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PESQUISADOR OU PROFESSOR: O CONFLITO IDENTITÁRIO DO HISTORIADOR
INVESTIGADOR O PROFESOR: EL CONFLICTO DE IDENTIDAD DEL HISTORIADOR
RESEARCHER OR TEACHER: THE CONFLICT OF HISTORIAN IDENTITY
Caminhos da História, vol.. 26, núm. 2, 2021
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos Livres

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 26, núm. 2, 2021

Recepção: 12 Maio 2020

Aprovação: 16 Julho 2020


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: Este artigo é originário da reflexão proposta pelo PPGH Unimontes sobre o tema da identidade social e da memória coletiva para o historiador. Esse tema foi deliberadamente desviado para a aplicação da noção de identidade e memória na observação da atuação do profissional historiador. Seja na sua atuação como pesquisador (da história) seja como professor (de história). Destacamos as diferentes abordagens que essa dupla atuação exige desse profissional e apontamos para uma possível resolução sobre o papel do historiador na sociedade contemporânea.

Palavras-chave: Memória, Identidade, História.

Resumen: Este artículo parte de la reflexión propuesta por PPGH Unimontes sobre el tema de la identidad social y la memoria colectiva para el historiador. Este tema se desvió para discutir la aplicación de la noción de identidad y memoria en la observación del desempeño del historiador profesional. Ya sea en tu rol de investigador (de historia) o de profesor (de historia). Al final, destacamos los diferentes enfoques que este doble rol requiere de este profesional y apuntamos a una posible resolución sobre el rol del historiador en la sociedad contemporánea.

Palabras clave: Memoria, Identidad, Historia.

Abstract: This article comes from the speech made at PPGH Unimontes. They deal with the theme of social identity and collective memory for the historian.The notions of identity and memory were used to observe the work of the professional historian. Whether in your role as a researcher (of history) or as a teacher (of history). We observe the different approaches and this double performance demands from the professional. And we point to a possible resolution on the role of the historian in contemporary society.

Keywords: Memory, Identity, History.

O tempo das identidades

As possibilidades abertas pelas tecnologias de comunicação levam a um público cada vez mais amplo as vozes dos muitos e diversos grupos sociais. Fato social que recoloca na ordem do dia o tema das identidades sociais em um patamar mais complexo. Agradeçamos, sobretudo, aos agentes e sujeitos historicamente silenciados a ocupação desse espaço público de novo tipo ― que são as redes sociais ―, o espraiamento entre o público não acadêmico de uma série de conceitos polêmicos e polissêmicos que se desenvolvem no interior do debate acadêmico mais qualificado.

O vocabulário acadêmico é polêmico porque, como sabemos, nós que vivemos no interior do campo acadêmico, toda descrição do conceitual é tão dinâmica como o objeto que ele descreve. E, antes de dizer que as polêmicas em torno das definições conceituais são uma particularidade das humanidades, pense sobre o conceito de átomo da física: de partícula indivisível da matéria, proposta pelos gregos antigos, hoje é a reunião de núcleo, prótons, elétron, partículas tudo o mais que cabe dentro de um único átomo. O conceito de vida: de resultado da criação divina chegamos aos organismos que são capazes de se reproduzir e já nos indagamos sobre a consciência no pós-humano.

Entre muitas polêmicas, um debate que se amplifica nas redes sociais, que bomba no mundo virtual, diz respeito ao tema da identidade. Seja no singular (a identidade do sujeito), seja no coletivo (as identidades sociais). A cada dia surge um vídeo, um podcast, quando não um simples e poderoso meme produzindo alguma provocação sobre determinada identidade ou processo de identificação social. Proponho ilustrar essa situação com uma imagem metafórica provocativa: saímos do terreno da observação empírica do “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” e chegamos ao momento da ação concreta do “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Os estímulos desse nosso tempo doentio cutucam nossa subjetividade, nossas certezas e convicções, gerando, em cada sujeito, o primordial “Tudo que sei é que nada sei”.

Com uma frequência maior que a saudável, somos cotidianamente instados a pensar sobre “Quem sou eu?”, “Quem somos nós?”. Essa pergunta é feita tanto sobre nossa subjetividade individual como sobre nosso pertencimento e adesão a uma coletividade, a uma identidade coletiva. No contexto pandêmico, somos questionados sobre “Quem é você (e eu) na fila da vacina?”. Sou homem? Sou branco? Sou hétero? Sou idoso, jovem? Sou capacitivo? Ou seria, Eu, um “homem-branco-hétero-de meia idade-sem-deficiência? Assumir-se nessas ou em outras identidades nem sempre é uma tarefa simples ou tranquila e reconhecer a própria subjetividade passa a ser um dos maiores desafios do sujeito que habita nossa modernidade distópica.

Proponho utilizar os conceitos de identidade para jogar luzes sobre algumas características e peculiaridades da atuação profissional do historiador e da comunidade de sentidos da qual participamos. Peço aqui uma licença poética (ou seria uma licença acadêmica) aos historiadores para olhar tanto a atividade do professor (de história) como do pesquisador (da história) como sendo duas identidades sociais distintas que coabitam o mesmo sujeito social: o historiador.

As identidades sociais

O debate público sobre as identidades sociais está centrado na defesa dos direitos universais, no princípio ético de as pessoas disporem de seus corpos e não serem previamente enquadradas em razão de qualquer aspecto. O debate público das identidades está focado no fim das opressões sexistas e racistas (entre outras formas de distinção social). Mas ele se principia na afirmação de que cada sujeito histórico, independentemente de suas individualidades, de suas preferências ou características, merece ser reconhecido e tratado como membro da mesma comunidade de humanos.

Muito embora a sociedade brasileira advogue a ideia de direitos universais, de garantias jurídicas formais a todos os seus membros, o livre exercício das individualidades depende menos da norma jurídica e mais de práticas sociais concretas que respeitem as diferenças e materializem o convívio com a diversidade. Refletindo sobre a cidadania na Inglaterra de meados do século XX, Thomas H. Marshal (2002) apontava que o status de igualdade jurídica entre os membros da comunidade política se realiza menos pelo uso da força que pelo esforço dos membros dessa comunidade em agir diuturnamente na garantia do status de igualdade, da condição de membro da comunidade política aos demais. O exercício da cidadania, nessa visão, é menos uma questão de respeito ao texto jurídico e mais um conjunto de práticas sociais concretas de respeito cotidiano ao outro, aquele que reconheço como igual a mim.

Posteriormente, as páginas de autores como René Remond (1996) reafirmam que a liberdade individual depende menos das ações do próprio indivíduo e mais do respeito dos membros da comunidade às liberdades individuais. Por outro lado, as liberdades coletivas no interior de uma comunidade dependem do respeito de cada indivíduo do grupo. Dizendo em termos conceituais, a manutenção de uma sociedade democrática depende da existência de sujeitos políticos que tenham sua subjetividade formada no interior de uma cultura política democrática.

No clássico e seminal Mal-estar da civilização, editado ainda de 1930, Sigmund Freud evidencia que cada indivíduo forma sua subjetividade incorporando os códigos culturais de sua sociedade.

A palavra civilização designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que serve para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si (Freud, 2011. p. 34).

Para Freud, o resultado dessa operação de pressão e assimilação nunca corresponde exatamente às expectativas do grupo social e tampouco é manifestação explícita dos desejos da subjetividade individual. Por isso, a internalização da cultura do grupo social, dos valores civilizacionais de sua sociedade provoca, em cada indivíduo, um dado grau de dor e sofrimento emocional. Freud nos provoca a reconhecer que cada indivíduo observa a realidade material e social de forma mediada por um conjunto de crenças socialmente internalizadas. São os códigos culturais apropriados (ou sublimados) que vão formar a subjetividade de cada indivíduo, suas preferências, a percepção que tem de si e do outro. Definem, entre outras manifestações da subjetividade, o respeito aos diferentes e às formas de convívio com a diversidade.

Ainda na década de 1920 Lev Vygotsky (2008) verifica que as crianças aprendem na interação com os demais membros do seu grupo social não somente as informações pontuais (do tipo: dois mais dois, igual a quatro), mas também as práticas culturais legítimas no interior do grupo social. Ou seja, juntamente com a aprendizagem da língua falada ― e posteriormente a linguagem escrita ― são incorporadas estratégias de pensamento e de validação do mundo social. Um conjunto de práticas e representações sociais que orientam (positiva ou negativamente) as relações sociais que estabelece. Contemporâneo a este, Jean Piaget (2002) registrou em A noção de tempo da criança os experimentos realizados para evidenciar os processos cognitivos que levam à construção das estruturas mentais que permitem a percepção do tempo e espaço na sua dimensão física. Suas conclusões foram posteriormente extrapoladas por autores como Rulsen (2001) ao propor como a criança, e depois o adulto, formula hipóteses sobre o tempo social, o que chama de consciência histórica.

A psicologia evidencia-nos que os indivíduos internalizam os códigos culturais de seu grupo social na relação que ele estabelece com outros membros da sociedade. Cada indivíduo formula sua representação sobre o tempo social ― aquilo que chamamos de passado, presente, futuro ― por meio do contato com outros membros da sua comunidade. Ou seja, a própria percepção de tempo e de tempo histórico, de sujeito histórico, de identidade social é uma construção social internalizada pela subjetividade de cada sujeito.

É nessa tradição teórica que o pensamento social transita para a percepção da materialidade histórica das formações simbólicas. É nesse movimento intelectual que formamos recursos intelectuais para observar o mundo simbólico (que é sempre imaterial) como elemento constitutivo das formações sociais, como parte do real. O conceito antropológico de cultura nos permite ver e entender todos os objetos utilizados e produzidos pelo ser humano como parte constitutiva de si próprio. O sujeito social é tanto seu corpo físico como o conjunto de estruturas sociais internalizadas, tais como a língua, o raciocínio lógico, os valores éticos, as ferramentas mentais.

Ao aceitar que a cultura forma e conforma a subjetividade (de cada indivíduo), Peirre Bourdieu irá propor a noção de habitus como sendo o conjunto de práticas e representações sociais internalizadas pelo sujeito: “O habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital [...] o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural” (Bourdieu, 1989. p. 61).

Para esse sociólogo, observar as práticas sociais de um grupo social significa perceber as representações sociais que ele faz do mundo. Significa se aproximar dos valores culturais que os membros desse grupo partilham. A percepção desse habitus, dessas representações e práticas sociais, possibilita a percepção dos elementos simbólicos que conformam a identidade social.

Invertendo a oração, mas mantendo essa relação entre a subjetividade individual e as práticas culturais, o antropólogo Joel Candau (2011, p. 77) aponta que “[...] é impossível dissociar os efeitos ligados às representações das identidades individuais daqueles relacionados às representações das identidades coletivas”. E que, portanto, o sujeito se autorreconhece como individualidade na medida em que compartilha elementos simbólicos observáveis nos demais sujeitos de sua comunidade. Seja na afirmação desses elementos, seja na contraposição; seja na de adesão, seja na crítica às práticas culturais, os elementos simbólicos partilhados na coletividade atuam na formação das subjetividades individuais.

Assumimos, portanto, que a identidade social é uma comunidade que partilha e compartilha sentidos e significados, como os elementos culturais que provocam no sujeito histórico o sentimento de pertencer a um grupo social. Essa ligação afetiva e social se estabelece por razões diversas ― crenças comuns, valores similares, práticas corriqueiras ―, mas manifestam laços de lealdade e cumplicidade no interior do grupo.

Dissecando nosso mundo contemporâneo com o adjetivo líquido, Zygmund Bauman dissolve as convicções na unicidade do sujeito do mundo contemporâneo, coerência lógico-formal da consciência dos indivíduos que habitam o mundo líquido. Contesta tanto a tranquilidade psíquica desse sujeito como a sua unicidade sociológica:

Sugiro que a imagem mais capaz de apreender a natureza das identidades culturais seja a de um redemoinho, e não a de uma ilha. As identidades mantêm sua forma distinta enquanto continuam ingerindo e vomitando material cultural raras vezes produzidos por elas mesmas. As identidades não se apoiam na singularidade de suas características, mas constituem cada vez mais em formas distintas de selecionar/reciclar/rearanjar o material cultural comum a todos, ou pelo menos potencialmente disponível para elas. É o movimento e a capacidade de mudança, e não a habilidade de se apegar a formas e conteúdos já estabelecidos, que garante sua continuidade” (Bauman, 2012. p. 69).

Essa abordagem põe em evidência que o mundo contemporâneo impõe a cada sujeito o contato com muitos e variados grupos sociais cotidianamente. Os sujeitos da modernidade líquida são postos diante da constante incerteza sobre seus próprios gostos, seus próprios interesses, suas próprias opiniões... Situação que impulsiona o sujeito histórico do mundo líquido não apenas a reconhecer a existência de diferentes identidades sociais, mas a assumir para si práticas e representações sociais de diferentes grupos sociais.

Deriva dessa percepção a assertiva de que o sujeito social da modernidade líquida tem sua subjetividade formada não mais pela adesão a um grupo social, a uma identidade social sólida e consistente. Ao contrário disso, o sujeito social do nosso tempo presente teria sua subjetividade formada pela internalização de práticas e representações sociais oriundas de diferentes grupos sociais, assumindo, assim, uma identidade múltipla.

Cada sujeito incorpora como lembrança de sua existência individual um conjunto de memórias partilhadas sobre o passado de sua comunidade, isso que Maurice Hawsback (2006) chamou de memórias coletivas. Narrativas sobre o passado que consolidam interpretações partilhadas sobre a origem mítica de sua comunidade, sobre os conflitos e alianças com outros grupos, a perpetuação dos heróis. A força simbólica dessas narrativas sobre o passado comum do grupo social está menos ligada à correspondência aos fatos vivenciados no passado e mais ao sentimento de pertencimento ao grupo social que ela produz. A memória coletiva parece ser mais fiel aos interesses da comunidade de sentidos no tempo presente do que aos processos históricos do passado.

Cada sujeito social incorpora como parte de sua subjetividade um conjunto de narrativas sobre o tempo que recebe de um tipo social que, mais recentemente, Paul Ricouer (2007) chamou de “os próximos”. Os agentes sociais responsáveis por informar (e formar) aos demais as memórias partilhadas pelas diferentes gerações do grupo social que forma. Podemos colocar os historiadores ― seja na sua atuação como pesquisadores, seja na sua atuação como professores ― como um grupo de agentes sociais que participam do processo de formação e difusão dessa memória. Seriam, assim, os historiadores, um dos muitos dispositivos responsáveis pela difusão, no interior da sociedade, de narrativas sobre o passado comum entre os membros do grupo. Seriam um dos corpos de especialistas a reforçar os laços identitários da comunidade de sentidos: das identidades sociais.

O historiador e a identidade social

A pesquisa histórica, como os demais campos das humanidades, também se debruça sobre o tema ― ou objeto ― das identidades sociais. No clássico A invenção das tradições, o historiador britânico Eric Hobsbawm (1997) reúne uma série de artigos que evidenciam o processo histórico de legitimação de uma prática cotidiana como sendo uma tradição em diferentes tradições culturais e contextos políticos. Ou seja, identifica como ocorrem a incorporação e difusão de um elemento simbólico específico como parte da memória compartilhada pelo grupo social.

Mas não precisamos cruzar o atlântico para observar estudos sobre esse o processo de construção identitária por meio da memória. Descendo ao cotidiano dos dias em que vira nascer a República no Brasil, José Murilo de Carvalho (1990) nos descreve como ocorreu “A formação das almas” republicanas no território do Rio de Janeiro. Essa observação, baseada em ampla documentação histórica, evidencia que as lideranças políticas desse processo tinham presente que não bastava derrubar um governante e proclamar uma nova ordem, era preciso criar em cada sujeito a consciência de que, a partir de então, se viveria em uma nova sociedade, com valores e instituições diferentes. A passagem do Império para República foi também a negação do súdito, o sujeito social que mantinha laços de lealdade à coroa, e a afirmação do cidadão, o sujeito social igualado em direitos universais (se não de fato, ao menos no campo simbólico). A mudança de regime político foi também a construção de uma cultura política que, dialogando com elementos simbólicos do antigo regime, valorizava determinadas práticas e representações sociais para o exercício do poder político.

Como vemos nesses exemplos, o pesquisador (da história) tem por vocação denunciar a historicidade das identidades sociais. Evidenciar, trazer à luz, tornar conhecido que os elementos simbólicos constitutivos de cada identidade social são construções históricas carregadas de interesses e compromissos de poder.

Ao mesmo tempo, temos de reconhecer que um dos mecanismos sociais que permitem a difusão de passado comum aos membros da comunidade é o ensino de história (seja na sua versão escolar, seja na sua versão universitária). Pesquisas sobre a história do ensino de história, como as de Thais de Lima e Fonseca (2006), mostram que em diferentes contextos históricos o currículo e as práticas de ensino de história estiveram ligados à formação e difusão de uma memória coletiva para informar o brasileiro sobre o seu passado comum.

O ensino de história ainda no tempo do Império serviu ao propósito de afirmar o Brasil como um país europeu, governado por uma família real europeia, com um passado comum vinculado às nações europeias. Ou seja, a afirmação da identidade nacional como um povo genuinamente europeu. E ainda hoje vemos um currículo escolar em que a maioria dos processos históricos vividos no Brasil são tratados em comparação ao que ocorreu em países europeus ou da América do Norte. E muito raramente se relaciona com a América Latina. O fato geográfico de o Brasil não estar situado no continente europeu é um detalhe que passa desapercebido nos livros didáticos de história. Estratégia que serve apenas para reforçar nos sujeitos uma subjetividade que valoriza mais o que é externo ao Brasil e à sociedade brasileira.

No tempo da República Oligárquica, a fragmentação do poder central possibilitou a elaboração de histórias regionais e a validação das identidades nacionais correspondentes. Os sucessivos regimes políticos autoritários que se sucederam reafirmaram currículos de ensino de história que valorizam a ação política dos heróis (em regra homens brancos). A pouca (ou nenhuma) presença das populações africanas e indígenas antes do seu contato com os europeus nos materiais didáticos para ensino de história estimula a falsa percepção de que esses povos, e suas práticas culturais, não participam da formação de nossa nacionalidade.

Está fora do livro didático de história tudo o que pertence ao cotidiano popular: samba, futebol, carnaval, alegria, resistência, luta... No campo discursivo, é como se essas práticas sociais e representações do passado não estivessem presentes no processo histórico de construção da sociedade brasileira. É como se o povo brasileiro, seus saberes, seus dramas, seus amores não fizessem parte da história dessa nação (e talvez setores da população de fato não sejam percebidos como parte daquela comunidade imaginada).

Difundindo as pesquisas históricas, os materiais didáticos e os professores de história privilegiam uma narrativa sobre o passado da comunidade brasileira em que o Estado é o grande sujeito histórico. É o Estado colonial que ocupa e coloniza o território (e não os nobres portugueses); que escraviza e comercializa a população (não os senhores de engenho); que reprime os revoltosos (e não os oficiais das armas). Os materiais de ensino de história ainda são ricos em exemplos de narrativas sobre o passado que modela uma subjetividade inferiorizada ao mesmo tempo que modela as identidades sociais desejadas para o membro da comunidade de sentido nacional: o sujeito cordial e submisso.

A identidade múltipla do historiador

Espero ter deixado pistas de que, na minha visão, ao tratar da questão da identidade social, há uma aparente contradição entre a atuação do pesquisador (da história) e o professor (de história).

A atuação profissional do pesquisador (da história) visa evidenciar que a transformação de uma ordem social implica na invenção e difusão de tradições e de memórias coletivas que informem aos sujeitos seu passado comum. Nos termos que estamos aqui utilizando: o pesquisador (da história) tem como objetivo denunciar a historicidade das identidades sociais; evidenciar que elas são construções históricas comprometidas com os valores culturais de seu tempo pretérito.

Já a atuação do professor (de história) objetiva difundir as narrativas curriculares que têm como fim último a legitimação de uma identidade social vinculada aos compromissos do tempo presente em que ocorre. Costuma-se mesmo advogar ao ensino de história a prerrogativa de formar do cidadão (como se o exercício pleno da cidadania prescindisse do conhecimento matemático, físico, químico, literário...). Nos termos que estamos aqui utilizando: ao professor (de história) cabe difundir elementos simbólicos responsáveis por disseminar uma memória coletiva capaz de formar uma dada subjetividade dos sujeitos do tempo presente. Em poucas palavras: se a pesquisa histórica visa denunciar a historicidade das identidades sociais do passado, o ensino de história visa formar as identidades sociais do presente.

Tal situação poderia ser interpretada como uma contradição interna da identidade social do historiador, que deveria assumir-se como pesquisador (da história) ou professor (de história). Eu mesmo carreguei essa angústia pessoal e me senti preso a essa ambiguidade por muito tempo na minha atuação profissional (infelizmente). Mas espero ter deixado pelo caminho percorrido acima os conceitos necessários para encontrar alguma saída para essa angustia. O farelo de pão que nos retira dessa floresta.

A noção de modernidade líquida, definida por Zygmund Bauman (2012), alerta-nos de que, no tempo acelerado das sociedades contemporâneas, cada indivíduo tem contato com diferentes grupos sociais se apropriando, individualmente, de elementos identitários compartilhados por diferentes identidades. Na maioria das vezes, os elementos culturais a que somos confrontados no nosso cotidiano imediato são complementares e podem ser facilmente incorporados à nossa subjetividade. São como as aulas de formação e as leituras da historiografia, úteis tanto ao pesquisador como ao professor. Algumas vezes, esses elementos são dissonantes e produzem desequilíbrio cognitivos e novas sínteses. São os momentos em que debatemos como diferenças intransponíveis a metodologia da pesquisa e a metodologia do ensino para enfim observar que a prática metodologicamente orientada é o que se deseja do profissional com ensino superior: seja na pesquisa, seja no ensino.

Mas existem situações em que esses elementos são aparentemente contraditórios. Como aquelas onde temos de escolher por desempenhar as práticas socialmente esperadas de um pesquisador (da história) e denunciar a historicidade das identidades, ou a do professor (de história) a difundir as representações sociais da identidade socialmente legitimada. Contudo, essa aparente contradição não é resultado da ambiguidade das funções sociais do historiador, e sim da dinâmica da sociedade líquida, que impõe a cada sujeito social estar subjetivamente preparado para desempenhar diferentes papéis no interior de sua comunidade de sentidos. Como historiadores, devemos estar preparados para, em determinado contexto, afirmarmos a cultura de sua comunidade, em outro denunciarmos suas intenções.

A noção antropológica de cultura utilizada por Joel Candau (2011) nos permite entender que as identidades individuais ― aquilo que cada indivíduo pensa ser o seu “Eu particular” ― é menos uma unidade coerente e mais uma colcha de retalhos (um atravessamento de forças e instituições) composta por diferentes características da cultura partilhada pela comunidade. Ou seja, o sujeito social será reconhecido como historiador, pelos demais historiadores, na medida em que se apropriar e partilhar os elementos identitários dessa comunidade de sentidos. Esse conceito nos permite identificar por que nos cursos de formação universitária compartilham não apenas informações técnicas e teóricas necessárias para a atuação profissional como historiador, mas também um conjunto de representações e práticas sociais desse campo social, essa comunidade de sentidos.

Assim, a noção de habitus, proposta por Pierre Bourdieu (1989), aponta para a necessidade de cada indivíduo internalizar as práticas e representações sociais legítimas no interior do campo social onde deseja interagir. Passar pelos processos de formação profissional implica em assumir, de forma cada vez mais clara, a necessidade de agir tanto na denúncia como na afirmação das identidades sociais. Ao passo que a noção de inconsciente da psicologia evidencia que os sujeitos internalizam na sua psique os elementos culturais de sua comunidade conformando na sua subjetividade as estruturas simbólicas de seu grupo social. Esse conceito nos permite reconhecer que o historiador internaliza um conjunto de valores e princípios organizativos que caracterizam o pensamento historiográfico. Processo psicossocial que atua na formação da subjetividade desse sujeito histórico que se propõe a vivenciar a formação profissional como historiador. No tema que aqui destacamos, podemos propor que o historiador, ao partilhar a cultura de uma comunidade de sentidos, se apropria de um habitus particular e forma uma subjetividade que trata o tema da identidade social de forma binária: ora denunciando-a, ora difundindo-a.

Das identidades do historiador

Então me pergunto: considerando o processo de formação (ou seria de socialização) do historiador, poderíamos agir de outra forma? Poderia o professor (de história) assumir a prática social de denunciar a historicidade das identidades sociais? Poderia o professor (de história) assumir a tarefa de informar aos estudantes (e aqui penso na educação básica) que suas representações sociais sobre o passado são construções historicamente determinadas e comprometidas? Por outro lado: poderia o pesquisador (da história) agir deliberadamente para defender ― e não apenas denunciar ― a historicidade de uma identidade? Poderia o pesquisador (da história) se despir da pretensão de imparcialidade teórica, de inocência política e assumir que produz (e reproduz) uma narrativa do passado que será (independente da sua vontade) utilizada para sustentar um projeto de sociedade?

Espero ter deixado claro que, a meu juízo, nós, historiadores, não estamos fora das estruturas sociais que regulam o mundo social. Ao contrário, somos sujeitos históricos inseridos nas bases estruturantes das sociedades. Reconhecer a amplitude e a densidade dessas estruturas é fundamental para não nos deixar dominar por suas imposições. E, eventualmente, pode nos ajudar a evitar o desejo arrogante de sermos imunes a suas pressões.

Jesse Souza tem feito algumas provocações à comunidade acadêmica brasileira, aos pensadores do Brasil (seja lá o que signifique nessa frase os termos “Brasil” e “pensadores”). Tem alertado sobre os compromissos conscientes e não conscientes do cientista social ao produzir e reproduzir versões hegemônicas sobre a precariedade da identidade nacional. No provocativo estudo A tolice da inteligência brasileira aponta para o papel dos intelectuais na formação das identidades sociais.

A dominação social material concreta de todos os dias só é efetiva e tende a se eternizar se é capaz de se justificar e convencer. E produzir convencimento é precisamente o trabalho dos intelectuais no mundo moderno, substituindo os padres e religiosos do passado (SOUZA, 2015, n. p.).

Para ele a maior parte das interpretações sobre a sociedade brasileira está subordina a interesses contrários à nação, a comunidade de sentidos chamada Brasil. Ou seja, nossa tradição intelectual está comprometida com interesses externos ao povo brasileiro.

Trazendo essa reflexão para o caso foco desse ensaio, a identidade social dos historiadores, somos levados a nos indagar sobre o lugar social do conhecimento acadêmico que produzimos. Nossa atuação profissional tem ajudado os setores populares da sociedade brasileira a se verem incorporados na nação, na comunidade de sentidos? O historiador assume sua responsabilidade na formação da memória coletiva e das identidades sociais do tempo presente?

Poderia o pesquisador (da história) assumir a responsabilidade sobre as identidades que constrói com suas produções historiográficas? Penso que sim. O historiador pode e deve não apenas denunciar as identidades, mas também, ao fazê-lo, contribuir com a afirmação das identidades sociais comprometidas com os desafios da cidadania do tempo presente. Por outro lado: poderia o professor (de história) observar e criticar o sentido da memória que difunde em sua prática docente? Acredito que sim. O historiador pode e deve denunciar as representações sociais sobre o passado que excluem, inferiorizam, desqualificam amplos setores da sociedade em nome da afirmação de identidades sociais comprometidas com os desafios da cidadania do tempo presente.

A tarefa de superar essa esquizofrenia da identidade social do historiador (que é sempre simultaneamente professor E pesquisador) implica em trazer à consciência não somente as dores de nossa subjetividade, mas também das imposições da cultura de nosso tempo. Impõe a cada um e a todos da comunidade de sentidos a responsabilidade ― individual e coletiva ― de perceber os limites do nosso habitus acadêmico e produzir práticas e representações sociais qualitativamente superiores e historicamente mais próximas dos desafios do nosso tempo presente.

É tarefa, sim, do profissional da história denunciar a historicidade das construções identitárias com a mesma força com que contribui para a afirmação das subjetividades desejadas pelo seu tempo presente. Pois se, como avisa Simone de Beauvoir (2014), ninguém nasce mulher, se aprende a ser mulher, também podemos dizer que ninguém nasce historiador, todos aprendemos a sê-lo. Como cobra Angela Davis (2018), não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, também podemos advogar que não basta ser historiador, é preciso atuar na denúncia e na construção das identidades sociais democráticas, posto que, como nos ensina Marc Bloch (2001), se a história é a “Ciência dos homens [...] É preciso acrescentar: ‘dos homens, no tempo’”.

Referências bibliográficas

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Autor notes

1 Doutor em História/UFRGS. Docente do Programa de Pós-graduação em História/UFRPE.

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