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OS XAKRIABÁ NO RIO SÃO FRANCISCO-SÃO JOÃO DAS MISSÕES/MG, BRASIL - O OLHAR SOBRE O RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO DE IDENTIFICAÇAO E DELIMITAÇÃO: território conquistado
OS XAKRIABÁ IN THE RIO SAN FRANCISCO-SÃO JOÃO DAS MISSÕES/MG, BRAZIL - THE LOOK AT THE CIRCUNSTANCIADO REPORT OF IDENTIFICATION AND DELIMITATION: conquered territory
El XAKRIABÁ EN RIO SÃO FRANCISCO-SÃO JOÃO DAS MISSÕES/MG MG, BRASIL - LA MIRADA EN LA IDENTIFICACIÓN DE LOS LÍMITES ANUALES DETALLADOS: territorio conquistado
Revista Cerrados (Unimontes), vol. 14, núm. 2, pp. 250-265, 2016
Universidade Estadual de Montes Claros

https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/

Recepção: 16 Agosto 2016

Aprovação: 22 Dezembro 2016

DOI: https://doi.org/10.22238/rc24482692v14n22016p250a265

Resumo: O povo Xakriabá sofreu, nos últimos 150 anos, inúmeras ameaças que culminou na perda de território. Após várias ações de luta e resistência foi homologada, na década de 1980, a Terra Indígena Xacriabá-T.I.X e, posteriormente, a Terra Indígena Xakriabá Rancharia-T.I.X.R. Porém, a demarcação dessas terras ainda não resultam na conquista do território de ocupação tradicional que chegava até ao rio São Francisco. O objetivo é identificar no Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação, documento publicado no Diário Oficial em 06 de outubro de 2014, as áreas com observância sobre o território conquistado de ocupação tradicional. Para tanto, foi realizada a análise do relatório tendo como ponto fundamental de partida a identificação de áreas de retomada, os argumentos apresentados sobre a identificação e delimitação e a verificação se a área atual é considerada como um território conquistado. Em estudo prévio sobre o reconhecimento do relatório, constata-se que existem áreas que são de ocupação tradicional dos Xakriabá, no município de São João das Missões.

Palavras-chave: Território, Conquista, Xakriabá, Indígena.

Abstract: The Xakriabá people suffered, in the past 150 years, numerous threats that ended in the loss of territory. After several actions of struggle and resistance, the Indigenous land of Xacriabá-T.I.X and subsequently the Indigenous land of Xakriabá Ranchi-T.I.X.R were approved, in the 1980s. However, the demarcation of those lands has not resulted yet in the conquest of the traditionally occupied territory that reached the São Francisco River. The aim is to identify, in the Detailed Report of Identification and Delimitation, document published in the Official Journal in October 6, 2014, the areas with observance of the conquered territory of traditional occupation. Therefore, the report's analysis was performed taking as a fundamental starting point the identification of resumption areas, the arguments on the identification and delineation and the verification if the current area is considered a conquered territory. In a previous study on the recognition of the report, it is noted that there are areas traditionally occupied by the Xakriabá in the city of São João das Missões.

Keywords: Territory, Conquest, Xakriabá, Indigenous.

Resumen: Los Xakriabá sufridas en los últimos 150 años, numerosas amenazas que culminaron en la pérdida de territorio. Después de varias acciones de lucha y resistencia se aprobó en el 1980, el indígena Xacriabá-T.I.X y, posteriormente, el indígena Xakriabá Ranchi-T.I.X.R. Sin embargo, la demarcación de las tierras aún no dan como resultado la consecución de territorio tradicionalmente ocupado que llega hasta el río San Francisco. El objetivo es identificar la presencia de robustos de Identificación y Delimitación, documento publicado en el Boletín Oficial el 6 de octubre de 2014, las zonas con observancia del territorio conquistado de ocupación tradicional. Por lo tanto, el análisis del informe se ha mantenido como un punto de partida fundamental para identificar las áreas de recuperación, los argumentos sobre la identificación y delineación y la verificación de que el área actual se considera como un territorio conquistado. En un estudio previo sobre el reconocimiento del informe, parece que hay zonas que están ocupadas tradicionalmente el Xakriabá en el municipio de Misión de San Juan.

Palabras clave: Territorio, Logro, Xakriabá, Indígena.

INTRODUÇÃO

Desde o processo colonial a distribuição de terras no Brasil é debate de muitas controvérsias, tanto política quanto jurídica. Afeta diretamente as populações indígenas que nelas vivem e por elas lutam, assim como os não-indígenas que também desejam a posse delas. Nesse processo considerado histórico em nosso país, destaca-se a reflexão de Hobsbawm (1998, p.22):

Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado (ou da comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, uma componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana.

Na atualidade, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2012, p.6), 0,4%, da população brasileira é indígena, o que representa um contingente de 817 mil pessoas, que se autodeclararam indígenas. A maior parte dessa população está na região Norte do país e a minoria nas demais restantes. Essa relação quantitativa da densidade demográfica apresenta raízes históricas do processo colonizador. Dessas raízes, nos últimos 50 anos, a regularização fundiária tem se apresentado como um “nematóide”, caracterizando problemas de alta complexidade. A regularização fundiária é posta para Paul Little (2002, p.5):

Mas se, por um lado, existem múltiplas formas de resistência, por outro, todas as respostas desses grupos não necessariamente devem ser classificadas como de resistência. Existem também processos de acomodação, apropriação, consentimento, influência mútua e mistura entre todas as partes envolvidas. Esses múltiplos, longos e complexos processos resultaram na criação de territórios dos distintos grupos sociais e mostram como a constituição e a resistência culturais de um grupo social são dois lados de um mesmo processo.

A situação sobre a regularização fundiária de etnias no país pode ser verificada pelos dados da Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Na Tabela 01 constam as Fases de Processo da regularização fundiária com enfoque na perspectiva quantitativa, mas que qualitativamente é de fato a grande questão burocrática e administrativa que envolve as Terras Indígenas.

Tabela 01
Regularização Fundiária

http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas. Acessado em 01.08.2015

Motivados pelos direitos reconhecidos na Constituição Federal de 1988, com base nos artigos 231 e 232, vários povos indígenas procuram organizar-se para fazer valer esses seus direitos. Em destaque o artigo 231 e os seus dois primeiros parágrafos:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2.º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. (BRASIL-Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).

Para “fazer valer” o artigo supracitado tem ocorrido muita discussão e questionamentos sobre a veracidade dos “direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas”. Primeiramente, pela concepção de ser ou não originária, já que as etnias, muitas delas para sobreviverem, tiveram a necessidade de se deslocarem ou estariam praticamente dizimadas como de fato aconteceu e ainda acontece com várias delas. E segundo, a concepção de tradicionalidade, apesar do parágrafo 1° do artigo vir explicando.

As questões fundiárias das Terras Indígenas tramitam legalmente conforme mencionado:

O processo administrativo de regularização fundiária, composto pelas etapas de identificação e delimitação, demarcação física, homologação e registro das terras indígenas, está definido na Lei no 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), e no Decreto no 1.775, de 8 de janeiro de 1996. De acordo com a Constituição Federal vigente, os povos indígenas detêm o direito originário e o usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam. (IBGE, 2010, p.16).

De acordo com esse Decreto, as Terras Indígenas são estabelecidas a partir de sete passos:

1. Estudo de identificação: um antropólogo e um profissional da área ambiental para estudar a cultura, a história, o jeito de viver e os locais de ocupação de uma comunidade indígena;

2. Aprovação da FUNAI: a FUNAI deve aprovar o relatório de identificação e divulgar as informações em jornais e no Diário Oficial;

3. Contestações: até 90 dias depois que as informações são divulgadas, qualquer pessoa, empresa e até prefeituras e governos podem questionar e contestar contra o estudo de identificação;

4. Declaração do limites da Terra Indígena: o Ministério da Justiça emite uma portaria para ser realizada a demarcação física dos limites da Terra Indígena;

5. Demarcação física: feita pela FUNAI em parceria com outros órgãos. O INCRA, por exemplo, é responsável por retirar não-índios e recolocá-los em outros locais;

6. Homologação: é a promulgação, o ato que confirma a lei de criação da terra indígena, pelo presidente da República;

7. Registro: a Terra Indígena, depois de demarcada e homologada, é registrada em cartório. (PEREIRA, 2014, p.43)

Em cada uma das Fases do Processo de Regularização Fundiária o elemento “tempo” envolve, além da já citada burocracia, muitas outras questões que estão relacionadas com as contestações pelos não-índios. Entre o Estudo de Identificação e a Declaração da T.I, as contestações podem demorar anos. Mesmo com as demais etapas totalmente efetivadas, a Homologação e o Registro, etapas finais, passam pela constatação ou não dos atores externos envolvidos na política e no “poder”, tanto local, regional como nacional. Essas “forças políticas” muitas vezes representam um atraso de outros valiosos anos de espera que geram mais lutas e defesa pela efetivação dos direitos já declarados pela Constituição Federal.

No que tange a primeira etapa de reconhecimento da etnia e a sua espacialidade, juntamente com o seu modo de vida, o Relatório Circunstanciado é definido baseado na legislação:

Portaria/FUNAI nº 14, de 09 de janeiro de 1996 Estabelece regras sobre a elaboração do Relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas a que se refere o parágrafo 6º do artigo 2º, do Decreto nº 1.775, de 08 de janeiro de 1996. RESOLVE: Art. 1º. O relatório circunstanciado de identificação e delimitação a que se refere o §6º do art. 2º do Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996, devidamente fundamentado em elementos objetivos, abrangerá, necessariamente, além de outros elementos considerados relevantes pelo Grupo Técnico, dados gerais e específicos organizados da forma seguinte: I)Dados Gerais; II) Habitação Permanente; III) Atividades Produtivas; IV) Meio Ambiente; V) Reprodução Física e Cultural; VI) Levantamento Fundiário e VII) Conclusão e delimitação, contendo a proposta de limites da área demarcada. [1]

Diante desse contexto explicativo sobre as principais questões na parte introdutória, iremos abordar no desenvolvimento do trabalho, alguns elementos que envolvem o contexto do povo Xakriabá.

DESENVOLVIMENTO

O povo da etnia Xakriabá vive no município de São João das Missões, localizado na margem esquerda do Rio São Francisco, no norte de Minas Gerais, entre os biomas do Cerrado e da Caatinga. Conforme o Censo do IBGE (2012), a população do município é de 11.715 habitantes, destes, 67,7% são indígenas[2], sendo assim o quinto município do país em população indígena. Esse povo apresenta-se aqui, como sujeitos e atores que vivencia as Fases do Processo de Regularização Fundiária em andamento.

A área tradicional e originária de reivindicação do Processo de Regularização Fundiária se apresenta desde o Rio São Francisco até o alto curso do Rio Peruaçu, como mencionado em documento de doação de 1728[3], reconhecido pelo Estado como o primeiro ato jurídico sobre essas terras. Para Nogueira (2011, p.45), os “Xakriabá recuaram da beira do São Francisco e hoje se encontram em terras mais áridas e vulneráveis, em grande parte já degradada”.

Nos últimos cento e cinquenta anos, o processo histórico do povo Xakriabá está baseado na luta e resistência em conquistas e reconquistas de suas terras originárias, tradicionalmente ocupadas, conforme menciona Paraiso (1987, p. 25):

Por este breve histórico, podemos demonstrar as dificuldades, pressões e sofrimentos da população Xakriabá. Forçados pelas circunstâncias, viram-se obrigados à reformulação de seus padrões de organização social, como estratégia de sobrevivência e hoje, por fim têm sua identidade questionada, pelos representantes da mesma sociedade que lhes impõe tais transformações. Exigir que uma comunidade, num estágio tão avançado de contacto e após três séculos de dominação, se mantivesse com suas características de então, constituiria, antes de mais nada, um absurdo lógico. Os Xakriabá seriam, no entender dessa linha de argumentação, o único caso conhecido, na História da Humanidade, de sociedade ahistórica.

Nas diversas perdas de terras motivadas por inúmeros conflitos, pressões e de ameaças externas, reconfigura-se um “outro” território indígena, não mais aquele de origem. Muitos elementos da tradição também foram diretamente e indiretamente afetados nesse contexto histórico.

Na retomada identitária a partir da Etnogênese[4], reconhece-se o “Toré”[5] como elemento marcante do povo nas articulações e estratégias de resistência. No nordeste do país, esse tipo de retomada é reconhecida nos estudos de processos de territorialização, conforme Oliveira(2011). Ainda no nordeste destaca-se o trabalho de Brasileiro e Sampaio (2012) sobre os povos Kiriri.

As Terra Indígena Xakriabá-T.I.X e Terra Indígena Xakriabá Rancharia-T.I.X.R. passaram por todo o processo de reconhecimento enquanto Áreas Etnográficas, conforme identificado no Mapa 01. Esses espaços de territorializações e reconquistas reafirmam a construção da cartografia, antes somente representada na memória do povo. Essa afirmação da representação cartográfica como um “novo mapa” é também reconhecida. O processo histórico de lutas e reivindicações começa a ser consolidado com esse cenário nas territorialidades e de maneira contínua[6].

O outro cenário apresentado no Mapa 01 é o que estamos discutindo, a atual Fase do Processo de Regularização Fundiária, estudo este que continua a trajetória das reconquistas das áreas reivindicadas por direito originário e tradicional. A reivindicação que propõe a chegada dos povos até o rio São Francisco está em destaque por um “círculo de vermelho”, demonstrando que nem mesmo o município, quando emancipado em 1995, passou a ter limites territoriais com o rio. Toda a área em hachuria apresenta, de forma “aproximada”[7], a reivindicação de terras que é mencionada no Relatório Circunstanciado.

Em observância aos dados do quadro 1, ainda faltam regularizar os 43 mil hectares, que estão na fase Delimitada. Esse processo é o que se refere ao Relatório Circunstanciado, sendo o terceiro momento o reconhecimento das terras desse povo e, ainda assim, não atingindo todas as terras mencionadas no documento de 1728. Observa-se que a “reconquista” das terras é lenta, em função do aspecto burocrático e das contestações realizadas no decurso, como já mencionado na introdução.

As duas primeiras etapas que já foram regularizadas apresentam um histórico de muita resistência entre datas e situações da política vigente no país. É evidente que o Movimento Indigenista veio fortalecer a luta do povo Xakriabá assim com as de demais etnias por todo o território nacional. No momento da Constituinte de 1987, no “calor” da aprovação dos artigos 231 e 232, a violência na T.I.X aumentou e isso também passou a ser mais um dos motivos para acelerar o processo de reconhecimento.


Mapa 01
Situação geral – área reivindicada em estudo (2012)
Fonte: SILVA (2014)

Quadro 01:
Situação atual das Terras Indígenas-T.I da etnia Xakriabá

http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas.

O reconhecimento das inúmeras opressões e desses atos de violência na região proporcionou que essa fase viesse a ser vencida e cumprida administrativamente. É importante esclarecer que desde a década de 1970 a FUNAI já se fazia presente na T.I.X.

A demarcação das terras só ocorre em 1978, e a homologação, nove anos depois (1987). Com esse quadro de ocupação da terra, não surpreende o fato de que, ao longo dos anos de 1980, o conflito tenha se acirrado, com o consequente aumento dos níveis de tensão e violência (ameaças, invasões policiais, contratações de pistoleiros, cercamento de estradas, córregos e “gerais”, desmatamentos, assassinatos, tentativas de assassinato etc.). A principal reivindicação de terras desse povo é o retorno ao rio São Francisco, terras tradicionalmente ocupadas (SILVA, 2014, p.31).

Essa primeira homologação ocorreu em 14 de julho de 1987 pelo Decreto Presidencial de nº 94.608, lembrando que os estudos de identificação e delimitação foram instituídos desde 1978 pela Portaria n.º 424/E, de 3 de agosto. Mesmo depois de nove anos a segunda Terra Indígena, a de Rancharia, não foi incluída no processo, ficando assim para outro momento, o que gerou novos momentos de pressão sobre a questão.

A definição da Terra Indígena Xakriabá Rancharia[8] somente teve início com o trabalho do Grupo Técnico-GT em 1996, sendo finalizado em 1999, e a homologação das terras aconteceu em 05 de Maio de 2003. Essa terra se distribui pelos municípios de Itacarambi e São João das Missões. É uma superfície de 6.798 hectares, cujo processo de homologação demorou mais de oito anos. Essa segunda homologação é mais uma conquista, mas que ainda não reconhece o Rio São Francisco como território originário e tradicional.

Somente em 2007 é que se constitui[9] o terceiro Grupo Técnico-GT de identificação, objeto desse artigo. Nesse período, de 1978 a 2007, vários foram os processos de territorialidades desenvolvidos e vivenciados pelo povo Xakriabá. Em cada uma das duas últimas conquistas, a relevância de reconhecimento dos direitos territoriais em consonância aos direitos humanos, a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), agregando valores com Universidades, Organização Não-Governamentais (ONG) e ativistas simpatizantes da causa indígena no país e por todo o mundo, desenvolveram e ampliaram com conhecimento de causa, novos papéis e estratégias de luta e resistência pelas terras originárias e tradicionais. As Audiências Públicas, cada vez mais constantes, aconteciam tanto na T.I.X, no Ministério Público e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais-ALMG, sendo esse último, um dos novos e estratégicos espaços públicos para visibilizar as reivindicações do povo Xakriabá e as demais etnias de Minas Gerais, principalmente no Abril Indígena[10].

A protelação dos resultados desses trabalhos vem, de maneira consistente, revelar novas posturas perante os indígenas. A ausência de homologação dessas terras gera o conflito violento entre as partes interessadas, assim já identificadas em nossas análises. Nesses processos, as retomadas ou as denominadas reconquistas são a efetiva articulação das territorialidades desse povo.

As diversas formas de territorialidades são exercidas por esse povo, na concepção Cultural, Política e Ambiental, além de inúmeras estratégias que estão envolvidas nessas territorialidades. Sobre territorialidade Raffestin (1993, p.158-159) menciona:

[...] a territorialidade adquire um valor bem particular, pois reflete a multidimensionalidade do “vivido” territorial pelos membros de uma coletividade, pelas sociedades em geral. Os homens “vivem”, ao mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por intermédio de um sistema de relações existenciais e/ou produtivistas. Quer se trate de relações existentes ou produtivistas, todas são relações de poder, visto eu há interação entre os atores que procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações sociais. Os atores, sem se darem conta isso, se automodificam também. O poder é inevitável e, de modo algum, inocente. Enfim, é impossível manter uma relação marcada por ele.

É uma multidimensão de ações na compreensão das territorialidades. De acordo com Silva (2014, p.35) “as várias dimensões, des-re-multi-territorialidades em suas multiescalas temporais e espaciais abarcam percepções e representações tanto de Estado-Nação nas políticas públicas quanto no modo de vida Xakriabá.” Os usos dos espaços são múltiplos e o indígena se apropria dessas inúmeras maneiras de viver no espaço e suas territorialidades no cotidiano e, principalmente, na memória e na tradição ancestral. “Quando afirma as suas territorialidades em multidimensões, esse povo concretiza a ação territoriar[11].” (SILVA, 2014, p.172).

Essas novas territorialidades são colocadas em prática a partir de outras duas frentes de resistências que já vem por longo prazo se fazendo. São também enfatizadas no contexto histórico de reconquistas as terras do Dizimeiro e Morro Vermelho. E sobre elas fica a seguinte constatação no Relatório Circunstanciado:

Os estudos de natureza etno-histórica, antropológica, documental, ambiental, fundiária e cartográfica realizados para identificar as áreas de ocupação tradicional Xakriabá resultaram na superfície aproximada de 43.357 ha (quarenta e três mil, trezentos e cinquenta e sete hectares), que contempla, a Oeste, a área do Dizimeiro, incorporando os marcos históricos do Termo de Doação, do Alto da Boa Vista, no divisor de águas dos rios Itacarambi e Peruaçu ao Imbiriçu Ferrado, nas margens do Peruaçu, incorporando suas áreas inundáveis, de grande importância ambiental e de recursos para pesca, agricultura e coleta, além de uma importante área de “geraes”, com recursos de caça e extrativismo, incluindo as áreas habitadas por famílias indígenas na comunidade do Dizimeiro e arredores; ao Sul/Sudeste, incorpora as comunidades indígenas de Vargem Grande, Caraíbas e Poções, se estendo pela margem do Rio Peruaçu, até a região da Serra Geral, abrangendo importantes recursos de extrativismo, áreas agricultáveis, fontes de água, cavernas e cemitérios; a Leste incorpora ocupações de famílias indígenas nas regiões de Rancharia, São Bernardo, Remanso e Ilha do Capão, coincidindo com as terras de maior fertilidade da Depressão do São Francisco e de suas áreas inundáveis, matas ciliares do Rio São Francisco, onde exclusivamente ocorre a presença da Jurema (espécie vegetal com a qual se prepara a bebida de efeito psicoativo ingerida nos rituais sagrados do Toré) e que dá acesso aos recursos hídricos e pesqueiros do São Francisco, o único rio efetivamente perene da região; e ao Norte, seguindo pelo Rio Itacarambi, incorpora a comunidade indígena de Morro Vermelho e a região do Catito, de reconhecida ocupação indígena, abrangendo terras férteis das margens do Rio Itacarambi e suas matas ciliares, além dos seus hoje parcos recursos pesqueiros, áreas de caça e coleta da região do Morro Vermelho, cavernas e cemitérios.

Outra ação territoriar, no contexto, é a “retomada-reconquista” e se deu em 1º de setembro de 2013, quando os indígenas passaram a ocupar seis mil hectares de terras da Fazenda São Judas, na Vargem Grande, no município de Itacarambi. Essa frente de resistência aconteceu devido as inúmeras incertezas e especulações sobre a demora na homologação das terras que estão identificadas no relatório.

Em situações de estratégias de retomadas, a reconquista espacial é fundamental para a compreensão do reconhecimento do território tradicional. É através desse território que a cultura é manifestada, juntamente com as articulações de ordem social, ambiental, política e até mesmo econômica, em alguns casos.

A constituição das “várias territorialidades na afirmação do território[12] é uma condição contínua desse povo, na sua “ação territoriar” pelas margens do Rio São Francisco, revelando várias dimensões” (SILVA, 2014, 75). Nesse contexto, entre momentos de negação e momentos de afirmação do território é que as novas territorialidades vão sendo vivenciadas. Entre os entraves e as perspectivas, os territórios são reconquistados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reconhecendo e identificando esses entraves da história recente e do cotidiano de luta e resistência do povo Xakriabá estamos também evidenciando uma página histórica das diversas etnias do país. Não diferentemente, outros povos passam pela mesma exploração e dificuldades em manter os seus direitos validados Constituição Federal de 1988.

As articulações e movimentos indígenas vêm, nos últimos 40 anos, lutando incessantemente pelos seus direitos. De outro lado, várias são também as movimentações de oposição aos indígenas como o caso da Proposta de Emenda à Constituição-PEC, tendo a PEC-215 como uma das mais avassaladoras no que tange ao direito ao território originário e tradicional. Essa PEC passa a configurar como um enorme retrocesso no processo democrático do país.

O caso dos Xakriabá não é diferente de tantas outras etnias. Fica claro e constatado que o processo administrativo juntamente com a burocracia envolvida dificulta e até mesmo impede o reconhecimento das terras originárias e tradicionais. O “tempo” torna-se ameaçador.

AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Projeto de Pesquisa: Território das Águas no Norte de Minas Gerais: os povos indígenas Xakriabá. Apoio: FAPEMIG

Referências

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Notas

[2] Tabela 9 – Municípios brasileiros com as maiores proporção da população indígena, por situação do domicílio – Brasil – 2010. É importante destacar como grau comparativo que o primeiro município é o de Uiramutã no Estado de Roraima com 88,1%. In: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010 – primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão/ Diretoria de Pesquisas. Rio de Janeiro: 2012. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2012.
[8] Marco Paulo Fróes Schettino elaborou o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Xakriabá Rancharia – MG, anexado ao Processo 0872/99 da FUNAI.
[9] Grupo Técnico-GT, constituído por meio da Portaria nº1096/PRES/2007 de 13 de novembro de 2007, coordenado pelo antropólogo Jorge Luiz de Paula.
[10] Evento idealizado pelo Conselho dos Povos Indígenas do Estado de Minas Gerais (Copimg)
[11] Para Silva (2014, p.38), A “ação territoriar” é uma constituição histórica sobre o espaço, abordando aspectos próprios da construção do território como a resistência contínua e o seu uso na vivência e ações cotidianas, entre o estado, as populações tradicionais, movimentos sociais e outras formas de usos. Essas outras formas de usos podem refletir diretamente as ações locais, em que um determinado número populacional se articula sobre o “seu território”, enquanto espaço de vivência e de gênero de vida, com destaque para a análise do discurso e as estratégias dele.
[12] O território é a contínua construção dos espaços de vivências, entre os elementos físicos e espirituais, que sem o seu complemento, não se constitui as relações das ações das multidimensões culturais, ambientais e políticas; é uma ação territoriar. Esse é o território que compreendemos como sendo o dos povos indígenas em relação aos olhares de fora, como o do Estado. Essa é a concepção de território aqui debatida, conforme Silva (2014, p.75).


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