Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


A FORMAÇÃO DA MALHA ECLESIÁSTICA DO TERRITÓRIO DA COMARCA DO SERRO DO FRIO, MINAS GERAIS, 1702-1821
THE FORMATION OF THE ECCLESIASTIC MESH OF THE TERRITORY OF THE DISTRICT OF SERRO DO FRIO, MINAS GERAIS, 1702-1821
LA FORMACIÓN DE LA MALLA ECLESIÁSTICA DEL TERRITORIO DEL DISTRITO DE SERRO DO FRIO, MINAS GERAIS, 1702-1821
Caminhos da História, vol. 28, núm. 1, pp. 183-202, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos Livres

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 28, núm. 1, 2023

Recepção: 19 Abril 2022

Aprovação: 16 Maio 2022


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: Este estudo propõe avaliar de maneira crítica a relação entre a colonização portuguesa do território brasileiro a partir das minas do Serro do Frio [atual cidade do Serro/MG] no período entre 1702 e 1821 e a criação da malha eclesiástica em constante disputa entre três arcebispados, o da Bahia, a do Rio de Janeiro e a de Mariana pela massa de fiéis devotos sob influência da “sombra tridentina”. Discutimos a atuação dos bispos diocesanos no cotidiano dessas populações da Comarca do Serro do Frio com suas freguesias fundamentais para a compreensão do processo de formação do território nacional, uma vez que as igrejas enquanto templos delimitavam espaços de sociabilidades e de exercício político da autoridade e do poder dos seus padres e irmandades. A metodologia de investigação centrou-se na pesquisa bibliográfica e na moldura teórica micro-histórica a fim de descrever o espaço de atuação dos personagens do período. As conclusões apontam para uma divisão temporal da formação da malha eclesiástica serrana e mineira, entre os períodos de 1702 a 1750 o (Antigo Regime português) e de 1750 a 1821 (despotismo esclarecido português) marcada pela atuação dos sujeitos no sistema do padroado real.

Palavras-chave: s: Brasil Colônia, Padroado real português, Vila do Príncipe, Comarca do Serro do Frio, Dioceses coloniais.

Abstract: This study proposes to critically evaluate the relationship between the Portuguese colonization of The Brazilian territory from the mines of Serro do Frio [present-day city of Serro/MG] in the period between 1702 and 1821 and the creation of the ecclesiastical mesh in constant dispute between three archbishoprics, Bahia, Rio de Janeiro and Mariana for the mass of faithful devotees under the influence of the “Tridentine shadow”. We discussed the role of diocesan bishops in the daily lives of these populations of the Serro do Frio County with their parishes or parishes, which are fundamental for understanding the formation process of the national territory, since the churches as temples delimited spaces of sociability and political exercise of authority and power of its priests and brotherhoods. The research methodology focused on bibliographic research and the micro-historical theoretical framework in order to describe the space of the characters of the period. The conclusions point to a temporal division of the formation of the mountainous and mining ecclesiastical network, between the periods from 1702 to 1750 o (Old Portuguese Regime) and from 1750 to 1821 (enlightened Portuguese despotism) marked by the performance of the subjects in the system of the royal patronage.

Keywords: Colony Brazil, Portuguese royal patronage, Vila do Príncipe, Serro do Frio County, Colonial Dioceses.

Resumen: Este estudio se propone evaluar críticamente la relación entre la colonización portuguesa del territorio brasileño a partir de las minas de Serro do Frio [actual ciudad de Serro/MG] en el período comprendido entre 1702 y 1821 y la creación de la red eclesiástica en constante disputa entre tres arzobispados ., Bahía, Río de Janeiro y Mariana por la masa de fieles devotos bajo la influencia de la “sombra tridentina”. Discutimos el papel de los obispos diocesanos en el cotidiano de estas poblaciones de la Comarca do Serro do Frio con sus parroquias fundamentales para comprender el proceso de formación del territorio nacional, ya que las iglesias como templos delimitaron espacios de sociabilidad y ejercicio político de la autoridad y poder de sus sacerdotes y cofradías. La metodología de investigación se centró en la búsqueda bibliográfica y en el marco teórico microhistórico para describir el espacio de acción de los personajes de la época. Las conclusiones apuntan para una división temporal de la formación de la red eclesiástica en la Sierra y Minas, entre los períodos de 1702 a 1750 (Antiguo Régimen portugués) y de 1750 a 1821 (despotismo ilustrado portugués) marcada por la actuación de súbditos en el sistema de patrocinio real.

Palabras clave: Brasil Colonial, Real Patronato Portugués, Vila do Príncipe, Distrito de Serro do Frio, Diócesis Coloniales.

Introdução: a disputa colonial pelo território mineiro e a micro-história

O céu e a terra vivem no Serro numa constante harmonia de homens e Deus. Aliam-se em todas as circunstâncias, em todas as atividades, nas tristezas como nas alegrias. Eu já disse e repito que as alegrias coletivas da minha cidade são uma mistura do religioso com o profano.

Joaquim Ferreira de Salles, 1993

Quando as minas do Serro do Frio (Vila do Príncipe em 1714 e cidade do Serro em 1838) no território das minas gerais foram descobertas pelo bandeirante paulista Antônio Soares Ferreira e seus companheiros em 1702 vindos de Sabará, ele trouxe consigo a disputa pelos territórios mineiros pelos bispos da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro[1]. A cada nova capela edificada, a cada povoação em torno dos templos religiosos decentes para os ofícios divinos tornou-se imperativo definir quem comandava o território e teria sobre ele a legislação eclesiástica.

Podemos considerar, em termos hierárquicos, que o Arcebispado da Bahia possuía por tradição e primazia o direito garantido de tomar para si os novos territóros a fim de criar sua malha eclesiática com seus párocos e vigários, coadjutores e capelães. Contudo, o pertencimento dos territórios à uma diocese estava ligado ao padroado, ou seja, quem possuía o privilégio de tal determinação era efetivamente a Coroa portuguesa, “segundo o qual o rei, enquanto Grão-Mstre da Ordem de Cristo, tinha diversas prerrogativas: apresentar os bispos, escolher os padres das paróquias coladas, autorizar a construção de igrejas, determinar os limites das dioceses , receber os dízimos” (FONSECA, 2011, p. 84).

É preciso pensar que nos primeiros anos do século XVIII não havia sequer mapas confiáveis sobre os limites do território das minas gerais, e por isso se conclui que a princípio seria muito difícil determinar os limites territoriais das dioceses e sua rede de privilégios e atuação. Dessa forma, a noção de limite territorial e jurisdição diocesanos era muito difusa, vaga, téorica e não correspondia, muitas vezes ao cotidiano das comunidades de devotos católicos. Havia grande mobilidade de padres entre as dioceses e mesmo entre o Brasil e Portugal.

Parece-nos, apesar das observações feitas anteriormente, que consolidou-se nas minas do Serro do Frio duas influências: a do Arcebispado da Bahia com seus freis, frades e monges expulsos do território mineiro sistematicamente pelo governo por conta de sua relaxação moral dos costumes; a da Diocese do Rio do Janeiro, que se tornou mais efetiva com a visita pastoral ou pequena inquisição pelo cônego Gaspar Ribeiro Pereira a serviço do bispo dom Francisco de São Jerônimo, que governou a diocese de 1701 até 1721. Isso não significa que o território da Comarca do Serro do Frio a partir de 1720 seria todo ele comandado pela Diocese do Rio de Janeiro. Assim,

Enviando padres regulares – beneditinos e carmelitas – para tratar da cura espiritual dos mineiros. Isso provocou um litígio entre as duas autoridades diocesanas, que passaram a disputar a jurisdição sobre as minas, em particular, sobre aquelas situadas à margem do rio das Velhas, afluente do rio São Francisco (FONSECA, 2011, p. 91).

Até 1745, por ocasião da criação da Diocese de Mariana[2], o território da comarca serrana era dividido entre os bispos do Rio de Janeiro, que controlava as “paróquias das zonas propriamente mineradoras (centro e sul da capitania) (FONSECA, 2011, p. 99) e o da Bahia, que controlava “a porção norte do Vale do São Francisco” (FONSECA, 2011, p. 98). Isso significa que a principal freguesia ou localidade da Comarca do Serro do Frio mais ao norte no século XVIII, Minas Novas, estava sob o controle do Arcebispado da Bahia e isso revela a constante e complexa disputa pelos territórios mineiros pelos bispos com a autorização da Coroa portuguesa. Os limites entre minas gerais e os currais da Bahia foram sempre motivo de disputa jurídica e eclesiásticas. Em ordem régia de 15 de outubro de 1718, por exemplo, fica claro este dilema territorial:

Sobre limites entre Minas e Bahia, questão esta que diz resolvida por ordem do Conde de Andeja a D. Braz Baltasar da Silveira; mostra até onde vem as terras da concessão feita a D. Ana Maria Guedes de Brito, no rio de São Francisco, ás vertentes do rio das Velhas; demonstra como foram os paulistas os desbravadores destas zonas das Minas até a barra do rio das Velhas sem auxílio daquela senhora ou de seus antecessores; ordena, portanto, aos moradores da Barra daquele rio para cá não obedeçam a ordem alguma de pessoas dali que não seja expedida por este governo e suas justiças, não pagando foro ou pensão alguma a D. Isabel, nem a seus procuradores e sim á comarca do rio das Velhas (REVISTA DO ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO, 1933, p. 488).

Minas Novas teve constante disputa judicial de pertencimento à Comarca da Jacobina, criada em 1734[3] e a Comarca do Serro do Frio, a qual foi anexada definitivamente somente em 1760. Um território de minas de ouro e diamantes garantia aos bispados/dioceses o recolhimento das conhecenças e dízimos, além da criação de uma rede de privilégios e extensas relações de poder no regime do padroado. Território de minas de ouro e diamantes, território religioso, território político.

Pelas afirmações anteriores que abrem nosso estudo pode-se perceber que a moldura metodológica aplicada ao estudo da malha eclesiástica da Comarca do Serro do Frio tem como ponto de partida a atuação dos personagens do período de criação e sedimentação desta rede de ermidas, capelas, matrizes, dioceses que não se explicam por si só, como apenas edifícios contando sua própria história.

Pretendemos aplicar ao estudo a análise micro-histórica às trajetórias de vida e atuações dos personagens em contextos específicos, sociais, políticos, culturais e religiosos, evidentemente. Assim, a análise micro-histórica ou microanalítica desenvolvida por Serge Ginzburg, Carlo Castelnuovo e Carlo Poni (1989) nos auxilia a indagar as estruturas invisíveis que permitem experiências individuais e coletivas. Suas características principais são: a aproximação com a antropologia, a admissão do tempo longo e a não rejeição dos temas das mentalidades[4] e do cotidiano; revela afeição especial pelo informal, sobretudo pelo popular; preocupa-se em resgatar mais explicitamente o papel das classes sociais, da estratificação e do conflito social; é uma história plural, apresentando caminhos alternativos para a investigação histórica (VAINFAS, 2002, p. 56-59; CHARTIER, 1990, 56-57; 2009). Trabalha-se com a noção de apropriação cultural, ou seja, uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais, sociais, institucionais, culturais.

Por isso, para Ronaldo Vainfas (2002, p. 108), cabe ao historiador pesquisar “as evidências periféricas, aparentemente banais, incertas, porém capazes, se reunidas numa trama lógica, de reconstruir a estrutura e dinâmica de seus objetos”. Movendo-se numa escala reduzida de observação “permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável em outros tipos de historiografia”.

Na micro-história, importa analisar a profunda inter-relação entre indivíduo e coletivo, ou como os indivíduos produzem o mundo social e são afetados por ele, por meio de suas alianças e confrontos, através das dependências que os ligam ou dos conflitos que os opõem. A micro-história é colocada aqui como uma ferramenta para a análise do objeto de estudo. É uma ferramenta a serviço da narrativa histórica, da narrativa acerca do objeto de estudo.

As personagens analisadas, o contexto de inserção destes personagens, seus valores sociais e culturais vivenciados e introjetados, a trama de suas relações comunitárias, ao serem observadas na escala microanalítica, segundo Vainfas (2002, p. 108), “longe de ser simplesmente uma particularidade minúscula de um todo mais amplo reconhecido pelo pesquisador, constitui, em grande medida, o resultado de uma opção analítica que opera em escala reduzida; uma opção que se recusa, portanto, a ver as totalidades a priori, e só as vê quando diluídas no particular”. Ainda para Vainfas (2002, p. 117), a micro-história pretende narrar histórias como “a teia social concreta onde os atores se movem, exercendo múltiplos papéis sociais e individuais” com seus “dilemas, os impasses, as incertezas de cada um”, ou seja, “dos personagens centrais” (VAINFAS, 2002, p. 117). Por isso, no silêncio dos documentos e das narrativas oficiais pode-se tentar perceber “aquilo que está na sombra da história, à sombra do panteão das histórias nacionais ou oficiais, à sombra das mitologias, ideologias e religiões” (VAINFAS, 2002, p. 142) que foi o que de certa maneira ocorreu com a historiografia serrana – em especial os memorialistas – ao longo do tempo. Ela voltou-se para as genealogias das elites, para a descoberta da origem portuguesa/europeia a fim de incensar os egos dos familiares vivos, alicerçada no catolicismo barroco construtor de narrativas muito embotadas e embelezadas, construídas para continuar mantendo a moralidade vigente, e da educação voltada para a narrativa do protagonismo dos governadores, dos diretores, dos inspetores em detrimento da narrativa do cotidiano das pessoas comuns.

A trajetória e atuação dos bispos na formação da malha eclesiástica serrana

Historicamente, foi muito importante o papel do Arcebispado da Bahia nas minas do Serro do Frio, Vila do Príncipe e na Comarca do Serro do Frio, seja por ter vindo de seu território os primeiros freis, frades e monges ou padres regulares expulsos sistematicamente pelo governo, seja pela primazia do regimento básico das suas dioceses e paróquias pela publicação das Constituições Primeiras de 1707, seja pela cessão de seu território para a criação das dioceses do Rio de Janeiro, que dividida fez surgir a Diocese de Mariana. Sem dúvida, o bispo dom Sebastião Monteiro da Vide influenciou diretamente a formação da malha eclesiástica mineira e serrana, pois governou sua diocese de 1701 até 1722, organizando com a publicação das Constituições essa imensa malha, dando a ela certa coerência interna e distribuição regulada de privilégios, autoridades e autorizações (RUBERT, 1992; LIMA, 2001; LODOÑO, 2002).

No quadro a seguir apresentamos a relação dos bispos do Arcebispado da Bahia de 1676 até 1823, uma vez que nossa análise do gesto pedagógico colonial perpassa esse período. Ressalte-se que todos eles eram considerados homens nobres ao estilo colonial português, maiores de 25 anos, brancos, opulentados ou jamais pertos da pobreza (exceto como demonstração de virtude moral, própria do “homem barroco” da primeira metade do século XVIII) e normalmente, portugueses de nascimento. A carreira de um bispo poderia ser iniciada como clérigo religioso de ordem ou congregação ou mesmo como clérigo de São Pedro, ou seja, secular, com formação em seminário diocesano.

QUADRO 1
Bispos do Arcebispado da Bahia – 1676-1823

BRISKIEVICZ, 2017

Os bispos da Diocese de São Sebastião do Rio de Janeiro foram diretamente responsáveis pela criação e manutenção da malha eclesiástica nas minas do Serro do Frio, na Vila do Príncipe e seu termo – incluída a Demarcação Diamantina – e a Comarca do Serro do Frio. Quando transitava pelo futuro território das minas serranas os primeiros bandeirantes paulistas no final do século XVII era bispo do Rio de Janeiro dom José de Barros Alarcão. Ele governou a diocese de 1680 a 1700. Doutor em Direito Canônico pela Universidade de Coimbra (RUBERT, 1992, p. 213).

Segundo Nery (2015, p. 297), “tendo tomado posse por meio de procuração (14/12/1681), assumiu pessoalmente a diocese em 13 de junho de 1682, deu início a um episcopado que [...] não escapou de ter sérios problemas com a população local”, organizando a catedral e o cabido, fundando novas paróquias e tentando aumentar o rigor na admissão dos candidatos às ordens religiosas, procurando aproximar-se do rebanho de fiéis devotos empreendendo visitas pastorais pela capitania.

O mais importante bispo do Rio de Janeiro para a constituição da malha eclesiástica serrana foi dom frei Francisco de São Jerônimo[5]. Ele governou a diocese de 1701 a 1721, tendo sido o seu terceiro bispo, período conturbado por dois motivos: primeiro, por conta de sua obesidade e idade avançada (morreu aos 83 anos de idade, no dia 07 de março de 1721), não conseguiu viajar pessoalmente para as regiões mineiras, necessitou, por isso, da visão de outros padres para fazer seus juízos de valor; segundo que, para conhecer o cotidiano de seu rebanho enviou padres visitadores para as minas a partir de 1702, e estes eram severos demais aos olhos das autoridades locais e do povo, o que gerou reclamações infindáveis ao Governo-geral da Bahia (veremos essa situação mais à frente, com mais vagar).

Este bispo foi considerado “piedoso, bastante preocupado com a formação do clero e atento aos problemas de sua diocese, tendo sofrido bastante durante a invasão francesa de 1710” (NERY, 2017, p. 303); publicou carta pastoral em 21 de julho de 1719, condenando os atos constantes de desobediência à sua autoridade e os desmandos aos seus visitadores nas minas; estabeleceu normas rígidas para a os ofícios divinos, enfatizando a importância da confissão e repreendendo o concubinato (LODOÑO, 2002, p. 169). Na sua lista de obras, conta que criou mais de 40 paróquias nas minas gerais. Segundo Trindade (1928, p. 34):

A Igreja, com efeito, pioneira da civilização, desbarbarizadora das nações que tem essa brilhante história, que é a história mesma da civilização, porque é a das mais nobres conquistas da espécie humana, não podia quedar-se indiferente ante o surto admirável de progresso que se levantava nesta parte do mundo acrescida à cristandade; sobretudo, não podia deixar de se preocupar com a assistência religiosa das nascentes povoações que salpintavam de lares e altares o solo mineiro. Era então depositário da autoridade eclesiástica no sul do Brasil um dos Bispos mais insignes que tem dignificado o venerando sólio episcopal do Rio de Janeiro, dom frei Francisco de São Jerônimo, varão fundamentalmente virtuoso e de saber profundo, que administrou a Diocese de 1702 a 1721. Este ilustre prelado, apenas inicia o seu governo, volta as atenções de seu zelo para Minas, à qual, impossibilitado de visitar pessoalmente por sua idade provecta, envia como visitador o Cônego Gaspar Ribeiro Pereira que, investido embora da missão principal de acertar limites com o Arcebispado, não se teria descuidado das providências tendentes a acautelar os interesses espirituais das almas. Efetivamente, no decurso dessa visita, instituíram-se as primeiras paróquias mineiras, uma oito ou dez, número que ao cabo de poucos annos, antes de encerrado o governo de eminente antístite, se elevaria a quarenta, distribuídas por quatro Comarcas Eclesiásticas, perfeitas cúrias episcopais, cujos serventuários gozavam dos mais amplos poderes.

O território das minas gerais foi dividido de duas maneiras: numa escala eclesiástica, entre as dioceses da Bahia, de Pernambuco, do Rio de Janeiro e, por fim, da diocese de Mariana, a partir de um território diminuto se comparado com a vastidão das terras brasileiras no período colonial, as paróquias ou freguesias e seus termos, e onde quer que houvesse uma ermida capela ou igreja, haveriam ofícios divinos sob a sombra tridentina; numa escala governamental e administrativa oficial, ou seja, nos limites impostos pela colonização da coroa portuguesa em terras brasileiras, mineiras e serranas, os arraiais, vilas, cidades e capitanias, cada um deles com suas autoridades e autorizações de permanência e trânsito por seus caminhos e descaminhos, de exercício de exploração nas lavras, datas e minas de ouro e diamantes, de abertura de vendas e lojas para prestação de serviços através dos ofícios mecânicos.

Enfim, se por um lado o padroado vinculou como gesto pedagógico colonial coroa portuguesa e Igreja católica a fim de administrar pela espada e pela cruz o território brasileiro, por outro lado surgiu no imaginário popular a figura onipresente do padre como símbolo maior e mais bem acabado de poder simbólico e disciplinar. O padre venceu todos seus adversários, tornando-se ícone fundamental do gesto pedagógico colonial.

O quarto bispo do Rio de Janeiro governou a diocese de 1725 a 1740. Dom frei Antônio de Guadalupe investiu durante seu mandato nas visitas pastorais. Consta que “quase todas as paróquias da diocese receberam o bispo por duas vezes; entretanto, registros eclesiásticos da época comprovam que algumas paróquias chegaram a estar com seu pastor por até três vezes, e suas visitas alcançaram a região de Minas, onde fez pregações e fundou novas paróquias” (NERY, 2015, p. 305). Seguindo a sombra tridentina manteve rotineira e sistemática agenda de visitas aos seus rebanhos. A retórica da relaxação dos costumes do clero católico permaneceu em suas cartas pastorais (LODOÑO, 2002, p. 176) (Anexo 13). Deixando de lado as palavras, partiu para construção e fundação do primeiro seminário diocesano do Brasil em 05 de setembro de 1739, tendo o centro de formação uma maior estabilidade por não se vincular aos jesuítas. Nesse seminário passaram alguns padres serranos.

O quinto bispo do Rio de Janeiro governou a diocese pelo curto período de 1740 até 1745. dom frei João da Cruz, mantendo a retórica dos problemas disciplinares dos padres sob sua tutela. Considerado enérgico por seus inimigos, colecionou-os aos montes, tendo perdido sua autoridade e prestígio diante das autoridades locais e dos seus padres. Ele se tornou alvo de uma das mais bem orquestradas ações de seus paroquianos em Ribeirão do Carmo, em visita no ano de 1741: o badalo do sino foi roubado para que não saudasse a chegada e a saída do bispo da paróquia. O fato foi tão marcante para a história eclesiástica mineira que a provisão desta visita à Vila do Carmo hoje demarca a desaprovação popular dos desmandos ligados à religião.

Isso joga por terra a ideia de que no século XVIII os fiéis devotos eram pessoas apenas manipuladas, alienadas ou sujeitas a qualquer sermão conservador e moralistas. Antes, os fiéis se organizavam para derrubar párocos, vigários da vara e bispos. Não por acaso Trindade (1928, p. 70-72) publicou a provisão em sua totalidade, a fim de mostrar que o zelo apostólico é mais recomendado que fiar-se apenas na autoridade do cargo, seja ele qual for. Após sua última visita no ano de 1745 renunciou ao cargo e “Gomes Freire, que conhecia a animadversão dos mineiros para com a pessoa do prelado, secretamente aplaudiu o seu desígnio e tomou a sua felicitar-lhe a aceitação em Lisboa” (TRINDADE, 1928, p. 73, grifos do autor).

A transição entre o pertencimento da paróquia de Nossa Senhora da Conceição do bispado do Rio de Janeiro para a recém-criada Diocese de Mariana (1745) se deu no governo episcopal de dom frei Antônio do Desterro Malheiros, o sexto bispo da diocese carioca. Ele governou a diocese de 1745 até 1773 e viu a Diocese de Mariana tomar para si grande parte de sua demarcação episcopal. Assim, diante do clima de desaprovação em relação ao suposto autoritarismo por parte de dom João da Cruz e da latente necessidade de prosseguimento na política moralizadora da diocese, fora transferido para o Rio de Janeiro, por bula do Santo Padre Bento XIV, em 15 de dezembro de 1745, tendo sua entrada solene na cidade em 1º de janeiro de 1747 (RUBERT, 1992, p. 275).

Perceba-se que a paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Vila do Príncipe havia empossado seu vigário colado Simão Pacheco em 1724 e este viu passar vários bispos “cariocas” – dom frei Antônio de Guadalupe (1725-1740), dom frei João da Cruz (1740-1745) e dom frei Antônio do Desterro Malheiros (1745-1773), além dos bispos da Diocese de Mariana. A perenidade do vigário Simão Pacheco frente à paróquia serrana permitiu, sem dúvida, que as mudanças na diocese do Rio de Janeiro e de Mariana afetasse pouca a comunidade dos seus fiéis devotos, funcionando como elemento de coesão e de estabilidade diante das mudanças das autoridades episcopais. No Quadro 2 abaixo, relacionamos os bispos da Diocese do Rio de Janeiro e seus mandatos, ficando evidente que estes podiam ser sagrados provindo tanto dos seminários diocesanos, por isso mesmo, padres seculares, ou formado nas ordens e congregações, por isso mesmo, padres regulares.

QUADRO 2
Bispos da Diocese de São Sebastião do Rio de Janeiro – 1680-1838

BRISKIEVICZ, 2017; NERY, 2015.

A criação da Diocese de Mariana é mais um daqueles casos de autoridades e autorizações sucessivas criadas para o controle das minas gerais e de sua população. A lógica do gesto pedagógico colonial de sombra tridentina explicitou-se mais uma vez: era necessário aproximar dos olhos do governo português homens, mulheres e crianças, cativos e libertos, criminosos e homens bons. Todos deviam cada vez mais se aproximar da vigilância e da punição, lógicas dos dispositivos da biopolítica colonial. Controlar comportamentos. Especificar os crimes e os pecados. Propor ações corretivas. Para tanto, era indispensável ter olhos preparados para este controle. Os olhos eram aqueles que tudo viam, que tudo descobriam, e que acima de qualquer coisa, escreviam relatórios, produziam documentos em sagradas letras para a posteridade.

O Deus tridentino encarnava-se cada vez mais na presença quase onipresente do padre. Ele, sem dúvida, conseguia através de refinados dispositivos coercitivos – a confissão tornou-se o sacramento que liberava os fiéis para a comunhão – descobrir o que se passava no interior das casas, nos recantos escondidos das minas e da vila e o que é mais autoritário nesse processo, o padre determinava através de sua doutrinação dogmática qual o caminho para a reconhecimento social e através de comportamentos que indicavam as virtudes necessárias para a salvação da alma. Com isso, a Igreja católica implantava com suas paróquias muito mais que um sistema de aproximação de seus fiéis com sua doutrina tridentina, ela operava em torno de si a coesão social.

Como já dito anteriormente, nunca foi por acaso que em torno das capelas, igrejas e matrizes nasciam e se desenvolviam os arraiais, vilas e cidades no Brasil colônia. A Igreja através do regime do padroado e sua vinculação estreita com os interesses da coroa portuguesa através do regalismo criou um sistema biopolítico funcional, dinâmico, regulador, vigilante, punitivo, teatralizado e personalizado na figura iconográfica do padre. Dessa forma, o padre operava com três tempos diferentes, o passado, o presente e o futuro.

Com o passado muito remoto da tradição judaico-cristã que remontava a criação do mundo por Deus e a origem do pecado na Terra (mito fundador); com o passado pouco remoto da reinvenção das vidas dos santos que nunca paravam de ser canonizados, integrando cotidianamente o imaginário popular, como a Senhora do Rosário e sua lenda marítima intercontinental; um passado recente cuja memória estava na ponta da língua do padre quanto mais tempo ele permanecesse à frente da paróquia e no caso serrano foi exatamente isso que aconteceu: o padre Simão Pacheco era a memória do passado recente da comunidade, estava consolidado no imaginário popular como um fio da tradição entre os mortos e os vivos, atuando na vida das pessoas através do batismo, do casamento e das missas de corpo presente antes do sepultamento.

Em relação ao presente, o padre organizava em torno do calendário litúrgico da Igreja a vida social da paróquia; tudo passava pela “folhinha mariana” da Igreja uma vez que muitas famílias colocavam os nomes dos filhos dedicados ao santo do dia; as celebrações litúrgicas romanas marcavam a pulsação ou ritmo dos arraiais, vilas e cidades com datas fortes como a Semana Santa e a desobriga da Páscoa, a festa central do catolicismo; a partir da Páscoa tudo funcionava antes – o tempo da quaresma com procissões do Senhor Morto e jejuns obrigatórios – e depois com festas de grande regozijo comunitário onde eram permitidos tambores, instrumentos musicais, óperas, peças teatrais, cavalhadas e cortejos cívico-religiosos com seus estandartes arvorados; a vida presente era repleta de devoção e festa, tristeza e comoção, procissões e silêncios; o padre era o regente do tempo presente.

Em relação ao futuro, o padre prometia a salvação aos virtuosos, justos, pacientes, comedidos, sábios, bondosos, caridosos como ensinava a doutrina católica sobre o destino post mortem da alma – o céu, o purgatório ou o inferno; para alcançar a salvação futura era preciso, pois, saber passar pela “porta estreita” dos bons costumes; o padre assim como São Pedro no imaginário popular – ele teria recebido a ordem de fazer entrar ou barrar homens e mulheres na entrada dos céus, por conta da instrução evangélica em que Jesus Cristo teria afirmado que tudo o que fosse ligado na terra seria ligado no céu –, tinha as chaves do céu e somente ele poderia abrir esta porta, identificando os mortos com seu selo de servo de Deus. Um dispositivo de controle incrivelmente funcional e moderno: o padre era um indivíduo que salvava outros indivíduos que a ele se submetessem e o seguissem em suas orientações morais.

Nas minas do Serro do Frio não se estranhou a divisão do território em nova diocese. Antes, era comum a ideia de que os serviços paroquiais – as chaves da salvação – permaneceriam nas mãos do vigário Simão Pacheco. A criação da nova diocese desmembrada da diocese do Rio de Janeiro aconteceu quando a Vila do Príncipe estava ainda em fase de opulência do ouro e as irmandades leigas estavam em pleno funcionamento. Segundo Trindade (1928, p. 83):

Desde o governo – de estragada reputação – do Conde de Assumar, cogitava a metrópole da criação de um bispado em Minas e com esse intuito informou-se, em 1719 e 1720, com o governador da capitania e com o arcebispo da Bahia, e obteve o consentimento de dom frei Herônimo, bispo do Rio; como porém, em providências dessa natureza, que consultassem os interesses da Igreja, peguinhava anos, sem o menor pudor, o padroado, sempre embraçado nas suas mil pequeninas e ultrajantes cautelas, a criação de fato veio a verificar-se um quarto de século depois, em 1745.

A visão do cônego Raimundo Trindade é que o padroado favorecia apenas a coroa portuguesa. Contudo, não é bem verdade sua versão, uma vez que se não fosse a política da cruz e da espada iniciada desde as primeiras décadas da colonização brasileira a autoridade da Igreja não teria se estabelecido nesse território, capilarizado em suas ermidas, capelas e igrejas.

Teria a Igreja alcançado maior sucesso na expansão de sua doutrina em terras brasileiras sem o aval e proteção da coroa portuguesa?

Acreditamos que não.

A crítica do cônego Trindade é baseada na assertiva de que o poder religioso da Igreja deveria ser maior e mais atuante que o poder secular da coroa. Interessa-nos passar rapidamente pela atuação dos bispos marianenses para emoldurar nosso estudo sobre o gesto pedagógico colonial ainda numa visão macrohistórica.

O primeiro bispo da Diocese de Mariana seguiu o mesmo roteiro das biografias dos bispos do Arcebispado da Bahia e da Diocese do Rio de Janeiro, ou seja, homens brancos, maiores de 25 anos, muitos deles tendo estudado em ordens religiosas ou em seminários diocesanos, como mostramos de maneira resumida. O cortejo oficial de entrada do bispo na propriedade de sua diocese foi retratado na publicação de 1749, intitulada Áureo Trono Episcopal (ÁVILA, 1967, v. 2, p. 335-592). Os cortejos, como bem identificou Santos (2013, p. 49), era uma teatralização do padroado régio, pois “em 1748, quando o primeiro bispo adentrou a diocese de Mariana, foi recebido com uma grande festa pública, recomendada pelo próprio rei dom João V. Os festejos públicos, desta forma, assumiam a função pedagógica de doutrinar as gentes incultas, ensinar os lugares hierárquicos que ordenavam a sociedade”.

Trata-se de dom frei Manuel da Cruz que governou a diocese oficialmente de 1747 a 1764 com o mesmo perfil dos bispos coloniais: visitas pastorais para controlar a possível relaxação dos costumes, cartas pastorais incentivando a centralidade do sacramento da eucaristia no cotidiano das paróquias e insistindo nos bons costumes necessários ao bom desempenho das funções dos padres em suas comunidades. Para Santos (2013, p. 48),

Ao longo do século XVIII, o bispo diocesano deteve obrigações pastorais e determinadas prerrogativas, Dentre estas, mostram-se importantes o perdão reservado, nos casos que tocassem aos pecados considerados gravíssimos, a jurisdição sobre os casos De rationæ personæ – nas causas cujos réus fossem eclesiásticos; De rationæ materiæ, ou seja, a exclusividade em conhecer dos crimes atinentes aos assuntos espirituais. O ordinário diocesano detinha, ainda, a competência exclusiva sobre as causas relativas a bens dos eclesiásticos, garantindo aos clérigos o privilégio do foro. Estas imunidades eram previstas nas Ordenações [Filipinas] e nas concordatas dos réus com os pontífices, mas sofreriam vários reposicionamentos na época pombalina. Havia, ainda, a jurisdição episcopal sobre os casos de foro misto, os quais poderiam ser do conhecimento da Igreja e do Estado.

A primeira carta pastoral de dom frei Manuel da Cruz foi publicada em 28 de fevereiro de 1748 e sua transcrição integral se justifica pela apresentação de seu plano de governo e administração diocesana nas minas gerais da primeira metade do século XVIII:

Dom frei Manuel da Cruz, Mestre jubilado na Sagrada Teologia, Doutor pela Universidade de Coimbra, por mercê de Deus e da Santa Sé Apostólica. Bispo deste bispado de Mariana e de toda a sua diocese, do Conselho de Sua Majestade, etc. A todos os moradores das Minas deste nosso bispado de Mariana nossos súditos, saúde e paz em Nosso Senhor Jesus Cristo que de todos é verdadeiro remédio e salvação. Fazemos saber que atendendo a piedade do augustíssimo rei nosso senhor, dom João o 5º, a grande extensão do bispado do Rio de janeiro, e a notória falta que os diocesanos das partes mais remotas dele experimentam no pasto espiritual com que prontamente se lhes devia acudir para sossego das suas consciências e bem das suas almas foi servido recorrer ao Sm. Padre Benedito XIV hora presidente da Igreja de Deus, para que dividindo o dito bispado criasse outro de novo que mandou intitular de Mariana, cuja nomeação se acha pelo mesmo beatíssimo padre ao presente confirmada, e desejando nós que os fiéis deste nosso bispado, nossos súditos, sejam mais prontamente remediados com o pasto espiritual que lhe devemos dar, como seu legítimo pastor e não o podendo nós fazer pessoalmente por justas causas que vos impedem, mandamos tomar posse dele pelo reverendo dr. Lourenço José de Queirós Coimbra nomeando-o governador e administrador deste nosso bispado até nossa chegada, cometendo-lhe inteiramente as nossas vezes para o seu regime e direção. E como das letras, virtudes e prudência dos párocos, sacerdotes e mais ministros eclesiásticos depende a boa direção da almas das nossas ovelhas e administração do seu pasto espiritual seja necessário tomarmos conhecimento de suas capacidades; mandamos com pena de suspensão ipso facto e de nulidade a todos os reverendos párocos e sacerdotes, assim seculares como regulares, ministros e oficiais deste nosso bipados que no termo de vinte dias que serão contados do dia em que nossa pastoral em cada uma das freguesias for publicada, recorrerão ao dito nosso reverendo dr. Governador apresentando-lhe os seus papéis com folhas corridas e informações dos seus reverendos párocos em carta fechada para neles prover como for justo e lhe temos recomendado e pelos mesmos vinte dias lhe temos recomendado, e pelos mesmo vinte dias lhes prorrogamos todas as licenças que cada um tiver atualmente e passado o dito tempo os havemos por suspensos, e os mesmos reverendos párocos lhes não permitirão uso algum das ditas licenças e muito menos aqueles que de novo chegarem às suas freguesias sob pena de lhe estranharmos como transgressores das nossas leis que queremos se observem, e por nos constar das referidas ordens de Sua Majestade para não se consentirem neste continente das Minas mais eclesiásticos que os necessários para o serviço das igrejas e cura das almas, o que desejamos cumprir quanto está de nossa parte. E esta nossa pastoral será publicada e fixada nesta nossa Sé catedral e mais freguesias do bispado, remetendo-se aos reverendos vigários da vara de cada uma das comarcas para a fazerem publicar e fixar nos lugares costumados e nos livros delas do que remeterão certidão a nossa Câmara de como assim o executarão, e para que esta nossa pastoral gire com mais brevidade as freguesias de cada uma das comarcas, no mesmo dia em que os reverendos párocos a receberem a lançarão e registrarão nos livros da sua igreja para deles extraírem a cópia que hão de publicar e ficar nos lugares costumados e no mesmo dia a remeterão ao reverendo pároco mais vizinho passando nas costas desta certidão jurada do dia em que a receberam e remeterão, outra que a seu tempo enviarão ao reverendo vigário da vara da comarca do dia em que a publicaram. Dada e passada nesta cidade de Mariana, sob o selo das nossa armas e sinal do sobredito reverendo dr. Lourenço José de Queirós Coimbra, governador deste nosso bispado, aos vinte e oito dias do mês de fevereiro de 1748 anos e eu, o padre Alexandre Ribeiro do Couto, escrivão da Câmara Eclesiástica, que o subescrevi. Lourenço José de Queirós Coimbra (TRINDADE, 1928, p. 106-109).

As mesmas diretrizes pastorais e para a administração diocesana parecem ter sido seguidas pelo segundo bispo da Diocese de Marina, dom Joaquim Borges de Figueiroa que a governou no período de 1771 a 1772[6], sendo designado arcebispo de Salvador, na Bahia. Seguiu-se a administração do terceiro bispo, dom Bartolomeu Manuel Mendes dos Reis, de 1772 a 1777, quando renunciou ao seu cargo, direito garantido pelos códigos eclesiásticos. Depois assumiu o quarto bispo, dom frei Domingos da Encarnação Pontevel que ficou mais tempo que seu antecessor, administrando a diocese de 1778/1779 a 1793[7]. Foi no mandato de dom Pontevel que a questão das conhecenças ganhou notoriedade, como explica Villalta (2007b, p. 30):

A questão das conhecenças tornou-se uma das mais conflituosas das Minas Gerais, provocando reclamações dos provedores de capelas, os quais não queriam pagá-las porque remuneravam os capelães. No episcopado de d. frei Domingos da Encarnação Pontevel (1779-1793), os conflitos se intensificaram, em virtude da crise da mineração [...], mas ainda assim os clérigos saíram vitoriosos. Martinho de Melo e Castro, o todo-poderoso ministro de d. Maria I, em instrução ao governador de Minas Gerais, visconde de Barbacena, avisou-lhe sobre o caráter extorsivo dos emolumentos paroquiais. E aconselhou-o a entender-se com o bispo de Mariana, com vistas à elaboração de um novo regimento eclesiástico para reduzir 'as excessivas e intoleráveis contribuições com que até agora se tem oprimido e vexado os povos debaixo do ocioso pretexto de direitos paroquiais” e evitar a contribuição anual da Fazenda real para se sustentarem os clérigos” [...]. Se os objetivos eram reduzir as contribuições dos povos e tirar da responsabilidade da Fazenda Real o pagamento dos clérigos, ambos não foram realizados. O início do século XIX, Saint-Hilaire, com efeito, registrava que era comum no Bispado de Mariana os clérigos amealharem uma quantia em torno de 9 mil cruzados, somando-se côngruas e conhecenças [...]. Portanto, os chamarizes dos mais eficazes para as vocações sacerdotais foram as conhecenças e demais emolumentos paroquiais e eclesiásticos.

O quinto bispo da diocese foi dom frei Cipriano de São José, governando-a de 1797 a 1817, seguido do sexto bispo, dom frei José da Santíssima Trindade, que teve seu governo de 1819 a 1835. É dele um dos mais importantes relatos sobre o estado da igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição em sua visita pastoral de 1821 (TRINDADE, 1928, p. 95-100).

QUADRO 3
Bispos da Diocese de Mariana – 1745-1773

TRINDADE, 1928

Considerações finais

A civilização serrana originou-se a partir de 1702, quando houve a possibilidade de múltiplos encontros culturais no território das minas do Serro do Frio, em torno da aventura humana nas lavras de ouro e diamantes, fundamentada majoritariamente na lucrativa escravidão africana, no fiscalismo da Coroa portuguesa e sua infindável política de rendimentos pela cobrança de impostos e no sistema do padroado real, cujo maior símbolo do poder disciplinar era a figura do padre em sua insituição de atuação, de autoridade e de autorizações, a igreja ou templo católico.

A civilização serrana espalhada pelo território da Comarca do Serro do Frio formou seu jeito de corpo e alma, o jeito barroco serrano de ser. Não houve um predomínio de uma tecnologia sobre a outra, e sim, a escolha da melhor delas de acordo com a ambiência de homens e mulheres necessitados de água para beber, comida para comer, casa para morar, templo para rezar, ruas e becos para ir e vir, comércio para vestir, calçar a fim de comprar bens e contratar serviços, estradas para chegar e partir, fosse para outras freguesias, capitanias, continentes. Tudo se ensinava, tudo se aprendia para possibilitar a superação mesmo que provisória dos limites impostos pelos obstáculos do vasto território das minas serranas.

A descoberta e funcionamento das minas de ouro e diamantes, o uso das técnicas de construção das casas e templos religiosos, a forma de abrir becos e ruas e descobrir qual a melhor encosta para iluminar por mais tempo os domicílios, a forma mais universal de trocar informações pela palavra falada. Em tudo, trocas culturais.

A devoção religiosa serrana fez e ainda faz parte da civilização serrana e é elemento fundamental da consituição ontológica do ser serrano, espressa em seu jeito barroco serrano de ser e estar no mundo. Esta é a marca cultural da malha eclesiástica nas pessoas reais que viveram na Comarca do Serro do Frio no período analisado, conforme anunciado em nossa metodologia de coldura mircohistórica.

Quando, por força da análise dessa devoção religiosa de sombra tridentina no interior do sistema do padroado real estabelecido em comum acordo entre a Coroa portuguesa e a Igreja católica, demarcamos dois períodos onde duas mentalidades em relação ao mundo espiritual e sagrado parecem se confrontar e criar diferenciações com o mundo físico e profano, estamos conscientes da lentidão das mudanças, sujeitas às resistências do que deseja se conservar como tradição e do que se pretende criar como contradição ao que já se conhecia e ordenava a vida em comum.

A história da devoção católica colonial serrana articulou-se entre os dois períodos distintos. O primeiro de 1702 a 1750, caracterizou-se pelas estruturas da mentalidade do Antigo Regime português cujo rei seria absoluto e justiceiro, afastado dos seus súditos em seu trono; em especial a forma teatralizada e exteriorizada da vida em comum com seus aparentes excessos de busca pela realidade absoluta em retratar a cidade de Deus em conflito com a cidade dos homens, talvez o tema mais forte da Semana Santa; os templos religiosos foram edificados retratando o jogo lúdico barroco, cujos resquícios materiais são poucos – e por isso mesmo valiosos, derivados de algumas sobras nas capelas e matriz de suas construções anteriores e das imagens de santos e santas, cuja maior parte é do século XVIII.

O segundo período perpassou os anos de 1750 a 1821, caracterizou-se pelas novas estruturas da mentalidade iluminista manifesta oficialmente pelo despotismo esclarecido português, encarnada na figura do marquês de Pombal, alicerçando sua atuação pelos ditames da ciência política, pelas técnicas modernas da governamentalidade utilizando-se da razão instrumental, medindo meios e fins, expandindo a industrialização portuguesa e colocando o rei como um negociador, um bom administrador do sossego da república.

Os templos religiosos serranos edificados neste período gostavam da luminosidade de suas janelas, usavam ornamentação dos altares com motivos profanos, pintavam suas paredes com reis e rainhas, oficiais mecânicos e lâmpadas de incenso; a secularização crescente revelou-se nos templos e na vida social, com intencional decréscimo da autoridade eclesiástica; as altas torres da matriz e da capela do Carmo com seus engenhosos paredões de pedra mostram um novo jeito serrano de lidar com seus templos, uma vez que eles são resultado da ciência, risco, cálculo e trabalho do próprio homem.

Assim, os templos desse período ganharam enorme volume total construído para dar conta da população em crescimento demandando templos mais confortáveis para um maior número de fiéis (Matriz e Carmo), da crescente delimitação da origem social (BOSCHI, 2007, p. 63) da elite branca serrana baseada na dogmática doutrina do sangue infecto que por outro lado levou à construção ou adaptação de templos de negros (Rosário) e pardos (Purificação) e oficiais mecânicos (Matozinhos); os templos ampliaram a noção de sociabilidade, em que serranos se reconheciam nas festas devocionais, nas procissões, nos sepultamentos; a filiação dos devotos à determinada irmandade mostrava sua forma de ver o mundo, os seus pares e a si mesmo.

Portanto, os dois períodos – Antigo Regime e Despotismo Esclarecido – conformam temporalidade política portuguesa no Brasil colonial. As relações de poder político, econômico e cultural marcaram a história da Igreja nas minas do Serro do Frio e inseriu o Arcebispado da Bahia, a Diocese do Rio de Janeiro e a Diocese de Mariana em constante disputa pela massa de fiéis do território da Comarca do Serro do Frio entre 1702 até 1821.

Referências bibliográficas

ÁVILA, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas. Textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1967.

BOSCHI, Caio César. Irmandades, religiosidade e sociabilidade. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais. As minas setecentistas 2. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007b, p. 59-75.

BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo. A arte da crônica e suas anotações. história das Minas do Serro do Frio à atual cidade do Serro em notas cronológicas. (14/03/1702 a 14/03/2003). Porto Alegre: Revolução E-book – Simplíssimo, 2017.

CATÃO, Leandro Pena. As andanças dos jesuítas pelas Minas Gerais: uma análise da presença e atuação da Companhia de Jesus até sua expulsão (1759). Horizonte, Belo Horizonte/MG, v. 6, n. 11, p. 127-150, dez. 2007.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas representações. Lisboa: DIFEL, 1990.

FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei. Espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.

LIMA, Lana Lage da Gama. O padroado e a sustentação do clero no Brasil colonial. Sæculum - Revista de História, João Pessoa, n. 30, p. 47-62, jan./jun. 2014.

LODOÑO, Fernando-Torres. Sob a autoridade do pastor e a sujeição da escrita. História: Questões & Debates, Curitiba/PR, n. 36, p. 161-188, 2002.

NERY, Frederico Morato. Os primeiros episcopados do Rio de Janeiro: de D. José de Barros Alarcão a dom frei Antônio do Desterro Malheiros. Coletânea, Rio de Janeiro/RJ, ano XIV, fascículo 28, p. 295-312, jul./dez. 2015, p. 295-312.

PROVISÕES, PATENTES E SESMARIAS 1717-1721. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte/MG, ano XXIV, 1933 (Códice 12 da Seção Colonial do Arquivo Público Mineiro).

ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato. Difusão e territórios diocesanos no Brasil: 1551–1930. Scripta Nova - Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Barcelona, v. X, n. 218 (65), ago. 2006, n.p.

RUBERT, Arlindo. História de la Iglesia em Brasil. Madri: Editorial Mapfre, 1992.

RUSSEL-WOOD, Anthony John R. A base moral e ética do governo local no Atlântico luso-brasileiro durante o Antigo Regime. In: VENANCIO, Renato Pinto; GONÇALVES, Andréa Lisly; CHAVES, Cláudia Maria das Graças (Orgs.). Administrando impérios. Portugal e brasil nos séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012, p. 13-44.

SANTOS, Raphael Freitas. Minas com Bahia: mercados e negócios em um circuito mercantil setecentista. 2013. 371fl. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História, Instituto de Ciências Humana Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 2013.

TRINDADE, Raimundo. Archidiocese de Marianna. Subsídios para a sua história. São Paulo: Escolas Profissionais do Lyceu Coração de Jesus, 1928.

VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas da história: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002.

VILLALTA, Luiz Carlos. Introdução. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais. As minas setecentistas 2. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007a, p. 19-24.

VILLALTA, Luiz Carlos. A igreja, a sociedade e o clero. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais. As minas setecentistas 2. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2007b, p. 25-57.

Notas

[1] De fato, a constituição do território das dioceses mostra passo a passo a divisão territorial do Brasil para a constante tentativa de aproximação dos serviços eclesiásticos do rebanho de fiéis devotos, na moldura da “sombra tridentina” (VILLALTA, 2007a, p. 20). Por isso, a primeira diocese brasileira de São Salvador da Bahia foi criada em 25 de fevereiro de 1551 pelo Papa Júlio III, por meio da bula Super Specula Militantis Ecclesiæ, com área desmembrada da Arquidiocese do Funchal. em 3 de julho desse mesmo ano, tornou-se sufragânea da Sé Metropolitana de Lisboa; em 19 de julho de 1575 cedeu uma parte do seu território em vantagem da ereção da prelatura territorial de São Sebastião do Rio de Janeiro e em 1614 cede outra parte para a criação da prelatura territorial do Pernambuco, atual Arquidiocese de Olinda e Recife. Isso explica, e muito, a autoridade e primazia da diocese baiana com a publicação das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, revelando o pertencimento das demais dioceses de sua sede primeira.
[2] Segundo ROSENDAHL e CORRÊA (2006, n.p.), “a difusão de dioceses apoiou-se em dois focos originais independentes, Salvador, cuja diocese data de 1551, criada diretamente de Roma, e São Luís, criada em 1677, por desmembramento da diocese de Lisboa [...]; Nos primeiros séculos de conquista comercial e religiosa no país a Igreja, aliada dos reis portugueses, atuou na apropriação e delimitação de determinados segmentos do espaço brasileiro. Por intermédio do controle de pessoas e objetos, estas relações se desenvolveram em tempos de tensão, cooperação ou exclusão, mas a Igreja Católica Romana criou condições de efetivar seus projetos, fossem econômicos, políticos ou entendidos como culturais; [...] Territorialidade religiosa, na abordagem da geografia cultural significa o conjunto de práticas desenvolvidas por instituições ou grupos religiosos no sentido de controlar um dado território. É fortalecida pelas experiências religiosas coletivas ou individuais que o grupo mantém no lugar sagrado e nos itinerários que constituem seu território. É uma ação para manter e legitimar a fé [...]. No caso do Brasil, a história da Igreja Católica encontra-se entre a ação política do Estado e a territorialidade religiosa da Igreja Católica. Em todo período colonial as relações entre ela e a Coroa portuguesa estavam reguladas pela instituição do Padroado Régio; o verdadeiro chefe da Igreja, a partir do século XV, na missão evangelizadora era o rei de Portugal e não o Papa. Tais privilégios eram outorgados pelos Papas aos reis de Portugal em troca de implantar a fé católica em suas conquistas. Dentro deste contexto tanto a escolha dos bispos, cônegos e párocos, como a criação de dioceses e paróquias, durante o período colonial, dependia do poder real. Roma apenas nomeava os candidatos a bispos apresentados pelo rei, confirmando uma forte dependência à coroa real. A estratégia territorial da Igreja Católica visava garantir a apropriação do amplo território para a religião oficial do Estado, operando em regime de monopólio, com exclusão de qualquer outra fé religiosa. A territorialidade da Igreja Católica foi lentamente construída no Brasil. A evangelização ocorreu em territórios amplos, mal ou nulamente delimitados e superficialmente apropriados e controlados durante todo o período colonial”.
[3] Para Catão (2007, p. 127-130), os jesuítas ocuparam a região de Minas Novas, bem antes da corrida do ouro, pois “a presença dos padres da Companhia de Jesus na capitania das Minas Gerais e em seus ‘sertões’ adjacentes é um tema pouco abordado pela historiografia mineira. Por conta disso, muitas vezes parte-se da premissa equivocada segunda a qual o clero regular foi pouco presente e atuante no cotidiano das Minas setecentistas. Em parte, esse silêncio se explica por conta da restrição imposta pela Coroa quanto à presença de Ordens Religiosas nas Minas Gerais. Não obstante os inúmeros pronunciamentos régios proibindo a entrada e a permanência de religiosos regulares na capitania das Minas, isso não significou que a vontade da Coroa fosse atendida. Ao contrário, a insistente repetição de tais ordens ao longo de toda a primeira metade do século XVIII pode ser interpretada como um indício do não-cumprimento das determinações régias a esse respeito. [...] Eventualmente, alguns regulares eram credenciados a entrar temporariamente no território das Minas. Constantemente, chegavam às mãos dos governadores da Capitania cartas e ordens régias pedindo a pronta expulsão de religiosos regulares da região mineradora, uma vez que quase sempre eles eram relacionados a sedições e desordens. [...] Não por acaso, já à época dos primeiros descobertos auríferos nas Minas Gerais, o vale do rio São Francisco se achava povoado e repleto de ‘currais’, onde se criava o gado, entre os quais alguns pertencentes aos jesuítas. A Companhia de Jesus parece não ter abandonado suas missões nas proximidades do sertão do rio São Francisco no contexto em que se intensificou a povoação das Minas Gerais e dos sertões adjacentes. Durante o século XVIII, os jesuítas mantiveram várias missões nos limites ou mesmo dentro da capitania de Minas”.
[4] Ver: Russel-Wood, 2012, p. 14.
[5] Importante relato sobre dom Jeronimo acha-se na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (VIEIRA, 1905, p. 64-68): “Das 10 para as 11 horas da noite de 7 de Março de 1721 falecia nesta cidade o terceiro bispo diocesano d. Francisco de S. Jerônimo, a quem o rei de Portugal, d. Pedro II, chamava de Santo Jerônimo. Foi sepultado no presbitério da capela da Conceição, no morro do mesmo nome anexa ao palácio hoje arquiepiscopal. Sobre a pedra da sepultura ainda se pode ler singelo e resumido epitáfio: Stib tuum prœsidium. Natural de Lisboa, filho de Francisco de Andrade e Mello e de d. Isabel da Silva, desde verdes annos manifestou Francisco talento natural e grande pendor para os estudos. Entrando para o Grêmio dos Cônegos Regulares de S. João Evangelista, ali iniciou a Oratória, a Filosofia e a Teologia. Tornou-se depois apreciado pregador, sendo seus sermões impressos pelo conde de S. Vicente Miguel Carlos, intimo amigo de S. Jerônimo. Recebido o grande doutor pela Universidade de Coimbra, nela ocupou a cadeira das Artes. passando depois para a de Teologia. em Évora. Nesta cidade exerceu o cargo de qualificador do Santo Ofício da Inquisição. Vaga a Sé do Rio de Janeiro por morte de d. José de Barros e Alarcão, foi d. Francisco escolhido bispo em 10 de dezembro de 1700. Confirmado pelo Papa Clemente XI em 6 de agosto de 1701 e sagrado por d. Jerônimo Soares, bispo de Viseu, em 27 de dezembro do mesmo anno, saiu de Lisboa em 26 de março ele 1702 e chegou ao Rio em 8 de junho. Foi seu primeiro cuidado visitar todas as igrejas do recôncavo do Rio de Janeiro e tratar de discriminar os limites exatos entre a diocese de S. Sebastião e o arcebispado da Bahia. Nas Minas Geraes criou 40 freguesias e ‘para que não ficassem, diz monsenhor Pizarro, com clérigos de nenhum ou pouco merecimento, por empenho de pessoas autorizadas’, suplicou a el-rei que os colasse. Apresentadas então 19 paróquias, mandou o soberano por provisão de 16 de fevereiro de 1718 e carta régia de 16 de fevereiro de 1724 a que se reuniu o mapa das Igrejas Coladas, que aos párocos nomeados e a seus sucessores se desse da Real Fazenda a côngrua de 200$ anuais, além dos seis vinténs ou 120 réis de ouro determinados a cada pessoa por conhecença ou desobriga da quaresma. [...] Grandemente se interessou D. Fr. Jerônimo pela nascente igreja de Minas, dotando-a em pouco tempo de quarenta paróquias, concorrendo assim para o mais rápido desenvolvimento do distrito, ainda no seu governo elevado à capitania independente. Pediu ao rei colasse pelo menos algumas das mais florescentes freguesias por ele instituídas, afim de que fossem providas em sacerdotes dignos, escolhidos por suas virtudes e letras. Não logrou ver adotada a medida que lembrou, porque só mais tarde, em 1724, tiveram título colativo 19 igrejas cuja lista deixamos, páginas atrás, em nota a parágrafo anterior. Os párocos dessas freguesias teriam 200$000 de côngrua anual, além de $120, ouro, de conhecença, por pessoa em idade de confissão, tudo em virtude de provisão anteriormente expedida em 16 de fevereiro de 1718”.
[6] Segundo Carrato (1968, p. 58-59), “não há símbolo mais eloquente da absoluta esterilidade moral e espiritual dos cônegos marianenses coloniais do que o desgoverno da era vacante do Bispado, o período que vai da morte de dom frei Manuel da Cruz (janeiro de 1764) até a entrada de dom frei Domingos da Encarnação Pontevel (fevereiro de 1780): nesses dezesseis anos, em que não houve pastor de fato na Sé marianense, o chamado período dos procuradores’ – cônegos do Cabido designados pelos bispos titulares para administrarem em seu nome – a vida religiosa das Minas conheceu a estagnação [...]; a falta de autoridade estabeleceu-se, generalizou-se a desordem, encheram-se as prisões eclesiásticas, provocando a intervenção das autoridades da Capitania”.
[7] No seu governo aconteceu a Inconfidência ou Conjuração Mineira, em Vila Rica, no ano de 1789. Por conta dela e de toda a repercussão produzida na colônia e no reino, D. Maria I enviou-lhe uma carta em 09 de outubro de 1789 (TRINDADE, 1928, p. 222-225), alertando para a necessária recondução da autoridade da Coroa portuguesa em solo brasileiro/mineiro, bem como conclamando o bispo à fidelidade devida à Coroa portuguesa, em quem ela confiava; indica a necessidade da disciplina para os fiéis devotos, a fidelidade dos párocos, o catecismo para a instrução dos cristãos obrigando-os “à fidelidade, amor e obediência que os vassalos devem ao soberano, como a mesma religião ensina e manda” (TRINDADE, 1928, p. 223), ou seja, era preciso rever as políticas de orientação espiritual em função do surgimento dos maus cristãos, aqueles que não sendo bons vassalos desobedeciam também a Deus.

Autor notes

i Doutor em Educação pela PUC-MG. Professor do IFMG – Campus Santa Luzia. E-mail: doserro@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7652-1959.

Ligação alternative



Buscar:
Ir a la Página
IR
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
Visor de artigos científicos gerado a partir de XML JATS4R