Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


A IMAGEM DO SAMBA: A MATERIALIDADE DA IMAGEM E O INTANGÍVEL DO SOM – UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL
THE IMAGE OF SAMBA: THE MATERIALITY OF THE IMAGE AND THE INTANGIBLE OF THE SOUND – A LOOK AT THE HISTORY OF MUSIC IN BRAZIL
EL IMAGEN DEL SAMBA: LA MATERIALIDAD DE LA IMAGEN Y LO INTANGIBLE DEL SONIDO – UNA MIRADA A LA HISTORIA DE LA MÚSICA EN BRASIL
Caminhos da História, vol. 28, núm. 1, pp. 39-59, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 28, núm. 1, 2023

Recepção: 30 Novembro 2022

Aprovação: 30 Dezembro 2022


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: Este ensaio aborda alguns itens de uma historiografia geral do samba no Brasil, baseando-se em diversas fontes e dados. A primeira questão que se coloca é porque o samba foi, ele próprio, filetado para se ajustar a critérios epistemológicos divergentes. De um lado temos a historiografia que inclui o samba, do outro a pesquisa etnomusicológica e os estudos de música popular, que mantém as suas abordagens claramente delimitadas, com pouco diálogo entre si. Parece claro que o mais factível seria assumir-se o contrário, o da adequação dos métodos e das abordagens de acordo com as questões que se colocam a partir do próprio objeto de inquirição, o samba. Mas este procedimento ainda é raro. Pensar uma historiografia do samba exige, portanto, ampliar os conhecimentos sobre um patrimônio vivo no Brasil, tal qual representado por este gênero musical. Isso implica em suplantar as limitações impostas pela segmentação epistemológica que até hoje domina a musicologia em geral e assim também o estudo do samba em particular.

Palavras-chave: História da Música Brasileira, Música Africana, Musicologia, História do Samba, Estudos Transculturais.

Abstract: In this essay I intend to raise some items of a general historiography of samba in Brazil, which is based on diverse sources and data. It is worth asking why, until then, samba was, itself, threaded to adjust to divergent epistemological criteria. The historiography that includes samba, on the one side, and ethnomusicological research and popular music studies on the other, maintains its approaches that are clearly delimited, with little dialogue with each other. It seems clear that the most feasible thing would be to assume the opposite, that of adequacy of methods and approaches according to the questions that arise from the very object of inquiry itself, the samba. But it's rare for that to happen. Thinking about a samba historiography requires, therefore, expanding knowledge about a living heritage in Brazil, as represented by this musical genre; more than that, it is urgent to break the chains imposed by the epistemological segmentation that until today dominates musicology in general and thus also the study of samba in particular.

Keywords: History of Brazilian Music, African Music, Musicology, History of Samba, Transcultural Studies.

Resumen: En este ensayo pretendo plantear algunos elementos de una historiografía general del samba en Brasil, que se basa en diversas fuentes y datos. Vale la pena preguntarse por qué, hasta entonces, el samba mismo estaba enhebrado para ajustarse a criterios epistemológicos divergentes. La historiografía que incluye el samba de un lado, y la investigación etnomusicológica y los estudios de música popular en otro, mantiene sus enfoques claramente delimitados, con poco diálogo entre sí. Parece claro que lo más factible sería asumir lo contrario, el de la adecuación de métodos y enfoques de acuerdo a las cuestiones que surgen del objeto mismo de indagación, el samba. Pero es raro que eso suceda. Pensar una historiografía de samba requiere, por lo tanto, ampliar el conocimiento sobre un patrimonio vivo en Brasil, representado por este género musical; más que eso, urge romper las cadenas impuestas por la segmentación epistemológica que hasta hoy domina la musicología en general y el estudio del samba en particular.

Palabras clave: Historia de la Música Brasileña, Música Africana, Musicología, Historia del Samba, Estudios transculturales.

Introdução: o material e o intangível



Em memória a Nicinha do Samba,
Santo Amaro da Purificação, minha mãe baiana.

Enquanto patrimônio cultural, música é maleável. Representa um fenômeno imaterial, é intangível quando se desdobra no plano audível. Ao mesmo tempo pode adquirir materialidade ao “coisificar-se” enquanto determinada obra, com título, autoria, ano de composição e notação em pautas devidamente editoradas e publicadas. Materialidade também se faz presente nos discos e coleções de música. Mesmo digitalizadas ou confinadas em clouds ou disponibilizadas por um digital music service como Spotify, um título de música é tratado como “objeto” definido, discernível e identificável em meio a milhões de outros títulos. Se música é entendida a partir das suas qualidades material ou intangível, vai depender, portanto, do momento e do ensejo em que é articulada. Depende também da perspectiva adotada para entender e apreciá-la, das concepções estéticas que implica e da abordagem selecionada para a sua análise e pesquisa.

Em suma, música se materializa na obra autoral, nas partituras e nos tratados estéticos e científicos a seu respeito. Já a sua natureza imaterial se revela na sua organização no tempo, no fenômeno vivo que representa, naquilo que ressoa, se desdobra em sonoridades e que acontece ao incitar emoções. Revela-se também através dos saberes a seu respeito, que são transmitidos de geração a geração e que simultaneamente se adequam ao tempo e às novas circunstancias sociais, dando sentido ao que se configura enquanto patrimônio vivo, tornado audível musicalmente.

Assim, o leque de possibilidades em música é amplo. Sobretudo é tangível e intangível, simultaneamente. A dupla representação do patrimônio musical coloca um real desafio epistemológico para a abordagem historiográfica sobre música e para a musicologia em geral. Diria mesmo que este campo de tensão – entre o material e o intangível – é um dos motivos que manteve a musicologia fragmentada em basicamente três vertentes: a histórica, a etnomusicológica e, mais recente, a pesquisa em música popular.

Neste ensaio pretendo levantar alguns itens de uma historiografia geral do samba no Brasil, que se fundamenta em fontes e dados diversos. Cumpre indagar porque até então o samba foi, ele próprio, filetado para se ajustar a critérios epistemológicos divergentes. A historiografia que inclui o samba, a pesquisa etnomusicológica e os estudos de música popular mantém as suas abordagens que são claramente delimitadas, com pouco dialogo umas com a outras. Parece claro que o mais factível seria assumir-se o contrário, o da adequação dos métodos e das abordagens de acordo com as questões que se colocam a partir do próprio objeto de inquirição, o samba. Mas é raro que isso ocorra. Pensar uma historiografia do samba exige, portanto, ampliar os conhecimentos sobre um patrimônio vivo no Brasil, tal qual representado por este gênero musical; mais do que isso, urge romper amarras impostas pela segmentação epistemológica que até hoje domina a musicologia em geral e assim também o estudo do samba em particular.[1]

Afinal, uma musicologia afinada às mais diversas metodologias de pesquisa e de vocação transdisciplinar, tem o potencial de desvendar os saberes sobre a música nas mais diversas áreas e contextos. É esta a disciplina que nos faz entender as sonoridades e as performances musicais, sustentadas por saberes de mestras e de mestres, de instrumentistas, cantores, compositores, improvisadores e muitos outros, em toda parte e nos múltiplos períodos históricos da humanidade. Deste modo e amplamente entendida, é a musicologia a disciplina que se ocupa das dimensões históricas e culturais de tudo aquilo que só no presente somos capazes de ouvir e de perceber verdadeiramente: a música.

“A dança dos escravos”

Tomo o quadro “De slavedans” (A dança dos escravos), um óleo sobre tela de 56cm x 46,5cm do artista holandês Dirk Valkenburg (1675-1721) de 1707 como ponto de partida. O Museu de Belas Artes de Copenhague (København Statens Museum for Kunst), que possui esta tela de Valkenburg, identifica a obra com o título de “Ritual Slave Party on a Sugar Plantation in Surinam,” diferente portanto do título holandês “De slavedans” utilizado pela história da arte holandesa (SCHREUDER, 2021).

Captada no Suriname, a cena concebida por Valkenburg se refere a contextos sociais e econômicos que simultaneamente existiam também no Brasil setecentista até fim do Séc. XIX: trata-se de uma cena com africanos ou afrodescendentes escravizados, confinados em uma plantação de cana-de-açúcar. A origem destes africanos confere com a origem de grande parte dos africanos escravizados no Brasil neste período. Trata-se de representantes de populações do grupo linguístico bantu da África Central, provavelmente da região do antigo Reino do Congo. Na ocasião os colonizadores holandeses os chamavam de “Loangonegers” (negros de Loango). Esta designação se dava de acordo com sua procedência geográfica no vale do Loango, na região atlântica do Congo.[2] Esta observação sobre a procedência das pessoas retratadas é confirmada a partir da própria representação da cena no quadro de Valkenburg, em especial com respeito aos detalhes da performance, como se verá mais adiante.

O que pode ser observado nesta tela de 1707? Primeiramente é importante notar que o próprio pintor esteve no Suriname, mais precisamente na plantação e engenho Palmeneribo, onde registrou a cena de dança. Isso explica a riqueza em detalhes que pôde captar. Ademais, Valkenburg é um artífice de grande capacidade técnica em desenho e pintura.

Na altura, o engenho de Palmeneribo contava com 156 escravos e seus mais de 20 filhos ainda crianças (DRAGTENSTEIN, 2004, p.214-235). Um dos três europeus (holandeses) que viviam e administravam Palmeneribo era Dirk Valkenburg. Segundo o historiador surinamês, Frank Dragtenstein, o proprietário da fazenda e engenho, Jonasz Witsen, empregou Dirk Valkenburg por quatro anos na sua propriedade para, entre outros, cuidar da parte administrativa. Valkenburg, além de pintor e cartazista, era guarda-livros de profissão.

No ano em que Valkenburg pintou o quadro em questão um incidente inscreveu Palmeneribo nos anais de história da colônia holandesa: a revolta de seus escravos no dia 19 de junho de 1707. Isso provavelmente ocorreu pouco após a conclusão da tela de Valkenburg. O pintor encurtou a sua estada no Suriname, permanecendo no total apenas dois dos quatro anos inicialmente previstos. Teria Dirk Valkenburg deixado o Suriname precipitadamente em decorrência à revolta dos escravos que certamente presenciou?


Fig. 1
“De slavendans”
Dirk Valkenburg, 1707. Óleo sobre tela

O historiador Frank Dragtenstein encontrou rica documentação sobre o incidente da rebelião e identificou determinadas pessoas entre as escravizadas, que lideraram o movimento e que travaram conhecimento pessoal com Valkenburg. Quanto a demais iconografias do período colonial na América do Sul, em geral é impossível verificar se houve interação direta entre os pintores/desenhistas e os respectivos sujeitos cujas imagens estão nas suas telas. Por isso as mencionadas evidências em relação à obra de Dirk Valkenburg dão destaque à mesma enquanto fonte histórica.

O artista captou o grande grupo de pessoas 'festeiras,' com muitos detalhes e nas ações mais variadas. Zelo artístico é dado a corpos reluzentes, com detalhes de pele desnuda ou coberta com roupas simples. Há pessoas fumando, bebendo, dançando, acompanhando a cena central, se beijando ou apenas sentadas. Além da presença de crianças temos também um cão no primeiro plano inferior da tela. Tudo transmite um ar de familiaridade ao agrupamento retratado. As várias expressões faciais se apresentam bem diferenciadas, o que reforça o indício, de que Valkenburg tenha conhecido grande parte dos escravos de Palmeneribo pessoalmente. É certo que o próprio Valkenburg tenha assistido à cena, ou então a vários eventos deste tipo, para depois criar um determinado momento, que aglomere encontros coletivos como o “slavedans.” Deste modo o quadro representaria uma compilação de eventos que o pintor viu durante sua estada em Palmeneribo. Diante da variedade e dos ricos detalhes, a cena pintada certamente comportaria dimensões maiores. O quadro, porém, é pequeno (56cm x 46,5cm).[3]

“De slavedans” de Valkenburg representa uma das raras pinturas que documentam pessoas escravizadas no Suriname setecentista. Quanto à sua qualidade e conteúdo documental as poucas obras de Valkenburg produzidas na América do Sul [4]podem ser comparadas aos trabalhos de um conterrâneo seu, Frans Post (1612-1680), que “registrou” a vida nos engenhos e plantações de açúcar em Pernambuco durante o domínio holandês no Séc. XVII. Enquanto, porém, o olhar de Post é macro dimensional, focando as grandes paisagens, Valkenburg se destaca pela proximidade que alcança às pessoas que vivenciou no Suriname.

Análise musicológica

Epistemologicamente nos interessa discernir o intangível do som na sua materialização em tela, através de formas e cores. Além da transferência do audível para o visual, estamos também diante dos movimentos desta “dança dos escravos” na obra de Dirk Valkenburg, congelados na tela e representando apenas um determinado momento dentro da sequência da performance tematizada pelo artista. A qualidade deste momento se iguala àquele em que Valkenburg traçou o conjunto de casas de Palmeneribo num croquis sobre papel. As casas estão como que estancas no tempo, despovoadas, mas não completamente inabitadas, conforme indica o fio de fumaça da chaminé aos fundos da cena (fig. 2).


Fig. 2
Palmeneribo
Dirk Valkenburg, Suriname, em 1707. Croquis sobre papel

“De slavedans,” portanto, focaliza dança, música e festa, manifestações sonoras e de movimentos coordenados em grupo. Perpetua uma transferência do som e do movimento para o visual e o imóvel, captando assim apenas um instante do evento. Aqui o desafio para a pesquisa é, em primeiro lugar, devolver o que está mudo para a dimensão sonora, descongelar e colocar em movimento o que a tela mantém imóvel.

A partir disso damos início às indagações musicológicas sobre “De slavedans” de Dirk Valkenburg. Antes da apreciação das soluções estéticas do quadro em si, importa observar os fatos captados e descritos na tela: de que cena se trata? Qual o ensejo da performance coletiva e o que representa? E que importância tem o contexto para o evento?

O título dado à obra pelo museu de Copenhague, “Ritual Slave Party on a Sugar Plantation in Surinam” já sugere mais do que uma simples festa de dança de escravos (“slavedans”). De fato há vários níveis de ação, que exigem uma boa porção de informações previas, obtidas através de métodos e mesmo de disciplinas diferentes. É este multiple sources approach que favorece o diálogo entre diferentes epistemologias, suplantando a segmentação musicológica mencionada acima. Aprofundar-se na tela de Valkenburg exige portanto, além do olhar da história da arte, conhecimento de fontes documentais do período e da região, depende também de conceitos de estudos da performance, de antropologia, da história da África, dos estudos das religiões africanas, métodos de análise de patrimônio intangível etc.

Há três mulheres e dois homens que desempenham as ações centrais: A mulher de costas para o expectador – neste caso nós, que observamos a cena do quadro – está em um estado alterado de consciência, um transe religioso. Sua posição é de “colapse”, conforme termo da coreologia africana (Cf. GUNTHER,1982)., quando o tórax reclina para frente, a cabeça e os ombros se orientam para o chão. Outra mulher, de saia azul, assume a função de ampará-la. No candomblé este é o papel das ekedes, ou até mesmo da própria mãe de santo, que zela pela inicianda ou inciada – a iaô – quando está tomada pela entidade ou pelo santo. Há outra mulher que oferece um pano umedecido com água a um dos dois músicos, afim de que possa refrescar-se. Ambos tocam os tambores cônicos, na posição característica, assentados[5]sobre os mesmos. A interação com a dança é direta e intensa. Os olhares dos músicos estão diretamente voltados à mulher em postura “colapse”. Além dos três tambores, que Valkenberg coloca em cena, há também dois chocalhos de cesta, de feitio semelhante ao caxixi, acionados por outros dois homens.

A impressão geral transmitida pelo quadro de Dirk Valkenburg é de uma grande dinâmica. Os agentes principais do acontecimento musical atuam dentro de um entorno social movimentado e variado. Quanto ao panorama geral, os diferentes planos no espaço estão bem divididos: a cena acontece em frente a uma casa coberta de palha, provavelmente dos escravos, a senzala, de qualquer modo um espaço destinado a eles. Ao fundo se vê o conjunto da casa grande, às margens opostas de um lago que separa os dois ambientes. Este mesmo conjunto de casas foi desenhado por Valkenburg separadamente (Fig. 2).

O que mais chama atenção, no entanto, é a minúcia com que Valkenburg captou os instrumentos musicais. Os tambores foram muito bem observados. O pintor deixou as suas iniciais sobre o couro do instrumento deitado no plano inferior direito da tela, talvez um indício da importância que dá aos tambores. A pintura possibilita identificá-los como instrumentos de procedência na África Central, provavelmente a região do Congo. Membranofones (tambores) africanos podem ser identificados a partir da tecnologia de amarração do couro ao corpo do instrumento. Os tambores em questão são do tipo “cunha e aro”, Keilringspannung (Fig. 3), na terminologia de Heinz Wiesschoff, etnólogo que estabeleceu uma classificação especifica destes instrumentos, mapeando-os, inclusive, no continente africano (WIESCHOFF, 1933). A maneira como são percutidos corrobora mais uma vez a sua procedência regional na África equatorial (central). Por conseguinte, faz acreditar que o grupo de pessoas retratadas sejam oriundas desta mesma região. Uma das mulheres apresenta tatuagens que podem oferecer outra pista para a filiação étnica das pessoas.

Dirk Valkenburg conseguiu captar um evento rico em sonoridades, em movimentos e ações. Ele dá testemunho com o seu quadro, que, até uma certa medida, as pessoas escravizadas em Palmeneribo tinham espaço para folgar, para se relacionar e cumprir com suas obrigações religiosas e rituais. Neste sentido a situação parece ter sido excepcional. Segundo documentação surinamesa (DRAGTENBERG, 2004), a revolta de Palmeneribo foi motivada por uma súbita contenção de liberdade e de ação, imposta pela administração da fazenda, o que teria causado o impedimento das relações sociais e mesmo amorosas mantidas pelos trabalhadores de Palmereribo com membros de engenhos vizinhos.


Fig. 3
Detalhe de “De slavendans”
Dirk Valkenburg, 1707. Óleo sobre tela

História da Arte e museu

Ao captar uma cena de música, a função do quadro de Valkenburg assemelha-se àquela de uma transcrição musical, quando o acontecimento sonoro é materializado em uma partitura. A técnica de fixar o som no plano visual, através da transcrição musical no papel, foi possível a partir da invenção do Fonógrafo de Edison (1877), quando viajantes e pesquisadores podiam registrar acontecimentos musicais nos devidos contextos, armazenando-os nos fonogramas do aparelho gravador. A repetição idêntica do som gravado possibilita a transcrição musical. Esta permanece, até recente, como importante ferramenta de pesquisa na etnomusicologia.[6]Trata-se de uma escrita musical descritiva e não prescritiva, pois sua finalidade é mostrar a posteriori o que foi executado. Isso é diferente de uma escrita musical da pena de um compositor, que cria no papel, para que outros transformem as suas ideias materializadas (na escrita) em sons.

Neste contexto, a documentação em registros para uso não apenas em análises musicológicas, inclusive para a transcrição, importa também para as comunidades e o fortalecimento da manifestação musical, conforme a nossa pesquisa no Recôncavo Baiano: “Em contraponto ao risco de se “congelar” uma cultura viva, pesquisas evidenciam que a documentação musical tende antes a revigorar a expressão cultural e sua criatividade” (GRAEFF & PINTO, 2012).

De volta à tela de Valkenburg: a sua “leitura” do acontecimento social de fato não prescreve, suas imagens descrevem simplesmente. Mas será que também julgam, interpretam, concluem algo que vai além da cena real, fruto do discernimento crítico do artista? Certo é que suas observações incluíram a música, claramente visível através dos detalhes minuciosos do seu quadro.

Na história da arte avalia-se a obra artística enquanto tal. Importam, por exemplo, a sua inserção no período histórico e estético e as técnicas empregadas. Já conteúdo e significado que a obra retrata são assuntos para outro nível de análise. Interpretações de historiadores da arte priorizam evidencias materiais apontadas pelas cenas retratadas. Um exemplo disso é a preocupação de uma curadora de arte ao analisar a obra de Valkenburg e estranhar o uso do sutiã por duas mulheres. Movida por uma preocupação acadêmica descolonizadora a curadora levanta a pergunta se as duas mulheres de Palmeneribo o faziam por vontade própria e se os sutiãs foram confeccionados por elas próprias (SCHREUTER, 2021). Fontes iconográficas do período colonial e imperial no Brasil dão evidência que mulheres escravas que atuavam no trabalho caseiro sempre mantinham o seu corpo coberto, especialmente os seios. A vestimenta das mulheres de Palmeneribo sugere que estas ocupavam posições de trabalho caseiro, a serviço do senhorio do engenho.

Ao passo que elementos materiais como o mencionado orientam a análise da tela de Valkenburg, os elementos intangíveis da cena captada (música, simbologia religiosa etc.) fogem da exegese historiográfica comum. Por sua inércia analítica diante do intangível e do elemento vivo, isento de provas documentais, a análise das sonoridades e dos movimentos da dança permanece aquém da historiografia filológica. No entanto, o estudo da história não pode limitar-se ao discernimento filológico de documentos. O quadro de Dirk Valkenburg dá várias evidências disso.

História sempre foi vivida e é sobrevivida, relegando (na acepção do termo “legado”) os seus bens culturais a gerações seguintes. Manter bens culturais intangíveis significa reviver constantemente o que foi deixado e ensinado por mestres e antepassados. Mas não é apenas a busca pela própria história que motiva as práticas culturais vivas. É essencialmente a confraternização coletiva, o sentido de satisfação pelo aqui e agora, que determina a essência mais profunda do patrimônio imaterial. Identidade cultural e diversidade estão intimamente vinculadas a este componente da cultura humana.

Quando concluída a sua prática, a manifestação cultural movida por saberes tradicionais e intangíveis, passa para a história. A peça de cerâmica ornada com insígnias simbólicas de uma determinada comunidade torna-se artefato puro e simples ao deixar o fogão e seu contexto vivo. Para a pesquisa cultural passa a ser um número em uma lista da reserva técnica de museu. Ou seja, na falta de determinada prática, artefatos deixam de compor um patrimônio vivo. Desprovido de sentido, o que resta é material apenas, e matéria pura é fadada à morte - factual e simbolicamente.[7]

O Cisatlântico negro

Um espaço geográfico importante para a abordagem historiográfica da música no Brasil, tanto do legado musical africado quanto em relação às práticas oriundas da Europa, é o Cisatlântico. Diferente do Transatlântico, o Cisatlântico é o “lado de cá” do Atlântico. De forma similar ao que foi a Provincia Cisplatina, região localizada aquém do Prata quando mirada a partir do Brasil,[8] o Cisatlântico define uma perspectiva sul-americana. É esta a perspectiva predominante que baliza a nossa análise do acervo musical historicamente vinculado a culturas africanas.[9] Assim, após identificadas as origens africanas dos agentes principais da cena captada pelo pintor Dirk Valkenburg, o próximo passo é entender a atualidade desta prática musical dentro do seu contexto cisatlântico.[10] Interessa verificar o momento da execução musical dentro da territorialidade sul-americana e fora do continente africano.[11] Deste modo, estudar as práticas de africanos escravizados e de seus descendentes em solo sul-americano implica em lhes reconhecer a sua localidade, acrescida dos significados ligados a estes territórios. A noção de “território” é fundamental para o estudo do redirecionamento das práticas musicais de africanos e seus descendentes no Novo Mundo (BURBANO, 2022).

Surge o samba

É a partir da importância do Cisatlântico para as manifestações culturais presenciadas por Valkenburg no Suriname, que proponho comparar esta tela de 1707 com outra ilustração, desta vez produzida no Brasil em 1907 e assinada com o sobrenome Barros: trata-se da imagem do frontispício impresso de uma obra sinfônica do compositor paulistano Alexandre Levy (1864-1892), intitulada “Suite Brésilienne IV, Samba” (Fig. 4).

O que denota a ilustração da capa da obra de Alexandre Levy, quando comparada à tela de Dirk Valkenburg? Mesmo dois séculos após a cena captada no Suriname, os elementos principais do “De slavedans” estão presentes nesta ilustração brasileira: um grupo de afro­descendentes dança ao som de tambores, bombos e pandeiros. A disposição da cena é praticamente idêntica à do engenho de Palmeneribo. Até a maneira de segurar um tambor de origem banto, preso entre as pernas dos músicos, faz parte das práticas brasileiras. Já o acréscimo de bombo e de pandeiro aproxima esta imagem mais aos nossos dias.


Fig. 4
Capa da partitura de Alexandre Levy “Suite Brésilienne”, na versão para dois pianos.
Ilustração da capa assinada por Barros, 1907

No primeiro plano da imagem temos homens e mulheres, e também crianças. O evento acontece em frente a uma casa simples, coberta de palha, tal qual ocorre na tela de Valkenburg. Trata-se, certamente, de uma das casas (senzala?) daqueles que se regozijam com a musica e dança. Ao fundo se vê a casa grande, disposta tal qual no quadro de Valkenburg. É apenas a pequena igreja que separa (ou será que liga?) os espaços dos escravos daquele dos donos do engenho, contextualizando a casa grande e a senzala (Gilberto Freyre). As poucas pessoas que se vê ao fundo no plano intermediário da igreja parecem estar voltando do trabalho. A porta da capela está entreaberta, as fitas com bandeirinhas denotam um ciclo festivo de cunho religioso. Mesmo sendo de qualidade artística bem inferior ao quadro de Valkenburg, a cena retratada por Barros é nítida e muito semelhante ao que o artista holandês captou na sua tela.

Importante porém, que a obra musical para qual a ilustração serve de capa é um samba, mais precisamente um movimento de uma suíte brasileira (Suite Brésilienne) para grande orquestra, composta em 1890. A partitura publicada com o frontispício da cena de dança do artista Barros é uma redução da música orquestral de Levy para dois pianos. É neste formato apenas, de cadernos para piano ou pequenos conjuntos de música de câmara, que as composições do período podiam ser disseminadas para o consumo caseiro ou público, utilizados em saraus e concertos. Alexandre Levy inspirou-se em uma “dança de negros,” subtítulo do seu samba, que presenciou no interior de São Paulo. O termo “samba” já passa a ser corriqueiro para as praticas lúdicas e musicais negras na segunda metade do Séc. XIX e também para designar composições para piano, executadas nos salões e nos clubes musicais urbanos. Mas não surge só. Quando aparece, o samba está sempre em conexão com gêneros como o maxixe, o tango ou mesmo a polca.

Seriam estas cenas na tela de Valkenburg e na capa desenhada por Barros para a obra de Levy, tão semelhantes na sensação que provocam, testemunhos de algo muito mais amplo, uma “narrative of life”, que permeia as populações negras de toda a América do Sul e através dos séculos? É assim que se pronuncia já em 1845 Frederick Douglass (1818-1895), ex-escravo, abolicionista, palestrante e escritor norte-americano, argumentando que as ascendências africanas dos escravos repercutiram e influenciarem profundamente a vida afro-americana e americana por séculos (DOUGLASS, 1845). A questão central de Douglass é entender como uma cultura que considera única – a afro-americana localizada no Cisatlântico – pôde firmar-se a partir de uma multiplicidade de grupos étnicos africanos ao longo do período escravocrata. O exemplo que toma para ilustrar esta unidade cultural é o surgimento e a difusão do blues norte-americano. Diferente, porém, do que ocorreu na história norte-americana, as particularidades socias e os traços culturais, principalmente linguísticos e musicais, mantiveram-se muito mais persistentes no sul do continente, mesmo em detrimento das medidas de “de-africanização” ou, mais tarde, a despeito de uma “pan-africanização” das populações negras nas Américas. São as “extensões africanas” (KUBIK, 1988) de elementos musicais das diferentes regiões africanas, que ilustram, até hoje, não só a multiplicidade mas também a origem histórica das sociedades e das comunidades de afro-descendentes no pais.[12] Outro traço do pensamento de Douglass tem validade também para a América do Sul, conforme foi detectado por Valkenburg e outros, quando argumenta que um nacionalismo negro deve tomar como seu fundamento formas culturais e estéticas, ao invés da se limitar à crìtica das condições sociais e políticas, mesmo que justificada (STUCKEY, 2013).

Esta suposta “narrative of life” se revela em outro detalhe na obra de Valkenburg, completamente despercebido nas exegeses feitas desta obra até o presente. Refiro-me à bandeira branca hasteada em uma vara longa sobre a casa dos escravos (Fig. 5). Vista com o olhar contemporâneo e a partir das minhas experiências com religiões afro-brasileiras, não resta dúvida que temos aqui a primeira “bandeira de templo” documentada em um ritual africano no Novo Mundo. Espalhada pelo Nordeste do Brasil, mas também nas periferias dos centros urbanos do Sudeste, sempre que aparece, a bandeira branca hasteada em uma longa vara de madeira sinaliza que o recinto por ela indicado é uma casa de candomblé ou de umbanda. Mesmo não podendo assegurar maiores detalhes sobre o ritual que acontece à sua frente, com dança e música, a própria casa de escravos na tela de Valkenburg, com a haste e o fio de bandeira branca, sugere o caráter religioso da cena e da própria edificação, mais para barracão do que para senzala. Este detalhe da “bandeira de templo” representa, para a historiografia africana do Cisatlântico, uma descoberta inédita.


Fig. 5
Detalhe de “De slavendans”
Dirk Valkenburg, 1707. Óleo sobre tela.

O primeiro samba

Voltando à obra musical de Alexandre Levy, trata-se do primeiro samba composto e designado como tal no Brasil. Este fato, porém, contradiz a historiografia oficial, segundo a qual, o primeiro samba seria o “Pelo Thelephone” de Donga, de novembro de 1916. A própria Biblioteca Nacional defende esta visão equivocada em seu site quando declara:

O samba, ritmo musical criado pelos escravos africanos, símbolo da tradição cultural brasileira, patrimônio imaterial, reconhecido também pela Unesco em 2005 como Patrimônio da Humanidade, comemora, neste ano de 2016, o seu centenário. O ano de 1916 entrou para a história da Música Popular Brasileira graças à iniciativa de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, mais conhecido como Donga, autor de “Pelo telephone”, datado de 1916 e considerado o primeiro samba brasileiro. (BIBLIOTECA NACIONAL, 2016)


Fig. 8
Frontispício do manuscrito depositado na Biblioteca Nacional de “Pelo Thelephone”, samba carnavalesco de Ernesto dos Santos, o Donga, a 27-11-1916.
Biblioteca Nacional

Vale a pena lançar um olho critico mais amplo sobre esta afirmativa oficial da Biblioteca Nacional a respeito do samba: Em primeiro lugar, samba não se restringe a ritmo musical. É um gênero musical diversificado e complexo. Reduzi-lo a ritmo corresponde a uma visão colonizadora, onde o africano é estigmatizado como quem apenas domina ritmo, deixando os demais parâmetros (harmonia e melodia, essencialmente) subutilizados, quando se manifesta musicalmente. Outro equívoco do texto é deixar subentendido que o samba na sua integra tenha sido reconhecido como patrimônio imaterial da UNESCO. A verdade é que apenas o samba de roda do Recôncavo Baiano está inscrito como patrimônio intangível da humanidade desde 2005, não o samba carioca. Mas é a este último apenas que o texto alude, quando o relaciona à história da música popular brasileira e ao período carnavalesco.

E, por fim, declarar que o primeiro samba surgiu “graças à iniciativa” de Donga é uma constatação no mínimo ingênua. Fato é que Donga registrou uma obra na própria Biblioteca Nacional em seu nome e que denominou de “samba carnavalesco”. A polemica surgida dai é a criação musical ter sido coletiva, como de praxe neste contexto, e não apenas da autoria de Donga. A gravação deste samba, que ocorreu logo em seguida ao registro da partitura, popularizou o “Pelo Thelephone” e o sacramentou como primeiro samba pela historiografia musical brasileira.

Temos, porém, notícias de outros sambas, compostos bem antes do “Pelo Thelephone” de Donga (Fig. 8). Um deles é o samba de Alexandre Levy. O argumento da historiografia do samba em desconsiderar esta obra é tratar-se de uma composição erudita, para salas de concerto, o que faz com que seja poupada da pesquisa do samba propriamente, tradicional e popular, executado nos terreiros, em quintais e ruas (Fig. 6).


Fig. 6
Folha de rosto da partitura manuscrita de Alexandre Levy do Samba da “Suite Bresilienne” (Scenas Brasileiras) IV, “’Samba.” Dança de Negros, composto em 1890.
Acervo Levy

Mas ao se debruçar sobre a partitura de Alexandre Levy, surgem logo elementos musicais que só podem ter sua origem nestes terreiros e espaços públicos. O compositor transfere para as suas pautas aquilo que conheceu como samba no interior de São Paulo. Este lhe inspirou para realizar uma composição que não apenas levasse o nome, mas que incluísse elementos musicais que lhe dão de fato o ar de samba. Um destes elementos é a marcação regular dos tímpanos, em anacruse, e portanto bem à maneira da marcação do surdo (ou tambor, atabaque etc.) nos mais variados estilos de samba (Fig. 7).


Fig. 7
Detalhe da primeira página da partitura manuscrita de Alexandre Levy do Samba da “Suite Brésilienne” (Scenas Brasileiras) IV, “Samba” Dança de Negros, composto em 1890.
Acervo Levy

A marcação dos tímpanos é um dos elementos desta obra que deve ser analisado em vista daquilo que foi a inspiração para o compositor: o “samba rural” de São Paulo.[13]

Além de Alexandre Levy também seu irmão, Luiz Levy (1861-1935), compôs em 1913 uma obra para piano que denominou de “Sambando – Tango Burlesco”. Além da referencia ao samba, ainda antes do sucesso do samba carnavalesco de Donga, o uso “fluido” dos gêneros tango, maxixe, habanera e mesmo polca corresponde à realidade da musica brasileira neste período. Na verdade é a polca que serve de “molde” para os outros gêneros já popularizados e em vias de se firmarem nacionalmente.

Outro problema comum da historiografia do samba é deixar de vincular a performance com o gênero expresso por escrito no titulo da composição. A performance musical, por ser de natureza imaterial, representa a tradição musical viva, por isso passou a segundo plano na historia do gênero. No entanto, é o fazer musical, a performance que delinearia o mundo do samba que já existia na prática, antes mesmo de fixado e consagrado pela escrita. Isso vem ocorrendo ao longo da constituição de uma musica urbana brasileira a partir da segunda metade do Século XIX. Um exemplo são os títulos das composições de Ernesto Nazareth, que dão prova do uso intercambiável dos gêneros (MACHADO, 2007). Ao final acabam convergindo para dar destaque principal a apenas um desses gêneros: o samba. Quando o samba é consagrado com nome certo e até mesmo com “data de nascimento” (segundo a Biblioteca Nacional) vão desaparecendo dos títulos das partituras os tangos, as polcas e os maxixes. Não tarda muito e o samba ocupa uma boa parcela do espaço da musica brasileira, devidamente domesticado pela escrita e habilitado para assumir a liderança como musica nacional por excelência.

Ao mesmo tempo é a redescoberta tardia da música de origem africana no Brasil que serve de ensejo para os “Afro-Sambas” de Vinicius e Baden, título que simultaneamente insinua que o samba consagrado de até então não é “afro.” É, além disso, o período da descoberta concreta de um instrumento musical exótico e “africano” para o violonista e compositor Baden Powell, quando da sua primeira visita à Bahia, onde vê o berimbau nas ruas de Salvador. Interessa-se pela sonoridade do arco musical baiano, que o inspira a compor uma de suas obras primas: “Berimbau”, de 1960.[14]

Concluindo

Se a partitura de uma obra musical de um compositor como, por exemplo, Alexandre Levy, ou gravações sonoras desta obra permanecem imutáveis, o fazer musical neste domínio do patrimônio histórico ainda prevê mudanças através da interpretação. Uma performance dificilmente é refeita de forma absolutamente idêntica a um momento musical anterior, mesmo que a busca do musico por uma reprodução fiel da composição seja um imperativo na interpretação de uma obra musical baseada em partituras e na obra de música autoral. As alterações individuais ocasionadas pela interpretação, no momento em que é aurificada, aproximam a música de autor ao patrimônio cultural vivo e, portanto, intangível.

Para finalizar, retomo a discussão prévia sobre as duas formas de relação entre matéria / coisas e a não-materialidade nas diferentes maneiras do fazer musical. Esta relação / oposição pode ser exemplificada com algumas palavras-chave, conforme a tabela 3.

Tab. 3
Patrimônio musical nas perspectivas material e intangível

A última oposição da Tab. 3, aquela entre silêncio e som, representa, simultaneamente, o momento em que, histórica e antropologicamente melhor se fundamenta uma estética universal da música. Pois musica se manifesta sempre na simultaneidade de som e silencio. É do eminente pianista András Schiff a constatação de que “música provém do silêncio”: Musik kommt aus der Stille (A. Schiff, 2017).

A partir desta oposição filosófica entre silêncio e som, chegamos, em última instância, à oposição derradeira dentro do patrimônio cultural: a de vida e morte. Ela remete ao ciclo de vida, do qual a morte é elemento inseparável, assim como o silêncio o é do som (Tab. 4):

Tab. 4
Patrimônio material e intangível na oposição entre morte e vida

Podemos concluir assim, que ao longo de sua história o samba sempre carregou nas suas entranhas aspectos de morte e de vida, o material e o intangível, numa constante ciclicidade responsável pela gênese contínua de novos contextos e de constantes transformações do grande legado africano atuante e vivido no Cisatlântico.

A letra de Gilberto Gil e Caetano Veloso em “Desde que o samba é samba” expressa-o bem: O samba é pai do prazer, o samba é filho da dor, o grande poder transformador (1994).

Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário. “O samba rural paulista”. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, vol. 41, 1937.

BURBANO, Maria Ximena Alvarado. Al otro lado del rio. Músicas Tradicionales de Marimba de Chonta del Pacífico Sur Colombiano. Dissertação de Doutorado, Weimar, 2022.

CORREA, Priscila Gomes & PINTO, Tiago de Oliveira. Dossiê Música e Pensamento Africano. Revista África(s), n° 9. Alagoinhas: Universidade do Estado da Bahia (UNEB), 2018, v.5.

DOUGLASS, Frederick. Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave. Written by himself. Boston, 1845.

DRAGTENSTEIN, Frank. De opstand op Palmeneribo. In: Oso: tijdschrift voor Surinaamse taalkunde, letterkunde en geschiedenis, vol. 23, 2004, 214-235.

GRAEFF, Nina & PINTO, Tiago de Oliveira. “Música entre materialidade e imaterialidade: os tons-de-machete do Recôncavo Baiano,”. Mouseion, n.11, jan-abr, 2012, 72-97.

GÜNTHER, Helmut. Die Tänze und Riten der Afro-Amerikaner. Dance Motion: Bonn, 1982.

KUBIK, Gerhard. Extensionen afrikanischer Kulturen in Brasilien. Aachen, 1988.

MACHADO, Cacá. O enigma do homem celebre: Ambição e vocação de Ernesto Nazareth. São Paulo, 2007.

PINTO, Tiago de Oliveira. “Beethoven Tropical: Mensch und Musik unter dem Kreuz des Südens. Beethoven 250 Jahre (no prelo), Bonn, 2022.

PINTO, Tiago de Oliveira. “Som e Música. Introdução à uma Antropologia Sonora”. Revista de Antropologia, USP, 2001.

SCHIFF, András. Musik Komm taus der Stille. Kassel, 2017.

SCHREUDER, Esther. “Looking back at the painting The Slave-dance 1707 by Dirk Valkenburg.” Homepage da autora, maio, 2021.

STUCKEY, Sterling. Slave Culture: Nationalist Theory and the Foundations of Black America, Oxford, 2013.

ULHOA, Martha “Musicology of listening – new ways to hear and understand the musical past”, J. Merril (ed.) Popular Music Studies Today, Springer: Wiesbaden 2017, 291-298.

WIESCHOFF, Heinz. Die afrikanischen Trommeln und ihre ausser-afrikanischen Beziehungen, Stuttgart, 1933.

Notas

[1] Já pronunciamos reivindicação epistemológica semelhante para a música afro-brasileira, em CORREA, Priscila Gomes & PINTO, Tiago de Oliveira, 2018
[2] Loango refere-se ao que no período se denominava de Reino de Loango, na África Central, região, portanto, que mais tarde passaria a ser o Congo Belga (DRAGTENSTEIN, 2004, p.218).
[3] Eu descobri este quadro em 2008, quando visitava o museu de Copenhague. Não sabia da sua existência e descobri-lo entre muitos outros quadros de porte médio e pequeno foi uma grande surpresa. … Este museu de arte dispõe as telas espalhadas em várias fileiras sobre toda a parede alta das salas de exposição. É a maneiro de se expor obras como até inicio do Séc. XX nos salões de arte e nos museus da época. Não há uma ordem por assunto, e tampouco por artistas. O quadro de Valkenburg estava entre muitos, quieto, porém ressonando imediatamente com o meu imaginário sobre o tema, no momento em que o vi. Até o momento pouquíssimo se havia publicado sobre a obra e sobre o seu autor. O próprio museu dispunha apenas de informações muito básicas.
[4] Frank Dragtenstein informa que o espólio de Jonasz Witsen continha 20 obras de Valkenburg com temas do Suriname do periodo de 1706 a 1707: seis óleos sobre tela – um destes o “De slavedans” – o resto desenhos e croquis sobre papel (DRAGTENSTEIN, 2004). O paradeiro da maior parte deste espólio de obras de Dirk Valkenburg é desconhecido.
[5] O idioma alemão diferencia entre hocken e sitzen, (duas formas diferentes de sentar). Conforme depoimento pessoal de Gerhard Kubik, a posição dos músicos sobre os tambores na tela de Valkenburg é hocken (e não sitzen). Quem está sentada (sitzen) sobre um dos tambores é a mulher com a criança atada às suas costas.
[6] Ver meus comentários a respeito em PINTO, 2001.
[7] Em outro momento já afirmei que reserve técnica de museu é mausoléu de objetos mortos.
[8] Desde 1828 a região corresponde ao Uruguay.
[9] Esta perspectiva difere do conceito de “Atlântico Negro” de Paul Gilroy (2006), pelo fato do chamado “Atlântico Negro” incluir tres continentes, diferente do Cisatlântico negro, que se constitui apenas da costa atlântica sul-americana, quando considerado a partir do Brasil. Nos estudos de música esta territorialidade especifica importa, e complementa inclusive a visão apenas diaspórica, por estar essencialmente vinculada à região de origem das populações negras na América do Sul. Sobre a perspectiva “cisatlântica” na historia da música brasileira do Sec XIX ver PINTO, 2022.
[10] Em época das peregrinações armadas contra os não cristãos, a "crux transmarina" denotava a partida para o leste e sul do Mediterrâneo. Esta se distinguida da "crux cismarina", a luta interior-cristã contra hereges e outros oponentes do vaticano. Foi só mais tarde, quando, após a perda da Terra Santa, o desejo europeu de expansão foi direcionado para as regiões costeiras dos oceanos Atlântico e Índico, que a "cruciata", "croisade" e "cruzada" se tornaram termos mais comuns, substituindo a “crux transmarina”. A “crux cismarina” permaneceu, para somente mais tarde ser gradativamente abandonado. Ver Die Religion in Geschichte und Gegenwart, 2019, verbete “cruzadas” (Kreuzzüge), vol. 15
[11] Maria Ximena Alvorado Burbano explora o conceito nativo de territorialidade (los territórios) para os fazeres musicais e para o patrimônio vivo das populações negras da costa sul do Pacífico colombiano (BURBANO, 2022).
[12] Entrar em detalhes sobre estes elementos, principalmente musicias, fugiria do propósito deste ensaio, mas pode ser acompanhado em outros escritos, por exemplo de Robert Slenes, Gerhard Kubik, Tiago Oliveira Pinto etc.
[13] Este “samba rural paulista” realmente existiu no período (Cf. ANDRADE, 1937)
[14] Informação que obtive do próprio Baden Powell em 1999.

Autor notes

[1] Doutor em Musicologia pela Universidade Livre de Berlim, Alemanha; Chefe da Cátedra “UNESCO Chair on Transcultural Music Studies” (estudos transculturais em música) das Universidades Franz Liszt e Friedrich Schiller (Weimar e Jena), Alemanha; e Professor do PPGAS/USP. E-mail: tiago.oliveira@hfm-weimar.de. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6682-9204.

Ligação alternative



Buscar:
Ir a la Página
IR
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
Visor de artigos científicos gerado a partir de XML JATS4R