII e início do XIX.


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