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Entrevista - A TIA DOS GUERRILHEIROS: TERCINA E O ENFRENTAMENTO À DITADURA BRASILEIRA NAS MEMÓRIAS DE ZULEIDE, SUA NETA
Caminhos da História, vol. 28, núm. 2, pp. 183-197, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 28, núm. 2, 2023

Recepção: 30 Maio 2023

Aprovação: 25 Junho 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Não pretendo aqui apresentar um artigo, mas a produção de uma narrativa que nasceu de um encontro imprevisível. O relato de uma mulher que um dia teve sua infância agredida, e que tem sua memória atravessada pela vida de outra mulher, sua avó. Uma memória vivida, mas também herdada, para falar das potencialidades da lembrança no tempo presente.

No ano de 2019 fui convidada para uma roda de conversa com discentes do Ensino Médio numa escola pública, em Osasco. O tema era o negacionismo histórico e a ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1984, tendo como recorte principal a minha pesquisa sobre a greve de operários em 1968 na cidade. Na oportunidade de compartilhar as memórias de homens e mulheres por mim entrevistados e que foram afetados pela repressão, procurei dar ênfase à participação das mulheres: muitas delas participaram da greve, outras militaram no movimento estudantil e ainda houve aquelas que pegaram em armas. Mais ainda, o diálogo também tinha como objetivo provocar reflexões sobre os silenciamentos e apagamentos relativos aos danos do autoritarismo sobre a vida de esposas, avós, mães, filhas e irmãs, assim como às suas ações de resistência, deslocando-se entre o espaço privado e o público, em defesa de seus entes queridos.

Entre as mulheres citadas, apontei a trajetória de Tercina Dias de Oliveira, uma mulher com pouco mais de cinquenta anos, em 1970, chamada de Tia pelos ex-guerrilheiros que entrevistei, e mãe de um operário chamado Manoel Nascimento, o Neto. Ela faleceu em 2004, aos 90 anos de idade, e não tive a oportunidade de me encontrar com ela e de ouvi-la, mas sempre desejei conhecer mais a fundo a sua história: a de uma avó presa com seus quatro netos e banida do país como terrorista.

Para falar da violência promovida pela ditadura sobre as mulheres e a infância, fiz referências ao fato de muitas crianças serem tratadas como subversivas pelos órgãos de repressão; como foram mantidas afastadas dos pais e ameaçadas de doação e levadas a orfanatos. Eu demonstrava, então, àqueles/as estudantes fotografias sobre a detenção de Tercina e das crianças, entre elas Ernesto, a mais nova delas que, com apenas dois anos, havia assistido a tortura de seus pais. Enquanto segurava a fotografia, uma voz atravessou a minha fala: “Este é meu irmão Ernesto”. A perplexidade de todos/as diante da presença daquela mulher, que se apresentou como Zuleide, provocou emoções e o desejo de ouvi-la.

Na época da prisão pelas forças de repressão, em 1970, com apenas 4 anos, Zuleide havia convivido com a avó em um “aparelho” do grupo armado Vanguarda Popular Revolucionária, no Vale do Ribeira, em São Paulo. Com ela havia sido detida e expulsa do Brasil, indo para a Nigéria e para Cuba, onde cresceu junto a seus irmãos, convivendo com filhos e filhas de outros/as militantes políticos/as.

O desejo de narrar sua história ao público e o meu encanto em estar diante daquela criança, testemunha e agente da história, hoje transformada numa mulher que entende o valor da memória sobre sua avó, fez acontecer uma entrevista em 2020, que aqui apresento de forma transcriada, no formato de narrativa em primeira pessoa. O intuito foi evidenciar e valorizar suas palavras, dirigidas a mim como quem se dirige a um público com quem ela decidiu dialogar “como um dever”. A entrevista foi realizada no dia 18 de julho de 2020, no formato online, e contou com a presença do estudante de Graduação em História, Lucas da Silva Borges.

Ao falar sobre si, Zuleide revela a consciência que construiu diante do convite para falar de um passado que desconhecia como importante. Demonstra como o ato de contar produz uma imagem sobre si mesma no presente como narradora e perpetuadora de uma memória que não lhe pertence, mas ao mundo. Às suas lembranças pessoais, relativas a uma menina de 4 anos, mistura conhecimentos aos quais teve acesso pela leitura e pela convivência com sua avó, seu tio Neto e seus irmãos (como a greve de Osasco em 1968 e a própria guerrilha), já não sendo possível mais separar sua experiência daquelas que enfrentaram a ditadura. Compõe uma memória tecida à trajetória de sua avó, que é também a história de muitas mulheres brasileiras que se constituíram como sujeitas históricas, constituindo uma prática política que não foi apenas ideológica, mas afetiva e transgressora do autoritarismo e do patriarcado.

***

Eu sou Zuleide Aparecida do Nascimento, uma secretária que também dá aulas particulares de espanhol. Eu vivo em São Paulo e hoje eu tenho 54 anos. Nasci aqui no Brasil, na cidade de Osasco. Venho de uma família que eu não posso esquecer... Uma família que militou na época da ditadura, que militou contra a ditadura... E essa história começou com a minha avó Tercina, de quem eu tenho muito orgulho!

No começo, pra eu falar sobre isso, era muito difícil!... A primeira vez que me procuraram para falar sobre esse período, eu não sabia dessa dimensão da minha história. Pra mim, era uma história de vida, uma história de vida comum como qualquer um tem a sua. Então, pra mim a minha história de vida era como outra qualquer... Mas, então, quando começou o período do governo do presidente Lula, nos anos 2000, o Lula abriu os arquivos... O arquivo nacional, que começou a surgir fotos das pessoas da época da ditadura e tudo mais.... Começou a surgir essas fotos que estão inclusive nesta revista que está aqui comigo, você está vendo? E aí, esta foto em que estou com meus irmãos, ainda crianças, não é do meu arquivo pessoal. Esta foto está no Arquivo, né? Era um arquivo da ditadura! Um arquivo da repressão! Então, os jornalistas começaram a me procurar, e eu fiquei sem parafuso... Eu me perguntava: o que eu tenho a ver?!




Capa da Revista Brasileiros mostrada por Zuleide durante a entrevista. 26/03/2013.

Foi quando eu tive noção! Porque, como não estudei aqui, quando tive a noção de que o povo não tinha noção desse período, fiquei perplexa! Porque não é uma coisa que se dá nas escolas, assim, entendeu? Isso ainda é passado muito superficialmente no Brasil! Existem professores, inclusive, que negam que isso tenha acontecido!... E eu, como morei em Cuba e estudei lá, em Cuba a História é abrangente e fala de tudo! É uma história, assim, destapada mesmo, que topa todos os assuntos. Até deu para que eu conhecesse um pouco da história do Brasil, porque eu aprendi lá em Cuba, entendeu? E para mim, era comum aqui também... Tratar de todos os assuntos, mas não! Foi quando eu comecei a contar minhas histórias, entendeu? Hoje, para mim, se torna uma história um pouco mais suave, porque de tanto eu falar, ela vai sendo digerida, sabe? É terapêutico! Toda vez que vou dar uma explicação de alguma coisa sobre aquele período, eu faço uma terapia.

Minha avó, era uma mulher porreta, pernambucana, arretada, que saiu lá de Pernambuco, com os filhos dela pequenos... Bem jovenzinhos ainda, e veio, passou por muita coisa!... Na realidade, minha avó teve vários companheiros na vida, e acho que o último companheiro dela era ligado e simpatizante do Partido Comunista, tinha uma simpatia pelo Prestes. E minha avó começou a ter noção de quem era Carlos Prestes, com os companheiros dele e tudo mais. E o companheiro dela acaba sendo morto, não sei muito certo o porquê. O Ernesto, meu irmão tem mais essa história de saber por que o avô foi morto. Mas eu não procurei saber quando minha avó era viva, porque eu não tinha noção disso antes...

Tercina Dias de Oliveira era o nome dela e ela era conhecida por todos os militantes como “A Tia”, porque era das pessoas mais velhas do movimento. Então, porque o pessoal do Movimento, era tudo estudante, jovens operários, eles a chamavam de Tia, que ficou sendo seu pseudônimo na luta arma também.

Bom, então minha avó veio de Pernambuco, procurando uma melhor condição de vida, procurando alguma coisa para sustentar os filhos melhor e tudo mais. Ela era de uma família de pescadores, nasceu em São José da Broa Grande, uma cidade bem de pescadores, lá em Pernambuco... aí ela veio pra cá, passou pelo Rio de Janeiro, e se estabeleceu aqui em Osasco-SP. Osasco na época, começo dos anos 1960, era só mato, não tinha nada aqui. E aqui era para onde vinham mais as pessoas pernambucanas e outros migrantes. E aí minha avó começa a criar os filhos dela aqui, e também porque um dos sonhos dela era ir atrás do Prestes; ela veio procurando porque tinha uma simpatia por ele por causa do companheiro dela.

A minha avó teve quatro companheiros, na realidade... Com treze anos de idade ela foi praticamente vendida a um velho do exército e tudo mais. Assim, o cara passou lá pela cidade de Pernambuco, gostou da menina e chegou na casa dos familiares querendo casar com a menina. Treze anos ela tinha!... Mas, para a família que vivia naquele “mizerê” todo era uma boca a menos que saía de casa. Era um filho a menos para se preocupar, né? E a minha avó contava que ele conseguiu fazer dela mulher, uma vez que ela estava tão cansada e dormiu, acabou dormindo. E o cara foi lá e.… porque ela não deixava o cara se aproximar... Mas um dia, muito cansada, ela dormiu e o cara foi lá, e fez dela a mulher, né? Mas ela falava assim: “Mas, pela minha graça, antes de completar 15 anos eu já tava viúva!”... E completava assim: “No enterro do primeiro, eu conheci o segundo!”... Ela casou-se com esses outros três, assim maridos de convivência, e mais o último que era o pai do filho dela caçula, o Zeca, filho disse que teve envolvimento com o Partido Comunista e tudo mais. Foi quando ela começou a entender as coisas...

Então, aí ela veio para São Paulo com uma esperança de conhecer o Prestes, e se instalou aqui em Osasco. Aqui em Osasco ela trabalhava na máquina, costurando, e fazia cocada doce para os filhos dela saírem para vender na rua, certo? E aí, os meninos foram crescendo, virando já adolescentes... Aí entra a história do meu tio, Manuel Dias do Nascimento... Que aí ele acaba virando metalúrgico; com 14 anos ele já trabalhava numa fábrica metalúrgica... E aí era uma sacanagem, porque com aquela idade, era responsável pelo torno, era o torneiro mecânico! Mas aí ele ganhava menos que os auxiliares dele, porque era menor de idade, entendeu? E aí minha avó começou a ver a outra parte do que era ser um operário, e com essa luta toda, ela incentivou meu tio a entrar no sindicato dos metalúrgicos de Osasco. Com 15 anos ele estava se filiando lá no sindicato. Se eu não me engano, ele é o terceiro filiado do sindicato, alguma coisa assim...

Já em 64 teve o golpe. E eu nasci em agosto no ano de 65, após o golpe. Que eu sou filha do Sebastião Riva do Nascimento, que é filho dessa minha avó, né? Ele é filho adotivo, mas é filho dela, e irmão desse meu tio Manuel Dias do Nascimento. Com cinco meses de idade, em 65, meu pai e minha mãe se separaram, certo? Se separaram, e aí tiveram desavenças e cada um foi para um lado, e meu pai me levou para a casa da minha avó, a mãe dele. E o meu tio Manuel, conhecido como Neto, ainda não era nem casado e vivia com avó e tudo mais, com a mãe dele, né? E aí eu tinha 5 meses de idade e meu irmão Luiz Carlos, que é meu irmão por parte de mãe e pai, tinha acho que um ano. E meu pai levou a gente e deixou lá na casa da avó, certo? Aí, vai pro mundo também... Meu pai também teve um envolvimento com o PC do B, o Partido Comunista da época, mas não foi uma militância tão aderida, não foi guerrilheiro, como foi o irmão dele. A não ser depois que ele sumiu, eu não sei o que ele fez. Em 68, meu tio foi detido várias vezes, entendeu? Em 68, foi um período assim, onde o negócio começou mais pesado, teve uma greve, chamada aqui em Osasco de A greve da Cobrasma, e meu tio foi uma das lideranças dessa greve, certo.

Muitas reuniões dessa greve foram feitas na casa da minha avó, inclusive. Minha vó tinha contato com todos esses meninos que trabalhavam junto com meu tio na Cobrasma e tudo mais. E aí, estoura essa greve, que foi uma greve muito significativa na época da Ditadura... Osasco, naquela época, era um pólo de resistência muito grande, e era um polo... Por que um polo de resistência muito grande? Porque nessa época, em 60 e poucos, Osasco era um grande polo industrial. Não era São Bernardo, era em Osasco! Então, aqui tinha muito operário e tinha um pessoal que trabalhava como operário e fazia teatro de rua também, era uma coisa muito linda! Osasco naquela época, era uma grande resistência tanto cultural, como de militância e sindical e tudo mais. E naquela época, o metalúrgico, aqui de Osasco, a oposição, que era uma chapa mais ligada à esquerda, ganhou o sindicato. E eu acho que foi na ditadura, o único sindicato que o pessoal da esquerda, o pessoal progressista tirou da mão do interventor... e aí foi quando eles conseguiram fazer essa greve.

Foi aquela coisa linda, aquela coisa... que foi a greve da Cobrasma! Bom, a partir daí, quando o negócio começou a ficar mais duro, houve essa greve, que é quando acontece o AI-5, né? Que o negócio começa a fechar, que começa a cair gente presa, que começa a cair gente.... tortura! Que começa a apertar mesmo o cerco. E aí começam a surgir os partidos, as lutas armadas, entendeu? Os partidos clandestinos, as organizações clandestinas e começa a surgir a luta armada. Meu tio foi convidado pelo Zequinha Barreto, que morreu junto com o Lamarca, a entrar nesse período, depois de 68. Lamarca, o capitão do exército, não se conformava com os absurdos que o exército fazia, porque ele falou assim: “Eu entrei no exército e o exército era pra mim, para defender o povo, mas eu tô vendo que o exército tá fazendo o contrário. Então, eu não pertenço a esse exército!” .

Aí, ele saiu daqui de Osasco, de um quartel chamado Quitaúna... saiu com uma kombi cheia de armas e fundou uma organização chamada VPR – Vanguarda Popular Revolucionária. O Zequinha entra nessa, que era um também dos líderes da Cobrasma. Ele um rapaz muito, nossa, era muito aguerrido, era muito!... Eles começam a fazer uma militância armada, e o Lamarca, que era um exímio atirador do exército, decide que ia treinar o pessoal. E aí a organização compra um terreno lá no Vale do Ribeira, monta uma casa lá, que naquela época essas casas eram chamadas de aparelho, onde aconteciam que as pessoas se escondiam, aconteciam as reuniões e tudo mais.

Bom, com essa casa montada lá no Vale do Ribeira, certo? O Lamarca tem uma grande... Ele precisava de alguém que cuidasse de lá, porque ele ficava fora da casa um tempão ensinando o pessoal a atirar. Então, era assim: ali era uma casa transitória, onde as pessoas chegavam da cidade e encontravam-se com ele lá, iam pro mato e ficavam 15 dias, 20 dias em treinamento. Nisso ele comentou que precisava de alguém que tomasse conta daquela casa e meu tio Manuel Dias do Nascimento chega na casa da minha avó e comenta isso com ela, que o Lamarca estava precisando de alguém que tomasse conta da casa, né? E ela pegou e falou: “Eu vou! Eu vou!”... Aí meu tio pegou e falou: “Mas como que você vai?!”.

E antes disso, tem umas passagens que me vem na minha cabeça assim, que tem uns flashes, né? Uma das vezes, antes de entrar pra luta armada, meu tio foi detido por conta de greve e tudo mais. Eu me lembro que minha avó levou a gente para um quartel, era um quartel ou uma coisa assim... procurando o filho dela. Lembro que levaram ela para uma sala e deixaram um tempo esperando lá, esperando para ser atendida; deixaram ela lá um tempão esperando com a gente, os netos que moravam com ela. Tem o Luís Carlos que na época tinha 6 anos, que é meu irmão por parte de mãe e pai. E tem o Samuel, que na época que foi preso tinha 9 anos, que é um filho de criação da minha avó. Um menino que a minha avó criava quando ela passou lá pelo Rio de Janeiro. Esse menino estava brincando no cemitério, ela chegou e falou pra mãe dele que ele ficava sozinho, se ela pudesse criar o menino e a mãe dele deixar ela trazer pra São Paulo. E tinha o Ernesto, que tinha só dois anos, que ficava com o pai dele, o Manuel Dias do Nascimento, meu tio.

Então, quando meu tio é detido por causa da greve e minha avó vai pro quartel com nós três, ela vai lá atrás do filho dela. Como deixam ela numa sala, esperando, minha avó ficou cansada de esperar e ninguém aparecia para dar notícias do filho dela... Tinha uns bancos compridos e ela fez a gente subir no banco e começar a pular. Então, três crianças em cima de um banco de madeira, pulando!... Fez um barulhão danado... Foi quando alguém voltou para falar com ela, que queria saber do filho dela, onde estava e o que tinha acontecido. Uma das histórias que me vem à cabeça...

Eu era criança, tinha quatro anos, mas eu lembro disso! Então, eu não lembro de tudo assim do contexto do que se passou, não, mas lembro de que ela mandou a gente pular em cima do banco, enfim. Como ela era corajosa!

E quando ela decide ir pro Vale do Ribeira, e meu Tio, Manoel Dias do Nascimento, o Neto, chega na casa da minha vó falando, que Lamarca precisava de alguém, aí minha avó pegou e falou: “Eu vou!”... E ele perguntou: “Mas e as crianças?!”... Ela respondeu: “Vai comigo!”... Ela sempre foi muito decidida! Então, vai com nós três para o Vale do Ribeira. Meu tio conta brincando, meu tio fala: “Minha mãe me jogou na luta sindical e eu a joguei na luta armada, né?”... Ele fala brincando!

A organização, então, teve uma grande ideia: junto com a minha avó iria um senhor também, que era um dos mais velho da luta, chamado La Vecchia! Eles formariam um casal de velhos que cuidariam dos netos naquela casa. Era a fachada da casa, um lugar transitório onde passava o pessoal que vinha da cidade, Lamarca encontrava com eles, levava para o mato, ficava 15/20 dias e voltava. Minha avó começou a ter uma função, de fazer os uniformes do pessoal que ia fazer treinamento no mato, e ela começou a fazer também as comidas que eles levavam. Eu lembro de minha avó pilando, pilão grande! Minha avó fazendo aquelas carnes secas, piladas na farofa, sabe aquelas coisas? Que era comida que durava um bom tempo pra levar pro mato.

O Samuel, que era o mais velho e que na época ele tinha 9 anos, tinha a função, também lá. Ele fazia uma função assim, de vigia, porque assim o pessoal ia pro mato e tinha o pessoal da organização que ficava dando a retaguarda. E o Samuel ficava encarregado lá na casa, porque se ele visse qualquer coisa de estranho, qualquer coisa desse problema, ele ia num ponto específico lá, onde tinha um sino, e tinha que bater pra dar um alerta pro pessoal de que alguma coisa tava acontecendo. E a gente ficava lá.

Nessa situação, não lembro o que eu penava, porque para mim, era normal. Agora, eu tinha consciência que em algum momento poderia acontecer alguma coisa com a gente. Porque, assim, toda vez que chegava alguém em casa, batia na porta, eu ia para atrás da porta, com um pau na mão. Eu sabia que alguma coisa podia acontecer... A gente, estava nesse aparelho, sabia mais ou menos o que estava acontecendo, porque quando tinha alguém lá em casa conversando com a minha avó e chegava outra pessoa, esse alguém se escondia, e a gente não dava nem sinal que lá em casa tinha uma pessoa. Então, a gente era muito bem treinada assim, muito bem... entendeu? A gente não tinha consciência política, claro, mas a gente sabia que havia algo. Era uma coisa muito louca! Até porque começou a “cair” muita gente, muita gente sendo presa, que conhecia esse aparelho lá do vale do Ribeira. E aí, isso já na época de 69, final de 69/70 por aí...

Aí o Lamarca achou melhor a gente desmontar aquilo lá, porque a qualquer momento ia “cair” a gente também. Ele chegou e tirou todo mundo de lá. Fomos para o Peruíbe, cidade do litoral, e parece que um dia depois, ou dois dias depois de a gente ter saído de lá os caras chegaram. Entendeu? E o Vale do Ribeira serviu muito para ser arapuca, porque eles começaram a fazer da casa como se tivesse a rotina normal. Colocava roupa nossa no varal, davam comidas pros bichos. Quem chegasse assim de longe e olhasse pra casa, falava: “Nossa, tá tudo normal!”... E aí as pessoas que chegaram lá foram presas, entendeu? Depois o exército jogou bombas, aquelas bombas que jogaram no Vietnã também jogaram lá no Vale do Ribeira.

Então, aí a gente foi lá para Peruíbe, para outro aparelho, certo? Então a militância continuava, e aí teve um dia que saiu lá da casa em Peruíbe um casal de companheiros que iam fazer uma ação. E naquela época, era assim: se você fosse preso tinha que ter a coragem de se matar, para não sofrer a tortura. Minha avó costurava nas camisas do meu tio, às vezes, cianureto que é, né... E aí, saiu esse casal de companheiros que iam fazer uma ação, lá da casa de Peruíbe, e foram presos. O cara se matou, ele conseguiu se matar, só que ela não. Não me lembro como era o nome dela. Ela não conseguiu se matar, mas a minha avó falava sobre isso, e tem no livro. Não sei se você tem o livro Mulheres que foram à luta armada; lá tem vários relatos sobre isso. E aí, essa mulher acabou sofrendo a tortura e acaba entregando, inclusive, falando onde minha avó estava e tudo mais. Eu não condeno, e a minha avó também não condenava. Não é fácil resistir, não é fácil você resistir a uma tortura!! Não é todo mundo que consegue passar por isso. Eu, francamente, não abri minha boca, porque era criança e não sabia nada. Hoje, com a formação que eu tenho, eu posso morrer sem abrir minha boca, mas naquela época...

Minha avó estava lá em casa no mesmo dia em que a gente foi presa, era a noite. E a minha avó contava, inclusive no livro Mulheres que vão à luta armada, numa passagem de que estava, eu e o Carlinhos, eu na época com 4 anos e o Carlinhos com 6, estávamos dormindo. E o Samuel estava sentado na varanda da casa junto com ela. Lá em Peruíbe, ele falou assim: “Vó, eu tenho uma história pra te contar, mas é daquelas histórias, daquelas histórias que não podem ser contadas”. E ela falou: “O que que foi Samuel?”. Ele olhou pra ela e disse: “Vó, eu sonhei essa noite que chegavam uns homens aqui em casa num carro preto, muitos homens aqui em casa num carro preto”. E ela respondeu: “Samuel, isso tá pra acontecer, porque pessoas, assim como a gente, que faz o que a gente faz, é o que está sujeito a acontecer. Então isso está pra acontecer.”

Aí disseram que foram dormir e de madrugada bateram na casa, na janela do quarto, sei lá. E minha avó perguntou quem era. E a pessoa falou: “É a Maricota!”, que era o apelido que a minha avó dava pra uma mulher. Ela foi lá, abriu a porta, e os caras estavam tudo à paisana, sem uniforme, e minha avó pensou que eles eram companheiros. Começou a abraçar todo mundo. Em seguida entraram os militares: “A senhora está presa!”... Foram revistando a casa até chegar no quarto em que a gente estava dormindo, e aí minha avó reclamou muito disso: “Eles não deixaram eu colocar nem a mão nos meus netos. Eles não deixaram nem eu trocar a roupa dos meus netos!”... Eles entraram, tiraram a gente, tiraram a roupa da gente e levaram.

Eu tenho uns lampejos assim: eu dentro de um carro, com os caras. Carro preto, vidro fumê, sabe... Uns lampejos, mas não é uma coisa muito clara.. Fomos levados para o DOPS, certo? Chegando lá, separam a gente da minha avó. Minha avó, olha pra gente, e fala assim: “Vocês fiquem firmes”... Na passagem, quando o Samuel conta pra ela do sonho, ela fala: “Samuel, você que é o mais velho, você vai ter que tomar conta do Carlinho e da Zuleide, pra eles não falarem nada”... Aí, quando a gente chegou lá no DOPS, que separam a gente, ela pegou e falou “Olha, vocês fiquem firmes, vocês não falem nada!” e virou as costas e foi embora, nem olhando para trás. E a gente lá, se desesperando... O Carlinhos conta que ele era o mais apegado com ela, assim. E ele se desesperou. Aí nós fomos levados para uma casa, uma casa de gente endinheirada. Por que que eu sei? Porque o Carlinhos... A gente ficava dentro dessa casa trancados num quarto. Acho que a gente ficou uma semana, uns 15 dias, por aí, trancados num quarto, onde uma mulher entrava, levava comida e água pra gente e saía e fechava a porta. Ela não trocava uma palavra com a gente, nem nada! O Carlinhos contou, que um dia, ela esqueceu de trancar a porta, e ele era o mais agitado. Aí, ele saiu da casa e teve condições de ver como era a casa. Uma casa bem mobiliada, e por isso que a gente deduz, que era gente que tinha dinheiro. E aí a mulher viu ele, pegou ele pelo braço e falou: “Você não pode sair daqui!”... E levou ele de volta. Eu não sei o que aconteceu depois disso, não sei o que significou isso. Para falar pra minha avó que os seus netos estavam sumidos, não sei, qual foi o intuito disso.

Eu sei que depois, a gente foi levada para o juizado de menor. No juizado de menor, ficamos eu e o Carlinhos numa ala, junto com os menores, e o Samuel, que era um menino, que na época tinha 9 anos, ficou separado da gente, numa ala onde ficavam os meninos, que estavam lá por que tinham cometido algum delito. O Samuel, eu sei que apanhou muito lá dentro, sei que ele apanhou muito. A gente não apanhou como o Samuel apanhou. A tortura que fizeram com a gente, na época, eu lembro que para mim foi uma tortura, foi terem cortado meu cabelo, por isso que eu tenho esse cabelo aqui na altura da orelha. Eu tinha cabelo grande, até a cintura. Lembro que elas fizeram uma trança no meu cabelo, e lembro de outra mulher parar... isso eu lembro muito bem... Olha o tanto que me chocou isso!... A mulher parada, olhando assim, falou para mim: “Me dá essa trança que eu quero fazer uma peruca pra mim”. Dizem que eu fiquei até doente. Relataram pra minha avó, por causa do cabelo que cortaram. Depois não sei quem me deu aquela boneca; era pra distrair a gente...

Aí a gente ficou nesse juizado de menor... É um flash que vem na minha cabeça, que um dia dormindo, no outro dia amanheceu, eu acordei e encontrei o Ernesto lá com a gente. E me lembro que naquela época foi uma confusão pra mim: “Ué, o Ernesto não estava aqui, por que o Ernesto está aqui agora?”... E me lembro dessa confusão, porque foi uma coisa que me marcou muito. O porquê de o Ernesto estar aqui com a gente... Na época, eu não entendia nada, mas hoje eu sei que é porque a mãe com o pai dele tinham sido presos também.

Aí nesse meio tempo, estava acontecendo todo o reboliço... Nesse meio tempo, 1971, a VPR abriu uma ação, sequestrou o embaixador alemão. Se eu não me engano, foi o terceiro embaixador sequestrado. Eu sei que o embaixador alemão é sequestrado pela VPR e aí começa a se organizar a troca. Soltaram o embaixador, em troca de 40 prisioneiros. Quem era encarregado de fazer essa lista eram os próprios presos. Eles faziam a lista e falavam: “Acho que o fulano tem que sair, o cicrano tem que sair”. E a minha avó entrou nesta lista dos 40. Minha avó falava que ela não foi torturada assim lá dentro, que ela levou uns “bolos” na mão e aí ela ofereceu a outra mão pro cara e falou: “Você não tem mãe?!”... E acho que do jeito que ela se posicionou, constrangeu o guarda, que parou de bater nela... Se você ver as fotos da minha avó quando ela estava presa, eram fotos dela fazendo pose, porque falava pros seus torturadores: “Eu tô bonita? Tô melhor assim?”... Ela era muito debochada!! E era uma mulher muito forte... Quando o cara bateu nela, ela encarou e falou: “Você não tem mãe?” E como ela já era uma senhora, isso deve ter assustado. Eu sei que os caras lá, os carcereiros, chamavam ela também como Tia.

Bom, então acontece o sequestro do embaixador alemão. Minha avó entra na lista e fica sabendo que tinha entrado na lista, que ia sair. Mas que iam ser banidas do país, não era bem quista aqui. Minha avó falou: ’Tudo bem, só que eu quero meus netos!”... Nesse meio tempo, ela descobriu que o Ernesto estava com a gente. Por que naquela época, tinham algumas companheiras que serviam principalmente, militantes, que tinham a função de percorrer os lugares onde tinha crianças para saber mapear onde estavam os filhos... Porque na Argentina as crianças sumiram! Aí era o cuidado para as crianças dos militantes não sumirem. E ela mapeava. Então, através de uma mulher dessa é que minha avó ficou sabendo que o Ernesto estava lá com a gente. Minha avó começou a brigar para tirar a gente. E a minha avó falava: “Eu entrei aqui com três e vou sair daqui com quatro! Eu quero meus netos, meus netos vão comigo!”... Minha avó falava que tinha pessoas e até companheiras que falavam pra ela: “Você está atrasando nosso lado”. Mas a minha avó falou: “Eu não vou deixar de levar meus netos. E aí minha avó falava também, que tinha um rapaz que era carcereiro, que dizia: “Tia, você vai conseguir. Fica firme que você consegue”. E aí minha avó brigou, brigou e conseguiu!... Aí pra tirar o Ernesto foi um pouco mais complicado, porque ela teve que conversar com a mãe do Ernesto que estava presa, e tudo mais. A Jovelina, minha tia Jô, que hoje já é falecida. É, a primeira mulher do Neto. E aí, ela acaba dando permissão de tirar o Ernesto e a minha avó consegue tirar nós quatro! Ela enfrentou aqueles homens!...



Tercina com seus netos Samuel, Luiz Carlos, Zuleide e Ernesto.
Prontuários do DOPS, no Arquivo do Estado de São Paulo

Quando minha avó sai com o Ernesto do sequestro, a organização fica sabendo que o Manuel, meu tio e a minha tia Jô estão presos. Até o momento, eles não sabiam. Se a minha avó não tivesse feito barulho e não tivesse conseguido tirar o Ernesto; se a gente tivesse ido para adoção, meu tio e minha tia seriam desaparecidos políticos hoje. Ninguém da organização tinha noção que eles tinham sido presos! A partir do momento em que a minha avó luta por nós e diz que não vai sair do Brasil sem os quatro. No momento em que ela luta pra levar o Ernesto e ela consegue fazer ele sair, a organização fica sabendo que o Neto e a Jô estão presos, e isso foi fundamental para salvá-los! Depois, eles acabam saindo, no último sequestro, que é do embaixador suíço, onde saíram 70 prisioneiros políticos. Foi o maior número de prisioneiros políticos que saíram! E aí eles foram pro Chile; a pouco tempo de estarem no Chile, acontece o golpe do Allende, acho que foram três meses, alguma coisa assim... Pouco tempo. Aí, também passam por esse sufoco lá, pra fugir, mas tia Jô acaba sendo presa e vai para aquele estádio lá em Santhiago, e acaba tendo que armar pra poder sair de lá. Depois eles acabam fugindo do Chile e vão para Cuba.

Nós fomos trocados pelo embaixador. Tem uma foto, que eu vou ver a foto aqui, que é uma foto famosa dos 40 prisioneiros, que é onde a gente está quando saiu. Minha avó tá aqui e nós logo na frente. Fomos todos fichados e banidos como terroristas!! Até nós, crianças, taxadas como terroristas!



Tercina e seus netos junto a militantes banidos na troca pelo embaixador alemão.
Prontuários do DOPS, no Arquivo do Estado de São Paulo

Eu tenho memória, por exemplo, de quando a gente saiu do aeroporto para encontrar esse povo aqui no Rio de Janeiro, que era de onde saíam os voos. Eu lembro de sair de helicóptero e que era um Helicóptero Militar. E assim, dentro do helicóptero, tinha um monte de milico armado. Tá aqui na minha cabeça, eu tô vendo, eu dentro desse helicóptero com os caras armados... A gente saiu daqui e nos mandaram pra Argélia, nós fomos pra Argélia. A Argélia também era uma guerra civil na época, e o mês era mais ou menos maio/junho que a gente saiu daqui isso em 1970. E esses desgraçados devem ter falado: “Não morreram aqui, vão morrer lá!”.

Então chegando lá, a gente ficou um tempo hospedado em um hotel, e aí eu lembro que eu tinha medo daquelas mulheres de burca. Eu lembro disso! Sei que a gente ficou lá um mês mais ou menos, e aí a Organização que a gente pertencia, junto com a ONU fez negociações com Cuba, e Cuba nos recebeu. Eu sei que dia 27 de julho de 1970, eu estava desembarcando em Cuba. Era pra chegar dia 26, estava com comemoração montada, mas não deu, e aí a gente desembarcou em Cuba dia 27 de julho de 1970. Lá já morava uma mulher chamada Damares, que é viúva de um dos militantes políticos da VPR, que era o Antônio Lucena, conhecido como Doutor. Ela já estava em Cuba com os filhos dela. E aí, a gente ia morar na mesma casa com ela. Então juntaram várias mulheres: minha avó Tercina, a Damares, com oito crianças dentro de uma casa, porque aí a filha da Soledad, guerrilheira uruguaia, também ficou lá com a gente. Porque a Soledad volta para continuar na luta armada, aí logo depois ela morreu...

E lá em Cuba ficamos 16 anos. Que foi o período que eu imaginei: “Nossa, que legal conseguir ser criança sem todas essas pressões”. E eu dou graças a Deus de ter ido para Cuba de não ter ficado aqui no Brasil, depois de ter sido banida, de ter acontecido todas essas coisas comigo, de ter sido presa. Porque os meninos que ficaram aqui, sofreram muito mais, porque sofreram bullying na escola, sofreram horrores, eu não! Pelo menos fui para um lugar, onde pude ser criança com a minha avó, mulher que tanto admiro! Essa é nossa história...

Minha avó Tercina faleceu em 8 de março de 2003. Ela ainda é referência para todos que lembram da guerrilha e da luta contra a ditadura brasileira. A participação da mulher nesse período foi de extrema importância. As mulheres seguraram um rojão que não foi fácil! Tanto as companheiras que se submeteram a um monte de coisa para ir visitar seus maridos, seus irmãos... E eram umas pessoas que tinham uma importância histórica, apesar de não parecer. Teve mulheres que, como minha avó, tiveram uma importância e que não apareceram, foram esquecidas. Que nem minha avó, assim... A minha avó ainda é mais lembrada porque ela não tinha um marido. Ela era a cabeça do negócio, era ousada e independente. Mas as outras que ficaram por trás dos bastidores, tiveram uma importância enorme, porque, na verdade, não ficaram por trás dos bastidores. Elas agiram de diferentes formas! Tem a Dulce Maia, que foi uma militante porreta. E teve muitas outras. A Iara! E esposas, mães e irmãs que guardam armas, cozinharam, ajudaram a esconder pessoas, arriscaram sua vida e de sua família! Então, as mulheres tiveram uma posição grande e forte nessa época, fora as que ficaram presentes o tempo todo e depois ficaram ainda pela luta da Anistia aqui, haja vista a mãe do José Ibrahim, operário e guerrilheiro da VPR junto com meu tio. Como que ela foi guerreira!! Acho que não existe nada que não tenha a participação da mulher. Pena que nem todas as mulheres tenham consciência disso, do quanto que nós somos importantes na sociedade. É pena que Não há reconhecimento também por parte de muitos homens dessa história!...

Uma coisa que eu quero falar, que eu sempre falo, deixar bem claro assim: que apesar de muitos negarem a História, e tentaram reinventar a história hoje, tentar ficar fazendo esse revisionismo na História, quero deixar bem claro. Não existe revisionismo! De fato é isso, houve a Ditadura, muitos crimes foram cometidos em nome da pátria. Nessa época muitas mães e pais ficaram sem filhos, muitos filhos ficaram sem pai e sem mãe. Muitas atrocidades foram cometidas. Hoje, eu faço isso que estou fazendo, pois pra mim é um dever fazer! A Marta me conheceu por exemplo numa escola, eu dando palestra para os alunos, que é isso que estou me dedicando, porque a pandemia me interrompeu. Eu tô me dedicando hoje a fazer isso, em nome da minha avó e de todos que lutaram contra a ditadura. Uma das coisas que me levou a me aposentar foi isso: eu ter tempo de ir para as escolas e contar essa minha história; a história da minha avó, das mulheres desse país! A partir do momento em que o pessoal começou a negar a história, eu falei: “Não, eu tenho realmente que contar o que acontece!”.

O Brasil é um país cheio de histórias de revoluções e de resistência. São histórias que não são contadas dentro da escola. Muitas pessoas morreram e não podem mais contar hoje o que de fato aconteceu. Eu não! Eu estou viva ainda, então eu posso contar! Eu não me nego, porque é uma história que pertence a todos nós! É uma história que eu faço parte, mas não pertence só a mim. É uma história que nos pertence! E essa história tem que ser contada quantas vezes que for necessária. Quando eu não estiver mais aqui, como minha avó não está, conte o que aconteceu, que a história do país é essa. E é isso! Estamos juntos, e nos dias de hoje, estamos vivendo esse reverbero da história, e eu acho importante a gente estar aqui. Para contar!

Eu fui lá, na Comissão Nacional da Verdade dar um depoimento. Então, foi a primeira vez que eu contei a história da gente. Eu me lembro que aquele dia eu sai de lá, da Comissão, até porque é um negócio muito impressionante, muito emocionante, quando todo mundo levanta e fala assim: “Em nome do Estado, lhe pedimos desculpa, e a partir de hoje, você é anistiado politicamente” ... Isso é de uma emoção tão grande! Apesar desse perdão não nos sarar, sabe? Essa solenidade... e o fato de a gente estar contando a nossa história, é tudo muito forte! E eu saí de lá como se um trator tivesse passado por cima de mim! Mas eu vou continuar contando...

Autor notes

i Professora adjunta na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, com estágio pós-doutoral pela Universidade Federal Fluminense. Professora colaboradora da Universidade de São Paulo. Diretora do Instituto de Ciências Humanas e Letras da UNIFAL-MG. Vice-coordenadora do GT de Gênero ANPUH-MG. E-mail: marta.rovai@unifal-mg.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0769-0748.

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