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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ: FORMAS AUTORITÁRIAS DE ONTEM E HOJE
Caminhos da História, vol. 29, núm. 1, pp. 3-7, 2024
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 29, núm. 1, 2024

Recepção: 30 Novembro 2023

Aprovação: 26 Dezembro 2023

O historiador, assim como qualquer sujeito que se dedique a análises retrospectivas, está preso no emaranhado de fibras de representação e identidade vinculadas ao tempo em que está inserido. Tal como uma presa em teia de aranha, quanto mais nos debatemos para buscar sair das redes de nosso tempo, nos deparamos ainda mais presos a ela. Deste modo, as metáforas são recursos criados a posteriori para exemplificar, explicar, justificar ou legitimar acontecimentos traumáticos, dolorosos ou que necessitam de mediação para serem apreendidos com menor dificuldade.

Deste modo, a Revista Caminhos da História desta edição tem como capa a obra “A barca da Medusa” de Théodore Géricault, onde tem como apreensão imediata o momento de suplício, esforço e desejo humano por salvação diante do fracasso e da frustração trazida por ambições demasiadamente distantes de sua concretude. Géricault apreende em sua tela o momento de fracasso dos tripulantes da fragata de Medusa, que impulsionada pelo ímpeto imperialista do século XIX, partiu para o Senegal e naufragou. À deriva, sua tripulação teve de recorrer ao canibalismo, conforme representado pelo artista, com os cadáveres de pele esverdeada no canto inferior da tela, contrastando com o aceno desesperado dos vivos a uma embarcação que passava distante da balsa improvisada.

Adotamos a tela de 1818 e o ocorrido em 1816 como metáfora do crescimento das extremas direitas, de um novo período de animosidades e armamentismo e, consequentemente, guerras que se avolumam na abertura dos anos 20 do século XXI. Mobilizados por promessas de saída de crises e retomada do período glorioso, camadas das mais variadas de eleitores depositam suas esperanças, e seus votos, em alternativas que em situações de estabilidade não mereceriam grande atenção. Todavia, diante do cenário de crises, convulsões sociais e baixos resultados econômicos, figuras excêntricas e suas propostas de concentração de poderes políticos, mas liberalização da economia (retomando o surrado Struggle for life do Darwinismo social), suspensão dos direitos sociais a grupos minoritários, e declaração de bodes expiatórios ganham relevo e destaque, por vezes projetando-se vitoriosos em disputas eleitorais, como foi o caso de Jair Bolsonaro no Brasil e como ocorre com a Argentina, diante do sucesso de Javier Milei. Tal como a experiência do Medusa, tais investidas no extremismo de direita podem resultar, conforme se comprova em retrospecto de mesma década de 20, porém do século passado, em catástrofes, perseguição e sacrifício de minorias, e por fim, genocídios sistemáticos.

Porém, a expansão da extrema direita no século XXI apresenta elementos distintos dos percebidos no século anterior. O cenário de crise econômica do entre guerras, em seu caráter estrutural, e instabilidade política dos governos liberais, solapados pelos movimentos de massas, contribuiu para a falência das democracias nos anos 1920 (em alguns países europeus, mais frágeis política e economicamente, como Portugal, essas crises foram antecipadas em uma década). Diante destes aspectos, a aristocracia (política e fundiária) e a elite econômica se viram obrigadas a pactuar com os grupos fascistas para permanecerem no poder. Sem tal investimento, os fascismos existiriam, porém como grupos de menor importância e impacto. Deste modo, não são as crises a geradoras dos fascismos, mas colaboram para sua promoção e ascensão em cenário política nacional.

Diante do novo fluxo das extremas direitas e do recuo das propostas inseridas no espectro do moderantismo estabelecido por Norberto Bobbio (1995), as análises comparativas entre o início dos séculos XX e XXI são bastante sedutoras. Apesar dos solavancos do capitalismo, representados pela crise de 2008 e os impactos da pandemia recente de COVID-19, e consideradas as perdas financeiras terem sido superiores a crise de 1929, não houve ameaça estrutural ao sistema, tal como no século anterior. A emergência das novas extremas direitas não pode ser explicadas, portanto, por colapso econômico, mas mudança de paradigma do capitalismo. Há portanto um mal-estar generalizado, que em consórcio com o avanço tecnológico (em seus diversos campos) desencadeia relações de vulnerabilidade.

A automação das cadeias de produção, e os avanço dos usos da inteligência artificial substituem a mão de obra humana, em um panorama de subversão da utopia capitalista, onde a tecnologia em lugar de gerar tempo para lazer, impõe a hiperexploração, assim tornando-se distopia e ameaçando a subsistência das camadas mais vulneráveis. Na escala de informação e comunicação, os algoritmos contribuem para a disseminação de notícias falsas, negacionismo (da existência do holocausto e de mortos em ditaduras até à efetividade de vacinas), colaborando para a difusão de sensação de insegurança e diluição das bases de coesão social. Logo, a tecnologia, ao contrário de gerar o cenário sonhado das aldeias globais de Marshall MacLuhan (IANNI, 1995), é a catalizadora da atomização, por diluir as redes de pertencimento. Cenário fértil para o florescimento dos extremismos de direita, contra a institucionalidade e os arranjos políticos democráticos (ARENDT, 1989).

De maneira distinta dos anos 1920, a crise não se limita ao aspecto econômico, mas estende de maneira estrutural, envolve também a insegurança em diferentes níveis (da subsistência, da representatividade, da ameaça do crime organizado que inseriu-se no âmbito do Estado – através de milícias com representantes eleitos). Como falso antídoto, as lideranças que abraçam o autoritarismo de direita ou ideias fascistas selecionam seus bodes expiatórios, fisicamente existentes ou não (os gays, comunistas, imigrantes, etc.). Esta percepção do “outro” como ameaça se fortalece, principalmente quando se torna presente, diante do cenário de eclosão de guerras e desastres (naturais e políticos). Haitianos e venezuelanos no Brasil; o “latino” ou “mexicano” (termos genéricos e dilatados, que não designam necessariamente a nacionalidade mas o estigma em si), nos EUA; os Argelinos, Nigerianos e árabes muçulmanos na França são alvos de xenofobia. A perseguição ao diferente oferece válvula de escape ao cenário de crise nacional, mas obviamente não soluciona – e sim agrava – os problemas, quando a explicação do colapso tem razões mais profundas, seja na forma de consolidação da nação e da nacionalidade, ou no processo de formação do Estado no e para o capitalismo.

Estas convulsões generalizadas não poupam, tampouco o eixo econômico e o exemplo de democracia que são os Estados Unidos. O governo Donald Trump desequilibrou a balança política entre Democratas e Republicanos e deu vazão ao ódio represado do White Trash estadunidense, diante das propostas radicais, inscritas no conspiracionismo visto com clareza após as eleições do país e com a invasão do capitólio em 6 de janeiro de 2021. A instabilidade das democracias, afetando mesmo os EUA, desnudou o grau de coesão que a extrema-direita possui em escala global: de Trump a Orban, passando por Milei e Bolsonaro, há a produção e reprodução do fascismo em sua roupagem coerente ao século XXI.

Recuperando uma passagem de Antônio Gramsci (1996), enquanto “o velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”. Diante da proposta de estabelecer análises inscritas no tempo presente, somos obrigados, portanto, a fazer recuos para alcançar bases de comparação. Deste modo, no dossiê desta edição temos investigações que se debruçam sobre problemas que afetaram a primeira metade do século XX, e outras propostas inseridas no objetivo de examinar o contexto mais recente de avanço do autoritarismo, apesar da nova indumentária constitucional.

A entrevista com o professor Wolfgang Benz – Criador e Diretor do “Zentrum für Antissemitismusforschung” (Centro de Pesquisas do Antissemitismo), da Tecknische Universität Berlin/TU Berlin) tem o intuito de conectar os fios que a pesquisas de recortes estreitos e rígidos, tal como impostos pela a academia, teimam em romper. Assim, há o debate acerca da retomada dos temas associados ao fascismo em investigações científicas. Nesta, toca-se em temas delicados, através da “Querela dos Historiadores”, e a abordagem dos fascismos históricos, avanço das propostas de extrema direita, além de tocar em temas como a guerra da Rússia na Ucrânia.

Em período de revisionismo e negacionismo histórico, o artigo de João Claudio Platenik Pitillo, Pós-Doutor em História e Pesquisador do NUCLEAS/UERJ, acerca dos confrontos nipo-soviéticos da II Guerra Mundial e questões diplomáticas e geopolíticas antecedentes ao conflito são importantes para sublinhar relações negligenciadas pelo Ocidente. As pretensões japonesas de anexação de territórios soviéticos, e as preocupações de Moscou diante dessas ameaças, dissolvem qualquer tentativa contemporânea de estabelecer vínculos entre o nazismo e o socialismo, através de contorcionismos no campo da direita. Pitillo apresenta de forma competente os acordos anteriormente estabelecidos pelas forças do Eixo, as provocações japonesas e os pactos anti-komitern entres o bloco fascista.

Eduardo Munhoz Svartman, professor do departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, desdobra a perspectiva do autoritarismo no Brasil. Em seu artigo, “Ideologia do autoritarismo militar no Brasil: a gênese no Exército”, é elaborada investigação acerca das formas de produção e reprodução da ideologia do Exército enquanto força de salvação do aparato institucional e da soberania do país. A partir do conceito de ideologia e da apresentação dos espaços de sociabilidade e reprodução das normas e valores internos, Svartman oferece potente análise sobre as formas de auto percepção dos militares e da função que desempenham para a soberania do Brasil.

Desdobrando as análises referentes ao Brasil, Márcia Carneiro analisa as visões de distopia referentes ao presente, para a construção do passado que justifica os projetos de tradicionalismo das Novas Direitas. Para tanto, será realizada a avaliação das percepções de história norteado por forte caráter religioso associada à “Civilização” sob os exames de dois movimentos Nova Direita Francesa e o outro, o Movimento Integralista e Linearista Brasileiro.

Por fim, mas não menos importante, Alejandro Simonoff, da Universidade Nacional de la Plata, faz análise dos projetos de Javier Milei, através da metodologia da História do Futuro. Nesta premissa apresenta as consequências dos projetos do candidato vitorioso no pleito presidencial para a política nacional da Argentina e suas relações internacionais.

Como meio de massacrar as serpentes que já eclodem dos ovos do fascismo, é fundamental ação, e não apenas o debate teórico, que também é importante. Recuperando a metáfora da fragata do Medusa, é necessário o resgate de todos os náufragos, camadas social e economicamente vulneráveis, através da politização saudável e responsável. É necessário a retomada da articulação dos partidos de esquerda, ou pelo menos democraticamente comprometidos, com suas bases. E assim fazer frente ao extremismo de direita que conheceu a luz do sol e sai às ruas de maneira desavergonhada. É crucial dizer o óbvio, e adotar a postura antifascista, ou seja reconhecer que aquele contrário ao antifascismo é, obviamente, fascista, para assim combate-lo.

Referências bibliográficas

ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. 1989.

GRAMSCI, A. Lettere dal Carcere, a cura di A. Santucci. Palermo: Sellerio Editore, 2 vol.

IANNI, O. Teorias da Globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

Autor notes

i Professor titular aposentado de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: chicotempo@uol.com.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3925-7327.
ii Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros. Correio eletrônico: felipecazetta@yahoo.com.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2110-7531

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