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IDEOLOGIA DO AUTORITARISMO MILITAR NO BRASIL: A GÊNESE NO EXÉRCITO
IDEOLOGÍA DEL AUTORITARISMO MILITAR EN BRASIL: LA GÉNESIS EN EL EJÉRCITO
IDEOLOGY OF MILITARY AUTHORITARIANISM IN BRAZIL: THE GENESIS IN THE ARMY
Caminhos da História, vol. 29, núm. 1, pp. 28-41, 2024
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidad: Semestral
vol. 29, núm. 1, 2024

Recepción: 27 Noviembre 2023

Aprobación: 29 Diciembre 2023

Resumen: El artículo analiza las ideas y espacios para la producción y circulación de estas ideas que se articularon en la ideología que informó y legitimó el protagonismo político del Ejército brasileño en el siglo XX. Para ello, se discute el uso de la categoría ideología como herramienta analítica para la acción política, argumentando que la polisemia del término exige una definición articulada con el objeto investigado, ya que la producción de un determinado discurso ideológico debe ser investigada junto con la agentes, los espacios y las creencias de quienes lo formulan y utilizan en sus luchas políticas. Posteriormente, el texto aborda las ideas predominantes entre los militares del polo intervencionista-controlador del Ejército y los espacios institucionales en los que dichas ideas se articularon y difundieron hasta el punto de convertirse, no sin disputa, en dominantes en el ejército durante el período cubierto.

Palabras clave: relaciones cívico-militares, autoritarismo, ideología.

Resumo: O artigo analisa as ideias e os espaços de produção e circulação dessas ideias que foram articuladas na ideologia que informou e legitimou o protagonismo político do Exército Brasileiro no século XX. Para tanto, discute o emprego da categoria ideologia como ferramenta analítica para a ação política sustentando que a polissemia do termo demanda uma definição articulada com o objeto investigado, uma vez que a produção de um determinado discurso ideológico deve ser investigada junto aos agentes, aos espaços e às crenças daqueles que o formulam e o empregam nas suas lutas políticas. Posteriormente, o texto aborda as ideias predominantes entre os militares do polo intervencionista-controlador do Exército e os espaços institucionais nos quais essas ideias foram articuladas e difundidas a ponto de se tornarem, não sem disputas, dominantes no meio militar durante o período abordado.

Palavras-chave: relações civis-militares, autoritarismo, ideologia.

Abstract: The article analyzes the ideas and spaces for the production and circulation of these ideas that were articulated in the ideology that informed and legitimized the political protagonism of the Brazilian Army in the 20th century. To this end, it discusses the use of the ideology category as an analytical tool for political action, arguing that the polysemy of the term demands a definition articulated with the object investigated, since the production of a certain ideological discourse must be investigated together with the agents, the spaces and the beliefs of those who formulate it and use it in their political struggles. Subsequently, the text addresses the predominant ideas among military personnel from the interventionist-controlling pole of the Army and the institutional spaces in which these ideas were articulated and disseminated to the point of becoming, not without dispute, dominant in the military during the period covered.

Keywords: civil-military relations, authoritarianism, ideology.

Introdução

As formas que o autoritarismo assumiu nas instituições políticas brasileiras ao longo do século XX impactaram o jogo político e, de diferentes formas, repercutem ainda nas características e nos desafios da democracia brasileira no século XXI. Entre 1889 e 1989 as forças armadas brasileiras, com destaque para o Exército, protagonizaram uma longa lista de intervenções na política. Excedendo a sua tarefa de defender o país em caso de guerra, depuseram governos, promoveram rebeliões (algumas fracassadas, outras bem-sucedidas), apoiaram ou lideraram ditaduras, integraram governos, se engajaram em campanhas em torno do modelo de desenvolvimento e influenciaram a redação de várias Constituições.

Um ativismo político tão intenso e extenso ensejou que entre suas fileiras tenha se desenvolvido condições para que os militares deixassem de lado o preparo para a guerra e se voltassem para atividades que envolviam tanto conspirações quanto campanhas eleitorais ou reuniões ministeriais ordinárias. Da mesma forma, diversos grupos e interesses se organizaram no interior das foças, em parte espelhando as clivagens políticas do país em diversos momentos daquele período assinalado. As divisões entre florianistas e deodoristas, tenentistas e legalistas, comunistas e integralistas, germanófilos e americanófilos, nacionalistas e entreguistas, castelistas e “linhas-dura” não raro foram equalizadas com expurgos e ostracismos. No decorrer desse processo, vale destacar que prevaleceu uma corrente que, entre as décadas de 1930 e 1940 foi capaz de articular um corpo de ideias e lideranças que se projetaram, pelo menos, até o final do regime militar que governou o país de 1964 a 1985. O objetivo desse artigo é, então, abordar as ideias e os espaços de produção e circulação dessas ideias que informaram e legitimaram o protagonismo político deste grupo que José Murilo de Carvalho (1983) definiu como intervencionista controlador.

Para tanto, preliminarmente, serão discutidas considerações referentes ao emprego da categoria ideologia como ferramenta analítica para a ação política. Sustenta-se que a polissemia do termo demanda sempre uma definição articulada com o objeto investigado, uma vez que a produção de um determinado discurso ideológico deve ser investigada junto aos agentes, aos espaços e às crenças daqueles que o formulam e o empregam nas suas lutas políticas. Assim, o texto aborda as ideias predominantes entre os militares que Carvalho definiu como intervencionistas-controladores e os espaços institucionais nos quais essas ideias foram articuladas e difundidas a ponto de se tornarem, não sem disputas, dominantes no meio militar durante o período abordado.

Ideologia: uma digressão necessária

Poucos termos contemporâneos animaram um debate tão longevo e ensejaram tantos significados quanto ideologia. O seu emprego remonta ao final do século XVIII e, ainda antes de ser usado por Marx, já acumulara os significados de uma ciência dos fenômenos mentais, ou das “ideias”, e de uma doutrina utilizada para “obscurecer a verdade e manipular as pessoas através do engano”[1] Desde então a expressão foi carregada de significado pejorativo, acentuado por Marx e Engels que, com ideologia, passaram a expressar a noção de “falsa consciência”, oposta à verdade histórica. Seu uso esteve diretamente ligado aos embates dos autores com a filosofia idealista (A ideologia alemã) e com as outras correntes socialistas de então (A miséria da filosofia). Já no século XX, mas ainda na tradição marxista, Lênin conferiu ao termo um significado positivo e pragmático, ideologias seriam apenas armas doutrinárias empregadas pelas classes nas suas lutas. Em certa medida deriva daí a classificação proposta por Thompson (1995, p. 72) que prevê uma “concepção neutra” de ideologia, cujo conteúdo estaria presente em qualquer programa político, revolucionário ou restaurador, e uma “concepção crítica” de ideologia, na qual o aspecto ilusório ou da falsa consciência seria o predominante.

O desenvolvimento das ciências sociais, por seu turno, favoreceu a investigação de fenômenos “ideológicos” como religiões, valores, crenças e leis sob outras perspectivas de maneira que, fora da tradição marxista, o termo seja bem menos empregado. Boudon (2000, p. 276) salienta que tanto as investigações de Weber quanto as de Durkheim indicam que todas as sociedades tomam determinadas crenças por verdadeiras ou naturais. Tais crenças, se codificadas num sistema que integre noções de sagrado ou de transcendência são a matéria prima da religião. Por outro lado, contina, se não recorrerem ao sagrado e ao transcendente e versarem sobre a organização social e política e ao seu devir, tem-se, então, a ideologia. Assim, para o autor, ideologia seria “apenas um caso particular – difícil de ser distinguido rigorosamente de outros – do fenômeno geral das crenças”. A polissemia e a dificuldade de precisar com rigor o termo recomendam parcimônia, mas isso não implica em abandonar a ideologia como categoria para o estudo dos fenômenos sociais e históricos. O próprio Boudon assinala que, nas sociedades modernas, a ideologia tem por função oferecer uma justificação para os valores que, presume-se, podem fundamentar o consenso e a ordem social. É nesse sentido que a tradição marxista, no final do século XX, ressignificou o conceito de ideologia no campo do simbólico ou, especificamente, no do discurso. Thompson (1995, p. 76) sustenta, então, que a ideologia dá conta das formas com que o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação. Numa esfera próxima, porém distinta, recuperando elementos de Gramsci e rompendo com a ideia de que exista uma verdade externa aos discursos contraditórios produzidos na sociedade, Laclau e Muffe (2005) recolocam a ideologia como a articulação discursiva que, a todo momento, procura fixar um sentido ou produzir a “sutura” do dilacerado tecido social e, com isso, produzir hegemonia.

Assim, o emprego do conceito de ideologia deve levar em conta a sua dimensão discursiva, trata-se de um trabalho de codificação, de articulação de crenças que produzem um discurso voltado para a produção ou a reprodução da legitimidade de uma determinada ordem social e política. Esse trabalho de produção discursiva, ou de articulação de sentido, é produzido, sempre, por agentes específicos desde espaços e posições também específicos cuja apreensão pelo pesquisador não é complementar, mas decisiva para se compreender a ideologia e a ação política que ela informa e procura legitimar. Portanto, para se entender a ideologia do autoritarismo militar brasileiro há que se ver as crenças, os agentes e os espaços de fabricação dessa ideologia no interior da corporação.

Militares e ideologias no início do século XX

O recorte aqui definido refere-se fundamentalmente ao Exército, a força terrestre, ainda que ao discutir a fabricação ideológica na Escola Superior de Guerra seja possível desdobrar os argumentos para a Marinha e a Aeronáutica, uma vez que a instituição agrega militares das três forças e civis dos setores público e privado. Como qualquer organização complexa, o Exército não é uma corporação monolítica, ele possui clivagens hierárquicas, geracionais e, ao longo do tempo, de grupos rivais que mobilizam discursos distintos nas suas disputas internas quanto às definições e redefinições institucionais e da sua relação com os demais segmentos do Estado e com a sociedade. Assim, não é difícil constatar que os militares do Exército foram influenciados por várias ideologias ao longo do século XX: positivismo, nacionalismo, fascismo, comunismo, anticomunismo.

Por seu turno, a ideologia que alimenta as disposições e legitima as ações políticas autoritárias dos militares que engendraram as ditaduras instaladas em 1937 e em 1964 foi, diferente das demais, produzida no Exército e, em parte por isso, venceu suas rivais. Protagonistas dessa vitória, e responsáveis por vários expurgos na própria corporação armada, os oficiais que fabricaram a ideologia do autoritarismo militar brasileiro compõem o polo que José Murilo de Carvalho denominou de intervencionista controlador[2]. Gestado no início dos anos 1930, teria se tornado hegemônico no Exército após o Estado Novo se não tivesse enfrentado a forte concorrência da chamada “ala nacionalista”, engajada na campanha pelo petróleo no fim dos anos 1940 e menos sensível à indústria do anticomunismo. O intervencionismo controlador previa ampla intervenção estatal em vários setores da sociedade, enfatizava a necessidade de assegurar a defesa externa e a segurança interna, preocupava-se com a eliminação do conflito social e político em torno de uma ideia de nação e defendia um modelo de industrialização nacional no qual o exército deveria ser um propulsor do processo. Esse corpo de ideias foi pela primeira vez sistematizado na chamada “doutrina Góes Monteiro”, produzida pela principal liderança militar da Revolução de 1930 e que teve grande repercussão no meio militar em função das posições-chave ocupadas pelo seu formulador até 1945 e pelo fato de, em torno dele, ter gravitado uma outra geração de oficiais fortemente identificados com essas ideias e que mantiveram um elevado de protagonismo político nas duas décadas seguintes e no golpe militar de 1964[3].

Em grande medida, a oficialidade identificada com essa primeira sistematização doutrinária partilhava um mesmo repertório de representações, ou seja, de crenças a respeito do mundo social e político e do papel nele desempenhado pelas Forças Armadas. O conjunto de elementos que compõe esse repertório de representações parte de uma espécie de diagnóstico da situação de “atraso” e “desordem” da realidade brasileira. O atraso é associado à debilidade econômica e militar do país no início do século XX, bem como a uma percepção de que o Brasil estaria aquém das suas possibilidades de ocupar uma posição de maior projeção no cenário internacional. Essa debilidade, na visão militar, poria em risco o Estado e impediria as forças armadas de cumprirem a sua missão de garantir a defesa da nação. A desordem era associada à intensificação dos conflitos sociais na arena política, que frequentemente era traduzida em termos de ameaça comunista, excessos do liberalismo ou simplesmente corrupção dos políticos civis. Neste diagnóstico, já estava implícita a ideia da necessidade de um processo de modernização conduzido por uma elite ilustrada capaz de contornar o atraso; o que implicaria em neutralizar os setores arcaicos da sociedade, e de evitar ameaças “desagregadoras” – internas e externas - que representassem uma ruptura na unidade nacional e na “vocação ocidental e cristã da sociedade brasileira”.

Um dos elementos que cedo foi integrado ao repertório discursivo dessa oficialidade foi a crença de que estão imbuídos de uma missão em prol da “regeneração moral” dos costumes políticos. Desde os tempos de Benjamin Constant difundiu-se entre a oficialidade do Exército Brasileiro uma autorrepresentação de que os militares constituiriam uma espécie de reserva moral politicamente desinteressada e comprometida apenas com a “Nação”. A isso somava-se a ideia de que o exército seria a única instituição de abrangência verdadeiramente nacional, ao contrário dos “políticos” e das elites regionais, cujos interesses “particularistas” e “contraditórios” constituiriam um entrave ao progresso e uma ameaça à segurança. Paulatinamente foi se inscrevendo no discurso de militares o argumento que, por recrutar os seus quadros nas diferentes camadas sociais e regiões do Brasil, o Exército seria a própria “encarnação da Nação”, comprometido apenas com o bem comum e os “interesses da pátria” e nunca com os interesses de uma classe ou de uma região específica.

Outro elemento do repertório era o fundamento técnico-científico do exercício do poder. Diante de um panorama no qual as “elites” eram descritas como despreparadas e o povo como presa fácil da manipulação dos “políticos profissionais” ou do comunismo, esses militares se auto-representam como sendo aqueles que verdadeiramente conheciam o Brasil, seu povo e seus problemas. Portadores de saberes técnicos e da crença de que estes lhes permitiam a solução “objetiva” dos problemas brasileiros, pretendiam credenciar uma elite dirigente cuja legitimidade repousava mais na sua propalada competência que na investidura pelo voto.

Diretamente atrelado a esse elemento, vinha a ênfase no planejamento que, nos termos em que era apregoado, consistia na redução da política à questões “técnicas” e na eliminação do dissenso em favor do “equacionamento” dos problemas relativos à necessidade de segurança e dos imperativos do progresso (entendido como desenvolvimento do sistema de transportes, de energia e da capacidade industrial). O saber técnico deveria garantir um governo acima dos interesses particulares, que “dividiam a nação”, e legitimaria a autonomia do Estado em relação a sociedade, pois estaria sempre agindo em favor do “bem comum” e da harmonia social. Negava-se com isso a legitimidade do conflito como instituidor da democracia e, em nome do despreparo das elites tradicionais e da população, bem como do compromisso dessa elite “preparada” e comprometida com o bem comum, legitimava-se uma posição tutelar e visivelmente autoritária.

Nesse sentido, se davam os usos da palavra democracia. De um lado, fazia-se toda uma crítica à imperfeição e inadequação das instituições que amparavam a democracia existente no Brasil (Constituição, legislação eleitoral, partidos, políticos e eleitores) e, deslocando a “verdadeira” democracia para o futuro, defendia-se, com maior ou menor grau de transparência, uma ditadura saneadora, ou moralizadora. Esta prometia a modernização da economia e da sociedade que, planejada e executada por uma elite técnica e moralmente superior, seria capaz de garantir a transição para um sistema político com relativo grau de pluralismo e sem riscos de mobilização dos setores populares. Enfim, uma democracia sem conflitos, pois gerida por um Estado capaz de harmonizar a sociedade. De outro lado, durante a Guerra Fria, democracia era com frequência empregada nos embates políticos como o oposto do comunismo. Essa definição negativa de democracia era uma das armas retóricas mais empregadas pelo intervencionismo controlador contra o polo nacionalista das Forças Armadas nos anos 1950 e 1960.

Este repertório de representação mobilizado era, portanto, fundamentalmente autoritário. Isso porque combinava posições favoráveis à concentração de poder no Executivo, ao esvaziamento do Legislativo e de organizações da sociedade civil, ao controle sobre o Judiciário à extrapolação do papel dos militares para além das suas funções ligadas à defesa nacional. A isso agregavam-se as críticas ao liberalismo político, à percepção da política como expressão de conflitos sociais ou ideológicos, à mobilização política da sociedade, à crença na representatividade dos partidos e, com frequência, à legitimidade dos pleitos.

O sistema de ensino profissional militar como espaço de construção e difusão ideológica

Há um consenso na literatura sobre relações civis-militares de que as forças armadas modernas são uma profissão. Carreira estruturada, regulamentos, missão e uma deontologia específica separam o que Huntingon (1996) chama de militar profissional tanto dos civis contemporâneos quanto dos guerreiros do passado. O sistema de ensino militar profissional desempenha um papel fundamental na constituição da profissão militar, incutindo saberes específicos e proporcionando uma nova socialização e identidade aos indivíduos que ali ingressam (Bruneu, 2013; Teitler, 1985;). Outro elemento relevante da profissão militar é que o sistema de ensino perpassa boa parte da carreira de um oficial, de modo que ao longo de sua vida ele retorna aos bancos escolares como condição para seguir progredindo. Assim, o primeiro estágio são as academias militares, que formam os aspirantes a oficiais das diferentes forças. No caso do Exército Brasileiro, e do período aqui abordado, tratava-se da Escola Militar. Mais tarde, em 1944, foi criada a Academia Militar das Agulhas Negras que até hoje desempenha essa função. O segundo estágio consiste nas escolas para capitães, no Brasil, a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. O terceiro ponto de retorno ao sistema de ensino profissional se dá entre os oficiais em meio de carreira selecionados para adquirirem as habilidades necessárias a funções de planejamento mais complexas, que compõem as atividades de estado-maior. No caso aqui abordado, trata-se da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. É importante salientar esse sistema compreende outras escolas dedicadas também aos praças e aos oficiais temporários, entretanto o foco aqui é nas instituições formadoras dos atores que compõem o cerne da profissão militar e que podem ascender às posições de comando da corporação.

O caráter fortemente politizado e as práticas que fomentaram a ação política na Escola Militar já foram bastante investigadas (Castro 1995; Svartman, 2012). O presente artigo, portanto, nos espaços subsequentes de ensino militar profissional e nas ideias que ali circulavam. Apesar da sua amplitude, e de agregar elementos mais antigos como várias das teses do chamado pensamento autoritário dos anos vinte com questões mais novas como o forte anticomunismo que se desenvolve no meio militar após a revolta de 1935, o repertório descrito na seção anterior e partilhado pela fração dos militares aqui em foco começou a ser sistematizado e codificado em duas instituições militares de ensino: a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e a Escola Superior de Guerra (ESG). Começava a fabricação da ideologia do autoritarismo militar brasileiro.

A ECEME, que nos anos 1930 se chamava Escola de Estado-Maior, é uma escola fundada em 1905 de importância capital na formação dos futuros dirigentes do Exército. Bastante seletiva no seu ingresso, a ECEME forma os oficiais que poderão ascender ao generalato e que desempenham as funções mais importantes na corporação. As formulações estratégicas e de emprego da força frequentemente são ali formuladas e têm nos seu curso um decisivo espaço de difusão. Desde os anos 1930 que uma parte de seus cursos versa sobre questões ligadas à infraestrutura do país, que, em função de seu caráter estratégico para os exércitos modernos, alimentam disposições militares para interferir nos processos decisórios: energia, siderurgia, transportes e indústria bélica. Para além disso, a ECEME foi um foco de difusão da ênfase no planejamento para a resolução não apenas de exercícios militares, mas também de questões políticas ligadas aos temas estratégicos e à mobilização (Svartman, 2006, p.111).

Fundada em 1948, sob forte influência norte-americana e da emergente guerra fria, a ESG se consistiu no principal espaço no qual as crenças até então dispersas entre as frações mais à direita da oficialidade foram vertidas numa doutrina cuja configuração fixou a ideologia do autoritarismo militar brasileiro. Um aspecto importante, que ajuda a compreender a difusão dos discursos ali produzidos, é o fato desta instituição militar recrutar civis, especialmente do setor público, para compor o corpo de estagiários (alunos) e, eventualmente, para realizar conferências (Amado, 2023). Desde os anos 1950 a escola conta com uma rede de ex-estagiários dispersos pelo país, a ADESG, responsável pela reprodução local da ideologia produzida. Desde os seus tempos iniciais, a ESG tem por objetivo “formar elites” comprometidas com a formulação e o planejamento de uma política de segurança nacional. A sistemática de funcionamento da Escola, que conferia à doutrina um caráter de “contínuo aperfeiçoamento”, permitia que suas formulações básicas, delineadas até meados dos anos 1950, fossem ao mesmo tempo reproduzidas e consumidas por novas turmas de militares e civis (Arruda, 1983). Permitia também que fossem repetidas vezes adequadas à conjuntura política nacional, integrando os novos temas que compunham o debate e as lutas políticas nacionais às suas formulações anteriores (Rocha, 1996).

A Doutrina de Segurança Nacional (DSN) articulou as considerações militares quanto ao planejamento econômico e político das atividades de defesa (decorrência da guerra industrial e da guerra total) e promoveu a passagem do enfoque dos militares na “agressão externa” para a “agressão interna” (Oliviera, 1978, p. 22). O ponto de partida da doutrina, conforme o primeiro comandante da ESG, o general Cordeiro de Farias (1949), era o “conflito ideológico permanente” entre Ocidente e Oriente, no qual o Brasil, por sua “índole cristã” e seus compromissos com os “amigos do Norte” (os Estados Unidos), colocava-se inquestionavelmente alinhado com o Ocidente. Partindo dessa crença tomada por verdade, a doutrina legitimava a passagem do comprometimento militar com a defesa nacional para algo bastante difuso que seria a segurança nacional. Por defesa compreende-se o aspecto militar clássico de uma guerra travada entre exércitos nacionais. O conceito de segurança da ESG é muito mais vasto, abarcando tanto os temas ligados à mobilização para um esforço de guerra, que compreendem a criação ou operacionalização de sistemas logísticos, de energia, de combustíveis e de uma indústria bélica, quanto os aspectos “psicossociais” ligados à “preservação do desenvolvimento” e à “estabilidade política interna”. Dessa forma, Juarez Távora, o segundo comandante da ESG, definiu nos seguintes termos a questão:

Essa moderna conceituação de segurança nacional envolve, assim, direta ou indiretamente, todas as atividades da nação: as ligadas à política interna (aí compreendido o jogo dos partidos e o funcionamento dos poderes) e à política internacional; os integrantes do complexo econômico (produção primária e industrial, comércio, transportes e energia); as relacionadas com as finanças; as componentes do campo psicossocial (os fatores morais e psicológicos, a educação e a cultura, a saúde e as relações de trabalho e a assistência e a previdência sociais) e, finalmente, as atinentes ao setor militar (Exército, Marinha e Aeronáutica) e que constituem, em seu conjunto os elementos integrantes do poder nacional.[4]

Uma definição assim tão ampla tomava como verdade o “direito das Forças Armadas intervirem (...) no processo de desenvolvimento do potencial geral da nação”[5]. Tal intervenção se daria no sentido de planejar a segurança nacional a fim de “remover os óbices” necessários ao fortalecimento do poder nacional, obtendo, com isso, o desenvolvimento com “harmonia entre as classes”. A condução desse processo, previa a doutrina, seria efetivada por uma elite civil e militar capacitada por uma metodologia de solução de problemas que, por princípio, elimina a dimensão política dos assuntos públicos em favor da suposta competência técnica. Ao subordinar praticamente tudo aos corolários da segurança nacional, a DSN formula um discurso empregado para legitimar não apenas a presença de militares no campo político, mas o seu protagonismo praticamente ilimitado.

Além de ter sido um espaço de fabricação ideológica, a ESG foi também um espaço de articulação e de conspiração para os oficiais identificados com o intervencionismo controlador mais engajados na oposição a Getúlio Vargas e aos seus herdeiros políticos. O episódio do Memorial dos Coronéis, que em fevereiro de 1954 desencadeou uma crise que derrubou dois ministros, as articulações em torno da campanha presidencial de Juarez Távora e da tentativa de bloqueio à posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart, a redação do veto dos ministros militares à posse de Goulart após a renúncia de Jânio Quadros e toda a mobilização em torno da avaliação da conjuntura de 1961 a 1964 são indicadores do perfil da disposição intervencionista dos militares que, no período, desempenharam funções junto à escola.

Outro elemento discursivo produzido e fartamente reproduzido pelos agentes e espaços aqui abordados que desempenhou as importantes funções ideológicas de mobilizar e legitimar as intervenções militares golpistas foi o componente da “guerra revolucionária”. A ênfase das preocupações militares na “ameaça interna” e na infiltração comunista remontam pelo menos a 1935, contudo, após as guerras da Coréia, Indochina e Argélia e da vitória da revolução cubana a questão assume um caráter premente. Tanto por influência francesa quanto, um pouco mais tarde, norte-americana, o tema passou a mobilizar os debates e estudos na ESG e na ECEME. A partir de então, as preocupações com a ameaça interna estiveram codificadas em plena sintonia com o “conflito ideológico permanente” e a doutrina passou a contar com novos exemplos internacionais a respeito dos riscos da chamada infiltração comunista. O depoimento do general Octávio Costa, que era bastante ligado a Castelo Branco e que servia na ECEME em 1964, é bastante ilustrativo do papel de produção de consenso e de convergência em torno da ação desempenhado pela teoria da guerra revolucionária:

Isso entrou pelo canal da ESG, e foi ela que lançou as ideias sobre as guerras insurrecional e revolucionária e passou a nelas identificar o quadro da nossa própria possível guerra. Para nós ainda não havia guerra nuclear, a guerra convencional já estava ultrapassada. Mas havia uma guerra que nos parecia estar aqui dentro. Era a guerra que ascendia o estopim da revolta nos campos e a insatisfação popular nas cidades. (...) Isso tudo contribuiu para a formulação da nossa própria doutrina de guerra revolucionária, que resultou no movimento militar de 64.[6]

A doutrina da guerra revolucionária operou decisivamente para produzir um consenso em diversos meios militares e civis para que se entendessem as manifestações dos movimentos sociais no início dos anos 1960 a as ações do governo João Goulart como partes de um processo articulado e planejado que, se não fosse interrompido, conduziria o Brasil a uma revolução comunista. A campanha desencadeada pelo deputado Bilac Pinto da UDN, um ex-estagiário civil da ESG, denunciava em discursos na tribuna e em artigos de jornal a tese de que se vivia os primeiros estágios da guerra revolucionária desde 1961. Alfred Stepan (1971, p. 181) demonstrou que na ECEME os currículos foram alterados no sentido de dar grande atenção ao tema de modo que, em articulação com a ESG e com os demais centros de ensino militar, produziu-se uma “avalanche intelectual”. Ainda conforme o depoimento de Octávio Costa, os “textos, os livros, os artigos, as discussões os seminários, tudo isso preparou mentalmente as três Forças e deu provas de absoluta convicção de que essa era a nossa guerra”[7].

Considerações finais

Diante da diversidade de sentidos que o termo ideologia acumulou ao longo de sua história, o seu emprego como categoria de análise requer a atenção cuidadosa aos agentes e espaços que formulam, reproduzem e mobilizam o discurso que articula um determinado repertório de crenças em ideologias. Esses cuidado e atenção estão diretamente ligados à pergunta quase sempre implícita nos estudos empíricos sobre ideologia: afinal, o que move os atores? O que inspira ou legitima seus atos?

No caso dos militares brasileiros identificados com o intervencionismo controlador, a DSN foi claramente a codificação de um conjunto de crenças partilhados e que desempenhou, de forma bastante consistente, as funções de produzir uma percepção consensual sobre o panorama político nacional e internacional, de mobilizar diferentes segmentos militares e civis menos ativos politicamente a engajar-se ou a apoiar o que veio a ser o golpe de 1964 e, por fim, de legitimar com uma nova roupagem o protagonismo político militar, especialmente do Exército. O sistema de ensino profissional foi o espaço de produção e difusão dessa ideologia.

Há que se ressalvar, porém, que a DSN não foi a única ideologia a legitimar a longa ditadura. O anticomunismo por si já era suficiente para ativar as disposições dos “duros” a ocupar cargos e restringir ainda mais o que sobrara dos direitos civis e políticos depois de 1964, o crescimento econômico e a modernização (o “milagre”) desempenharam também funções ideológicas especialmente junto à classe média e aos estratos mais elevados da sociedade, para a massa, restava a propaganda, o nacionalismo da publicidade oficial e a promessa de trabalho e renda numa sociedade de expectativas crescentes. Os espaços, os agentes e agora os meios envolvidos na articulação e na difusão desses discursos eram mais amplos e diversificados que um corpo doutrinário produzido por escolas militares, o que remete, novamente, à prudência no emprego do termo ideologia.

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Notas

[1] OUTHWAITE, W. & BOTTOMORE, T. (eds.) Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. p. 371, BOUDON, R. & BOURRICAUD, F. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática, 2000. p. 275.
[2] Num texto posterior, Carvalho (1999) usa a expressão “intervencionismo tutelar”. Para as lutas entre militares no pós-1945 ver PEIXOTO, 1980 e SMALLMANN, 2004.
[3] A chamada doutrina Góes é apresentada por seu formulador nas seguintes obras: MONTEIRO, Pedro Aurélio de Góes. A Revolução de 30 e a finalidade política do exército (esboço histórico). Rio de Janeiro: Andersen, 1934. COUTINHO, Lorival. O general Góes depõe... Rio de Janeiro: Coelho Branco, 1955. Para uma interpretação ver: PINTO (1999). Para a geração seguinte de oficiais, ver SVARTMAN (2006).
[4] TÁVORA, Juarez. A segurança nacional e a ESG. Rio de Janeiro: ESG, 1954. C-01-54 p. 20s.
[5] SARDENBERG, Idálio. Princípios fundamentais da Escola Superior de Guerra. Revista da ESG. v. 9, n. 26, 1993. p. 10. (Documento redigido em 1949)
[6] Depoimento de Octávio Costa in: D’ARAUJO, Maria Celina, SOARES, Gláuco e CASTRO, Celso (orgs.). Visões do golpe: a memória militar sobre o golpe de 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p.79
[7] Idem, p. 80.

Notas de autor

i Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: eduardo.svartman@ufrgs.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0381-5224.

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