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O FIO CONDUTOR EM TRANSVALORAÇÃO E REDENÇÃO NA FILOSOFIA DE NIETZSCHE
Caminhos da História, vol. 27, núm. 1, pp. 205-2011, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros

Resenha

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 27, núm. 1, 2022

Recepção: 03 Dezembro 2021

Aprovação: 30 Dezembro 2021


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

MEIRELES Ildenilson. Transvaloração e redenção na filosofia de Nietzsche. 2020. Jundiaí. Paco. 284pp.

O que torna um texto entendível? Existe relação entre inteligibilidade e qualidade de uma obra? Por que aparenta que nem sempre filósofos fazem questão de se compreender? Não são essas perguntas que se quer responder aqui, mas elas têm ligação com a forma dada à narrativa produzida por Ildenilson Meireles ao publicar como livro o resultado de seu doutoramento, em 2009, pela Universidade Federal de São Carlos.

Anos após a defesa da tese, a obra Transvaloração e Redenção na Filosofia de Nietzsche: o niilismo tornado história, pode ser uma potente ferramenta de “tradução”, talvez até de “simplificação”, de elementos que compuseram parte da filosofia nietzscheana que, por vezes, é colocada como coisa “nebulosa”, rodeada por entraves e complicações, “coisa para poucos”. Como bem reconhece Meireles, a publicação vai a público como “uma necessidade de devolver a estudantes de graduação, pelo menos, o fruto de um trabalho acadêmico sobre um Nietzsche que ainda se pode ler com interesse e curiosidade” (p. 10). Parece ser esse, inclusive, o sentido da circularidade e repetição, ao longo da narrativa, de algumas noções que antes já haviam sido explicitadas por ele. Repetir não para fixar ou ser redundante, mas para esmiuçar mais, por cuidado com quem lê. Não se trata, porém, de “mastigar”, de “pegar na mão” do leitor. Trata-se, sim, de conduzir a leitura, de apresentar conceitos e termos, de destacar como tal noção se apresenta em tal obra de determinado período, de ir e voltar quando convém, de passar por outros nomes que, de algum modo, atravessam o entendimento da filosofia de Nietzsche.

Esta postura não quer dizer que o texto se esgota em apaziguar as dificuldades, haja vista que ele também se faz propositivo na medida em que procura olhar de perto questões que não se simplificam em uma leitura isolada da terceira fase[1] do pensamento nietzscheano. O desafio de encarar um projeto inacabado textualmente parece ter exigido, assim, um movimento ativo sobre a produção intelectual do próprio filósofo de referência: é desse modo que a obra vai direto na fonte ao citar desde O Nascimento da Tragédia até os Fragmentos Póstumos, e, no meio disso, tantas outras leituras, cartas, comentários. Tal movimento, claro, envolve as próprias proposições do autor: pois se viu a necessidade de aproximar textos de épocas diferentes e demostrar que haviam questões que já apareciam de modo embrionário no pensamento do filósofo prussiano.

Reconstruir a obra a partir da própria obra indicaria um princípio regulador, um fio condutor: aí que Meireles nota, a partir de Nietzsche, como a noção de niilismo[2] pode ser encarada atentamente para esclarecer questões anteriores e ajustar a compreensão sobre o projeto positivo da filosofia nietzscheana. Ora,

Não se trata, para Nietzsche, apenas de apontar o porvir do niilismo, sua superação definitiva, mas de traçar, do ponto de vista do procedimento genealógico, as condições que o tornaram hegemônico na vida cultural do Ocidente, enquanto interpretação do mundo, enquanto perspectiva (p. 21).

É assim que Transvaloração e Redenção na Filosofia de Nietzsche: o niilismo tornado história aponta para uma dupla necessidade. Primeiro, retomar aquilo que já se achava prenunciado na primeira fase das obras de Nietzsche (1869-1876), em que se denunciou, e se levantou a suspeita, de uma estrutura do pensamento ocidental, cujos aspectos fundantes estiveram no socratismo-platonismo, atravessaram o Cristianismo e providenciaram a experiência niilista do homem moderno. Ou seja, o “niilismo tornado história”, significa pensar em todo o processo que engendrou a formação cultural do Ocidente, marcada pelo apoio em muletas metafísicas, transcendentais, consoladoras do sofrimento humano. O niilismo considerado enquanto “história” exige colocar os valores no mundo, retirar deles qualquer aspecto de universalidade que os gestos socráticos-platônicos-cristãos inventaram e chamaram de verdadeiros, que produziram um tipo de homem hegemônico.

Segundo, perceber como a questão do niilismo se desdobra na terceira fase do pensamento de Nietzsche (1882-1888). Se conceitos como “eterno retorno”, “além-do-homem”, “vontade de poder”, “amor fati”, podem revelar ambiguidades, trata-los dentro de um projeto de radicalização do niilismo (portanto, de crítica a figuras históricas como o socratismo-platonismo, a moral cristã e a ideia moderna de sujeito) revela outra perspectiva em Nietzsche: não se trata apenas de combater tais valores, mas também de adotar outro modelo, realocando o sentido afirmativo da vida e do mundo. Assim se dá a “transvaloração e redenção”.

De forma clara e precisa, a questão do niilismo é apresentada como o fio condutor que guiou a narrativa de Meireles. Nessa medida, nos parece claro e preciso que o texto é uma espécie de “Fio de Ariadne”, que, “pelo menos”, providencia leituras outras (com interesse e curiosidade) sobre o labirinto que pode envolver um Nietzsche e sua filosofia. Sob esses termos se deu a construção dos três capítulos que compõe a obra.

O que arte e vida teriam a ver? Tal discussão é guiada pelo autor em seu primeiro capítulo, de nome Herkunft do niilismo. As primeiras obras de Nietzsche, como O Nascimento da Tragédia, já davam pistas de que o niilismo “floresce” em um momento histórico preciso, em conflito com a arte trágica do mundo grego. Em Nietzsche, segundo Meireles, é o “trágico” que exemplifica uma visão de mundo marcada pela aceitação da vida sem nenhum recurso transcendente, em que o enfrentamento da dor, do prazer e do sofrimento, dava-se pela aceitação incondicional da vida com tudo o que nela havia de horrível. Retornar às condições vividas pelos gregos da época trágica significa se debruçar sobre um mundo em que todo acontecer não estava pautado na razão, o que implica necessariamente em uma perspectiva que se distancia de dicotomias como “essência e aparência, coisa em si e fenômeno, vontade e representação” (p. 35). Dessa maneira, Meireles destaca um modo de operar com duas categorias distintas (a partir das figuras de Dionísio e Apolo), mas que nem por isso implicam em um maniqueísmo. O trágico é a representação do horrível (dionisíaco) em bela aparência (apolíneo).

Foi também entre os gregos, precisamente com Sócrates, que os instintos criativos deram lugar aos “instintos de negação da vida através de toda fabulação construída unicamente a partir da racionalidade” (p. 51). Ainda no primeiro capítulo, Meireles conduz ao entendimento de que, com o socratismo-platonismo, se findou um período de intensa afirmação da vida através da arte trágica e, de outro modo, se iniciou um movimento (um outro tipo de cultura) radicado na razão, que sustentou até a modernidade. Característica desse movimento seria a crença num além-mundo como forma de justificação do mundo aparente. O aspecto central seria a razão, a racionalidade a todo custo, a implementação de métodos “precisos” para se alcançar a Verdade, a Justiça, o Bem, o Belo. Assim, o “homem artista e criador”, que não separava a vida da arte, que procurava sempre encontrar um meio afirmativo para escapar do que considerava difícil de suportar, deu lugar ao “homem teórico”.

Outro momento histórico, apresentado no primeiro capítulo de Transvaloração e Redenção na Filosofia de Nietzsche: o niilismo tornado história, envolve o Cristianismo. “Tanto no socratismo-platonismo quanto no cristianismo, há uma crença num incondicionado, num absoluto, num transcendente” (p. 82). Seria, então, a repetição do mesmo gesto? Não se trata de uma simples continuidade, pontua Meireles. O que se vê é um desdobramento, um aprofundamento, uma novidade histórica, em que se produziu um tipo de consciência onde os meios de vida possíveis, a partir dos critérios da culpabilidade e do ressentimento, se tornaram universais. Mais uma vez, o niilismo se torna história ao conseguir edificar uma interpretação de mundo cujo sentido se situa no suprassensível, em um ideal de verdade que considera uma única moral como forma de redimir os homens do grande cansaço de existir. Em todo caso, o autor nota como Nietzsche se quer distanciado de valores absolutos que impossibilitam outras interpretações; também se quer longe de noções que negam a transitoriedade e a ausência de finalidade em si.

O niilismo moderno constitui distinto momento na história dos valores morais, conforme esclarece o segundo capítulo da obra. Sob o título de Niilismo e transvaloração, a discussão se dá em torno de um particular período em que foram empreendidas visões dominadas pelo poder da razão e pela aspiração ao progresso, como representa a ciência em sua vontade incondicional de verdade. Qual o efeito percebido por Nietzsche? Para Meireles, “na separação entre homem/mundo, com a presença do ideal ascético no modus operandi da ciência, o homem passa a se conceber como ordenador legítimo da natureza” (p. 106-107). Ora, a metafísica moderna produziu uma “astuta e velada” forma de ideal: por meio do “eu”, isto é, da criação da noção moderna de sujeito[3], transforma o “nada” em sentido quando estabelece leis causais a priori que justificariam um sentido “dado”. Novamente: qual o efeito percebido por Nietzsche? É a queda dos valores supremos da cultura ocidental, como a ideia de “Deus” e seus subprodutos transcendentais. Se, por um lado, o sentido em si mesmo foi perdido, abriria, assim, a possibilidade de se radicalizar o pensamento sobre o niilismo, sobre o “nada”, com o intuito de se pensar em um novo tipo de homem, capaz de suportar tragicamente a existência em um mundo sem finalidade (pois Deus está morto).

É desse modo que Meireles encaminha a sua narrativa para a terceira fase do pensamento de Nietzsche. Por isso podemos dizer que o fio condutor é efetivo: ele conduz. Se a filosofia, a religião e a ciência, na medida em que construíram seus planos de sustentação num ideal ultramundano, expressaram, ao longo da história, valores niilistas, a experiência moderna esvaziou o sentido absoluto e levantou a possibilidade de se adotar uma outra postura em relação ao mundo e a vida. Assim, o projeto de “transvaloração dos valores” visa atingir o estágio de aceitação trágica e superação do niilismo e tem, em seu horizonte, ou melhor, no horizonte da terceira fase de Nietzsche, a ideia de eterno retorno e da vontade de poder.

A resposta ao problema da criação de novos valores e da afirmação incondicional do mundo e da vida é tratada por Meireles no terceiro capítulo, intitulado Niilismo e redenção. O autor é assertivo no modo em que sintetiza: os operadores teóricos de Nietzsche não podem ser vistos isoladamente ou não seriam efetivos no projeto de transvaloração dos valores e não seriam alternativas possíveis para superar as concepções mecanicistas e cristãs, com sentido transcendente e de autoconservação.

Se o pensamento do retorno resolvia um problema, criava, no entanto, outro. Se de início neutralizava as teleologias cristã e científica, recaía, por conseguinte, na concepção fastidiosa da repetição de todos os acontecimentos. É justamente nesse ponto que se cruzam eterno retorno do mesmo e vontade de poder, momento a partir do qual Nietzsche será levado a considerar o mundo e a vida sob o prisma da afirmação incondicional (p. 200-201).

Meireles reconhece que não há um tratamento elaborado ou preciso, nem mesmo uma lógica ou um sistema, em relação a ambos os conceitos nas obras publicadas por Nietzsche: e é justamente por isso que se abrem caminhos para retomar textos, para levantar considerações e reconsiderações, para abrir caminhos e demonstrar as variáveis do projeto de transvaloração dos valores que “encaminham o pensamento de Nietzsche sobre o niilismo para uma superação do mesmo” (p. 205). Destarte, as categorias utilizadas por Nietzsche e sua operação, na análise do autor, tem como principal elemento a noção de liberação do homem do cansaço de existir, o que indica que o projeto de transvaloração é um projeto de redenção (de engajamento sobre si próprio com o objetivo de alcançar um tipo de vida afirmativo) e de apontamento para uma boa-nova: o além-do-homem. Ao seguir tais considerações, Meireles reconhece que há pistas em obras como Assim falou Zaratustra . Genealogia da Moral, sobre a possibilidade de um novo tipo de homem que poderia confirmar o “caráter dinâmico da vontade de poder na criação de novos valores e chancelaria a superação do niilismo na aceitação incondicional do mundo e da vida, isto é, no amor fati” (p. 206).

Não se trata, entretanto, de um projeto salvacionista, como afirma Meireles. Não se trata, também, de “melhorar” a humanidade. A filosofia de Nietzsche se torna, sim, um “contra ideal”, na medida em que, no empreendimento transvalorativo, a superação dos antigos valores depende de uma crítica radical das estruturas que o mantém, ou seja, que ainda se mantém na estrutura do pensamento ocidental. De outro modo, sua filosofia é um “contra ideal” na medida em que se coloca, também, como um “novo ideal”:

Nesse sentido, se se pode falar em superação do niilismo na filosofia de Nietzsche é somente na medida em que o niilismo é tomado com alvo de uma subversão de valores, de uma inversão da metafísica platônica, renunciando à dicotomia mundo verdadeiro/mundo aparente, de uma crítica radical da cultura moderna diagnosticada como caudatária dos ideais perpetrados pela religião da décadence, o cristianismo. Em suma, todos os elementos que compõem o projeto redentor da filosofia de Nietzsche têm sempre em vista a liberação do homem para novas conquistas de si como forma de concretização de sua transvaloração levada a efeito na incondicional afirmação do mundo e da vida, no amor fati (p. 261).

Desse ponto de vista, concordamos com o autor quando afirma que a filosofia de Nietzsche é uma filosofia desconcertante, tanto pelo estilo de suas apresentações em variados estilos narrativos, quanto pelas coisas que se colocam em questão, “isto é, o niilismo e sua superação, o tipo homem e sua redenção, a transvaloração dos ideais mais sagrados em que a humanidade, até agora, colocou sua crença” (p. 264). Por isso, é normal se sentir embaraçado, um pouco tonto, ao ver marteladas nos sistemas filosóficos que formaram nossa concepção de mundo firmada na verdade, no ser, no eu, em Deus, nas dicotomias tradicionais (corpo/alma, sujeito/objeto etc). Até por isso se torna de difícil compreensão o tal projeto de transvaloração dos valores, de radicalização do niilismo, de amor fati. Nossa cabeça ocidental não comporta bem essas noções.

É assim que Transvaloração e Redenção na Filosofia de Nietzsche: o niilismo tornado história, de Ildenilson Meireles, apresenta a leitura de um Nietzsche: o projeto de transvaloração dos valores, que parece acentuado na terceira fase, não pode ser retirado do pensamento de Nietzsche sobre os temas fundamentais da cultura ocidental, notáveis desde a primeira fase. Conceber o movimento niilista enquanto história dos valores morais do Ocidente implica em conceber que a própria história do niilismo, em seus desdobramentos, pode levar a novas configurações do mundo e a novas concepções de realidade, de existência, de sujeito.

Aí se vê o sentido dado, por exemplo, pelos pós-estruturalistas franceses ao conceberem um sujeito descentrado e dependente do sistema linguístico, discursivamente constituído e posicionado nos encontros entre as forças libidinais e as ações sociais. Sob influência nietzscheana, o sujeito é visto em condições concretas e em noções que dão a ele essa concretude: corporificado, generificado etc. Assim, o sujeito é um ser temporal que chega em termos fisiológicos à vida e enfrenta a morte e a extinção enquanto corpo, mas que é, contudo, amplamente maleável e flexível por conta de sua submissão às práticas e às estratégias de normalização e individualização, próprias das instituições modernas. Mas onde há poder, há resistência. Há possibilidade de se criar.

Por um lado, Meireles permite apreciar a apresentação de uma leitura possível de Nietzsche e sua obra. Por outro lado, é competente em apresentar outras perspectivas que podem contribuir para campos diversos, uma vez que colocam sob suspeita argumentos e pontos de vista transcendentais; rejeitam uma descrição do conhecimento mediante uma representação exata da realidade e evitam concepções de verdade que se preza pela correspondência com a realidade.

Notas

[1] Ildenilson Meireles faz questão de colocar, na quinta nota de rodapé, a opção pela divisão da obra de Nietzsche em três fases, esclarecendo que tal opção se relaciona com a preocupação em situar o “aparecimento de novos temas no pensamento de Nietzsche e sua articulação com os temas presentes nos escritos da juventude” (p. 13), o que não significa ser a única leitura possível.
[2] O autor reitera que os primeiros registros do termo “niilismo”, na obra de Nietzsche, datam de 1880 (p. 14) e que pensar tal conceito envolve conceber todo o processo de formação de valores morais, considerados decadentes por se apegarem em um além-mundo e proporem valores absolutos – que não existem e são, portanto, “nada”, “nihil”.
[3] Mais ou menos entre as páginas 112 e 138, Meireles esmiuça a perspectiva cartesiana e kantiana quanto toca nesse ponto. É interessante demarcar o esforço do autor para apresentar um aspecto que, por vezes, pode ser tratado de forma em passant: seria mais cômodo privilegiar a perspectiva do próprio Nietzsche. Mas para entende-la, faz sentido a ida aos clássicos que, justamente, ajudaram a produzir, a inventar, a criar a ficção chamada “sujeito”.

Autor notes

1 Doutorando em História no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na linha de pesquisa Arte, Memória e Narrativa (AMENA). Mestre (2020) e Graduado (2017) em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste -Paraná (UNICENTRO). Integrante do Núcleo de Pesquisas em História da Violência (NUHVI/CNPq). E-mail: marcelodribas@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4827-9480.

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