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OS REFLEXOS SOCIOAMBIENTAIS DA EXPANSÃO METROPOLITANA DE BELÉM SOBRE A COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA DE ABACATAL (CRQA)
THE SOCIO-ENVIRONMENTAL REFLEXES OF THE METROPOLITAN EXPANSION OF BELÉM ON THE ABACATAL REMAINING QUILOMBOLA COMMUNITY (CRQA)
LOS REFLEJOS SOCIOAMBIENTALES DE LA EXPANSIÓN METROPOLITANA DE BELÉM EN LA COMUNIDAD ABACATAL RESTANTE QUILOMBOLA (CRQA)
Revista Cerrados (Unimontes), vol. 18, núm. 01, pp. 129-158, 2020
Universidade Estadual de Montes Claros

https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/

Recepción: 17 Marzo 2020

Aprobación: 29 Abril 2020

Publicación: 29 Abril 2020

DOI: https://doi.org/10.22238/rc2448269220201801129158

Resumen: En este artículo, buscamos estudiar y evaluar los impactos de la expansión urbana en la Comunidad Abacatal Restante Quilombola (CRQA). Esta comunidad, incluso con el título de propiedad y el reconocimiento de la Fundación Cultural Palmares (FCP), enfrenta desafíos para su autoconservación, ya que se encuentra a 8 km de Ananindeua, el segundo municipio más poblado del Estado de Pará. El estudio se llevó a cabo mediante la recopilación de datos in loco, así como una encuesta bibliográfica-documental, que se analizaron a la luz de la teoría de Sen del derecho a las libertades (2010) y la teoría de la racionalidad ambiental de Leff (2015). Debido a la proximidad al área urbana, en la vecindad de la comunidad, se observaron desarrollos inmobiliarios que han estado promoviendo impactos relacionados con el saneamiento ambiental; Además de estos, también se destacan los problemas sociales relacionados con la violencia y el acceso deficiente a las políticas públicas. El estudio mostró que la comunidad, a pesar de sufrir un fuerte impacto de la expansión urbana en su territorio, busca resistir y organizarse, apoyada por otros organismos sociales, en defensa del derecho a la libertad de mantener su estilo de vida basado en la producción tradicional y conservación de su entorno natural.

Palabras clave: Expansión urbana, Comunidades tradicionales, Desarrollo.

Abstract: In this article, we seek to survey and assess the impacts of urban expansion on the Abacatal Remaining Quilombola Community (CRQA). This community, even holding the title to the land and recognition by the Fundação Cultural Palmares (FCP), faces challenges for its self-preservation, since it is located 8 km from Ananindeua, the second most populous municipality in the State of Pará. The study took place through the collection of data in loco, as well as bibliographic-documentary survey, which were analyzed in the light of Sen's theory of the right to freedoms (2010) and Leff's theory of environmental rationality (2015). Due to the proximity to the urban area, in the vicinity of the community, real estate developments were observed that have been promoting impacts related to environmental sanitation; in addition to these, social problems related to violence and poor access to public policies also stand out. The study showed that the community, despite suffering a strong impact from urban expansion on its territory, seeks to resist and organize, supported by other social bodies, in defense of the right to freedom to maintain their way of life based on traditional production and conservation of its natural environment.

Keywords: Urban expansion, Traditional Communities, Development.

Palavras chave: Expansão urbana, Comunidades Tradicionais, Desenvolvimento

INTRODUÇÃO

A ocupação e o desenvolvimento do território amazônico seguiram, segundo Becker (2001), um modelo exógeno em que as relações com a metrópole foram privilegiadas em detrimento do desenvolvimento das comunidades locais. A autora salienta que esse modelo desrespeita as diferenças sociais existentes, desconsiderando a vida e os saberes locais. Nos projetos propostos pelo Estado brasileiro, é possível identificar a Amazônia vista como um vazio demográfico e, por esta ótica, a existência de povos tradicionais, isto é, aqueles que habitavam a região e viviam de acordo com valores culturais e sociais próprios, foi pouco considerada. A invisibilidade destes povos ainda tem reflexos na atualidade, resultando na necessidade de ações recorrente de resistência, por parte dessas comunidades, para a manutenção dos territórios e do modo de vida tradicionalmente constituído.

O aumento populacional que se acentuou na região do território amazônico a partir da construção de rodovias, como a Belém-Brasília e a Brasília-Acre, acarretou problemas relacionados à expansão urbana, das quais Becker (2005) destaca que muitos migraram para essa região, com uma alteração do padrão em torno da circulação fluvial para o entorno das rodovias.

Nesse contexto, de ocupação da região amazônica, destacamos a condição de comunidades remanescentes de quilombos, muito presentes na região, com origens historicamente marcadas pela luta por condições de sobrevivência alternativa ao regime de escravidão a que eram submetidas. Essas comunidades, segundo a Fundação Cultural Palmares (FCP, 2019), são compostas por seringueiros, por extrativistas, por pescadores, entre outros; elas sobrevivem a partir dos recursos naturais, sendo, portanto, primordial para eles a preservação da terra. A interação e a proximidade com o urbano, apesar de trazer benefícios às populações, como aqueles advindos do acesso à energia elétrica, constituem-se em um grande desafio para manutenção do modo de vida tradicional.

O cenário político atual não se configura favorável às lutas das comunidades tradicionais, onde as discussões[1] indicam a exploração e até mesmo a expropriação dos territórios de comunidades tradicionais. Essas tendências, da política brasileira, refletem modelos de desenvolvimento de um mundo “[...] marcado pelo domínio de uma globalidade homogeneizante e unidirecional”, como postulado por Leff (2015, p. 58), e tais tendências se afastam de modelos de desenvolvimento menos centralizadores, e que o autor defende como democráticos e potenciais fortalecedores de comunidades como as remanescentes quilombolas.

Diante das problematizações da desvalorização histórica e das vulnerabilidades socioterritoriais a que estão expostas às comunidades tradicionais, este artigo buscou apresentar um levantamento de como a expansão urbana na região amazônica vêm afetando a Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal (CRQA, doravante), que se situa nas proximidades do centro urbano da cidade de Ananindeua, a segunda maior em número de habitantes do estado do Pará. Os resultados levantados ainda foram avaliados à luz da teoria das liberdades de Amartya Sen (2010) e da racionalidade ambiental de Enrique Leff (2015), na tentativa de discutir alternativas para a resistência e para o desenvolvimento socioambiental desta comunidade.

Para levantar os impactos da expansão urbana sobre o território da CRQA, foi realizada, no mês de junho de 2019, a coleta de dados das condições socioambientais in loco, que foram utilizadas para referir a percepção geral dos aspectos do ambiente e da organização social da comunidade; além destas foram revisados materiais bibliográficos e documentais sobre o histórico de constituição da região Paraense e da comunidade quilombola em estudo. Foram consultados sites de notícias online, com destaque para portais locais e sites oficiais ligados ao Estado Brasileiro e, também, ao Estado do Pará, tais como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010, 2019) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2019); entre as revisões foram incluídas as publicações de Becker (1995, 2001, 2005), Tavares (et al. 2008), Sanches (2009) e Sirotheau (2012) (Apêndice 1).

Os resultados encontrados nos dados bibliográficos-documentais e nas percepções de campo, bem como as discussões teóricas elaboradas a partir deles foram reunidas em três tópicos, sendo: o primeiro, um resumo da expansão urbana da região metropolitana Paraense, com recorte para o município de Ananindeua, onde está inserida a CRQA; o segundo, um relato da história de formação da CRQA, ressaltando, em um subtópico, os aspectos negativos da expansão urbana sobre o seu território; e o terceiro, um apanhado geral da resistência e do desenvolvimento socioambiental da CRQA.

Expansão urbana na Amazônia: um recorte na região metropolitana paraense

O processo de ocupação da Amazônia deu-se, principalmente, a partir de interesses externos relacionados à exploração dos recursos naturais ali existentes, cujo controle do território, segundo Becker (2001), foi estrategicamente mantido por meio da criação de unidades administrativas diretamente vinculadas ao governo central, como a autora destacou no trecho a seguir:

Foi com a formação do moderno aparelho de Estado, associada à sua crescente intervenção na economia e no território, que se acelerou e se tornou contínuo o processo de ocupação da Amazônia, com base na dominância absoluta da visão externa e privilégio das relações com o centro do poder nacional (BECKER, 2001, p.136).

A partir da construção das rodovias Belém-Brasília e Brasília-Acre, em 1958, a migração para a região amazônica tendeu ao crescimento, sendo que a população saltou de 1 para 5 milhões entre 1950 e 1960; mais tarde, entre os anos de 1966 e 1985, foram desenvolvidos planejamentos de ocupação efetiva da região, no intuito de resolver problemas dos pequenos produtores do Nordeste e do Sudeste, que haviam sido expulsos de suas regiões de origem pela modernização da agricultura (BECKER, 2001).

Para contribuir com esse acelerado processo de ocupação, segundo Becker (2001), houve uma modernização das instituições de suporte, sendo que o Banco de Crédito da Borracha passou a ser o Banco da Amazônia (BASA), e a Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) passou a ser a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). E para incentivar a industrialização ocorreu, por meio da Lei Nº 3.173, de 06 de junho de 1957 (alterada pela Lei N°288 de 1967), a criação da Zona Franca de Manaus (Brasil, 1957, 1967); esta acompanhou um modelo de desenvolvimento econômico que buscava abranger pólos econômicos, comerciais, industriais e agropecuários (GARCIA, 2004), modelo que opera até os dias atuais.

Nos anos seguintes, o Estado brasileiro promoveu políticas de incentivo à ocupação de terras, fazendo com que várias pessoas vindas de outras regiões do país se dirigissem para a região amazônica; essas pessoas foram atraídas pela promessa de ocuparem as terras propagandeadas como sendo vazios demográficos. Considerando que o nosso estudo se refere ao Estado do Pará, mais especificamente à expansão da região metropolitana de Belém, onde está incluído o município de Ananindeua, teceremos, a seguir, algumas considerações relacionadas ao padrão de ocupação desta área.

Conforme Tavares (2008), de maneira similar às ocupações de alguns estados da região amazônica, o Estado do Pará também foi ocupado no intuito de defender o território, de modo especial, de defender o domínio de recursos naturais; como justificado, em um primeiro momento, pelo resultado da intensa exploração, devido ao interesse estrangeiro, das chamadas drogas do sertão; exploração esta que levou, segundo Ravena e Marin (2013),ao desaparecimento de muitas populações indígenas.

Diante desta necessidade, foi construído, em 1616, o Forte do Presépio, dando origem ao núcleo urbano que hoje é a cidade de Belém, cidade essa que, no ano de 1751, passou a ser sede do Estado do Grão-Pará e Maranhão, que foi uma das unidades político-administrativas criadas para garantir a posse do território (TAVARES, 2008).

Tavares (2008) salienta que a ocupação do território Paraense inicialmente foi baseada na exploração das terras com utilização de mão de obra escrava indígena, que, por tempos, ficaram sob o domínio de companhias religiosas, como a companhia dos jesuítas. Processo que foi reformado pelo encarregado do governo colonial, o Marquês de Pombal, quando promoveu novas medidas conforme destacado pela autora:

[...] o estabelecimento da Companhia Geral do Comércio do Grão Pará; o estímulo a agricultura de exportação (1755); a declaração de liberdade dos indígenas; o estímulo a miscigenação entre índios e portugueses; a expulsão dos jesuítas e de outras ordens religiosas e a introdução de escravos africanos para servir de mão de obra (TAVARES, 2008, p. 61).

Essas medidas tinham o intuito de manter um domínio e de promover um certo desenvolvimento para a região, sendo que, nesse período, Belém foi contemplada com obras de infraestrutura, como a construção de Igrejas e do Palácio do Governo, além de fortalecidas as condições de navegação, dada a localização geográfica estratégica que possibilita a utilização de vias fluviais estabelecendo conexões nacionais e internacionais.

Anos mais tarde (1835-1940), ainda segundo Tavares (2008), na região Paraense aconteceu um movimento popular denominado Cabanagem, que foi liderado por três cabanos: Clemente Malcher, Francisco Vinagre e Eduardo Angelim, cujas motivações se deram em função de a Independência do país não ter abrangido na prática o Estado do Pará; a população pobre sofria com a falta de abastecimento devido à decadência da economia extrativista do cacau. Entre as consequências desse movimento, destacam-se os grupos de negros que abandonaram as propriedades rurais e seguiram para o interior, onde viriam a formar as comunidades quilombolas.

Outro marco histórico foi o chamado ciclo da borracha, que ocorreu por volta da segunda metade do século XIX, este período movimentou a economia baseada na exploração do látex extraído dos seringais (FURTADO, 1970). Tavares (2008) destaca que esse mercado foi fortalecido devido a alguns fatores, como o interesse do mercado internacional pela borracha, o estímulo à migração nordestina como fonte de mão de obra, a implantação de um sistema de transporte a vapor interligando o interior com Belém e com a Europa, a construção de um porto para escoar o produto e o sistema de crédito conhecido como aviamento em que os pagamentos eram realizados por meio da produção o que permitia o controle da mão de obra. Ressalta-se que, mais uma vez esta forma de desenvolvimento esteve diretamente ligada a interesses externos, marcados fortemente pelo capital internacional.

Em mais uma tentativa de colonizar e de melhorar o abastecimento de Belém com o fornecimento de produtos agrícolas, foi inaugurada, no ano de 1908, a estrada de ferro Belém-Bragança, cujo intuito era colonizar a área de Belém à Bragança (TAVARES, 2008). A construção desta estrada contribuiu para o processo de povoamento, uma vez que houve incentivos do Governo Estadual, no sentido de fixar os colonos nas terras marginais à ela, e, consequentemente, fez surgirem vilas que mais tarde se tornaram municípios, a exemplo de Ananindeua, sendo desmembrado de Belém no ano de 1943.

Tavares (2008) destaca, também, que, a partir da construção da rodovia Belém-Brasília, no ano de 1955, por promover maiores condições de mobilização de pessoas, houve muita migração para a região Amazônica, atraídos pela promessa de acesso a terras devolutas. Devido a essa migração, mais municípios foram criados no Pará, sendo a maioria no entorno da referida rodovia. E, segundo Becker (2004), com o intuito de promover o desenvolvimento e o povoamento da região amazônica, o crescimento econômico foi visto como um promotor da vertente “sociedade-natureza”, denominado economia de fronteira, baseado na incorporação de terras e de recursos naturais percebidos como infinitos, padrão desenvolvimentista adotado nos anos de 1960-1980, para expansão da daquela região.

Atualmente, o Estado do Pará é formado por 144 municípios, cuja população no último Censo de 2010, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), era de 7.581.051 pessoas, sendo que, desse total, 1.393.399 estão concentradas no município de Belém e 471.980 no município de Ananindeua, cuja expansão tem avançado sobre o território da Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal, trazendo algumas implicações que abordaremos a seguir.

Identidade e história de formação da Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal

A Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal (CRQA) está situada às margens do rio Uriboquinha, afluente do rio Guamá, localizada a 8 km da cidade de Ananindeua, a 16 km da capital Belém - PA (Figura 1). Sobre os aspectos de formação, a existência da CRQA data de 300 anos, conforme relatado por moradores[2]; a terra teria sido deixada de herança pelo Conde Coma Mello para as três filhas que ele teve com sua escrava Olímpia, “as três Marias”: sendo elas, Maria do Ó Rosa de Moraes, Maria Filistina Barbosa e Maria Margarida Rodrigues da Costa, originando, assim, a partir dessa descendência, a CRQA (SIROTHEAU, 2012).

O autorreconhecimento étnico e histórico de suas tradições ancorou-se em critérios para descrever e legitimar a CRQA, como remanescente de quilombo; esta “autoatribuição” encontra-se regulamentada no artigo 2º, do decreto n° 4.887, desde 20 de novembro de 2003, no qual destacam-se os critérios relacionados à trajetória, relação com a terra, ancestralidade e lutas de resistência.

Os grupos remanescentes quilombolas também são reconhecidos como comunidades tradicionais segundo a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, que foi instituída por decreto Presidencial em 2007, que compreende os Povos e Comunidades Tradicionais, como:

[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (DECRETO Nº 6.040, Art. 3º, inciso I, 2007).


Figura 1
Localização da Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal, município de Ananindeua no estado do Pará
Adaptado de SIROTHEAU (2012)

Mesmo com a existência de medidas jurídicas favoráveis às comunidades tradicionais, Costa (2018) reforça a necessidade de que para exercerem efetivamente os direitos que as amparam, essas comunidades precisam “produzir-se culturalmente como tal e afirmar-se em sua territorialidade que fundamenta o sentido de pertencimento ao sujeito coletivo de que são constitutivos” (COSTA, 2018, p.189).

Embora a história dos Remanescentes Quilombolas de Abacatal seja de longa data, somente no ano de 1999, ou seja, há 21 anos, esses remanescentes receberam, por meio do Instituto de Terras do Pará - ITERPA, o reconhecimento da propriedade da terra equivalente a 308ha19a91ca (trezentos e oito hectares, 19 ares e noventa e um centiares). A área titulada foi revisada no ano de 2008, após reivindicações da comunidade, sendo ampliada em 265ha34a72ca (duzentos e sessenta e cinco hectares, trinta e quatro ares e setenta e dois centiares), passando, então, a comunidade a dispor de pouco mais de 573 ha (quinhentos e setenta e três hectares).

Segundo dados da Fundação Cultural Palmares (FCP, 2019), no Brasil, foram emitidas 3.271 certificações para comunidades quilombolas, entre elas está a CRQA, que, mesmo de posse do título da terra e da certificação de remanescente quilombola, precisa lidar, constantemente, com o enfraquecimento de suas tradições. A comunidade tem como um dos seus maiores desafios a crescente expansão urbana sobre o território onde vivem; e, reforçando a trajetória histórica de luta que essas comunidades tradicionais enfrentam, os quilombolas do Abacatal buscam, por meio de práticas produtivas simples, resistir e reforçar sua soberania alimentar, conforme sintetizado a seguir.

Segundo Sirotheau (2012), 83 famílias residem na CRQA e sobrevivem de maneira geral com a renda proveniente da agricultura familiar, da produção de carvão e da produção de artesanatos. Essas famílias dividem a terra, que é demarcada em lotes, em que elas cultivam produtos típicos da região amazônica, como a mandioca que é utilizada, dentre outros, para a produção de farinha; essa produção é consumida pela própria comunidade e também para comercialização. Destaca-se também a produção consorciada de frutíferas nativas para a produção das polpas, que também são consumidas e vendidas (ARAÚJO, 2015).

Quanto à produção artesanal, na visita à comunidade, foi possível encontrar peças fabricadas a partir de produtos naturais, como o bambu (figura 2b); essas, segundo os artesãos, são comercializadas em feiras e, até mesmo em shoppings na cidade de Belém, capital do Estado do Pará. Além do artesanato, eles fabricam bombons caseiros recheados com os sabores variados e licores, com uso de frutos nativos (figura 2a), como: maracujá com pimenta, jambu, uxi, cacau, tucumã. A comunidade está organizada por meio de uma Associação de Moradores e Produtores de Abacatal e Aurá (AMPQUA), conforme destacado por Sirotheau (2012); e, segundo relato dos moradores, a comunidade é regida por regras preconizadas pela AMPQUA, a qual determina algumas particularidades quanto aos meios de produção da comunidade, bem como a inclusão de novos membros, dos quais só são aceitos a partir do casamento com algum membro pertencente à comunidade.

Na visita in loco[3], verificou-se ainda algumas particularidades nas divisões sociais da comunidade que, além dos lotes para cada família, conta com espaço de lazer comum a todos, entre estes espaços estão um campo de futebol, um bar, uma área reservada para a sede da associação (figura 3), uma capela e uma escola de ensino fundamental. Destaca-se, ainda, como práticas socioculturais, a realização anual de três grandes festivais (festival do licor, do tucupi e do açaí), durante os quais a comunidade recebe populares de todo o entorno e das cidades vizinhas.


Figura 2
Artesanatos produzidos na Comunidade de Abacatal
As autoras (2019)


Figura 3
Comunidade reunida em evento festivo (15/06/2019) na sede da Associação dos Moradores e Produtores de Abacatal e Aurá (AMPQUA)
As autoras (2019)

Contudo, é preciso ressaltar que, apesar das tentativas de fortalecer as tradições e a produção de base sustentável, por meio da exploração dos recursos disponíveis no território, muitas famílias do Abacatal encontram-se em condições socioeconômicas vulneráveis, o que vêm obrigando parte dos remanescentes quilombolas a buscar empregos fora da comunidade e, deste modo, muitas famílias tem se afastado das práticas tradicionais com a terra (ARAÚJO, 2015).

Reflexões da expansão urbana sobre a Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal

Os registros que remontam o histórico do quilombo do Abacatal mostram que o seu entorno foi ocupado no final do século XIX; ainda no início do século XX, as terras do quilombo (ricas em madeira, em fontes de água, em mata de várzea e em igapós) mantinham sua preservação, o que era visto como fonte de recurso à ocupação daquela região (SOFFIATTI, 2014). Logo, em meados do século XX, tem início a expansão urbana na região com a abertura das rodovias na Amazônia a partir de 1970, consequentemente, o surgimento de novas cidades e a migração das pessoas caracterizando uma nova rede de urbanização, o que Becker (1995) denominou como “floresta urbanizada”.

Becker (2001) enfatiza ainda que essa nova dinâmica para o desenvolvimento da região amazônica se deu por meio de uma rede de urbanização não homogênea, tendo diversos processos de expansão econômica e social.

Com a expansão urbana da região metropolitana de Belém, houve a valorização das terras do quilombo, o que despertou o interesse de particulares e do Estado. No final do século XX, os empreendimentos comerciais e imobiliários avançaram em toda a região metropolitana de Belém, atingindo Ananindeua; consequentemente, todo o entorno do quilombo tornou-se objeto de construção civil e de destino dos resíduos urbanos (SOFFIATTI, 2014).

Os inúmeros problemas resultantes do processo de urbanização metropolitana de Belém impactaram comunidades como os remanescentes do Abacatal, como será abordado mais à frente. Este processo de urbanização foi marcado por particularidades, como destacado por Souza (2009. p.5):

[...] Belém se destaca não somente pelo ritmo do seu crescimento populacional, mas também pela dinâmica acelerada de transformação do espaço-tempo, definindo uma forma peculiar. A cidade é marcada por descontinuidades sócio-espaciais produto de uma dialética entre a forma metropolitana e aspectos do cotidiano da vida social regional. Logo, o espaço concebido assume o caráter moderno de inserção de uma ordem distante: a reprodução do espaço para o mercado. Por outro lado, o processo de ocupação da várzea de igarapés de Belém, foi consequência de um dos mais complexos problemas sócio-espaciais dentro do contexto urbano brasileiro nestas últimas décadas; uma significativa parcela da população que não tem poder aquisitivo compatível com os custos de se morar em áreas “urbanizadas” da cidade.

A dinâmica de ocupação de Belém, descrita por Souza (2009), evidencia que, para além do crescimento populacional, o processo de expansão desta metrópole incorpora a resistência de grupos marcados por uma compreensão particular na forma de utilização dos espaços, as quais mostram-se conflitantes com o ideal de ocupação proposto pelo Estado paraense; e a Comunidade Remanescente Quilombola do Abacatal (CQRA) pode ser apontada como um desses grupos.

O município de Ananindeua acompanhou o ritmo particular de crescimento da região metropolitana Paraense, ocupando a segunda posição em quantidade populacional, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010, 2019), em 2010, o município contava com uma população de 471.980 habitantes, com projeção de crescimento de 530.598 habitantes para 2019.

O crescimento populacional considerável desencadeou o aumento de empreendimentos imobiliários sem as devidas condições de saneamento e de tratamento adequado do lixo, a exemplo de projetos do programa “Minha Casa Minha Vida”, que promoveu a construção de residenciais, tais como: Padre Pietro Gerosa, Torre do Aurá e Pouso do Aracanga, que estão localizados nas proximidades da comunidade do Abacatal, conforme Marin e Sabino (2015). Tais construções vêm contribuindo para a contaminação de rios e de igarapés que perpassam a comunidade, como no caso do esgoto despejado no igarapé Aracanga, o qual desemboca no rio Uriboquinha que é um dos meios de lazer e de fonte de renda da comunidade[4]. Para ilustrar essa situação, mobilizamos a Figura 4.

A situação do saneamento dos moradores do Abacatal é agravada pela própria situação do município de Ananindeua, que de acordo com Ranking do Saneamento dos 100 maiores municípios do Brasil no ano de 2018 (Instituto Trata Brasil 2020[5]), aparece como o município que apresenta o menor índice de atendimento total de água (32,62%) e o menor índice de atendimento urbano de água (32,7%), dentro de um universo em que a faixa média destes índices alcança, respectivamente, 93,31% e 93,99% de atendimento. Em relação à coleta de esgoto, o estudo apontou que Ananindeua era o município com o menor índice de atendimento total de esgoto (2,05%) e, também, de menor atendimento urbano de esgoto (2,06%), dentre um universo cuja média seria, respectivamente, para estes índices, de 73,30% e 74,25%.


Figura 4
Carta-imagem da Zona de Amortecimento da Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal e imagens dos impactos Urbanos nas proximidades do seu território.
Adaptado de MARIN, SABINO (2015).

A questão dos resíduos sólidos também aparece como impactante para a comunidade como evidenciado pelo excesso de lixo deixado às margens da estrada de terra que leva à CRQA, bem como foram retirados de áreas próximas à estrada materiais como areia e argila, deixando crateras, situação que verificamos in loco durante a visita à comunidade, no dia 15 de junho de 2019, e demonstradas por meio de registros fotográficos expressos na Figura 5.


Figura 5
Impacto do resíduo sólido e de atividade mineradora na estrada de acesso entre o Município de Ananindeua-PA e à Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal.
(MARIN, SABINO, 2015) e Kleyton Silva/Amazônia Real. Disponível em: https://amazoniareal.com.br/rodovia-e-expansao-urbana-ameacam-comunidade-quilombola-abacatal-no-para/. Acesso em: 20 de dezembro de 2019

Outra preocupação da comunidade com a expansão urbana se refere ao projeto de construção de uma rodovia intitulada de Rodovia da Liberdade, proposta pelo Governo do Estado, em parceria público-privada que servirá como alternativa de trânsito entre Belém e Castanhal, que segundo relato de representante da comunidade, publicado por (SARRAF, 2018) no site amazoniareal.com.br6, essa estrada deverá passar dentro do território do Abacatal em uma área onde está localizado o campo de futebol que é um dos locais de lazer da referida comunidade. Recentemente buscam, também, denunciar os impactos da Equatorial, concessionária de energia do Pará, cuja subestação está instalada a apenas 1 km da comunidade[6]

Diante dessas ameaças e considerando o Decreto Nº 5.051, de 19 de abril de 2004, que dispõe sobre a convenção de nº 169, da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais, estabelece, dentre outros, o dever de reconhecer e proteger os valores e práticas sociais, culturais e religiosas destes grupos; e portanto, pelo decreto eles deverão ser consultados previamente sobre as medidas que possam afetá-los.

A comunidade de Abacatal, após muitas reuniões e parcerias com diversas instituições, tais como: Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública Estadual, o Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA), a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (MALUNGU), Ministério Público Estadual - Vara Agrária de Castanhal, Ordem dos Advogados do Brasil (Comissão de Direitos Humanos), Assembleia Legislativa do Pará - ALEPA (Comissão de Direitos Humanos), entre outras, elaborou e apresentou em outubro de 2017, um protocolo de consulta estabelecendo regras para que todo empreendimento, antes de ser implementado, seja levado ao conhecimento da comunidade a fim de que ela possa avaliar os impactos e, assim, garantir a integridade de seus membros bem como dos valores e do território onde vivem.

A expansão do município de Ananindeua apresenta, também, problemas relacionados à violência, este município figura entre os 20 mais violentos do Brasil, de acordo com o atlas da violência divulgado em 05 de agosto de 2019 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Esse dado aponta que a comunidade do Abacatal, por fazer parte deste município e estar numa localidade muito próxima à zona urbana, também, sofre com situações relacionadas à violência, conforme relatado por moradores em matéria publicada no site amazoniareal.com.br, em 29 de janeiro de 2018.

Concluímos que a CRQA enfrenta o desafio de lutar pelo seu desenvolvimento socioambiental e têm buscado meios para se autopreservar, o que exige refletir os seus costumes e seus sistemas socioprodutivos tradicionais ante o avanço do modo de vida urbano sobre o seu território.

Resistência e alternativas para o desenvolvimento da Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal

Para resistir ao avanço do urbano em relação ao território onde habitam, a CRQA se articula por meio de diversas ações, das quais já mencionamos a criação do protocolo de consulta e as parcerias com algumas instituições, tais como: Universidades, Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público Federal, Associações de Quilombolas. Estas se configuram como alternativas que a CRQA encontrou para, além de discutir e expor seus problemas socioambientais e culturais, fortalecer sua resiliência diante do cenário de desenvolvimento que se instalou no seu entorno.

A questão da falta de infraestrutura básica de saneamento e dos impactos socioambientais, em função da expansão urbana no entorno do quilombo, são os principais agravantes para promoção do efetivo desenvolvimento social da CRQA. De acordo com evidências do estudo de Sanches (2009), realizado no quilombo, ao mesmo tempo que a proximidade com o urbano trouxe facilidades à comunidade (acesso ao comércio, hospitais, escolas, órgãos públicos, espaços de lazer, oportunidades de emprego, novos contatos com pessoas fora do quilombo), esta aproximação também veio acompanhada de pontos negativos (costumes sociais urbanos e violência). A autora nomeia essa relação dos moradores do quilombo com o urbano como “os abacataenses e o vai-e-vem”, e afirma que a relação direta com urbano acaba por promover mudanças nos hábitos dos moradores da comunidade, interferindo nos costumes e nos modo de agir dos quilombolas, principalmente, na população mais jovem, como destacado no trecho:

O “dentro” e o “fora”, desse modo, constituem um processo articulado de fluxos de práticas de bens econômicos, simbólicos e sociais diversificados, sendo um substrato para a (re) construção de novas configurações e identidade dos abacataenses e de diferentes códigos simbólicos de afiliação e de pertencimento ao mesmo grupo.[...] E tudo sendo intercambiado pelas suas incursões, inserções e exclusões nesse vai-e-vem “de dentro para fora” e “de fora para dentro”, marcado por seus itinerários e reeditado nas jornadas traçadas no tempo, as quais são reveladoras da relação terra e trabalho (SANCHES, 2009, p. 03).

Apesar de toda interferência do urbano, a tradição quilombola ainda se evidencia na CRQA na sobrevivência baseada no cultivo da terra e na prática da pesca, como observado na ampla utilização de frutos nativos para produção de gêneros alimentícios, na confecção de artesanatos com uso da matéria prima retirada da natureza e no consumo do pescado dos rios e dos igarapés que rodeiam a terra onde habitam. A tradição também é reforçada pelos saberes culturais transmitidos entre as gerações durante as celebrações de costumes nas festas típicas. Afirmando a identidade destes remanescentes, Sanches (2009) defende que o “Abacatal, é um lugar preservado sob muitos conflitos internos e externos como o lugar do trabalho e de residência de um grupo, dedicado por longo tempo, exclusivamente, às atividades agroextrativistas” (SANCHES, 2009, p. 02).

Essa resistência, à luz da teoria de Sen (2010), pode representar o que o autor denomina de liberdade substantiva, que se configura como possibilidade de ter a vida que sua razão valoriza. Na prática, esta liberdade permite aos membros da CRQA se aproximar do urbano, por exemplo, para a comercialização dos produtos da comunidade em cidades como Ananindeua e Belém, sem, contudo, perder a consonância com o cultivo da terra e da preservação ambiental.

A liberdade de mudança na rotina produtiva também foi relatada por Sanches (2009) ao abordar que, apesar da permanência do extrativismo em menor escala, atualmente, este modelo foi associado à agricultura, em que cada quilombola decide de forma autônoma o que irá cultivar, inserindo-se nas pluriatividades oferecidas pelo setor urbano.

Segundo Sen (2010), a liberdade substantiva promove facilidades e oportunidades, como afirmou no trecho:

Liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão e eleições livres) ajudam a promover a segurança econômica. Oportunidades sociais (na forma de serviços de educação e saúde) facilitam a participação econômica. Facilidades econômicas (na forma de oportunidades de participação no comércio e na produção) podem ajudar a gerar a abundância individual, além de recursos públicos para os serviços sociais. Liberdades de diferentes tipos podem fortalecer umas às outras (SEN, 2010, p. 26).

Sen (2010) aborda que o desenvolvimento se dá não somente em termos econômicos/financeiros, mas também em termos de acesso às oportunidades para se desenvolver da maneira que a própria pessoa considere importante; no caso em questão da CRQA, esse desenvolvimento pode significar se beneficiar de um mercado consumidor ou de políticas públicas que lhes garantam benefícios que reflitam na permanência dos costumes e na melhoria da sua qualidade de vida.

Por outro lado, se esta comunidade encontra-se sofrendo com os avanços do urbano e com os impactos de um modelo de desenvolvimento que não as tem incluído, essa situação se configura como uma forma de privação de suas liberdades (SEN, 2010). Adicionam-se as estas privações o pouco acesso da CRQA às políticas públicas, como apontaram os estudos realizados em comunidades tituladas no nordeste Paraense, no ano de 2011 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome (MDS, 2014). Nestes estudos foram evidenciados o baixo acesso à programas relacionados à alimentação e à produção agrícola. Esse pouco incentivo é também retratado nas palavras de Jhonny Martins, representante da Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a saber:

As populações têm práticas agrícolas sem agrotóxicos, de forma sustentável. Mas na contramão, nosso país está expulsando, cada vez mais, as comunidades de seus territórios em nome de um modelo de desenvolvimento que favorece grandes empresas a produzir commodities e agrotóxicos[7]

Portanto, se por um lado a teoria Seniana nos permite traçar os aspectos fundamentais que podem promover o desenvolvimento social de comunidades como a CRQA, por meio da garantia de suas liberdades, ela também nos leva a refletir as dificuldades de executar mudanças reais para, no presente e no futuro, garantir a manutenção dos direitos humanos e quilombolas.

A história de ocupação da Amazônia nos permite ver que um modelo de desenvolvimento capitalista de base centralizadora, como o que Bertha Becker descreveu, não poderia solucionar cenários de embate como estes das comunidades tradicionais da região Paraense. Portanto, os anseios de comunidades como do Abacatal, só seriam alcançados, segundo Leff (2015), por uma nova racionalidade ambiental, uma vez que “a lógica da unidade econômica rural e o estilo étnico próprio de uma cultura remetem a racionalidades sociais constituídas como sistemas complexos de ideologias-valores-práticas-comportamentos-ações, que são irredutíveis a uma lógica unificadora.” (LEFF, 2015, p. 134).

Ainda considerando as teorizações produzidas por Leff (2015), na prática, os modelos de desenvolvimento refletem um pensamento dominado por uma “racionalidade científico-tecnológica”, aqueles atores, como Estado e sociedade, são apontados por Sen (2010) como imbuídos de garantir os direitos humanos e as liberdades substantivas dos grupos tradicionais, mas acabam por promover o oposto, impondo-lhes sua ciência para atingir metas econômicas produtivistas.

A garantia das liberdades aos povos tradicionais requer, mais do que traçar metas para o desenvolvimento sustentável (ONU, 2015), promover mudanças de paradigmas reais no plano político, que novamente pela racionalidade de Leff (2015) “incorpora um conjunto de valores que não podem ser avaliados em termos do modelo de racionalidade econômica, nem reduzidos a uma medida de mercado.” (LEFF, 2015, p. 136). As soluções para os conflitos, segundo o autor, partiriam da reconfiguração de valores e da descentralização de poder, possíveis a partir de “princípios de gestão ambiental e de ‘democracia participativa’, que garantiriam, por fim, a sustentabilidade e a ‘apropriação social da natureza’ dos diversos grupos” (LEFF, 2015, p. 62). Becker (2005), ainda acrescenta que essas comunidades cada vez mais oferecem resistência aos modelos desenvolvimentistas dentro de uma percepção não somente em defesa do território, mas da preservação de saberes particulares sobre a região que habitam, a floresta tropical úmida.

Essa retomada do desenvolvimento de comunidades, como as Remanescentes Quilombolas, e sua “apropriação social da natureza” é possível a partir de novos arranjos produtivos vislumbrados em projetos baseados na autogestão, estes projetos são vistos como uma nova forma de viver e de se relacionar, abrangendo as dinâmicas de produção como também de socialização, em que a educação é colocada como inerente à própria produção do ser social (BENINI, SABINO, GOMES, 2015). Nessa perspectiva, futuros projetos para a CRQA demandam a inclusão de ações dialogadas para a percepção do interesse da comunidade em projetos de apoio para a capacitação em autogestão, esses poderão contribuir para fortalecer a liberdade de escolha dos indivíduos rumo a um desenvolvimento que valorize o seu modo de vida tradicional e sustentável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ocupação da região Amazônica, de maneira geral, foi realizada sem um devido planejamento voltado ao desenvolvimento local; desse modo, comunidades tradicionais, que se constituíram ao longo desse processo, continuam sofrendo para manter seu estilo de vida. Na prática, são observadas muitas mudanças deste modo de vida tradicional, tais mudanças refletem as fortes pressões do processo de desenvolvimento alicerçado no capitalismo, que, historicamente, vem enfraquecendo e colocando em situação de vulnerabilidade os povos amazônicos.

No caso específico do estado do Pará, cuja expansão urbana e populacional atingiu altos índices no decorrer dos anos, com alta concentração de pessoas em Belém e no seu entorno (RMB), essa realidade passou a impactar as comunidades tradicionais, de maneira mais expressiva àquelas próximas aos centros urbanos, como ocorre com a Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal (CRQA), situada no município de Ananindeua.

A luta pela permanência em seu território tem sido constante; mesmo de posse de seu título, a comunidade sofre influência do urbano, que, em muitos casos, resulta na alteração do modo tradicional do quilombo, o que acarreta perda das manifestações culturais tradicionais, bem como nas práticas produtivas próprias de subsistência ancestral.

A CRQA tem se beneficiado com a aproximação do urbano quando consideradas as facilidades de acesso à energia elétrica, à escola, aos cursos superiores, à comercialização dos produtos em Belém e em Ananindeua, contudo a comunidade precisa lidar com os problemas ambientais oriundos do aumento dos resíduos gerados pelos crescentes empreendimento em suas proximidades, como os imobiliários, que foram construídos com uma infraestrutura de saneamento básico inadequado e poluem o solo com o lixo e as águas dos igarapés e rios, que abastecem a comunidade, com o esgoto, além destes a população também enfrenta maior violência e a dificuldade de acessar às políticas públicas que poderiam melhorar sua qualidade de vida.

Diante desses elementos do avanço da expansão urbana sobre o território, a comunidade tem resistido e buscado parcerias com outras instâncias sociais, a fim de se organizar em defesa do seu território e da manutenção de sua cultura tradicional. A promoção de projetos, dialogados com a comunidade, visando a orientação para a autogestão podem configurar como estratégias alternativas para o desenvolvimento dos Remanescentes Quilombolas de Abacatal.

Por fim, compreendemos que refletir sobre esses impactos do urbano nas comunidades remanescentes de quilombolas é cada vez mais necessário, visto que manter um modo de vida, tradicionalmente constituído foi e continua sendo um grande desafio para essas populações que mostram um histórico de vulnerabilidades sociais.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento, por meio do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica na Amazônia (PROCAD), possibilitando a participação no Seminário Interdisciplinaridade, Ciência e Política na Amazônia, promovido pela Universidade Federal do Pará (UFPA) - Núcleo de Altos Estudos Amazônicos /NAEA, a partir da qual originou-se a produção deste artigo, e, agradecemos, também, à Senhora Vanuza Cardoso, representante da Comunidade Remanescente Quilombola de Abacatal, pela oportunidade de conhecermos a Comunidade.

REFERÊNCIAS

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