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MULHER E PROFESSORA NEGRA: NARRATIVA E MEMÓRIA NO EXERCÍCIO DE ENSINAR NO PERÍODO DA PANDEMIA DE COVID-19, EM MONTES CLAROS, MINAS GERAIS
MAESTRA MUJER Y NEGRA: NARRATIVA Y MEMORIA EN EL EJERCICIO DE LA ENSEÑANZA EN EL PERÍODO DE LA PANDEMIA DE COVID-19, EN MONTES CLAROS, MINAS GERAIS
WOMAN AND BLACK TEACHER: NARRATIVE AND MEMORY IN THE EXERCISE OF TEACHING IN THE PERIOD OF THE PANDEMIC OF COVID-19, IN MONTES CLAROS, MINAS GERAIS
Caminhos da História, vol. 29, núm. 1, pp. 118-136, 2024
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos Livres

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 29, núm. 1, 2024

Recepção: 06 Novembro 2022

Aprovação: 14 Fevereiro 2023

Resumo: Em 2020, um novo cenário se apresentou a humanidade motivada pela pandemia do Coronavirus. Uma realidade impactante em várias dimensões, contudo, revelando novos desafios para o campo educacional e histórico, campos desse estudo. Como lidar com essa situação nas escolas, em especial, na rede pública e no ensino fundamental em Montes Claros, Minas Gerais? Frente a essa situação, como essa crise pandêmica do Covid-19 estabeleceu as relações envolvendo a educação, raça, classe e gênero? Como podemos “contar” as histórias de vida de mulheres professoras negras referente às suas práticas no processo de ensinar e aprender do ensino fundamental? Quais foram as suas vivências? Com essas indagações, a pesquisa objetivou estudar as narrativas e memórias de mulheres, professoras e negras, no exercício de ensinar nessa época, em Montes Claros. A metodologia utilizada constituiu da História Oral, contando com entrevistas de noves colaboradoras, entretanto, essa narrativa apresenta a história de, apenas uma delas, cujas percepções e vivências são similares. Essa é a história de uma colaboradora que perpassa as experiências coletivas. Constatou-se que, a pandemia surpreendeu a todos e, sobretudo o profissional escolar. Professoras foram obrigadas a adotarem novas medidas, alterando a rotina de trabalho, criando dinâmicas para o formato não presencial. Concluiu-se que, nesse período houve vários enfrentamentos para o exercício do ensinar, em especial nas escolas periféricas, como, por exemplo, falta de recursos tecnológicos e ciência do seu funcionamento.

Palavras-chave: Histórias de Vida, Racismo, Gênero, Pandemia, Montes Claros.

Resumen: En 2020 se presentó a la humanidad un nuevo escenario motivado por la pandemia del Coronavirus. Una realidad impactante en varias dimensiones, sin embargo, que revela nuevos desafíos para el ámbito educativo e histórico, campos de este estudio. ¿Cómo enfrentar esta situación en las escuelas, especialmente en la red pública y en la educación básica de Montes Claros, Minas Gerais? Frente a esta situación, ¿cómo se han establecido esta crisis de la pandemia de Covid-19 relaciones que involucran educación, raza, clase y género? ¿Cómo podemos "contar" las historias de vida de las maestras negras sobre sus prácticas en el proceso de enseñanza y aprendizaje de la escuela primaria? ¿Cuáles fueron tus experiencias? Con estas preguntas, la investigación tuvo como objetivo estudiar las narrativas y memorias de mujeres, docentes y mujeres negras, en el ejercicio de la docencia en esa época, en Montes Claros. La metodología utilizada consistió en la Historia Oral, con entrevistas a nueve colaboradores, sin embargo, esta narrativa presenta la historia de uno solo de ellos, cuyas percepciones y experiencias son similares. Esta es la historia de un colaborador que permea las experiencias colectivas. Se comprobó que la pandemia sorprendió a todos y, sobre todo, al profesional de la escuela. Los docentes se vieron obligados a adoptar nuevas medidas, cambiando la rutina de trabajo, creando dinámicas para el formato no presencial. Se concluyó que, en este período, se presentaron varios enfrentamientos por el ejercicio de la docencia, especialmente en las escuelas periféricas, como, por ejemplo, la falta de recursos tecnológicos y de conocimiento de su funcionamiento.

Palabras clave: Historias de vida, Racismo, Género, Pandemia, Montes Claros.

Abstract: In 2020, a new scenario presented humanity motivated by the Coronavirus pandemic. An impactful reality in several dimensions, however, revealing new challenges for the educational and historical field, fields of this study. How to deal with this situation in schools, especially in the public and elementary schools in Montes Claros, Minas Gerais? Faced with this situation, how did this pandemic crisis of Covid-19 establish relationships involving education, race, class and gender? How can we "tell" the life stories of black women teachers regarding their practices in the process of teaching and learning from elementary school? What were your experiences? With these questions, the research aimed to study the narratives and memories of women, teachers and blackwomen, in the exercise of teaching at that time, in Montes Claros. The methodology used consisted of Oral History, recounting interviews of nine collaborators, however, this narrative presents the story of only one of them, whose perceptions and experiences are similar. This is the story of an collaborator who goes through collective experiences. It was found that the pandemic surprised everyone and especially the professional school. Teachers were forced to adopt new measures, changing the work routine, creating dynamics for the non-face-to-face format. It was concluded that during this period there were several confrontations for the exercise of teaching, especially in peripheral schools, such as lack of technological resources and science of its functioning.

Keywords: Life stories, Racism, Gender, Pandemic, Montes Claros.

Introdução

A percepção das desigualdades sociais é visível aos nossos olhos, pois se revela, de forma concreta e no cotidiano, em séries de cenas vivenciadas nos diversos espaços da cidade. Há redutos sociais em que determinados grupos constituem a maioria por congregar certas “confrarias”. Entretanto, andar pela cidade, sobretudo e literalmente caminhar, viabiliza se defrontar com essas diferenças: trabalhadores ambulantes, mendigos, pedintes, moradores de rua, imigrantes latinos americanos, migrantes, crianças em sinais, etc. Esses seres humanos, muitas vezes desumanizados por se encontrarem em desvantagem social, política, econômica, cultural, étnica e física sofrem preconceito e são marginalizados pela sociedade. Essa é uma realidade palpável experienciada no Brasil, onde grupos sociais e, alguns entre eles constituídos como maioria, contudo, inseridos em meio às minorias a margem da sociedade capitalista.

Essa observação para essas questões é possível através da sensibilidade humana em relação ao desejo da igualdade e equidade social, no entanto, a educação abre janelas, portas e portões para novos horizontes descortinados por meio do conhecimento científico, em especial histórico. Desse modo, participar de dois grupos de pesquisa e estudos que refletem essas temáticas tornou-se fundamental para formação e tomada de consciência sobre a temática: Grupo de Pesquisa e Estudo de Gênero e Violência da Universidade Estadual de Montes Claros e Grupo de Pesquisa Direitos humanos, Violência de Gênero e Identidades do Centro Universitário Funorte. Inserir-se nesses grupos proporcionou perceber que, mulheres negras sofrem discriminação racial e, também de gênero. Os preconceitos nesse formato, mulher e mulher-negra, implicam, igualmente, explorações e exclusões em várias dimensões, entre elas, sociais, econômicas e étnico-raciais.

Nessa direção, a História nos conta como os fatos foram sendo criados no decorrer do tempo e espaços, onde e quando o acúmulo de bens se tornou essencial e controlado por uma minoria desfavorável a maioria, estabelecendo-se, inclusive, como direito/lei. Thompson (1986) aborda esse tema como um movimento que se configurou, na Inglaterra do século XVIII, tendo a classe da nobreza rural enquanto aquela que controlava a propriedade territorial e social como seu direito respaldado pelo Estado. Sobre esse assunto Thompson afirma que,

O que constituía uma “emergência” era a reiterada humilhação pública das autoridades: os ataques simultâneos à propriedade real e privada; a ideia de um movimento confederado que vinha ampliando suas exigências sociais, principalmente sob o “Rei John”; os sintomas de algo próximo a uma guerra classista, com a fidalguia legalista nas áreas afetadas sofrendo ataques, num lastimável isolamento nas suas tentativas de impor a ordem. Se o Rei não conseguia defender suas próprias florestas e parques, e se o Comandante-Chefe interino das forças armadas não conseguia impedir que seu parque sofresse investidas por causa dos cervos, o estado era deplorável. (...) Era esse deslocamento da autoridade, e não o antigo delito de roubo de cervos, que constituía uma emergência aos olhos do Governo (THOMPSON, 1986, p. 248-249).

Thompson apresenta a ideia de experiência histórica e social, analisando como a organização histórica dos habitantes pobres ingleses se impôs em relação à Lei Negra. Nesse sentido, no Brasil se verifica o lugar social das pessoas pobres e, esse estudo em específico, trata de mulheres e pretas, cuja realidade experimentada, hoje, advém da colonização portuguesa, que construiu a escravização, fato impresso nas mentes das pessoas, determinando práticas discriminatórias (ALENCASTRO, 1998).

Na perspectiva de séculos com ênfase no branqueamento da população brasileira, visando “higienizar a raça” e considerando o povo miscigenado inferior, sobretudo pela “mistura” com os africanos, criou-se uma hierarquia reverberadora de preconceitos nos dias atuais (OLIVEIRA, 2006). Esse conjunto racial inventa categorias desclassificatórias ou menores, restringindo a mulher em um grau abaixo entre todas as camadas sociais. Desse modo, a identidade étnico-racial se estabelece como pertencimento consistindo em construção diária com os enfrentamentos raciais e decisões políticas (HALL, 2006).

Frente a tantos embates e combates, mulheres negras conquistaram espaços no âmbito escolar, instituição que negou por muito tempo a presença de pretos e, também de mulheres, como estudantes e, muito mais, um lugar professoral. As políticas públicas avançaram no decorrer do tempo e promove a igualdade racial e, entre elas, a Lei nº 10.639/2003, que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 e estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, objetivando a inclusão no currículo oficial da Rede de Ensino à obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira". Essas legislações provocaram o diálogo nas escolas sobre o objeto/sujeitos, quebrando o silêncio secular referente a essa questão (BRASIL, 2003) (BRASIL, 1996).

Essa pesquisa, partindo desses pressupostos, objetivou estudar as narrativas e memórias de mulheres, professoras e negras, no exercício de ensinar no período da pandemia de Covid-19, em Montes Claros, Minas Gerais. Explica-se o uso de palavras no plural - mulheres, professoras, negras, narrativas e memórias -, porque entrevistamos nove colaboradoras, entretanto, narramos as memórias de apenas uma delas, configurando como percepções e vivências de muitas sujeitas.

O lócus da pesquisa, Montes Claros, está localizado no norte do Estado de Minas Gerais e, de acordo com Oliva Brasil (1983), surgiu da caminhada dos bandeirantes em 1674, sendo o protagonista, Antônio Gonçalves Figueira, que resolveu fixar moradia nessa região, construindo a Fazenda de Montes Claros para criação de gado, cujas sedes, posteriormente, se transformaram em cidades. Em 1769, o Alferes José Lopes de Carvalho construiu uma capela em honra de Nossa Senhora da Conceição e São José que se tornou a Igreja da Matriz e, ao seu redor, foi se povoando e a Fazenda de Montes Claros transformou-se no maior centro comercial de gado e cultura regional. A sucessão de modificações políticas da Fazenda possibilitou a sua concretização e consolidação, tornando-a o Arraial de Formigas, depois Arraial de Nossa Senhora da Conceição e São José de Formigas, Vila de Montes Claros de Formigas e, por fim, cidade de Montes Claros. Os líderes políticos do Arraial conseguiram elevar o Arraial a Vila pela Lei de 13 de outubro de 1831, recebendo o nome de Vila de Montes Claros de Formigas. Em 03 de julho de 1857 pela Lei n° 802 foi elevada à categoria de cidade com o nome de Cidade de Montes Claros (VIANA, 1916, p. 167). Além da agropecuária, Montes Claros conta, desde a década de 1960 até os dias de hoje (2022), com a participação de algumas indústrias de grande importância para a região e o país.

No entanto, Montes Claros é também um polo regional na área educacional, contando com uma universidade estadual e federal, bem como algumas faculdades particulares e muitas escolas que oferecem desde a educação básica até o ensino médio. Vejam, como amostragem, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como a taxa de escolarização de 6 a 14 anos de idade desde 2010, compondo 98,4%. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) referentes aos anos iniciais do fundamental da rede pública em 2019 consistiu em 6,4; o IDEB dos anos finais do ensino fundamental da Rede pública de 2019, 4,9; as matrículas no ensino fundamental em 2020, 49.390; matrículas no ensino médio em 2020, 15.907; os docentes no ensino fundamental em 2020, 2.441; docentes no ensino médio em 2020, 1.107; número de estabelecimentos de ensino fundamental em 2020, 141 escolas; e número de estabelecimentos de ensino médio em 2020, 55 escolas (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2022).

Montes Claros tornou-se o polo de desenvolvimento econômico e educacional de uma área que abrange cerca de dois milhões de habitantes, constituída pelos 51 municípios do Polígono das Secas, que se estende pelos vales do Jequitinhonha e Urucuia até a divisa com a Bahia, representando cerca de trinta por cento (30%) do território mineiro (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS, 2001, Online).

Apresentar Montes Claros, nessa perspectiva geral, apontando, mesmo que de forma sucinta, sua trajetória, é relevante para compreender que, nela, há grupos hegemônicos, os quais se mantêm até a atualidade, sobretudo pelos estudos escolares e acadêmicos, em especial em Medicina, Direito e Engenharia, aliados a outros aspectos como econômico e político, que os coloca em posições de tomadas de decisões e deferimento de políticas públicas para os seus habitantes. Desse modo, a educação promove as pessoas, denotando as especificidades características da formação social brasileira e, consequentemente montesclarense, advindas do colonialismo enveredadas ao gênero, raça e classe. Nessa perspectiva, mulheres negras enfrentam desafios para estar e concluir seu processo de escolarização como estudante, assim como alcançar o ofício de professora (REIS, 2013) (CARNEIRO, 2011).

Nesse sentido, algumas indagações se apresentaram como problema de pesquisa, entre elas: quais os desafios enfrentados para alcançarem o lugar de professora, enquanto mulher e negra? como constituíram as práticas escolares durante a pandemia do Covid-19, em especial, na rede pública do ensino fundamental em Montes Claros, Minas Gerais?; frente a essa situação, como essa crise pandêmica do Covid-19 estabeleceu as relações envolvendo a educação, raça, classe e gênero?; como podemos “contar” as histórias de vida de mulheres professoras negras do ensino fundamental de escolas públicas de Montes Claros nesse período?; quais foram as suas vivências?; quais as estratégias e dinâmicas utilizadas nesse período pelas mulheres professoras negras convivendo com a pandemia?; quais as políticas públicas implantadas para solucionar os desafios dessa realidade nessa época?

Para organização dessa narrativa histórica, a pesquisa se apresenta da seguinte forma: a introdução contemplou a apresentação geral do estudo; a primeira seção denominada “Metodologia: caminhos percorridos no exercício da pesquisa”, descreveu os procedimentos metodológicos adotados para a execução da pesquisa; a segunda seção, “Histórias de vida e memórias: histórias formadas por uma colcha de retalhos nordestina”, apresentou a protagonista dessa história e, através dela, as vivências e experiências de outras mulheres, negras e professoras no ato do seu ofício durante a pandemia de Covid-19; a terceira seção, “Memórias docentes e Covid-19: experiências no ofício de educar” narrou e analisou a experiência como professora nos tempos pandêmicos; e, por fim, as “Considerações finais”, as quais pontuam questões acerca da temática, entretanto, ciente das outras leituras e releituras sobre o assunto.

Metodologia: caminhos percorridos no exercício da pesquisa

Nessa pesquisa, as categorias educação, classe, raça e gênero nortearam a construção narrativa, reflexiva e analítica. Educação é compreendida, de acordo com Freire como “(...) um fator fundamental na reinvenção do mundo” (FREIRE, 2003, p. 10) e, dessa maneira, faz-se necessário percebê-la como fundamento de criação, intercessão, mediação, influência e recriação do universo, onde, homens e mulheres, se relacionam e vivem.

De acordo com Silva e Silva (2013), classe é entendida, de forma ampla e marxista, como duas, ou seja, a burguesia, aquela que detém os meios de produção e o proletariado, constituída pelos trabalhadores explorados pela burguesia em um sistema capitalista, onde a mobilidade social indica a meritocracia, entretanto, na realidade, a riqueza é repassada de geração a geração, sem mudança de determinados grupos sociais. A tradição marxista define classe social baseado no lugar que cada grupo ocupa na economia. Weber, de acordo com Silva e Silva, também apresenta um modelo explicativo, inclusive, complementar ao de Marx e Engels: “(...) grupos de pessoas cujas oportunidades na vida são determinadas pela atuação do mercado” (SILVA; SILVA, 2013, p. 65). Há debates acirrados em relação a esse conceito, em especial, para explicação da história latino-americana, cujo processo colonizador português deve considerar elementos como raça e etnia por causa da sua formação social.

Aliado a classe, o racismo, conforme afirma Santana (2014), é um fenômeno ideológico consolidado por meio de preconceitos e estereótipos, alcançando os dias de hoje como ideologia elaborada, resultado da configuração da colonização da Europa com o tráfico escravo, transformando-se no século XIX em teoria. É a dominação de uma classe sobre outra com justificativas científicas, biológicas, econômicas, sociais, jurídicas, étnicas, culturais e sociais. Faz parte da concepção do mundo moderno.

Segundo Scott (1995), as relações sociais são formadas com as diferenças entre os sexos e “(...) o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder, ainda, que o gênero não pode ser empregado apenas como um conceito relacionado ao estudo referente às mulheres (SCOTT, 1995, p. 3). Nessa estrutura e conjectura, classe, raça e gênero formam um conjunto, colocando as mulheres pretas na hierarquia social na sua última escala e, por esse motivo, as lutas feministas e antirracistas são imprescindíveis para a transformação social (CARNEIRO, 2011).

Para analisar do ponto de vista desses conceitos, com sua densidade e complexidade, verifica-se que, as relações sociais de raça, sexo e classe, constituem um tema interseccional, que perpassa diversos campos do saber e áreas do conhecimento, merecendo análise mais aprofundada. Entretanto, esse estudo associa-os, sabendo da necessidade de outros conceitos analíticos articulados, aos procedimentos metodológicos adotados a partir da história oral com o intuito de construir uma narrativa histórica das histórias de vida de professoras negras, lotadas em escolas públicas de Montes Claros: municipal, estadual e militar. No entanto, essa narrativa apresenta, apenas, a história de vida de uma professora, trabalhadora em uma escola pública municipal com vivências similares as outras colaboradoras e, por esse motivo, utilizou-se termos no plural. Igualmente, essa escolha ocorreu porque as colaboradoras produziram inúmeras possibilidades de análise e reflexão sobre o tema, garantindo outras produções científicas. Para tanto, como pesquisadora contribuímos com a evocação da memória para a transmissão do vivido por meio da narrativa histórica. Considerou-se os silêncios, os esquecimentos, as reiterações, a linguagem não verbal e o cotejamento com fontes escritas e imagéticas. Tudo isso compôs os dados de análise (MEIHY, 2005).

Meihy (2005) diz que, a história oral de vida é um dos gêneros mais cultivados em pesquisas dessa característica. Histórias de vida chamam a atenção nos dias atuais. Elas não constituem biografias, pois seu objetivo não consiste em contar a vida inteira de uma pessoa, mas as memórias que remetem a um determinado tema de estudo, no nosso caso, analisar a relação entre educação, raça, classe e gênero a partir das narrativas das histórias de vida de mulheres professoras do ensino fundamental, em Montes Claros, nos tempos pandêmicos do Covid-19, tendo como referência as memórias de uma professora lotada em uma escola pública municipal.

As depoentes tiveram espaço para relatar suas memórias. Suas experiências foram nosso alvo principal de estudo. Desse modo, realizou-se entrevistas contemplando três mulheres professoras de cada instituição escolar, de forma coletiva, seguindo orientações de Portelli (2016), ou seja, escuta, transcrição, análise e construção narrativa, com a finalidade de construir histórias de vida dessas mulheres negras, professoras, a partir das suas memórias. As entrevistas aconteceram no espaço escolar, onde elas se encontram lotadas como professoras. Essas mulheres foram selecionadas de acordo com critérios que se estabeleceu a partir da proposta da pesquisa como, por exemplo, características individuais, nesse caso, gênero, raça e profissão, pois as perguntas relacionaram essas questões. Esses critérios para seleção dessas sujeitas considerou o seu anonimato, assim como alcançamos/encontramos as participantes, considerando os princípios de homogeneidade, pois entrevistamos mulheres, negras, professoras e de escolas públicas. Ponderando o anonimato e cuidados éticos da pesquisa, decidimos nominar nossa colaboradora, cujos relatos foram estudados e apresentados nessa descrição analítica com a referência de uma pedra preciosa negra: turmalina negra.

Enfim, diante das nossas inquietações seguimos a metodologia e aplicamos as técnicas propostos para execução da pesquisa. A Escola Britânica nos orientou nesse sentido para apresentar as histórias de vida dessas professoras, que são experiências (THOMPSON, 1998) e estruturas de sentimento (WILLIAMS, 1982). A revisão bibliográfica também constituiu procedimentos metodológicos importantes para essa análise (GERHARDT; SILVEIRA, 2009).

Histórias de vida e memórias: histórias formadas por uma colcha de retalhos nordestina

A entrevista se apresentou como coletiva, entretanto, valorizando a individualidade de cada colaboradora e, por esse motivo, decidimos apresentar nessa narrativa, apenas as memórias de uma professora, as quais remetem as vivências e enfrentamentos das outras profissionais. As experiências constituem aos tempos da pandemia de Covid-19 no exercício do ofício de professora. Durante a entrevista, que ocorreu no prédio da escola onde as depoentes lecionam, houve o protocolo formal de apresentação do projeto de pesquisa, Termo de Consentimento Livre e Assentimento do uso das memórias narradas. A escola é municipal e periférica, atendendo educandos da região, os quais demandam atenção e zelo como políticas públicas.

A professora selecionada para nos ajudar a pensar sobre a temática na perspectiva de histórias de vidas foi nomeada, nessa pesquisa, como Turmalina Negra. Turmalina é um “(...) mineral-gema, considerada a pedra das mil cores, devido às várias cores que pode apresentar. Quando tem transparência e é colorida, com um matiz definido e bom equilíbrio entre tonalidade e saturação, alcança valores de milhares de dólares americanos por grama” (LEAL, 2008, p. 8). Há entre esse mineral-gema, a turmalina negra, e nossa colaboradora recebeu essa nomenclatura por apresentar características similares: resiliência, resistência, força, disponibilidade, coragem e simplicidade. Leal explica sobre essa pedra:

(...) turmalina preta, que, ao contrário da turmalina colorida, é abundante e tem baixo valor. É comum o seu uso até para cascalhar estradas de terra. A turmalina preta pode ocorrer em qualquer ambiente geológico, o que explica a sua abundância. O seu uso na indústria joalheira é restrito. Ela é usada na confecção de bolas, contas de colares ou utilizada em outros tipos de artesanato mineral. O interesse pela turmalina preta no mercado internacional apareceu em meados da década de 1990, principalmente nos Países do Extremo Oriente. (...) O uso da turmalina pela humanidade remonta à Antiguidade. Muitos atributos místicos têm sido creditados a ela: é usada como talismã, contra “mau olhado”, atração de “energias negativas” e outras coisas do gênero. Na indústria de cosméticos há máscaras faciais, cremes, sabonetes e associados, como escovas, pentes, rolinhos e chapas alisadoras para cabelos. Na indústria automobilística é utilizada em condicionadores de ar, catalisadores para combustível e em desodorantes. Na saúde humana é utilizada contra artrite e fadiga, como ativador da microcirculação sanguínea e contra estresse. Na agricultura é utilizada na recuperação de áreas degradadas e na irrigação (LEAL, 2008, p. 8-9).

Apresentar essas especificidades da turmalina negra é importante para compreensão da nossa depoente. Analogamente, nossa referência a sua abundância remete ao número de mulheres negras que compõem a população brasileira, a diversidade de atuações como trabalhadoras, bem como as possibilidades de desempenhos, desde a antiguidade até os dias de hoje, em várias áreas. Nossa Turmalina Negra é uma professora potente, cuja origem nordestina enfatizada por ela, constitui sua fortaleza e coragem nos enfrentamentos como mulher-negra-professora, em especial, nos tempos pandêmicos de Covid-19. Ela se apresenta da seguinte forma:

Sou filha de dois pernambucanos, (...). É… logo cedo precisaram ir trabalhar na lavoura do nordeste da caatinga e tudo mais, e meu pai sempre muito visionário, pra ele... aquilo para ele não era suficiente, então, ele costuma dizer que saiu do nordeste pra conhecer asfalto, porque lá não tinha. Mas, na verdade ele já tinha, mas na verdade…é porque eu considero ele muito autodidata, inclusive ele é músico e ele tinha uma visão que aquilo ali no sertão nordestino, serra talhada, não era suficiente. Então o que ele faz? Vai adolescente para São Paulo e é lá que ele encontra a minha mãe, também, que já havia saído de casa, não pelo mesmo motivo que ele, mas porque era uma boca a mais para sustentar e lá no nordeste tudo muito difícil. Então, ela saiu para morar com a irmã, que já havia casado e que vivia uma situação melhor no Rio de Janeiro. E ali se conhecem… casam muito novos... tem o primeiro filho, o Carioca. Situação difícil, aí minha mãe retorna para o nordeste com o meu pai, onde ela fica lá. Eles têm mais um filho que é nordestino... meu pai vai para São Paulo, porque não desiste do sonho de crescimento, de mudança. Pra ele não era suficiente ali... Só a questão de subsistência. Tinha o que plantar e o que colher, mas não era o suficiente na mentalidade dele. Então, foi pra São Paulo, conseguiu uma profissão, empregou e traz minha mãe com meus dois irmãos e se estabelecem em São Paulo e, ali, cria a família. Ele trabalhando de mecânico de máquinas pesadas, mãe, a doméstica e dona casa. Com isso temos mais cinco irmãos, é quando eu apareço na história, nós paulistas. Então, um carioca, um nordestino e cinco paulistas. A história de um retirante nordestino [entonação de sorriso]. Vivemos ali, até então, a escola não entra no nosso cenário. Nisso... muito muda, frequentemente, de casa, porque ele sendo mecânico de máquinas pesadas, acabava o serviço e ele ia pra região... O mais interessante que eu citei esse fato que, quando o primeiro de nós entra na escola, ele resolve parar, ele fala: “não, eu não vou ficar mudando meu filho de escola o tempo inteiro”. Então, ele começa a deixar a família fixa em um local e ele vai... fica quinze dias e retorna. Então, minha mãe foi a base, a catequista da família, a educadora. E chega um momento, que a grande São Paulo passa uma violência muito grande, um dos meus irmãos demora chegar da escola... a família entra em aflição e percebe que São Paulo já não é um ambiente bom pra criar uma família… (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Turmalina Negra faz questão de narrar a origem nordestina dos pais e o lugar de nascimento dos irmãos - Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e o caçula em Minas Gerais, perfazendo o total de oito filhos -, mostrando a característica sertaneja de retirante e migrante. Aponta o caráter utópico do pai, cuja percepção para propiciar uma vida melhor à família constituiu seu objetivo, sendo migrante e/ou sedentário, quando conveniente e bom para a família. Como autodidata na resolução da vida e imbuído da magia da música compreende que, a “terra talhada” nordestina, ou seja, rachada, estilhaçada ou lascada pelo calor do sol, inibiria transformações em várias dimensões, especialmente econômica e educacional, para os filhos. Por esse motivo, desde cedo migra, adolescente, para São Paulo, onde encontra a mulher que se tornou sua esposa, também fugida da fome do sertão. De São Paulo para o Rio de Janeiro, depois Pernambuco, retornando a São Paulo. Uma busca constante para ir além da subsistência. Torna-se mecânico e pai de oito filhos, contando com a presença e cuidados da esposa, “catequista e educadora” da família. “Catequista” revela, na abordagem, a religião cristã Católica da família, bem como “educadora”, a importância da educação. Verifica-se que, a profissão do pai implica em mudanças frequentes de casa e região e, igualmente, da escola dos filhos, cuja situação não o agrada, sedentarizando a família. O papel da mãe é fundamental na educação das crianças e esse modelo de vida permanece até o momento que a violência da cidade grande impõe outra escolha, Minas Gerais: “Em 1977, ele [pai] vem a Minas a conselho do meu tio, seu irmão mais velho” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Essa é “Uma história de um retirante nordestino. São fragmentos de uma colcha de retalho, onde há dez costureiros, construindo uma colcha em várias, mas cada um com sua história” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Turmalina Negra faz essa afirmação, entonando um sorriso altivo, concluindo que o pai – nordestino e migrante - atingiu seu objetivo como retirante nordestino. Ela continua relatando sobre a atuação do pai na vida dos filhos, sobretudo, após a morte da mãe:

Chegando aqui [Montes Claros, Minas Gerais], traz a família. (...) O interessante que eu vejo ligado a questão da educação é que, meu pai, sempre manteve a gente no bairro [Santos Reis] pra que não saísse da escola... incentivando o estudo e falando que o estudo é importante. (...) aí a gente perde mãe no meio do caminho, pai continua firme insistindo que a gente não deixasse a escola... Não parasse de estudar para trabalhar e, com isso, nós conseguimos formar todos, na escola pública. A maioria lá em casa tem ensino superior... de escola pública, universidade pública. Nos tornamos, a grande parte de nós, profissionais da educação, nós, as mulheres, todas são educadoras e valorizamos muito a educação pelo falar do meu pai (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Turmalina Negra assinala a relevância da educação transmitida pelo pai no decorrer das vivências familiares e como a organização da vida da família pautou-se a partir dessa referência. As mulheres, quatro, são todas professoras com formação em Sociologia, Pedagogia Filosofia, Economia e Letras (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Ela narra que,

Somos 8 (oito) irmãos, quatro homens e quatro mulheres e… com esse falar dele [pai], então, a educação é algo que a gente acredita muito. Eu, por exemplo, agora estou aposentada de um cargo e terminando agora o outro e, ainda, acho que eu não gostaria de deixar a educação como ela está... eu penso, talvez, até quem sabe, encontrar uma mudança, um futuro melhor para nossos meninos (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Ao reforçar que a família é grande - oito filhos e o pai -, Turmalina Negra aborda a educação como fator de transformação de vida e proporcionadora de um futuro melhor para os estudantes que leciona na periferia de Montes Claros. E, na sequência da sua narrativa, cita a experiência com a pandemia de Covid-19 e, com a voz embargada, expõe as diferenças sociais a partir da escola: “A pandemia veio saltar essa diferença, porque eu tenho um filho na escola particular e trabalho na escola pública, então, eu vi como o meu filho teve acesso a muitos recursos que a pública não teve... que ficou uma defasagem” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Mulher, negra e professora, Turmalina Negra descreve sobre a importância de estudar para quem se encontra em determinadas condições impostas pela sociedade configurada como capitalista: “Quando entra no sistema, né, gente!” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Nesse sentido, além do curso de Sociologia realizado na década de 1990, também fez Pedagogia, em 2004, e pós-graduação lato sensu em Supervisão Escolar: “Tudo focado no plano de carreira... eu entrei como socióloga, que deu habilitação na história e sociologia, e efetivei no cargo de história, mas eu já era efetiva, anteriormente, na alfabetização da educação básica (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Conhecedora dos seus direitos e em busca de um salário melhor trabalhava em duas escolas e se especializava: “Para poder aposentar um pouquinho melhor, além da dedicação, precisamos valorizar os direitos... fui e fiz a Pedagogia que você tem acesso de 10% e fiz a pós-graduação em Supervisão Escolar que é mais 10%” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Com essa história de vida calcada na educação e como mulher negra e pobre, afirma que, “Não tem nenhuma outra instituição [escola] que transforma assim a vida das pessoas” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Continua explicando como a escola oportunizou-lhe outras vias e consciência de classe:

Eu vejo assim... Hoje, eu tenho o entendimento do que a educação me ofereceu pra que eu fizesse a análise que eu tenho agora e que, tempos atrás, eu não tinha esse suporte... Porque, tempos atrás, eu sofria com muitas situações do racismo velado e como somos mineiros a gente fala pelas piadinhas..., por exemplo, por ser de região mais humilde, o bairro Santos Reis, então, esse era um preconceito em relação à classe economicamente falando e socialmente falando, que antes eu não percebia. Hoje eu vejo. Magoava, hoje não magoa, porque compreendo como a sociedade funciona e que eu luto, faço projetos e abraço causas (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

A educação viabilizou a Turmalina Negra a formação da sua consciência de classe e raça. Ela sabe qual é o seu lugar social como mulher preta periférica. Entretanto, o “suporte” educacional - Sociologia, Pedagogia e Supervisão – aliado à sua experiência de vida a coloca no campo da luta por meio de projetos e causas nessa direção, em especial no espaço escolar e na Igreja Católica (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Esclarece sua luta para ser reconhecida:

Então, assim, a gente presencia o tempo inteiro situações veladas do racismo, onde a pessoa alta, branquinha é bem acolhida. Pra eu ser acolhida, eu tive que, oh! Suar. Ouve o tempo todo: ‘olha, vai estudar, vai batalhar, vai falar bonito, vai dominar várias coisas pra você ser aceita.’ Só a cor da minha pele não seria suficiente e outras pessoas eu via que era suficiente, que cabia em qualquer lugar. (...) Hoje, nós estamos numa situação confortável, tenho uma renda, uma casa, um certo conforto, consegue acolher sua família (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Turmalina Negra apreende, nos dias de hoje, como a questão racial e social/classe está implícita nas relações e demandam dinâmicas de luta para “alcançar um lugar ao sol” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Esse entendimento adveio com “eu só fui entender que foi um racismo velado depois que eu fui fazer o curso na área de sociologia [estala os dedos], muito tempo depois… então, foi situações assim que vivi” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Nessa seara de embates, tensões e conflitos, ela percebe que o racismo é estrutural e a necessidade de se autoafirmar como pessoa: “E hoje, por exemplo, eu me apresento: sou professora, socióloga, pedagoga. Sou respeitada agora, mas se eu continuasse afro descendente, analfabeta e ‘n’ situações, como mãe solo, por exemplo, eu não ia conquistar espaço nunca” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Essa abordagem de Turmalina Negra revela o estruturalismo racial que aloca as pessoas pretas em um determinismo social e estigmatizado. De posse do conhecimento, Turmalina Negra sabe que, como professora de História deve contribuir para transformar o universo de seus educandos: “É tanto assim, que tem a ver com estudar História. A gente faz projeto ao longo do ano... tem gente que pensa o dia da consciência negra só aquele dia... não... eu faço ao longo do ano” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Essa professora, mulher, negra e trabalhadora se apresentou nesse ponto de vista, entretanto, explicando que, “Seriam vários livros para dizer quem sou. Aqui tem apenas um pedacinho da colcha de retalhos” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Memórias docentes e Covid-19: experiências no ofício de educar

A pandemia de Covid-19 obrigou as escolas do mundo a suspenderem suas atividades presenciais. Desse modo, o corpo docente, juntamente com a gestão escolar, teve que se adaptar a uma nova modalidade do ensinar, visando não prejudicar os estudantes no ato de aprender. Turmalina Negra, como professora em uma escola periférica municipal, em Montes Claros, e tendo como identificador as suas vivências relacionadas à raça e classe experienciou ensinar durante esse período: “Então, você tá sempre com o olhar atento... aí o que acontece... Pandemia. Pandemia envolveu recurso tecnológico, pandemia envolveu a família que precisaria vir à escola pra gente disponibilizar o material impresso, apostila...” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Turmalina Negra comenta a surpresa causada pela pandemia, obrigando novas medidas na escola e fora desse espaço. Explica como ocorreu a rotina de trabalho com a finalidade de preparar a escola para o formato não presencial, assim que a pandemia foi declarada: “Houve o aumento das atividades... Tivemos que usar email, WhatsApp. E o pior, a maioria dos nossos alunos não tinham essas ferramentas. O celular era dos pais... não tinham computadores” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). A professora detecta a dificuldade dos educandos em relação às ferramentas adequadas para as aulas remotas. Estudantes periféricos, cujos instrumentos utilizados para a realização das aulas se encontravam com os pais, os quais trabalhavam e levavam consigo. Relata também que, “A gente tinha que escrever mensagens no WhatsApp, preparar a aula, saber usar os novos recursos, participar de reuniões à distância e, ainda, dar conta da casa. Foi uma loucura! (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Em relação às estratégias educacionais, a escola optou em enviar orientações às famílias e, para cumprir essa missão: “Tivemos que organizar o conteúdo de forma que eles [os estudantes] pudessem aprender, pelo menos, um pouco” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Entretanto, avaliando o processo de ensinar e aprender constatou que, “10% dos alunos teve acesso ao estudo, 90% não teve. O aluno recebia pouca orientação e não conseguia desenvolver. Marcava qualquer uma questão e devolvia pra nós. A gente não tinha retorno. É o faz de conta do sistema. Foi um ano sem acesso praticamente” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Essa constatação de Turmalina Negra é explanada da seguinte maneira: “Elaboramos materiais e os pais iam buscar na escola. A matéria era explicada pelo WhatsApp. A gente foi descobrindo maneiras pra trabalhar. Os pais, a maioria, não conseguiam ajudar os filhos, por vários motivos, principalmente porque trabalhavam” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Turmalina explica que, os pais dos estudantes continuaram trabalhando no período da pandemia, não conseguindo auxiliá-los nos estudos e as crianças e adolescentes ficavam em casa sozinhas: “Os pais trabalhavam o dia todo. Agora ficava bem mais difícil, pois as crianças antes vinham para a escola e eles [os pais] ficava, mais tranquilos e... agora os filhos ficavam em casa e sozinhos” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Nossa colaboradora relatou uma observação pertinente: “Também foi uma questão que eu percebi durante a pandemia, não sei se já observaram... que alguns alunos aproveitaram esse momento pra trabalhar. Veja... é a questão social” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Essa ressalva é fundamental para compreensão do ensinar e aprender nessa época, pois os educandos ou ficavam sozinhos em casa, porque os pais trabalhavam ou, também, foram trabalhar: “Muitos alunos, sendo eles negros ou brancos, mas é fácil notar que a maioria é negro, nós encontramos no sinal, vendendo meia na rua. Agora, para resgatar de volta esses alunos, tivemos que acionar o Conselho Tutelar” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). A observação de Turmalina Negra demonstra os processos da pandemia, os quais levaram os educandos para o mundo do trabalho informal “(...) para ajudar nas despesas da casa” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Verificar a necessidade dos estudantes, crianças ou adolescentes, auxiliarem na renda da casa é originado pelo público que a escola atende:

Agora, aqui na escola, é caso de forma concreta, situações parecidas a essa já era frequente, mas aumentou demais com a pandemia. Nós temos atendimento aqui da comunidade Eldorado e no entorno e temos ônibus que vem da região do bairro Vitória, que fica aqui onde era o Cedro. Ali é um povoado, então, tem também outro bairro, o Castelo Branco, que eu queria falar, então, o Castelo Branco é uma pobreza extrema e o povo tem essa questão da cor muito visível. E dentro da nossa escola a gente consegue perceber dois polos, é polarizado, visivelmente (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

A narrativa de Turmalina Negra examina que, a região atendida pela escola onde trabalha é visível uma realidade sugestiva a classe e raça como fatores de exclusão social e, nessa ocasião pandêmica, se agrava. E prossegue: “O grupo do entorno são pessoas que têm mais acesso, material, num tem problema com violência, agressões e, normalmente, não é regra, mas, normalmente, os meninos do Castelo e Vitória vem com essa carga de violência, de não ter material, não ter progressão (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). A análise de Turmalina Negra denota grupos de estudantes que enfrenta dificuldades referentes aos locais onde vivem, ou seja, onde há mais pobreza e negros. Dessa maneira, políticas públicas são emergências para viabilizar outras possibilidades para essas crianças e adolescentes, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).

Foram muitos os enfrentamentos para ensinar, tendo a pandemia de Covid-19 como pano de fundo:

Primeiro de tudo foi ter que aprender a mexer com a tecnologia... muitos de nós não sabia, mal-mal mexia com WhatsApp. Eu mesma era meu filho que me ajudava... falta de apoio dos pais nas atividades, internet, celular, computador... os alnos não tem autonomia. O professor tem que acompanhar o tempo todo e, nesse período eram os pais que tinham que fazer isso. As aulas online era muita distração e as apostilas que ajudaram muito. A gente via a falta de interesse dos alunos e nem era por eles, era a situação. E os distanciamento social foi difícil pra eles, pra nós... Tinha até a merenda que é importante e os meninos ficar na escola facilita para os pais trabalhar (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Pós-pandemia, Turmalina Negra aborda o “(...) monitoramento, a secretaria de educação avaliando, avaliou em março e agora em junho... fez uma avaliação do conteúdo trabalhado até agora, resultado... números... em cada disciplina, a nota do aluno é 30%, no valor de 100% (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Está acontecendo “O tratamento multidisciplinar com três psicólogas e um assistente social... quase sempre os casos de agressão, violência são cargas traumáticas e na pandemia aumentou muito. Os alunos com dificuldade... vemos que são pobres e negros. Posso dizer os nomes e confirmar” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Essas vivências assinaladas por Turmalina Negra constatam um período de muitas dificuldades para os educandos e professores. Lidar com essa realidade escancarou as questões envolvendo as desigualdades sociais, fortemente, na periferia, onde moram pessoas com déficit de renda e enfrentamentos antirraciais. Essas circunstâncias pandêmicas e educacionais “Precisa de intervenção do governo para reverter a situação. Sem educação não há nação, país... na verdade, gente, ser humano... A dignidade humana deve ser restabelecida. Precisamos ver gente sendo gente” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Considerações finais

Estudar mulheres e professoras negras com referência as suas memórias no exercício de ensinar no período da pandemia de covid-19, em Montes Claros, permitiu (re)ler o papel da educação para a transformação social, que é acompanhada de outras mudanças, entre elas, política, econômica, cultural, étnico racial, etc. A educação, de acordo com Turmalina Negra descortina véus e apresenta um novo universo, pois faz as pessoas ser “gente” e “ser humano” através do conhecer. Desse modo, investir em educação é promover a dignidade humana.

Com os enfrentamentos da pandemia de Covid-19, Turmalina Negra como professora em uma escola periférica viveu situações que não promoveram o ensino- aprendizagem: “A pandemia nos pegou de surpresa” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022). Diante dessa surpresa e sem preparação para atuar no ofício docente, muitas dificuldades se fizeram presentes, sem a presença dos educandos na escola. Os instrumento e ferramentas para auxiliar no ato de educar não fazia parte do mundo dos estudantes da escola onde trabalhava e, por essa razão fez-se necessário articular outras estratégias e dinâmica como apostilas e mensagens WhatsApp. O ensino remoto revelou o despreparo tecnológico das escolas, sobretudo públicas: “Ensinar através de meios virtuais não foi fácil de jeito nenhum” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

A ausência dos pais e/ou responsáveis para acompanhar os estudantes constituiu em um desafio. Os pais trabalhavam e não conseguiam auxiliar os filhos nos estudos que, “Agora era em casa” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

As crianças e adolescentes, educandos, sendo obrigados a ajudar os pais com a complementação da renda familiar consistiu em outra incitação: “Via meus alunos nos sinais vendendo meia, balas... Doeu demais!” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Com tantas provocações para efetivar o processo educacional, Turmalina Negra afirma que, “Há um cansaço terrível! Estamos saindo da pandemia, mas ela não sai da gente. Trabalhamos demais e sem ver muito resultado. Meus meninos voltaram sem saber muita coisa e doentes” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

Frente aos relatos e memórias de Turmalina Negra, as indagações continuam reverberando nas realidades concretas e rotineiras nas escolas. O que fazer para solucionar essa situação compõe na experiência de uma professora, mulher e negra: “Governo investindo na educação e políticas públicas para melhorar a vida de todos nós brasileiros e não apenas de alguns” (TURMALINA NEGRA, 29 out. 2022).

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Fonte

TURMALINA NEGRA. Entrevista concedida a Filomena Luciene Cordeiro Reis. Montes Claros, MG, 29 out. 2022.

Autor notes

i Doutora em História pela Universidade de Uberlândia e estágio pós-doutoral em Educação na Universidade de Uberaba. Professora do Departamento de História e do PPGH da Unimontes; professora do Curso de Direito do Centro Universitário Funorte. Montes Claros, Brasil. E-mail: filomena.reis@unimontes.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2175-8390.
ii Doutor em História pela Universidade de São Paulo e estágio pós-doutoral em História da Educação na Universidade de Lisboa. Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Uberaba e da Universidade Federal de Uberlândia. Uberaba, Brasil. E-mail: wenceslau@ufu.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4374-0311.

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