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SÔNIA VIEGAS E A PALAVRA TRÁGICA DO GRANDE SERTÃO
SÔNIA VIEGAS AND THE TRAGIC WORD OF THE GRANDE SERTÃO
SÔNIA VIEGAS Y LA PALABRA TRÁGICA DEL GRANDE SERTÃO
Caminhos da História, vol. 27, núm. 2, pp. 46-57, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 27, núm. 2, 2022

Recepção: 29 Maio 2022

Aprovação: 28 Junho 2022


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: Este artigo pretende analisar de que forma o narrador de Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956, e, especialmente, a leitura que, em 1977, a filósofa Sônia Viegas faz do romance de João Guimarães Rosa adiantam o problema no qual desaguam as discussões de Hayden White acerca da irrepresentabilidade do passado. Não se trata de apresentar um problema novo para a narrativa sobre o passado, tendo em vista que a virada linguística teve grande divulgação e impacto entre os estudiosos, mas de conhecer as contribuições de um nome (Sônia Viegas) e de uma fonte (Grande Sertão: Veredas) novos para esse debate.

Palavras-chave: Sônia Viegas, Grande Sertão: Veredas, Hayden White, palavra trágica, passado.

Abstract: This paper aims to analyze how the narrator of The devil to pay in the backlands, published in 1956, and, especially, the reading of the novel by the philosopher Sônia Viegas in 1977 anticipate the theoretical problem of irrepresentability of the past identified by Hayden White. It is not about a new idea for the narrative of the past, given that the linguistic turn had great dissemination and impact among scholars, but of knowing the contributions of a name (Sônia Viegas) and a source (The devil to pay in the backlands) both new for this debate.

Keywords: Sônia Viegas, The devil to pay in the backlands, Hayden White, tragic word, past.

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo analizar cómo el narrador de Gran Sertón: Veredas, publicado en 1956, y, especialmente, su lectura por la filósofa Sônia Viegas en 1977, anticipan el problema teórico de la irrepresentabilidad del pasado identificado por Hayden White. No se trata de una nueva idea para la narrativa del pasado, dado que el giro lingüístico tuvo gran difusión e impacto entre los estudiosos, sino de conocer los aportes de un nombre (Sônia Viegas) y una fuente (Gran Sertón: Veredas) nuevos para este debate.

Palabras clave: Sônia Viegas, Gran Sertón: Veredas, Hayden White, palabra trágica, pasado.

Introdução

Em 1977, a filósofa brasileira Sônia Viegas (1944-1989) defendeu sua dissertação de mestrado intitulada A palavra poética e a palavra filosófica no Grande Sertão: Veredas. O texto recebeu em 1984 o prêmio “Cidade de Belo Horizonte” na categoria “Ensaio”. E, em 1985, foi publicado pelas Edições Loyola com o título A vereda trágica do Grande Sertão: Veredas. O trabalho foi novamente apresentado ao público no ano de 2009, na coletânea que organiza os escritos da filósofa em três livros (Escritos: filosofia e arte. Escritos: filosofia viva e Escritos: vida filosófica) – uma homenagem de Marcelo Marques (também professor no Departamento de Filosofia da UFMG, onde antes fora aluno de Viegas) à pensadora brilhante, cuja vida foi muito rapidamente interrompida aos seus 45 anos, em 1989.

É, então, especialmente a partir de seu trabalho de mestrado, mas em diálogo com alguns dos outros textos da autora reunidos por Marques, que vamos observar, neste artigo, como a leitura de uma filósofa nossa sobre uma fonte nossa avalia e, de certa forma adianta, o caráter falho, ou trágico, da palavra – elemento central para as discussões narrativistas.[1] Trata-se de uma filósofa, mulher, brasileira que investiga uma fonte brasileira e já na década de setenta do séc. XX faz, por meio do Grande Sertão, questionamentos de perspectiva filosófica (isto é, não exatamente da perspectiva da teoria da História, mas igualmente centrados nos limites da representação do passado) análogos aos questionamento da virada linguística, ecoando e, ao mesmo tempo, fazendo avançar argumentos nascidos no século XIX e aprofundados no XX, que colocam em xeque o encontro absoluto entre linguagem e realidade.

Dentre os narrativistas, o mais conhecido nos estudos teóricos da história é certamente Hayden White (1928-2018), para quem também a pretensão do conhecimento histórico de representar a realidade passada não poderia ser alcançada, dado que nenhuma sequência de eventos reais teria características intrinsecamente narrativas. Triforme, mas cativa do modo linguístico, a história seria: “uma estrutura verbal na forma de discurso normativo em prosa que pretende ser um modelo ou ícone de estruturas e processos passados no interesse de explicar o que eram representando-os” (White, 1992, 18).

Em 1973, em Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe (na tradução para a língua portuguesa de 1992, Meta-História: a imaginação histórica do século XIX), White afirma que a reconstituição da história como forma de atividade intelectual é, ao mesmo tempo, uma atividade poética, científica e filosófica em suas preocupações (White, 1992, 15). No ano seguinte, isto é, em 1974, na conferência proferida em Yale “The Historical Text as Literary Artifact” (“O texto histórico como artefato literário”), que faria parte em 1978 da publicação Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism .Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura), Hayden White irá mexer os pratos da balança, defendendo a totalidade da dimensão linguística no trabalho de escrever a história. O sentido das sequências históricas, segundo o autor, não existiria nelas, mas somente no texto. Assim, a coerência da história a ser narrada seria alcançada mediante uma adaptação dos fatos, dos dados e dos conjuntos de relações possíveis entre eles. “Nenhum acontecimento histórico é intrinsecamente trágico: só pode ser concebido como tal de um ponto de vista particular ou de dentro do contexto de um conjunto estruturado de eventos do qual ele é um elemento que goza de um lugar privilegiado” (White, 1994, 100-101).

Estão em questão, com isso, observando o desenvolvimento da obra de Hayden White, dois aspectos da narrativa que nos interessam aqui (e que teriam estado no centro da reflexão da narrativa rosiana e do argumento da leitura que Sônia Viegas faz dela): a relação entre linguagem e apreensão do passado e, decorrente disso, a capacidade de um relato representar o passado. Porque perigosas do ponto de vista ético, as proposições de White exigem do autor, na medida em que seus textos se tornam conhecidos no debate historiográfico, reflexões sobre o teor narrativista da história e os revisionismos e negacionismos que se utilizam delas. Assim, em seu texto “Historical emplotment and the problem of truth” (“Enredo e verdade na escrita da história”), publicado em 1992, o autor, trabalhando mais uma vez a relação entre história contada e realidade histórica, insiste na ideia de que “estórias, como declarações factuais, são entidades linguísticas e pertencem à ordem do discurso” (White, 2006, 192), mas a expande, por conseguinte, para a interrogação sobre o tipo de enredo que poderia contar um mesmo fenômeno e, concomitantemente, para o caráter falho de toda representação. De acordo com White, se o enredo não é inerente aos fatos, a história não pode ser representação literal e, ademais, mesmo os modos de representação, que, portanto, sempre falham, têm também sua historicidade.

O autor se volta, consequentemente, para experiências históricas extremas, perguntando-se se eventos como o nazismo e a solução final poderiam ter seus enredos elaborados em quaisquer modos ou se haveria dentre os eventos aqueles que pertenceriam a uma classe especial que não permitiram a elaboração de mais de um tipo de enredo. Com efeito, para alguns dos estudiosos, o Holocausto seria irrepresentável, sendo conhecida a afirmação de George Steiner que diz que o universo dos campos de concentração nazistas está fora do discurso, assim como fora da razão. Por isso, como reposta a “uma crescente consciência da incapacidade de nossos modos tradicionais de representação até para descrevê-los adequadamente” (White, 2006, 206), o autor observa terem surgido estratégias modernistas para narrar o fenômeno das realidades históricas extremas. Reconhecendo a voz média, a escrita intransitiva, sem metáforas, de forma direta, além de outras estratégias, Hayden White afirma, ainda assim, no texto da década de 90, que o Holocausto, a solução final, a Shoah, o Churban ou o genocídio alemão dos judeus não seriam mais irrepresentáveis do que qualquer outro evento da história humana. Para ele, contudo, os modos de representação disponíveis numa época não seriam os mesmos que aqueles disponíveis em outras épocas. O século XX, especificamente, teria desenvolvido uma consciência meta-histórica, capaz de perceber a falibilidade da representação, passando a acessar, por isso, os formatos mais adequados para representar eventos como os que elenca.

Esta breve e simplificada exposição do desenvolvimento das proposições de Hayden White – que têm início com o caráter inerentemente narrativo do conhecimento histórico detectando o problema da irrepresentabilidade do passado ou a falibilidade dessa representação – não quer mais do que fornecer instrumentos úteis para que se possa cumprir o real objetivo deste artigo, qual seja o de perceber como João Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, de 1956, e, especialmente, a leitura que Sônia Viegas faz do livro em sua dissertação de mestrado defendida em 1977 adiantam o problema no qual desaguam as discussões de White: o caráter trágico da palavra, para usar a expressão da filósofa. Assim, se são os textos de White aqueles que mais impactam o ofício de narrar o passado e a área que se encarrega disso, a História, isso não impede, por outro lado, que um outro código, que é o literário, e um outro olhar, que é o olhar filosófico de Sônia Viegas apresentem, de forma bastante particular, os mesmos desafios. As contribuições de Sônia Viegas representam, nesse sentido, uma novidade para as humanidades quanto ao debate acerca da apreensão do passado e da narrativa sobre o passado na medida em que antecipam alguns aspectos do debate da conhecida virada linguística partindo da literatura rosiana: “a tragicidade poética do Grande Sertão: Veredas, enquanto relato que luta com as palavras e contra elas, está vinculada à necessidade de instaurar o sentido de totalidade do real através da palavra” (Viegas, 2009b, 349).

Narrar o passado em Grande Sertão: Veredas

Para dar conta do mundo que quer descrever, de guerra e de dor no sertão, o narrador de Grande Sertão: Veredas, dizendo muitas vezes falhar, retorce a linguagem. Riobaldo é consciente que as palavras são, repetidas vezes, insuficientes para narrar o que se passou. Ele narra, mas enquanto narra diz que erra, diz que mente, que as coisas não são, que ele próprio não é, que não dá conta, que não sabe, porque só o que tem para narrar, as palavras, são menos do que o que precisa para narrar. “Creio e não creio. Tem coisa e cousa, e o ó da rapousa” (Rosa, 2001, 47). Em tudo o que diz, Riobaldo deixa a cicatriz da duplicidade, do antagonismo, da ambiguidade e, por isso, da dilaceração. Servo de seu passado, ele não desiste da unidade, mas, tampouco, encontra-a. “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” (Rosa, 2001, 31).

O romance é uma “vasta interrogação sobre o passado” (Bruyas, 1983, 463). Há, por parte do narrador, uma obsessão pelo passado, mas cujo modo de se revelar é peculiar. Não há em Riobaldo qualquer traço romântico, em que se acredita poder transcrever o passado, revivendo-o. O narrador de Grande Sertão: Veredas simboliza o criador moderno, por isso. Ele revolve “escombros esparsos e incompletos de uma estátua da qual nunca será o Pigmalião” (Bruyas, 1983, 465). Ao afirmar que tudo é e não é ou que o Buriti sabe e não sabe, Riobaldo detecta o descompasso entre realidade e representação, falhando em apreender o passado.

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balance, de se remexerem dos lugares. O que falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado. (...) De mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga. (Rosa, 2001, 200)

A linguagem no Grande Sertão é, assim, errante e dubitativa. O narrador afirma e nega. Riobaldo quer encontrar os fatos brutos para entender o passado. Mas a construção desses fragmentos do passado é uma construção nunca acabada, porque falha, no sentido de que não apreende a realidade que quer apreender, sua representação e os sentidos que dariam conta de explicá-la. Ele narra e se vê falhar, narra novamente, de outra forma, e falha de novo.

O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco carôço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a ideia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é. (Rosa, 2001, 192)

O sertão, não só por conta da guerra que o assola há muitas gerações, ou seja, não só por conta de sua história, mas também por ser um espaço cujo sentido não existe somente em sua geografia, é difícil de ser definido. O sertão é também essa dificuldade descritiva. O sertão de Riobaldo é o que não se conta, é o que se quer contar, mas não se conta suficientemente. A linguagem, portanto, muito longe de sustentar a ausência ou de se desvencilhar da realidade, leva ao limite sua possibilidade de atingi-la. Riobaldo trata de uma realidade que suspende certezas, que questiona a existência. O narrador chega a dizer que o que há é encantamento, não sendo as pessoas e as coisas de verdade. O mundo, assim, deixa de ser admitido em sua prontidão. Cria-se, nessa apreensão de mundo, uma dimensão menos ordinária. Riobaldo tenta cerzir sua vida com um sentido único que guie sua memória, mas não há um instante sequer em que isso aconteça. Tal como o sentido do sertão, mais Riobaldo o quer encontrar mais se embrenha em sua obscuridade.

Possível o que é – possível o que foi. O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém se esconde e acena. Mas o sertão de repente se estremece, debaixo da gente... E – mesmo – possível o que não foi. O senhor talvez não acha? (Rosa, 2001, 538)

A dificuldade que persegue Riobaldo é a desafio que atormenta as humanidades, a partir do debate acerca da apreensão do passado e da narrativa sobre o passado. O desafio de narrar o que se passou para entender o que se passou, para representar de forma verdadeira o passado (por mais que, no caso de Riobaldo, a verdade desse passado não possa ser mais do que uma verdade fictícia), é o problema que desestrutura toda uma longa tradição historiográfica confiante no poder historiográfico de apreender e representar o verdadeiro passado. É certo que essa desestruturação não se dá de um dia para o outro, mas vale ressaltar, para a discussão que apresentamos aqui, tanto o seu impacto e sua ascensão na historiografia, quanto, diante disso, a perspicácia das reflexões rosianas sobre a distância entre a linguagem e o mundo, bem como a leitura que, Sônia Viegas, filósofa da qual nos ocuparemos a seguir, faz, nesse sentido, do Grande Sertão.

Sônia Viegas e a palavra trágica de Riobaldo

Para Sônia Viegas, a palavra teria sido tomada, por uma longa tradição ocidental ou racionalista – retomando as expressões que a autora usa em busca de aglutinar um conjunto de pensamentos variados que incluem tanto a filosofia grega da Antiguidade, como o pensamento cristão e a filosofia racionalista alemã –, caracterizada por uma crença forte na revelação da verdade ou na constituição da verdade. Como “Adão, desperto do sono de seu nascimento, a nomear as coisas e os animais” (Viegas, 2009b, 327) séculos de inteligência confiaram à palavra o poder de traduzir a verdade, de alcançá-la e de revelá-la. O nome, a palavra, assim, foram tradicionalmente pensados enquanto meio de dominar a realidade exterior. Não é que esse poder não tenha sido questionado. Mas, uma descrença, de fato, no poder iluminador da palavra ou do conceito, uma descrença quanto à efetiva capacidade do nome de captar a realidade abala essa tradição racionalista, majoritária nos círculos acadêmicos, europeus e europeizados, somente a partir do séc. XIX.

Atento aos desvãos entre palavra e mundo, para Viegas, Nietzsche é o crítico implacável da tradição racionalista. Questionando o poder da razão para aprender a essência do real, o filósofo transforma o entendimento de verdade. Para ele, metáforas que se enraizaram e que, por isso, aparentam solidez, as verdades não seriam senão ilusões. Não é coincidência que o filósofo que reformula o entendimento de verdade tenha voltado seus esforços para a tragédia grega. Dissonante à dita tradição racionalista, o teatro antigo é uma das vozes minoritárias que se inquieta com a distância entre o nome e o ser. Essa consciência da distância, à qual Viegas chama de “consciência trágica da existência”, despertada no séc. XIX, não era, portanto, inédita.

A tragédia grega experimenta na pólis a dúvida. Em texto de 1984, chamado “Édipo – o problema da liberdade, do destino e do outro” (2009b, 141-153), Viegas discute justamente o que seria a consciência trágica da existência humana. A ambiguidade de Édipo, suas contradições estariam na base da consciência trágica. Em diálogo com Jean-Pierrre Vernant e Jacyntho Lins Brandão, a autora identifica na “absurda guerra de palavras” (Édipo Rei, v. 636) uma aquisição que, desenvolvendo-se pouco a pouco e se apresentando ao público da peça como desafio, é o próprio desafio de Édipo. A Creonte, Édipo diz: “Falas bem, mas eu te escuto mal”. Ora, existe entre as palavras e a essência do ser um intervalo a ser vencida por Édipo. É ele, esse intervalo, a absurda guerra de palavras à qual a peça faz menção. Vernant, em Mito e tragédia na Grécia Antiga, em passagem citada por Viegas, chama atenção para as zonas de opacidade ou de incomunicabilidade que existem nas falas que os homens trocam. Creonte fala. Édipo fala. Mas entre eles e o que falam, há mais de um sentido e por isso o risco de se perderem é alto. O homem, assim, ávido de um só sentido, é, na verdade, a expressão maior do ambíguo, do duplo, do contrário. Édipo só desvendará o sentido que busca desvendar quando, finalmente, descobrir-se o contrário do que acreditava ser. A tragédia, por isso, inverte o sentido da épica. No poema que canta o herói e celebra seus feitos, o movimento é ascendente; na tragédia, o herói se desveste da roupagem de herói, seu comportamento deixa de ser exemplar. O movimento do homem trágico é o voltar-se para si, um movimento para baixo (Viegas, 2009b, 370).

Se Nietzsche, recuperando a tragédia grega, é o porta-voz dessa desconfiança da razão, Sônia Viegas observa que distintos nomes da filosofia, como Kierkegaard, Merleau-Ponty, Heidegger, e da literatura, como Mallarmé, Kafka, Camus, contribuem para reformularem a relação entre o lógos e o mundo, lapidando essa consciência trágica, que admite que a palavra falha na captura do mundo. O poeta, porém, (“o poietés é o homem que trabalha com as coisas, fazendo-as renascer diariamente”, cf. Viegas, 2009b, 394) que fornece a Viegas sua matéria de reflexão por excelência é João Guimarães Rosa.

No interior de sua criação poética, as significações se desdobram, tornam-se interrogativas e expõem suas contradições. Ele recupera as palavras em seu poder de expressão do real e também em seu poder de negação e de instauração de outras dimensões da realidade. Sua narrativa está sempre a esbarrar no limite, e é desse limite que o sentido poético se abisma do indizível, como se toda a narração tivesse por finalidade apontar algo que a ultrapassa. (Viegas, 2009b, 339)

Sônia Viegas identifica, então, na palavra rosiana a função mediadora que a palavra tem, entre existência e pensamento, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de expor a distância entre um e outro, entre existência e pensamento. O Grande Sertão: Veredas é seu objeto, porque, no romance, João Guimarães Rosa vai explorar o que ele próprio chama de “aspecto metafísico da língua”. Ao invés de confiar na palavra enquanto uma força que apreende a realidade, ela é usada pelo desdobramento que pode ter, sendo mais interrogativa do que afirmativa: “no interior de sua criação poética, as significações se desdobram, tornam-se interrogativas e expõem suas contradições” (Viegas, 2009, 339). A palavra, ela mesma, expõe as contradições da apreensão da realidade. Assim, Sônia Viegas entende que a narrativa de Riobaldo é uma narrativa que está sempre no limite, sempre diante do abismo, do abismo do indizível, do abismo que é perceber que o que se tem, que o que há é indizível, como se ela, a narrativa, tivesse por finalidade maior apontar para algo que a ultrapassa, colocando em questão o limite do que se pode significar. Trata-se, para Viegas, de uma filosofia poética.

Em “A matéria vertente”, de 1983, a filósofa recupera o desenvolvimento da relação eu-outro que Benedito Nunes trabalha em seu estudo sobre o Grande Sertão. No confronto eu-outro, desdobra-se o retorno de Riobaldo a si próprio e a pergunta radical pelo sentido da vida. Se a perspectiva da relação eu-outro é fundamental para o entendimento do romance, a filósofa acrescenta à análise a perspectiva da relação homem-mundo, uma vez que o autoquestionamento do narrador se inspira e se amplia na pergunta pelo sertão (2009, 122). Tal hipótese aparece já na década anterior, em seu trabalho de mestrado.

Segundo a autora, Riobaldo não narra para fazer um balanço do passado, não narra para reverter o passado, ou para apreendê-lo tal e qual, porque a palavra não é capaz disso. Riobaldo é o narrador consciente das limitações da palavra, e consciente também de que ele não tem outro instrumento que não a palavra. Por isso, ele a dilacera. A palavra de Riobaldo se dilacera. É o sentido trágico do sertão, no sertão. O relato de Riobaldo tem necessidade de instaurar o sentido do real pelas palavras, mas também tem muita dificuldade. Por isso, ele luta contra as palavras, mas com as palavras: “o herói trágico está em guarda contra o outro e suas armas são as palavras” (Viegas, 2009b, 376). Suas palavras, seu único instrumento, lutam contra elas próprias, apontam-lhes sua incapacidade, elas erram, falham, e, para superar o que não têm, geram.

Riobaldo é também o que é o sertão. Ele depende das palavras. Como os outros grandes jagunços dependem da palavra, da fama – tal como os heróis gregos dependeram da palavra dos aedos para constituírem sua fama. Os jagunços, que têm uma existência ainda mais provisória do que os sertanejos, têm chances de serem lembrados, apenas se suas histórias forem contadas. Por isso, acreditam que vale a pena morrer. Há algo pelo que vale a pena morrer. Joca Ramiro, Diadorim, Hermógenes enfrentam a morte porque como Aquiles, Heitor, querem ter seus grandes feitos celebrados. Por outro lado, por mais que o sertão rosiano seja feito de heróis e sua guerra seja uma guerra épica, ele é também o nonada das palavras, onde não há nada. No sertão rosiano, os vazios de sentido se multiplicam e quanto mais eles aparecem, maior é a luta de Riobaldo para contar. Assim, a presença da dúvida, que é absoluta na narrativa, transforma a potência épica da estória de Riobaldo na marca trágica que a domina. “A dúvida intercepta a transfiguração do herói e se utiliza do narrador para introduzir, na aventura épica, uma ruptura que devolve a subjetividade a seu conflito” (Viegas, 2009b, 367). Riobaldo quanto mais quer se aproximar da narrativa, mais se percebe distante do sentido. Querendo “a lisa e real verdade”, a descoberta de Ribaldo é outra. O narrador, que talvez algum dia tenha acreditado poder ser o transmissor da verdade, descobre-se, muito cedo na narrativa, portador da dúvida. No tempo ou no exercício da narração, Riobaldo entende que as palavras desconfiam de si mesmas e que, enfim, a aventura narrada só pode ter um caráter trágico.

A palavra épica coroaria a existência do herói, enquanto a palavra trágica acirraria na consciência do narrador e do leitor o deslocamento ou a distância (“a presença-exílio”) entre ser e mundo: “a palavra trágica é tanto mais reveladora quanto mais acirra na consciência o deslocamento provocado pela presença-exílio do homem no mundo cósmico” (Viegas, 2009b, 369). Ela admite a impossibilidade absoluta do encontro entre um e outro. A palavra trágica desafia a linguagem enquanto fonte de verdade. Riobaldo é, por isso, para Sônia Viegas não o herói épico, mas o herói trágico, dilacerado, exilado de si, que leva ao limite o desafio próprio à nossa existência, o desafio de narrar o que é existir, não porque a narração seja capaz de traduzir o vivido. Ela testemunha o passado, mas é sobretudo forma de recriar seu sentido.

No Grande Sertão: Veredas, a narração desafia a verdade e a exigência de “enfiar a ideia” e “achar o rumozinho forte das coisas” depara com a incerteza frente a um possível encarnado no vivido e que, entregue à força persuasiva da memória, faz do não-dito, da contradição, da pergunta sem resposta o seu domínio. “O que é que vale e o que é que não vale?” As palavras são suficientemente reflexivas para se espelharem a si próprias e se exibirem pelo avesso (Viegas, 2009b, 341).

Breves considerações finais: por que Riobaldo?

Vice-cônsul em Hamburgo, de 1938 a 1942, João Guimarães Rosa é testemunha da Alemanha hitlerista, mesmo que não se saiba ao certo o que ou quanto tenha testemunhado do horror. Rosa anota numa espécie de diário de guerra, percepções diversas do que vê e vivencia, de toques de recolhimento a placas demarcando no espaço público os lugares interditados aos judeus, de roteiros de passeios a notícias sobre a guerra, assim como descrições dos barulhos e efeitos das bombas. Além do diário, ele adquire na Alemanha, livros que, noutros tempos e em sua própria língua, narraram, também eles, o que a guerra faz. É o caso, por exemplo, de uma tradução alemã da Ilíada e da Odisseia, adquirida durante sua estada na Alemanha (1938-42), onde se lê, na primeira página do livro, “Guimarães Rosa. Hamburgo, 27/8/1940”. A experiência que vive, é esta nossa última sugestão, faz Rosa se movimentar em diversos sentidos para testar a capacidade da palavra de traduzir o vivido, sendo o mais conhecido e o mais potente desses movimentos sua literatura.

A ideia de que a vida num país em guerra e estruturado para o extermínio em massa tenha-se atrelado a um interesse pelos limites da palavra para se narrar o passado e, ainda mais, para se narrar do passado os eventos extremos aparece numa conversa de Rosa com seu amigo alemão Gunter Lorenz. Precisamente após ser perguntado sobre sua participação na emissão de passaportes para judeus que buscavam fugir da Alemanha, o autor diz ser tudo verdade, mas recomenda a Lorenz não se esquecer dos cavalos e das vacas.[2] Na conversa, Rosa fala: “quando alguém me narra algum acontecimento trágico, digo-lhe apenas isto: “Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo!” (Lorenz, 1983, 323). Consciente de não poder apreender o passado tal e qual, Rosa acha no sertão, enfim, as palavras que precisa, não porque elas sejam capazes de contar o passado, mas porque, no Grande Sertão: Veredas, elas se tornam capazes de nos fazer pensar a distância que menciona Viegas:

para que o homem perceba o mundo como sua alteridade, é preciso que sinta a distância infinita que existe entre ele próprio e o mundo. No horizonte dessa distância, a realidade ganha espaço para existir (Viegas, 2009b, 360).

Referências bibliográficas

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WHITE, Hayden. Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1978.

Notas

[1] O uso do pronome possessivo “nossa” (Sônia Viegas, uma filósofa nossa e a literatura rosiana, uma fonte nossa) quer realçar aqui, por um lado, o deslocamento geográfico dessa contribuição em relação a um debate formulado em círculos acadêmicos majoritariamente externos ao Brasil e reconhecidos como majoritariamente externo, aglutinados na ideia da virada linguística, e, por outro, quer realçar alguma consonância senão um adiantamento de Sônia Viegas quanto à alguns aspectos desse debate.
[2] Gunter Lorenz diz: “Sabe-se também que como diplomata e exercendo as funções de cônsul geral do Brasil em Hamburgo, você provocou Hitler fora das normas da diplomacia, e salvou a vida de muitos judeus...”. Guimarães Rosa responde: Tudo isso é verdade, mas não se esqueça de meus cavalos e de minhas vacas. As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito para sua vida e a vida dos outros. Isto pode surpreendê-lo, mas sou meio vaqueiro, e como você também é algo parecido com isto, compreenderá certamente o que quero dizer. Quando alguém me narra algum acontecimento trágico, digo-lhe apenas isto: “Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo!” Eu queria que o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Então tudo andaria melhor. (Lorenz, 1983, 323)

Autor notes

i Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora adjunta de História Antiga na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: lorenalopes85@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0736-0204.

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