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A “FORMAÇÃO DAS ALMAS” SERTANEJAS: QUANDO O POVO PERCEBE A REPÚBLICA E O PODER EM UMA REGIÃO DO INTERIOR DAS MINAS
A "FORMATION OF SOULS" SERTANEJAS: WHEN PEOPLE REALIZE THE REPUBLIC AND POWER IN AN INTERIOR REGION OF MINAS
LA "FORMACIÓN DE LAS ALMAS" SERTANEJAS: CUANDO EL PUEBLO PERCIBE LA REPÚBLICA Y EL PODER EN REGIÓN DEL INTERIOR DE LAS MINAS
Revista Cerrados (Unimontes), vol. 14, núm. 2, pp. 141-160, 2016
Universidade Estadual de Montes Claros

https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/

Recepção: 20 Setembro 2016

Aprovação: 13 Dezembro 2016

DOI: https://doi.org/10.22238/rc24482692v14n22016p141a160

Resumo: O presente artigo tem como objetivo avaliar o contexto de início da República na região norte-mineira, especialmente a partir da ação política popular nesse contexto. A ideia é apresentar uma sociedade mais dinâmica, com maior capacidade de organização política, que procurou resolver as suas demandas por meio de instrumentos variados da ação política. A partir do estudo de documentos da Administração Pública da cidade, bem como jornais impressos, como o Correio do Norte, buscamos acesso ao cotidiano das relações na região, demonstrando como as ações coletivas se configuraram como elemento conformador da identidade política norte-mineira.

Palavras-chave: sociedade, poder, norte de Minas, ação política.

Abstract: This article has got the aim to evaluate the early Republic context in the north Mineira region, especially from the popular political action in this context. The idea is to present a more dynamic society, with greater capacity for political organization, which searched to address their demands through various instruments of political action. From the study of documents from the city's Public Administration and newspapers, such as the North Mail, we seek the access the daily relations in the region, demonstrating how the collective action is configured as a shaping element of the north-Mineira political identity.

Keywords: society, power, north of Minas, political action.

Resumen: El presente artículo tiene como objetivo evaluar el contexto de início de la República en región norte-minera, especialmente a partir de la acción política popular en este contexto. La idea es presentar una sociedad más lúdica, con mayor capacidad de organización política, que intenta resolver sua demandas por medios de herramientas variables de la acción política. A partir del estudio de documentos de la Administración Pública de la ciudad, bien como periódicos impresos, como el Correo del Norte, buscamos acceso al cotidiano de las relaciones en la región, demonstrando como las acciones coletivas se configuran como elemento conformador de identidad política norte-minera. Palabra-llave: sociedad; poder; norte de Minas; acción política. INTRODUÇÃO

INTRODUÇÃO

Uma das marcas da transição política brasileira para a República era a idéia da transformação, das mudanças pelas quais o Brasil necessitava passar, especialmente diante do seu atraso frente às nações liberais e ocidentais que se estabeleceram como potências durante o século XIX, como a Inglaterra, a França, os Estados Unidos e a Alemanha.

Diante dessas transformações políticas absolutamente necessárias, fazia-se necessário também a conformação de um novo “povo”, de uma cidadania mais plena, tal qual a República panfletava em torno do seu ideal político. Dessa forma, a ordem e o progresso deveriam ser, também, sociais, preparando o Brasil e o brasileiro para as transformações que se operariam dali em diante. Essa é a questão principal do debate proposto nesse texto, tendo como foco a região do norte de Minas Gerais.

O norte de Minas Gerais[1] passaria por algumas dessas mudanças, mas também por muitas continuidades, o que não diferia de boa parte do país naqueles tempos. A população, por sua vez, procurava enxergar nessa transição política novas estratégias de ação, apesar de não tão novas assim. São essas estratégias de ação política popular o nosso principal objetivo nesse momento.

Segundo Gy Reis Gomes de Brito, em estudo sobre a “construção do progresso” na cidade de Montes Claros, nas décadas iniciais da República, o desenvolvimento na região foi importante, especialmente devido aos novos interesses e desejos da população que se configurava à época. Entre esses interesses da população estava o processo de melhoria urbanística da cidade, devido o crescimento da urbanização e a passagem de um universo ainda rural para um aspecto mais citadino. (BRITO, 2006) Nesse sentido, Brito avalia como se dava esse interesse na transformação do aspecto urbano de Montes Claros, por meio do processo que se moldava naquelas primeiras décadas do século XX:

Nesse período de 1917 a 1926 foram várias as sessões na Câmara Municipal para aprovação de inúmeros projetos autorizando os serviços de reformas ou mesmo mudanças no ordenamento das praças, jardins, ruas, novos calçamentos, canalização de água e esgoto ou instalação de luz elétrica, telefonia e outros benefícios públicos que o progresso inaugurava. Ao que tudo parece, a febre das reformas Pereira Passos, na década de 1920 na cidade do Rio de Janeiro, estava chegando ou já influenciava os administradores municipais de Montes Claros (BRITO, 2006: 115).

O autor, portanto, apresenta alguns desses “símbolos” que representavam o progresso à época, especialmente em uma região que ainda carecia de importantes mudanças, e que estavam sendo operadas somente naqueles anos iniciais da República, como era o caso do norte de Minas.

Não obstante, apesar da importante análise sobre esse progresso que se presenciava na região, nos é essencial pensar a atuação popular diante desse mesmo progresso e das inúmeras necessidades que a população tinha naquele período, o que nos permite avaliar a ação política dos sertanejos e suas formas de organização na nascente República brasileira.

Quando o povo percebe a República

Em documento apresentado à Câmara Municipal de Montes Claros, no ano de 1902, o fiscal da Câmara apresenta alguns problemas de ordem básica no cotidiano da cidade, informando por meio do texto a necessidade de lugar apropriado para um matadouro público. Segundo o fiscal:

Levo ao conhecimento de Vsa a necessidade urgente da designação de um lugar apropriado para servir de matadouro público desta cidade em quanto essa Ilma. Câmara não tomar esta providencia, que repito de máxima importância teremos todos os dias de receber perigo, pelo desenvolvimento de epidemias, que incontrolavelmente terão de fazer muitas vitimas, com o exalar contínuo de sujeiras – provenientes de diversos matadouros particulares, que existem mesmo em ruas desta cidade. Como Vsa não ignoram, já tem dado o facto de morrerem pessoas atacadas de febre – de mau caracter, devido estado péssimo de higiene da nossa cidade.[2]

No mesmo documento, apresenta o fiscal a impressão de alguns cidadãos que, insatisfeitos com tal situação, “se manifestam com a sua pessoa, pelo fato de saberem que taes doensas são mortíferas.”[3]

No mesmo documento, apresenta o fiscal a impressão de alguns cidadãos que, insatisfeitos com tal situação, “se manifestam com a sua pessoa, pelo fato de saberem que taes doensas são mortíferas.”[3]

Dez anos antes, em novembro de 1892, os vereadores da cidade de Montes Claros apresentam proposta de iluminação pública para a cidade de Montes Claros, e analisam a questão como de grande importância para a população, já que “muitos dos nossos se conscientizam dos benefícios que essa iluminação nos traria para o progresso da nossa cidade”.[4]

Apesar de os dois documentos retratados não tratarem de ações diretas da população, pelo menos no que se refere à ação política direta efetivada por cidadãos, fica explícito em ambos os casos os interesses sociais em importantes mudanças, que trariam benefícios para boa parte da população, como a resolução de problemas de ordem sanitária ou mesmo a chegada da iluminação pública, “símbolos” de progresso para uma região que carecia de transformações para o seu pleno desenvolvimento. Seja por meio de um fiscal, ou mesmo por meio da atuação de determinados vereadores, os dois documentos demonstram interesses importantes da população da cidade, sobretudo por se conscientizarem da necessidade no combate a doenças e epidemias e, por outro lado, na conscientização da relevância da iluminação pública para o progresso da cidade.

Em outros casos, a organização de cidadãos e grupos de cidadãos era mais efetiva, mais direta, não necessitando de intermediários entre os seus interesses e as suas formas de manifestação pública. A atuação dos comerciantes e as suas formas de organização são um bom exemplo disso.

Em 25 de janeiro de 1903, os negociantes de toucinho, na cidade de Montes Claros, apresentavam um abaixo-assinado à Câmara Municipal procurando revogar uma lei que regulamentava a venda do produto no Mercado Público da cidade. Em seu texto, apresentavam noções de direito político, com citações de leis e texto constitucional, e deixavam claro os seus interesses diante do exposto aos políticos da cidade:

Ilmo. Senor.

Os abaixo assinados prevalecendo-se do direito de petição consagrado nas Constituições – federal e estadual – vêm representar a Vsas. Contra a disposição de uma lei deste município que considerão vetatória e contraria as disposições da lei nº 2 de 14 de setembro de 1891 – art 38 nºs 10 e 11.

A lei a que se referem os abaixo assignados, é a de nº 80 u 97 de 27 de janeiro de 1899 ou de 13 de fevereiro de 1900, que, sendo revogados pela de nº 103, ficou mantida a disposição que permite a revendagem de toucinho, a retalho, no mercado público desta cidade.

Com effeito a disposição citada da qual tiveram noticia os abaixo assignados, pela publicação d’um edital do fiscal desta Câmara, si da sua execução advem pequeno reddito para o município, prejudica altamente, restringindo a liberdade do commércio, criando o monopólio d’este gênero de primeira necessidade e permitindo o atravessamento desse mesmo gênero. É fácil a demonstração da nossa affirmativa facultada, como se acha, a revendagem do toucinho em retalhos a quem se apresentar munido de licença mediante o pagamento da taxa de 30$000 – teremos que, um individuo qualquer que tenha capital sufficiente e que seja ganancioso, obtendo licença para revender, por si, e por cinco, seis, ou mais propostos, poderá a ser (sic); (sic) e elevar o preço da mercadoria por não encontrar competidor; c/ (sic) se seguirá o monopólio; é o que será mais prejudicial-o ao povo e a carestia.

Os baixo assignados que são negociantes – alguns estabelecidos no predio que serve de mercado público, que pagão elevados alugueis e impostos municipaes; outros que são estabellecidos fora do prédio do mercado, mas que também contribuem com o imposto de industrias e profissões bem merecem dos poderes municipaes, que as leis com relação a liberdade do commércio, sejão equitativas; pois a classe a que pertencem, eh a que mais contribue para o erário municipal. (...)

Esperão os baixo assignados que, tomando VSas. em consideração o appello, que por esta lhes dirigem, a defirão por ser de inteira justiça.[5]

O documento é revelador de importantes aspectos na ação política dos sertanejos. Tratando especificamente da situação dos comerciantes, em pelo menos outras 11 ocasiões (entre 1889 e 1903) os comerciantes da cidade e da região buscavam reivindicar questões importantes para o seu oficio, quando não revelavam também ser de “interesse de todos, para o bem do povo”[6], como algumas das suas solicitações expõem. Nesse caso em questão, os comerciantes buscavam se organizar contra uma lei considerada injusta, tendo em vista que a referida lei os “prejudica altamente, restringindo a liberdade do commércio, criando o monopólio d’este gênero de primeira necessidade e permitindo o atravessamento desse mesmo gênero.”[7]

Para os comerciantes, tal revogação deveria ser feita também pelo fato de que conheciam seus direitos, sobretudo por serem contribuintes, “que também contribuem com o imposto de industrias e profissões bem merecem dos poderes municipaes, que as leis com relação a liberdade do commércio, sejão eqüitativas”, e dessa forma o Estado deveria se preocupar com suas alegações, “pois a classe a que pertencem, eh a que mais contribue para o erário municipal.”[8]

A solicitação dos comerciantes, efetivada por meio de abaixo-assinado nos aproxima de forma mais efetiva das ações políticas populares que se organizavam naquele período, sobretudo no âmbito coletivo dessas ações populares.

Mesmo com os elementos do progresso que lentamente se apresentavam no cotidiano norte-mineiro, a população procurou se organizar para que parte dos seus direitos e das suas reivindicações fossem atendidas, funcionando, assim, como uma “força” no sentido de que parte desse progresso se realizasse, isto é, atuando também como “agentes” desse mesmo progresso.

Acentuar que tais homens das elites e suas abastadas famílias foram “agentes” políticos desse progresso, tal qual nos mostra com competência o trabalho de Brito (BRITO, 2006), é ponto fechado, especialmente se levarmos em conta as características da região, baseadas no coronelismo, e que possibilitavam uma forte concentração de poder por meio de determinados grupos políticos e/ou partidários. O que nos resta revelar é como a população como um todo, ou mesmo grupos e classes específicas, atuaram nesse processo de transformação e de progresso, buscando ordenar o seu modus vivendi, o seu cotidiano, os seus interesses, tais quais os comerciantes mencionados.

Meses antes, em outubro de 1902, comerciantes da cidade novamente se organizavam diante de interesses de classe. Em documento apresentado à Câmara, solicitavam providências da Administração Pública acerca da existência de ambulantes situados no mercado da cidade, e que, por serem ambulantes, pagavam menos impostos, “vendendo seus produtos mais baratos e prejudicando aqueles que pagam grandes despesas com alugueis e impostos.” Em tom notadamente ameaçador, os comerciantes cobravam medidas da Administração, colocando que, caso não fosse o problema resolvido, “fecharão as suas portas e instalarão mercados ambulantes iguais aos concorrentes.”[9] Novamente a ação política dos comerciantes é levada à frente, especialmente por estarem perdendo negócios e interesses econômicos diante do avanço do comércio ambulante. Um problema, diga-se de passagem, ainda muito comum em inúmeras cidades brasileiras.

A ameaça dos comerciantes em também se converterem em ambulantes revela parte da noção dos mesmos diante do problema exposto, e principalmente o papel fundamental dos agentes políticos em resolver a situação, já que, caso não fossem encontradas soluções, poderia acarretar em outro problema, ainda mais sério, atingindo assim a arrecadação dos cofres municipais, já que os mesmos, reitera-se, “fecharão as suas portas e instalarão mercados ambulantes iguais aos concorrentes.”[10]

É necessário enfatizar, portanto, que a cidade de Montes Claros vivia um importante processo de transição política, representada pelo avanço de elementos que levariam ao progresso da região, construindo, aos poucos e lentamente, um novo cenário citadino, em meio ao universo rural ainda predominante. No mais, não apenas Montes Claros e o norte de Minas viviam essas transformações. Em todo o Brasil, de formas variadas, fazia-se sentir a transição para o sistema republicano, acarretando assim a construção de uma nova “ordem” e de um novo “progresso”, elementos centrais para o futuro que o Brasil construiria.

Os cidadãos, por sua vez, procuravam se organizar e buscar ganhos pessoais e coletivos da sua forma, à medida que as questões mais urgentes se apresentavam, como no caso dos comerciantes que, sem dúvida, era o exemplo mais presente em toda a documentação pesquisada.

Não obstante, as formas de atuação política desses sertanejos eram variadas, como a documentação revela. Abaixo-assinados, solicitações coletivas, solicitações individuais e mesmo reclamações indiretas feitas por meio de fiscais e vereadores, fazem parte do escopo das ações populares naquele início de República.

Contudo, o mais interessante a ser notado é que, ao longo do século XX, quanto mais se evoluía o processo de desenvolvimento da região e, por conseguinte, quanto mais complexo ficava o modus vivendi da população sertaneja, os cidadãos também buscavam outras formas de atuação popular, com estratégias cada vez mais refinadas de manifestação e ação política, mesmo que ainda baseada no “pedir” e nos “favores”, típicos do coronelismo da República Velha e, portanto, típicos das relações que se davam no universo sócio-político do norte de Minas.

Entre o “pedir”, os favores e os abaixo-assinados: estratégias da ação política popular no sertão

Laurindo Mékie Pereira, em A cidade do favor, procura fazer uma análise sobre a atuação do coronelismo na região, acentuando a sua sobrevivência mesmo após o desgaste das suas bases com o fim da Primeira República. A análise demonstra que, mesmo em meados do século XX, o coronelismo na cidade e região ainda era forte, o que explica como os “favores” eram importantes elementos da vida política norte-mineira, configurando assim o que ele chamou de uma “cidade do favor” (PEREIRA, 2002).

Até esse ponto, a meu ver, nada de muito incomum. Muitos autores são concordes com o fato de que o coronelismo, mesmo depois do final da Primeira República, conseguiu um alto grau de sobrevivência em várias regiões do Brasil, especialmente aquelas que ainda atravessavam a transição do rural para o urbano, onde a conversão para um espaço urbanístico ainda se dava a passos lentos e, portanto, onde as relações de proximidade e dependência, típicas do mundo rural, ainda eram intensas. Montes Claros e o norte de Minas, nesse sentido, seriam mais um exemplo, entre tantos pelo Brasil daqueles anos 1950.

Por outro lado, a análise de Pereira ganha em complexidade e problematização quando o autor procura demonstrar a relação de mão-dupla advinda desse processo de troca de “favores”. Dessa forma, o autor procura discutir algumas estratégias populares de participação política, em meados do século XX em Montes Claros, apresentando uma espécie de “relatividade da dependência”, elemento fundamental para a análise que procuramos empreender aqui. Para Laurindo Mékie Pereira, as imagens que as elites dominantes faziam do povo se baseavam em características ora positivas, ora negativas, em uma separação evidente entre os dois grupos, as elites e o povo, cada qual com a sua função: “à população era confiada as atividades simples, braçais, que não exigem esforço intelectual”. Obviamente, por outro, às elites políticas eram confiadas “as atividades nobres como a gerência, a administração, a liderança.” (PEREIRA, 2002: 151)

Se essa divisão era clara e, em certo sentido, pouco contestável, os efeitos da atuação social e popular não eram tão simples assim, como dividir alguns em trabalho braçal e outros em trabalho administrativo, sem que, de forma alguma, um influenciasse o outro, sobretudo a atuação do povo sobre as lideranças políticas.

Mesmo que muitas vezes as imagens expostas sobre o povo sejam de dependência, de submissão, tendo em vista a necessidade de sempre se reforçar a importante tutela dos coronéis e homens do poder, como fica retratado em vários momentos na análise documental do autor, uma problematização se faz importante: as estratégias de sobrevivência e ação política. Para o autor, nas ações coletivas e individuais, e especialmente nas coletivas, a população demonstra seus interesses e suas estratégias de ação política. Relatando alguns casos de manifestações de grupos, como os relatados por nós nas páginas anteriores, Pereira acentua:

Vê-se que em ambos os casos – as ações individuais e as coletivas – a população apresentava-se consciente de sua condição de explorado e não assistiu passivamente às ações das elites. As noções das elites de que o povo é ignorante, sem iniciativa e “bem comportado” parecem perder força diante da consciência de uma lavadeira que quer “matar à pedra o presidente”, de operários que se reconhecem como “explorados”, de donas de casa que fazem passeatas e de estudantes que ameaçam depredar cinema (PEREIRA, 2002: 161).

É nesse sentido que o autor faz uma importante afirmação, ao demonstrar que todo esse processo de ação política dos cidadãos da cidade e região fazia com que os políticos tomassem maior consciência da necessidade de atuação efetiva, com melhorias para a população em geral, diante das questões manifestadas e dos seus interesses. O “favor”, dessa forma, ganha um novo contorno, já que a própria população “tinha consciência do caráter mútuo dessa relação de dependência e utilizou-se das estratégias que lhes foram possíveis para atingir seus objetivos.” (PEREIRA, 2002: 161)

Não nos parece outra análise a que pode ser feita quanto aos nossos comerciantes e suas reivindicações, expostas nas páginas anteriores. Quando os mesmos manifestavam seu descontentamento com a “vendagem” de toucinho no Mercado Público, os negociantes lançavam mão de leis e de elementos jurídicos para se manifestar, tendo consciência de estarem altamente prejudicados, “restringindo a liberdade do commércio, criando o monopólio d’este gênero de primeira necessidade e permitindo o atravessamento desse mesmo gênero”.

Dessa forma, se utilizavam de um abaixo-assinado – uma entre as várias estratégias possíveis naquele universo – para conseguirem uma plena resolução da pendenga que se apresentava, sem se esquecerem do importante papel que tinham na cidade e, portanto, passível de total atenção por parte dos agentes do poder e do progresso, já que os comerciantes eram “pois a classe a que pertencem, eh a que mais contribue para o erário municipal.”[11]

Essas formas de ação política eram comuns, especialmente quando era possível reunir grupos com interesses semelhantes, como comerciantes ou moradores de determinadas regiões, interessados em resolver problemas localizados, em nome de 5, 6 ou 10 famílias. E não apenas nos documentos da Câmara era possível perceber reivindicações levadas à frente pelos cidadãos. Os próprios jornais da cidade noticiavam algumas dessas demandas.

O jornal o Correio do Norte, de 24 de março de 1889, apresentava em duas páginas completas, solicitações individuais e coletivas de moradores de Montes Claros e região, com interesses variados. Em uma delas, moradores do distrito de Brejo das Almas reclamavam às autoridades competentes a pequena atenção dada a necessidades públicas do distrito, sendo exemplo a falta de um fiscal da Câmara na região, afinal, “disto decorre a infração das posturas municipais”, conforme relatado no texto do jornal. O redator ainda apresenta outras reclamações dos moradores da mesma região, tais como as “péssimas condições das estradas que não são cuidadas, a inexistência de alguém que zele pela cobrança de impostos”, entre outras reclamações dos moradores.[12]

No final daquele mesmo ano, o jornal apresenta a solicitação de alguns moradores do entorno rural da cidade, para que se dê conhecimento na Câmara e mesmo ao “digno Sr. Delegado de polícia, e também aos Paes de família”,

(...) de que nos subúrbios desta cidade, moços, meninas ou talvez mesmo velhos sem juízo atiram imprudentemente para estradas, caçando ou divertindo-se em quintaes, com risco de ferirem ou matarem algum transeude, o que há pouco dias quasi acontece a uma pobre mulher, que escapou por milagre, de receber um tiro na cabeça, e quando não haja providencia, servira a noticia para aviso aos incautos.[13]

Em ambos os casos, problemas de ordem local – como o descaso da administração pública com os moradores do Brejo das Almas, bem como os cuidados necessários com a prática de tiros no entorno rural da cidade de Montes Claros – são reveladores das estratégias de ação política desses cidadãos norte-mineiros, que buscavam dispensar suas energias, da forma que encontravam, para buscar soluções diante dos problemas que lhes eram apresentados. Situações de resolução complexa ou simples, tanto faz, mas que se apresentavam como de fundamental importância para serem resolvidas, afinal, atingiam diretamente o cotidiano de muitos sertanejos, como era o caso das péssimas condições de uma estrada, a má localização de uma determinada cerca ou os riscos advindos de um tiro incerto, executado imprudentemente por “moços, meninas ou talvez mesmo velhos sem juízo”.

Solicitações coletivas e individuais, o “pedir” pessoal ou indireto, ou mesmo a troca de “favores” típicos das relações naquele universo, são reveladores do quão complexas eram as estratégias desses cidadãos, numa constante construção de cidadãos pouco ou quase nada “bestializados”, como muitos podem imaginar.

Edi de Freitas Cardoso Júnior, em recente dissertação de Mestrado, procurou analisar algumas das experiências políticas populares na cidade de Montes Claros, em meados do século XX, quando, para o autor, presencia-se um importante crescimento urbano da cidade, fruto do progresso iniciado desde os primeiros anos da República, conforme destacamos. Para o autor:

Nos anos transcorridos entre 1930 e 1964, sobre os quais nos debruçamos, lenta ou aceleradamente, processaram-se intensas transformações de ordem sócio-econômica e política. Mas, certamente, a pobreza encontrou seus meios de reprodução, conservando destaque na vida da maior parte dos habitantes. (CARDOSO, 2008: 48)

Em meio a esse processo de transformação, que mesmo assim ainda conservava a pobreza e as necessidades básicas de toda uma população – questão bastante presente na documentação por nós analisada – Cardoso Júnior demonstra como se davam as ações políticas populares, por meio de abaixo-assinados e pedidos, individuais ou coletivos, feitos por populares às elites da região. Essas elites, salvo em situações excepcionais, se mantinha sob a liderança de uma “velha” classe de proprietários, apegados aos valores sociais e políticos tradicionais, isto é, tendo como herança política o coronelismo das primeiras décadas de República.

Seduzidas pelos ares desenvolvimentistas da época – 1950-1960 – as elites de Montes Claros se moldavam, em meio à mistura entre passado e presente, e sobretudo, na direção do futuro da região. Durante décadas e décadas, as relações personalistas, paternais, de mistura entre público e privado, continuavam configurando a região, que somente naquele meados do século XX viria presenciar transformações mais efetivas:

A cidade das primeiras décadas do século, de perfil eminentemente rural, insipiente hierarquização e repleta de “solidariedades verticais” expressas no corriqueiro contato direto entre todos os seus membros inclinava-se para o passado. Junto com ela, os pilares do domínio tradicional, a saber, o paternalismo e a autoridade patriarcal dos ricos sobre os pobres, o monopólio da força que tinham os primeiros, enfim, aquela atmosfera “familiar” de que se beneficiavam concatenando bases sociais aos seus interesses e escamoteando a opressão que exerciam sobre os últimos. A expressão mais comum de tal conjuntura, práticas clientelísticas, personalismo, confusão entre as esferas do público e do privado e prejuízo à efetivação do direito, todavia, não desapareceram imediatamente. Manteve-se por todo o período estudado, só começando a perder espaço no alvorecer dos anos 1950. (CARDOSO, 2008: 53-4)

É nesse contexto que o autor destaca algumas formas do que ele chamou de “primeiros contatos populares com o poder”, a partir dos pedidos pessoais e por escrito feitos por moradores da cidade. Dessa forma, a compreensão de Cardoso Júnior é que, quando o morador apresentava a uma autoridade uma queixa ou pedido, esse indivíduo ou grupo realizava uma “experiência histórica”, impulsionados, como destacamos em vários momentos nessa tese, para a “busca de soluções para problemas prementes enfrentados em seu cotidiano”. Assim:

O contato direto e as cartas constituíram pois recursos possíveis à transformação positiva da experiência individual, isto é, para uma resistência dentro da condição em que se viam historicamente inseridos os sujeitos pesquisados. A historicidade, assim como a iniciativa e o discernimento destes, são pilares fundamentais à efetivação das diversas modalidades populares de participação inscritas no período. (...) Portanto, permitimo-nos entender que, do ponto de vista das classes populares, o contato e as cartas pessoais eram estratégias de intervenção e expressão tão necessárias e legítimas quanto abaixo-assinados e associações, embora estas se caracterizassem mais propriamente como formas políticas por pressupor organização coletiva. Afinal, todas compunham um mesmo repertório de participação, sendo dispostas alternadamente segundo sua adequação às circunstâncias do momento. (CARDOSO, 2008: 93)

A análise do autor, portanto, nos coloca diante da enorme importância dessas ações políticas populares. Obviamente, no período analisado em sua pesquisa – meados do século XX – era possível identificar estratégias ainda mais complexas dessas atuações, como os pedidos pessoais e por escrito feitos pelos cidadãos, diante das suas tantas e tantas demandas àquela época, período de intensa transformação urbana na cidade de Montes Claros.

No nosso caso, cumpre destacar que, por mais que tais demandas e solicitações de populares também estivessem presentes, evidentemente, elas não dialogavam com um universo tão complexo quanto o estudado por Cardoso Júnior, naquela urbe em expansão. Todavia, isso não exclui o fato de que esses homens do norte de Minas, naquele período de transição do Império para a República, não viviam também as suas próprias “experiências históricas”, da sua forma, sobretudo ao perceberem no Estado o seu papel administrativo e regulador das relações sociais e cotidianas, o que fica explícito em algumas das demandas expostas no corpus documental.

Nas primeiras décadas da República, mesmo que se note um evidente “progresso” na região, conforme nos revela os estudos de Brito, ainda assim vivia-se um cotidiano que misturava rural e urbano, configurado em meio a relações sociais mais simples, o que revela também solicitações e demandas mais simples, como muitas daquelas que analisamos anteriormente. Entretanto, embora se tratem de demandas mais “simples” e/ou corriqueiras – como consertos de cercas e estradas, ou procedimentos para evitar acidentes por tiros mau executados –, reiteramos, isso não tira a sua importância diante do dia-a-dia daqueles que faziam as suas solicitações. Tratava-se de ordenar melhor o seu cotidiano, elemento fundamental para a sobrevivência de muitos cidadãos norte-mineiros, e que deveria, portanto, receber a melhor atenção possível do Estado e dos “agentes do progresso” norte-mineiro.

Esse é o caso dos moradores dos lugarejos próximos a estradas que ligavam Montes Claros a outras localidades. No ano de 1892, esses moradores solicitavam através de abaixo-assinado que essas mesmas estradas não fossem desviadas para outros caminhos, “uma vez que sendo desviados, dificultam o transito e a manutenção do comercio”. Aproveitavam e, no mesmo documento, faziam nova reivindicação: “Reivindicam também melhorias nas condições do transito da mesma.”[14]

Em junho de 1891, os moradores da Lagoa do Peixe e de outras localidades, por meio de documento enviado à Câmara Municipal, reclamam da atitude de um morador, o capitão Lucas Pereira dos Anjos, que:

(...) com o intuito de converter a estrada em mangas, promove um desvio da mesma, passando por locais cheios de vales, barrocas e de difícil travessia. De conformidade com o código de Posturas Municipais que proíbe usurpar, mudar, estreitar, entulhar, ou de qualquer modo arruinar as estradas, caminhos, pontes ou qualquer obra pública e particular, os moradores requerem através do documento as providencias da Intendência quanto ao ato do capitão.[15]

As duas solicitações populares colocadas acima são exemplos do que poderíamos chamar aqui de alegações “simples”, talvez, para nós, de simples resolução, mas que, para o cotidiano daqueles homens, parecia de fundamental importância para a sobrevivência. A locomoção pelas estradas de terra do sertão, tão importante para o comércio e sobrevivência de tantos, era elemento que estava na ordem do dia para muitos e muitos moradores, que se aproveitavam da ação política popular para verem suas demandas atendidas, especialmente devido aos desvios feitos nas referidas estradas, como fica revelado em ambos os documentos.

Alguns desses moradores, também com conhecimento das leis que regiam a organização social – como é o caso dos moradores da Lagoa do Peixe, que citam o Código de Posturas – procuravam a tomada de providências, no sentido de verem o problema solucionado. Problemas simples? Provavelmente não para eles, que necessitavam demasiadamente de recursos como uma estrada em boas condições e/ou sem desvios feitos pelo interesse particular de um capitão.

Logicamente, à medida que avançava as décadas do século XX no norte de Minas Gerais, as estratégias também se tornavam mais amplas, mais heterogêneas, como as cartas pessoais estudadas por Cardoso Júnior em texto anteriormente citado. Nesse caso, tais cartas revelam uma participação política popular ainda mais direta, levando moradores – de forma individual ou em grupo – a dialogarem ainda mais próximos do poder, por meio do “pedir” estudado pelo autor.

Em estudos sobre um período histórico ainda mais recente, já no início do século XXI, também nos é possível avaliar algumas dessas estratégias de ação política popular. Alessandro de Almeida, em livro intitulado Um voto pelo amor de Deus, procura analisar as relações entre religiosidade cristã e política na cidade de Montes Claros, tendo como pressuposto que candidatos a processos eleitorais se utilizam de estratégias ligadas ao discurso religioso como forma de obter votos, diante, obviamente, de uma população cristã e, nesse sentido, um alvo “perfeito” para esse tipo de discurso. Analisando especificamente as eleições dos anos de 2000 e 2004, o autor consegue revelar parte das estratégias políticas eleitoreiras, procurando “conceber as ressonâncias do recurso religioso na ambiência política montesclarense” (ALMEIDA, 2008: 19).

Não obstante, um aspecto utilizado como ponto fundamental na sua abordagem, também nos é caro. Almeida, no propósito de (re)fazer a ação política pura e simples, que pressupõe a idéia de que o eleitor é enganado, manipulado ou simplesmente conduzido pelo candidato por meio do seu discurso, propõe analisar como as pessoas procuram se beneficiar dessa relação de poder, que, dessa forma, pressupõe uma dependência em mão-dupla, ou seja, do eleitor para o candidato, mas também do candidato para o eleitor.

Inserido nessa problemática, o manejo de nossa documentação e as posteriores análises demonstram que a população se vê, ou é inserida, também em um drama tecnologicamente programado, evidenciado na propaganda eleitoral para prefeito e vereadores no município de Montes Claros, quando os políticos constroem sua propaganda política baseada nos anseios populacionais e na linguagem religiosa. Outra reflexão proposta é pensarmos até que ponto estas mesmas dificuldades podem servir à população, na medida em que seus pedidos podem se basear nos mesmos artifícios utilizados pelos candidatos. (ALMEIDA, 2008: 50)

É justamente essa “outra reflexão” do autor que nos interessa. Almeida procura, portanto, mostrar também o outro lado dessa relação política, não se concentrando apenas na dependência do eleitor e na sua submissão e manipulação diante da propaganda eleitoral empreendida. Nesse sentido, o eleitor, aquele cidadão “comum”, procurava também se posicionar diante dessas questões, lançando estratégias com o intento de se aproveitar da relação estabelecida pelo candidato à época da eleição.

A partir da utilização de cartas pessoais de eleitores aos candidatos – diga-se de passagem, eleitos ou não –, Almeida demonstra a multiplicidade presente nessas relações cotidianas entre eleitor/político e a importância dos recursos simbólicos presentes nessas relações. Em uma dessas cartas, a eleitora de nome Silvana Dias, endereçava um pedido ao vereador Aurindo Ribeiro, um ex-candidato eleito. Um pequeno fragmento dessa carta nos auxilia na nossa análise:

Olá Aurindo!

Tudo bem com você? Espero que esteja!

Bom, esta foi a melhor forma (um tanto quanto curiosa e diferente) de vir até você para pedir a sua ajuda! (...)

Estava eu aqui, olhando em algumas pastas, arquivos de papeis que sempre gosto de guardar, e encontrei este envelope com 1 santinho seu dentro, foi quando tive a idéia de usá-lo para lhe enviar esta carta para o mesmo fim de que você tambem o usou, já que quando você me mandou, precisava muito da minha ajuda para que pudesse continuar seu maravilhoso trabalho, que disse ser, uma Missão de Deus! E eu por conciência e preocupação pelo nosso futuro, o ajudei”informalmente”, mais o ajudei.

Hoje quem precisa de ajuda sou EU, e ajuda URGENTE (...), nunca tive um trabalho, e isto muitas vezes desfaz com meus planos sonhos e necessidades. (...)

Aurindo, por favor! Pelo Amor de Deus, me ajude a conseguir um emprego! Ou me dê armas instrumentos para poder alcança-lo. (...)

Acolhe a minha “causa”, você que é “O vereador das causas sociais”.

Abraços e Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

Silvana Dias (ALMEIDA, 2008: 176)[16]

O estudo dessas cartas de pedido feito por Alessandro de Almeida, como alguns dos trabalhos históricos apresentados nesse tópico da tese, são reveladores de um importante (re)fazer da política no norte de Minas Gerais, tendo em vista a análise de um cotidiano político mais complexo do que a pura e simples dominação política exercida por grupos político-partidários, ou mesmo pela idéia de que o poder perpassa apenas pelos agentes que administram a vida pública.

As demandas da população, seus interesses, pessoais e coletivos, seja aqui, no início do século XXI – como na análise empreendida por Alessandro de Almeida – seja lá, no final do século XIX, em meio à transição da estrutura monárquica para a estrutura republicana no norte de Minas revelam uma outra ação política, agora popular, muitas vezes, obviamente, baseadas em relações de favores, como o que estava sendo cobrado pela eleitora Silvana, na carta acima.

Embora essas relações de favor e dependência, em certo sentido, talvez sejam inescapáveis a qualquer abordagem histórica sobre a região, essencialmente no caso do norte de Minas, ainda hoje estruturado sob os pilares e resquícios do paternalismo, do clientelismo e tantos outros conceitos arcaicos de poder, ainda assim tais questões são capazes de revelar uma ação política popular dinâmica, sobretudo no que se refere ao fato de que os cidadãos enxergavam o Estado, tanto para a resolução de questões de interesse coletivo, quanto para questões de interesse pessoal.

Na esteira desse segundo tipo de solicitações – as de interesse individual – os documentos analisados revelam inúmeras e inúmeras questões apresentadas por cidadãos em requisição à Câmara Municipal, com o objetivo de resolver problemas de ordem pessoal, mas que, em seu bojo, carregavam simbolismos dos mais interessantes. No grupo de solicitações individuais encontrado em larga escala na documentação, dois tipos de abordagens se mostraram mais comuns: a relação entre público e privado e a questão da violência/criminalidade.

Tanto nos jornais da época, quanto na documentação da Administração Pública de Montes Claros, várias solicitações individuais revelam uma percepção importante de alguns cidadãos da cidade: se utilizarem da questão pública para resolver situações e/ou demandar aspectos nitidamente particulares.

Em documento enviado à Câmara no mês de abril de 1902, o cidadão Manoel Moraes de Oliveira, se dizia responsável pela construção de uma ponte sobre o Rio Verde, na região, e que essa mesma ponte tinha se tornado responsável pela estrada geral que ligava a cidade de Montes Claros à região de Cana Brava. Nesse sentido, o cidadão solicitava “que a obra seja fiscalizada como pertencente ao município para que ele possa reembolsar os gastos com o dito serviço, uma vez que este representa uma obra de utilidade municipal.”[17]

Em outro documentado, da mesma época, o cidadão João de Oliveira Santos declarava que possuía imóvel no Mercado Público da cidade, e requeria, logo em seguida, que “no pagamento do aluguel seja descontado despezas gastas em favor da melhoria do imóvel”. No mesmo relatório apresentado pela Câmara, mostra-se o indeferimento do pedido do cidadão João de Oliveira, sob a seguinte alegação:

A comissão de finanças e obra públicas analisando o pedido do cidadão, nega o pagamento pelas referidas despezas, uma vez que, para que seja reembolsado os custos é necessário uma previa licença da câmara para serem realizados as obras. Desta maneira, o serviço fica em favor da municipalidade, pois a licença não foi aprovada pela câmara.[18]

Outros tantos documentos, especialmente de comerciantes e moradores de determinadas regiões faziam solicitações das mais variadas, baseando-se em demandas individuais e casos especialmente particulares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessa forma, é importante ressaltar que, mesmo não sendo atendidos em muitas dessas ocasiões, como fora o caso do senhor João de Oliveira Santos, na alegação anterior, ou mesmo provavelmente o caso do senhor Manoel Moraes de Oliveira – já que se tratam de casos idênticos e à mesma época – a simples solicitação de casos particulares revelam uma noção de que determinados direitos deveriam ser garantidos, mesmo que se tratasse de noções bem particulares e próprias desses direitos. Muitas vezes tão particulares que, certamente, não existiam ou não eram efetivamente direitos. Em outros casos, amparados em direitos mais consolidados e, por isso mesmo, passíveis de uma pronta resolução dos órgãos públicos.

Em janeiro de 1903, o cidadão José Candido Salgado envia documento à Câmara Municipal pedindo que sejam tomadas providências em função do “lamaçal na porta da sua casa devido as águas do córrego escorrerem e o lixo depositado na porta do mercado municipal”. O cidadão informava que já tinham sido enviados vários apelos para a Administração Pública, e que nenhum fora ainda atendido. Dessa forma, apelava para um importante argumento:

(...) O dito cidadão propõe que seja calçada a sua rua, uma vez que ele tem direitos e é um dos que contribuem para os cofres do município. Assim, o cidadão julga ter razão e espera pela ação da municipalidade.[19]

O seu pedido, semanas depois, em novo Relatório da Câmara, seria atendido, “tendo em vista os interesses dos moradores da região e sua legitima necessidade de boas condições sanitarias.”[20]

Tais elementos, portanto, evidenciam uma sociedade dinâmica, com formas de compreensão do seu papel político e social. Algumas vezes com solicitações e demandas mais diretas, outras vezes indiretas, esse contexto de progresso e mudanças urbanas pelas quais a cidade passava construía, aos poucos e lentamente, um novo cenário citadino.

AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Pesquisa financiada pela Fapemig – APQ 01297-13 – em projeto que buscou analisar, de forma comparativa, as regiões sertanejas de Minas e São Paulo.

Referências

ALMEIDA, Alessandro de. Um voto pelo amor de Deus: Religiosidade cristã e política – Montes Claros – 2000 a 2004. Montes Claros: Unimontes, 2008.

BRITO, Gy Reis Gomes de. Montes Claros: da construção ao progresso – 1917-1926. Montes Claros: Unimontes, 2006.

CARDOSO, Edi de Freitas. Experiência e poder na urbe em expansão: “cultura política popular” em Montes Claros/MG entre 1930 e 1964. Dissertação de Mestrado em História, Belo Horizonte, UFMG, 2008.

JESUS, Alysson Luiz Freitas de. Cotidiano e poder nas relações sociais escravistas e pós-escravidão: o sertão das Minas entre 1850 e 1915. Tese de Doutorado, USP, São Paulo, 2011.

JESUS, Alysson Luiz Freitas de. No sertão das Minas: escravidão, violência e liberdade – 1830-1888. São Paulo: Annablume, 2007.

PAULA, Hermes de. Montes Claros: sua história, sua gente e seus costumes. Montes Claros, s. ed., 1979.

PEREIRA, Laurindo Mékie. A cidade do favor: Montes Claros em meados do século XX. Montes Claros: Unimontes, 2002.

Notas

[12] JCN – Correio do Norte, 24 de março de 1889.
[13] JCN – Correio do Norte, 29 de dezembro de 1889.
[16] Ver anexo 1 do livro. ALMEIDA, 2008.


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