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A CONSTRUÇÃO DA “CAPITAL BRASILEIRA DA AVENTURA”: TRANSFORMAÇÃO DA CIDADE DE BROTAS EM DESTINO TURÍSTICO-ESPORTIVO NAS DÉCADAS DE 1980 E 1990
LA IDEALIZACIÓN DE LA 'CAPITAL BRASILEÑA DE LA AVENTURA': LA TRANSFORMACIÓN DE LA CIUDAD DE BROTAS EN UN DESTINO DE TURISMO DEPORTIVO EN LOS AÑOS 1980 Y 1990
THE CONSTRUCTION OF THE ‘BRAZILIAN CAPITAL OF ADVENTURE’: THE TRANSFORMATION OF THE CITY OF BROTAS INTO A TOURIST-SPORTS DESTINATION IN THE 1980S AND 1990S
Caminhos da História, vol.. 26, núm. 1, 2021
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 26, núm. 1, 2021

Recepção: 12 Novembro 2020

Aprovação: 15 Dezembro 2020


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: O artigo objetivou analisar a transformação da cidade de Brotas, localizada no interior do estado de São Paulo, em importante destino turístico-esportivo, situação que possibilitou uma construção discursiva que autodenominou a localidade como “capital brasileira da aventura”. A especificidade da formação geológica da região alia-se à veiculação de narrativas fundadoras fragmentadas, provenientes de documentos do início do século XX, que conferem à cidade uma vocação natural e espontânea para a prática do turismo de aventura. No entanto, a presente investigação demonstra, por meio da fala de pessoas que foram importantes para a transformação da cidade em destino turístico de aventura, uma construção pensada segundo negociação de interesses específicos daquele momento histórico (décadas de 1980 e 1990), tais como o desenvolvimento do ecoturismo esportivo como alternativa econômica rentável e menos predatória, ainda que também produtora de certos impactos mal geridos.

Palavras-chave: Turismo, Esporte, Aventura, Cidade, Lazer.

Resumen: El objetivo de esta investigación fue analizar la transformación de la ciudad de Brotas, ubicada en el interior del estado de São Paulo, en un importante destino de turismo de deportes, contexto que admitió una construcción discursiva que nominó la ciudad como “capital brasileña de la aventura”. La especificidad de la formación geológica de la región se articula con la difusión de narrativas fundacionales fragmentadas, derivadas de documentos de principios del siglo XX, que confieren a la ciudad una vocación natural y espontánea para la práctica del turismo de aventura. Sin embargo, la presente investigación expone, a través del discurso de personas importantes para la transformación de la ciudad en destino turístico de aventura, una construcción esbozada por la negociación de intereses específicos de ese momento histórico (años 1980 y 1990), como el desarrollo del ecoturismo deportivo como alternativa económica rentable y menos nociva, aunque también responsable por ciertos impactos mal gestionados.

Palabras clave: Turismo, Deporte, Aventura, Ciudad, Ocio.

Abstract: The article aimed to analyze the transformation of the city of Brotas, located in the interior of the state of São Paulo/Brazil, in an important tourist-sports destination. What made possible a discursive construction that called itself “Brazilian capital of adventure”. The specificity of the geological formation of the region is combined with the dissemination of fragmented founding narratives, derived from documents of the beginning of the 20th century, which give the city a natural and spontaneous vocation for the practice of adventure tourism. However, a present research demonstration, through the speech of people who were important for the transformation of the city into an adventure destination, a construction designed according to the negotiation on specific historical interests (1980s and 1990s), such as the development of ecotourism, and sports as a profitable and less predatory economic alternative, although it also produces certain poorly managed impacts.

Keywords: Tourism, Sport, Adventure, City, Leisure.

Introdução

A cidade de Brotas, localizada no interior do estado de São Paulo, em razão de suas peculiares circunstâncias, tem sido investigada considerando as interfaces entre lazer, esporte, turismo e sustentabilidade, como em Bahia (2005) e Ribeiro (2012). E, mais especificamente, vem sendo campo privilegiado para problematizar temáticas referentes às atividades ou práticas corporais de aventura como em Carnicelli Filho (2007) e Bandeira (2012).

Eivada de simbolismos e de interesses distintos, a construção da cidade de Brotas como “capital brasileira da aventura”, entre as décadas de 1980 e 1990, foi articulada como alternativa econômica rentável e menos predatória para o município, defendida pela população local como forma de impedir a instalação de um curtume na cidade e, ao mesmo tempo, estimular o que se entendia como vocação natural da localidade. O processo de implantação do ecoturismo foi veiculado como uma salvação para o município, embora tenha sido produtor de certos impactos mal geridos e de estratégias mercadológicas que, em certa medida, incentivaram uma espécie de diferenciação do público visitante.

A Etnografia de abordagem antropológica é o método central desse trabalho, baseada em pesquisa de campo de imersão total da primeira autora durante 8 meses entre os anos de 2010 e 2011. A investigação busca estabelecer diálogos com a produção de uma memória coletiva, ao evidenciar narrativas presentes em documentos e na transmissão oral da população local, que legitimam a cidade como um destino turístico espontâneo e atemporal, eclipsando, assim, os mecanismos concretos de uma ambiência específica e as disputas de interesse que tornaram possível a transformação da cidade em referência para o turismo esportivo de aventura. No momento atual, ainda é bastante perceptível a veiculação dessas narrativas e dos simbolismos que a constituem, situação que motivou a escrita desse texto.

Com esse intuito, utilizamos fontes primárias, tais como o Nosso Album de 1933 do Jornal O Progresso e excertos do “Almanach de Brotas” de 1906, localizados na biblioteca municipal da cidade; além de materiais de divulgação do município, como website da prefeitura e folhetos turísticos; trechos do diário de campo e conversas informais com grupos de trabalhadores do turismo e atletas; e entrevistas semiestruturadas com dois participantes do processo de construção da cidade como “capital brasileira da aventura”. Essas falas serão identificadas por siglas aleatórias com o intuito de resguardar os participantes, embora a maioria dos entrevistados tenha descartado a necessidade de anonimato durante o processo de produção dos dados.

Resultados e Discussão

Destacamos dois momentos principais nas narrativas produzidas pelas pessoas ligadas ao turismo de aventura na cidade de Brotas, que se relacionam ao aporte documental utilizado como fonte para essa investigação: a formação geológica da região e a fundação da cidade. Essas narrativas sugerem uma naturalização de Brotas como destino de aventura, o que é contraposto pelo descortinamento de um processo localizado e intencional percebido nas entrevistas, que culminou no desenvolvimento das práticas de aventura como turismo.

Bom, gente, vou apresentar pra vocês rapidamente o que é o nosso rafting. Ele é feito no rio, o rio Jacaré Pepira, que tem esse nome que significa jacaré ralado. Alguns dizem que ele ganhou esse nome porque os Jacarés que bobeavam se davam mal nas suas corredeiras e outros dizem que os índios que viviam aqui matavam os jacarés para comer e soltavam eles nas corredeiras pra sua pele soltar da carne. Acontece que muito tempo depois de toda a interação da nossa população com o rio, desde os índios, quiseram trazer um curtume pra cidade, que ia matar o nosso rio. Então, a população se organizou pra que isso não acontecesse e pensou um jeito de conseguir gerar empregos sem destruir nossa natureza, e aí que veio o turismo de aventura. [...] (Caderno de campo, acompanhamento de um passeio de rafting[1] com turistas).

Aqueles que trabalham com aventura em Brotas contam aos turistas, nas suas rotinas padronizadas de atendimento ao cliente, uma “história” que está contida no site da prefeitura e nos manuais e apostilas de formação, oferecidos pelas agências turísticas às quais estão vinculados, mas que não mencionavam referências, fontes ou autores.

Apesar de quase não encontrarmos autores citados nestes materiais e falas, é possível identificar fragmentos do “Almanach de Brotas” de 1906 e do “Nosso Album” do jornal “O Progresso”, de 1933, anuários que cumpriam o papel de informativo histórico e de inventário do município. Além disso, o que se encontra como informação da prefeitura e em seu website, muitas vezes replicado nos websites de associações e agências turísticas, também se encontra em uma historiografia sobre Brotas publicada pela Diretoria de Turismo e Cultura, em 1996. O trabalho é encontrado em formato de livro e intitulado Brotas: cotidiano & história. Este mesmo projeto recolheu os artefatos que deram origem ao museu da cidade que, juntamente com a biblioteca municipal, o centro de inclusão digital e o centro de informações turísticas estão localizados em seu Centro Cultural.

É possível perceber também que uma replicação deste trabalho, em versões simplificadas e reduzidas, constitui o corpo dos inventários turísticos realizados pela Secretaria de Turismo e Cultura e Secretaria de Meio Ambiente da cidade, associado a trabalhos de gestão ambiental, engenharia florestal ou gestão em turismo, muitos deles realizados em colaboração com a prefeitura. Tais como o Plano de Desenvolvimento Turístico (ECA - USP, Departamento de relações públicas, publicidade e propaganda e turismo, Profa. Dra. Dóris Van de Meene Ruschmann, 1995); o Plano de Marketing (idem, 1996); o Projeto de Aproveitamento Turístico da Primeira Cachoeira do Astor (ibidem, 1996).

Após verificarmos parágrafos idênticos, supomos que estes documentos se tornaram as introduções de relatórios e informativos turísticos emitidos pela prefeitura a serem utilizados nos guias turísticos impressos. Esses informativos, por sua vez, provavelmente serviram de referência para as apostilas elaboradas pelas agências turísticas, quando as mesmas passaram a oferecer suas capacitações de guias de turismo e, posteriormente, adotaram o termo condutores de turismo de aventura.

Queremos dizer com isso que, embora pareçam, à primeira vista, uma meta-narrativa sem autoria e atemporal, as narrativas sobre a cidade de Brotas - que abrangem desde sua formação (geológica) e seu mito de origem (fundação) até os motivos de sua conformação atual - contêm muito de uma dissolvida história tornada oficial.

A narrativa geológica

Segundo o website da prefeitura, a cidade estaria localizada na Bacia Sedimentar da Província do Paraná. O que caracteriza seu relevo como um conjunto de planaltos, cuestas basálticas e morros testemunhos que drenam suas águas para os rios Paraná e Uruguai. Segundo Ramos et al. (1996), esta formação ficou conhecida localmente como Serra de Brotas.

De acordo com as autoras, o processo de sedimentação de detritos trazidos de outras áreas constituiu os arenitos da região e o escoamento de lavas vulcânicas, por meio de fraturas na crosta terrestre conformaram seus basaltos. A combinação da porosidade do primeiro, que permite fluir para a superfície o aquífero Guarani[2], com a impermeabilidade do segundo permitiu a formação de cursos d’água, tais como os rios Jacaré Pepira e Jacaré Guaçu e os ribeirões Pinheirinho, Tamanduá, do Lobo e dos Pintos. Ou seja, terrenos mais permeáveis sobre rochas basálticas (mais impermeáveis) garantem, assim, a perenidade de nascentes ou minas d’água e um fluxo mínimo constante, mesmo nas estações secas do ano, neste caso, o inverno. Seria esta condição de rio constante, possível de descer até mesmo na baixa temporada. A decomposição do basalto teria produzido as terras roxas da região, solos férteis que propiciaram seu cultivo. Enquanto as áreas em que o arenito foi predominante, desenvolveram-se em solo com vegetação de campos, que se prestaram às atividades pastoris.

Essas características, que remetem à formação natural da localidade, são acionadas no aparato discursivo que naturaliza a imagem da cidade como destino privilegiado dos esportes de aventura, como um território que nasceu para essa finalidade. Nesse sentido, seu uso recorrente aliado às narrativas fundadoras e que remetem a um desenvolvimento quase espontâneo das práticas de aventura, é de fundamental importância para se compreender a construção da “capital brasileira da aventura”.

A narrativa fundadora

De acordo com a publicação Nosso Álbum (1933) – citando o Dicionário Geográfico da Província de São Paulo, de João Mendes de Almeida - a palavra Brotas viria de pór-a-oita, indistintamente referida como termo guarani e tupi. Segundo o periódico, esse termo remeteria a quedas, saltos e faria alusão à sucessão de quedas do rio Jacaré Pepira Mirim, e que teria sido associada a Brotas por causa de sua sonoridade. Entretanto, segundo o mesmo periódico, a palavra brotas era frequente na literatura brasileira e portuguesa. Poderia ser uma derivação de abróteas, planta, ou ainda remeter ao brotar de plantas que ocorria após os acampamentos dos tropeiros, ou ao brotar de olhos d’água, hipótese compatível com as características geológicas da região. Segundo Ramos et al. (1996), ainda, o nome pode ter sido atribuído ao local, em referência à imagem de Santa Maria das Brotas, ou Nossa Senhora das Brotas, estátua de meados do século XIX, para quem Francisca Ribeiro dos Reis teria erguido a capela acima citada e que ainda se encontra na cidade.

O livro intitulado “Brotas: cotidiano & história” (RAMOS et.al, 1996), citado anteriormente, é a principal matriz teórica que fundamenta a história fundacional da cidade. Segundo as autoras, atividades pastoris já estavam presentes na localidade desde o século XVI, mas o período de maior desenvolvimento da região deu-se com a exploração de minas de ouro por tropeiros e, posteriormente, com os movimentos dos mineiros e dos boiadeiros para regiões de terras virgens devido ao esgotamento da atividade mineradora.

A ocupação da região por não indígenas no decorrer do século XVIII, de acordo com o material bibliográfico, consistiu em entroncamentos, postos de troca, de descanso e de abastecimento para os comboios que iam do litoral às minas. Posteriormente, da Vila da Constituição, atual Piracicaba, à atual Araraquara. Esses pontos mantinham distâncias aproximadas de um dia de viagem, o que equivalia a trinta ou quarenta quilômetros, e passaram a se desenvolver em torno dos rios, para abastecimento de água, e a se tornar referências de comercialização de produtos de necessidade dos viajantes.

A publicação menciona a transformação da povoação em distrito de Araraquara em 1841 e, em 1846, sua elevação à freguesia. Em 1853, a Capela de Brotas seria transferida para Rio Claro e, em 1859, elevada à vila, para tornar-se o município de Brotas no mesmo ano. O município já possuía igrejas, uma cadeia e duas escolas quando as atividades agropastoris de subsistência e pequenas indústrias de cana começaram a dar lugar ao café em sua marcha para o oeste paulista (Ramos et al. 1996).

Com a expansão do café teria se tornado marcante a presença de imigrantes italianos na cidade e, posteriormente, da ferrovia e da energia elétrica. A vida urbana teria crescido em importância com a construção, por volta de 1895, de calçadas e passeios, atraindo algumas outras fábricas para a cidade. Esta teria sido a fase áurea do município, segundo as autoras supracitadas. Além dos equipamentos urbanos, sua natureza era exaltada e motivo de orgulho, como se encontra no Almanach de Brotas:

A natureza foi prodiga para com o logar em que havia de se assentar um dia a cidade de Brotas. A menos de 1 kilômetro da cidade e a uns 200 metros da ponte despenham-se em uma bela cachoeira as águas do Jacaré-Pepira [...] Afora este salto, do qual, materialmente fallando, depende o adiantamento da cidade, outros há no município, muito importantes. Um está situado na fazenda do Snr. Cyro Marcondes de Rezende. No bairro dos trez saltos existem de facto trez saltos, sendo um delles o que fica em terras do Snr. Jeronvino Martins, verdadeiramente medonho. Nesse logar o rio Pinheirinho precipita-se num abysmo de uns 150 metros de profundidade. Este espetáculo é bello e horrendo ao mesmo tempo, fascinante, arrebatador. De menos importância muitos outros há que deixamos de mencionar (1906, p.15-16).

Percebe-se neste excerto a importância econômica que já era atribuída ao rio e, principalmente, à sua declividade e aos saltos (corredeiras e cachoeiras), tidos como diferencial frente a outras cidades que se destacavam economicamente no interior paulista. Entretanto, não somente de energia hidrelétrica e indústrias falavam estes documentos. De forma ambígua, entre o temor e a admiração, já se falava do encantamento que a beleza cênica do rio produzia em seus residentes e visitantes.

É esse o pensamento que me vem à idéia quando vejo essa enorme quéda d’agua que, em movimento constante, a mugir como um leão, celebrisa Brotas e encanta os hospedes que, pasmados, não podem occultar a sensação mysteriosa que lhes invade a alma esse ponto da natureza. Quanta maravilha encerra esse quadro soberbo e estupendo, novo sempre, embora velho, admirado sempre, embora conhecido! E o viajante o admira! Descrevel-o, quem poder?!... A natureza, essa mesma que o poeta em feliz momento chamou a única bíblia verdadeira, tem maravilhas ante as quaes as mais vivas tintas descoram, os artistas da pintura vacillam e tremem e as pennas adamantinas dos poetas silenciam tímidas. E o salto está n’essas condições. Tentar descrevel-o, pallidamente émbora, é tentar o impossível, e a minha penna, comprehendendo isso, revolta-se para não profanar a natureza sublime. De mais nada preciso. Lamartine, o maravilhoso auctor de ‘Graziella’ diz que há na naturesa cousas que não se explicam. Pois bem; o nosso salto é uma d’ellas [...] (ALMANACH DE BROTAS, 1906, p.119-120).

O rio, além de ser visto como o recurso a ser utilizado pelas indústrias para o crescimento da cidade – “Ahi estão nossas soberbas cascatas do Jacaré Pepira a esperar pelas sonhadas fabricas de tecido, pela força e luz; esperança que embalará pelos tempos em fora os corações brotenses patriotas” (idem, p.50) – também inspirou projetos de espaço de lazer e prática esportiva nos moldes do clubismo, a exemplo da natação.

Esperando pelas fábricas, ter-se-ia vivido em função do café até sua crise definitiva. Entre 1898 a 1910 despontaria a pecuária na região estimulada pela superprodução de café e a queda de seus preços internacionais. A criação de gado é impulsionada em decorrência da I Guerra Mundial, quando ocorre o aumento pela procura de carne em conservas e congelados (OLIVEIRA JUNIOR, 2003).

Nas décadas de vinte e trinta, apesar de o transporte rodoviário chegar à cidade, segundo Ramos et al. (1996), devido às pragas, geadas e a quebra da bolsa de Nova Iorque, poucas fazendas conseguiram permanecer sobrevivendo do café. Muitas delas passaram a priorizar a pecuária, outras o cultivo de algodão e outras, ainda, se desdobraram em sítios e chácaras em negociações com companhias de loteamento. Há uma mudança importante no número de pessoas que passa, desta forma, a viver na zona urbana e também evasão para outras regiões.

Após um período de estagnação econômica e do trabalho com algodão e gado, que, segundo Ramos et al. (1996), não teria absorvido toda a mão de obra local, a hegemonia do café seria substituída novamente pela da cana de açúcar. Desta vez, incentivada pelo Proálcool e acompanhada pela pecuária e o plantio de laranja. Seguindo esta nova fase de prosperidade, de acordo com Agnelli (2006), na década de 1960, o turismo começa a despontar informalmente junto ao movimento de famílias locais, parentes e amigos visitantes, sendo o Rio Jacaré Pepira o principal atrativo da visitação da cidade.

A narrativa política

Na década de 1970, de acordo com a Agnelli (2006), mais precisamente em 1978, teria sido cogitada a transferência da capital do Estado de São Paulo para o interior. Por meio de relatos, ela afirma que esta possibilidade incentivou loteamentos e a criação de bairros, como o do Patrimônio, que se destinariam a atender o grande fluxo de pessoas esperado com a mudança política.

Agnelli (2006) relata que não implementada a transferência da capital, depois dos loteamentos muitos residentes de São Paulo compraram terrenos em Brotas. Embora, segundo moradores atuais da cidade, em conversas informais do trabalho de campo etnográfico, o loteamento permaneceu quase vinte anos totalmente parado, este evento parece significativo para a mudança do cenário de serviços da cidade, visto que os lotes passaram a assumir a função de casa de descanso.

Com a crise do Proálcool, a cidade se vê novamente em dificuldades econômicas e é abordada por um curtume, mas faz a opção pela sua não instalação. Em seu lugar, a implantação do turismo é proposta. Decisão que fora considerada de viés ambientalista pela comunidade brotense e se ancorou fortemente nas narrativas geológicas e fundadoras da cidade.

Embora a indústria agropecuária ainda se destaque como uma das principais atividades do município, segundo o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, atualmente, a maior porcentagem do produto interno bruto da cidade é atribuído ao setor de serviços. Além disso, o mesmo senso diz que apesar da economia ser predominantemente caracterizada pela agropecuária nos últimos anos, atualmente de seus 21.580 habitantes, apenas 2.981 residem na zona rural, enquanto 18.599 na zona urbana. Isto está provavelmente relacionado ao processo de implantação do turismo em Brotas.

De acordo com Di Francisco Junior (2008), desde 1983, Brotas foi incluída na Área de Proteção Ambiental (APA) de Corumbataí, perímetro da APA Corumbataí/Botucatu/Tejubá. Segundo o website do Ministério do Meio Ambiente, uma área de proteção ambiental (APA) é uma área em geral extensa, “com um certo grau de ocupação humana, considerada como sendo dotada de atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas”. Em particular, sobre a APA Corumbataí, o Ministério do Meio Ambiente considera:

[...] que as áreas apresentam um conjunto de condições ambientais que ainda preservam elementos significativos da flora e da fauna; que as “cuestas” nelas contidas constituem-se num importante divisor de águas, nascendo em suas encostas muitos rios e várias fontes hidrotermais de importância econômica e medicinal; que estas áreas ainda não foram atingidas pelas indústrias, prevalecendo nelas as atividades do setor primário e terciário; que o conjunto paisagístico por elas formado, além dos seus valores ambientais intrínsecos, constitui-se em anfiteatros naturais de grande beleza cênica.

Os atributos ambientais considerados dignos de proteção pela APA Corumbataí, ainda segundo o Ministério do Meio Ambiente, são as cuestas basálticas, os morros testemunhos, a vegetação remanescente de Mata Atlântica e Cerrado, os recursos hídricos superficiais e as nascentes de rios, espelhos d’água, represas, rios de corredeira e cachoeiras, além de seu patrimônio arqueológico.

Criada por decreto estadual 20.960 de 8 de junho de 1983, a APA, ou a condição de pertencimento a ela, passou a interferir na concepção de natureza brotense, entre outros fatores, na medida em que deflagrou, desde 1984, atividades de preservação, educação ambiental e negócios, ditos, sustentáveis no município. Isto quer dizer, incentivou e possibilitou ações de mecanismos de participação comunitária e de gestão ambiental, como o COMDEMA - Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (criado em 1984). A natureza, muito representada pelo rio, neste contexto, não estaria mais ali para servir ao crescimento urbano, mas para ser considerada de modo sustentável no desenvolvimento humano. As antes desejadas fábricas não teriam mais lugar no rio Jacaré, o que estimularia o setor de serviços.

Segundo Di Francisco Junior (2008), no Brasil, desde 1985, este movimento ecologista mundial leva à discussão formal sobre o ecoturismo. Em 1987 é identificada a primeira iniciativa de direcionar a atividade ecoturística no país por meio do Projeto de Turismo Ecológico do IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis) em parceria com a EMBRATUR (Instituto Brasileiro de Turismo).

Em Brotas, segundo Agnelli (2006), a partir de 1986, foram realizadas várias reuniões com a população local, prefeitos, vereadores e representantes de entidades sociais e governamentais para discutir a conservação do Rio Jacaré Pepira via COMDEMA. E em setembro de 1986 foi constituído por ele o ‘Consórcio Intermunicipal para Defesa e Preservação da Bacia do Rio Jacaré Pepira’ – CODERJ. De acordo com a autora, o primeiro consórcio do Brasil formado exclusivamente para estabelecer políticas para a preservação e o manejo de recursos naturais de uma bacia hidrográfica, com a participação dos treze municípios banhados pelo rio.

O desenvolvimento do esporte e turismo na natureza e a construção da “capital brasileira da aventura”

Segundo relatos das conversas etnográficas, em meados dos anos 1980, os primeiros viajantes autônomos ou mochileiros, informados pelos pesquisadores e estudiosos que mapeavam e faziam levantamentos sobre a geofísica e o bioma da região, passaram a chegar na cidade em maior número. Os comerciantes locais e outras pessoas que procuravam melhores condições de vida e trabalho, começaram a identificar a situação como oportunidade de negócio:

O primeiro turista que normalmente chega num local que está despontando é visto como meio malucão porque ele é um mochileiro [...] ele tem é um perfil mais desbravador, expedicionário, independente, com experiências de vida e de corpo, de trilha, acampamento e as vezes interessado em descobertas científicas. Então, houve uma troca muito grande com esse turista inicial, que até ajudou a definir os roteiros. Ele é fundamental na descoberta de um potencial, ele é o que faz as coisas pela primeira vez (J.J.).

Agnelli (2006) afirma ainda que, em 20 de julho de 1987, teria sido solicitada ao governador uma audiência para reivindicar o aproveitamento das áreas de lazer nas correntes de água e o auxílio financeiro para o tratamento dos esgotos lançados na bacia e a proposta do Programa de Ecoturismo do Departamento de Parques e Áreas Naturais – DEPAN teria vindo na direção desta demanda. Acreditava-se na possibilidade simultânea de conservação dos recursos naturais, recreação em contato com a natureza e criação de uma nova fonte de recursos financeiros para os municípios integrantes do Consórcio.

De acordo com Agnelli (2006), teria sido publicado em 1990 pela Fundação Faria Lima – CEPAM, o relatório das atividades realizadas pelo consórcio até então, contendo também os projetos que seriam desenvolvidos na Bacia do Jacaré Pepira. Entre eles, o Projeto Piloto do Programa de Ecoturismo consistia no que pretendiam que fosse a “organização do acesso aos recursos naturais da região,” seguindo as seguintes etapas: “levantamento do patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico e dos recursos naturais de cada município integrante do Consórcio”; “treinamento e preparação dos recursos humanos envolvidos no projeto”; “seleção das áreas apropriadas para o desenvolvimento do projeto”; “elaboração dos roteiros turístico-ecológicos; estudos de demanda turística”; “adequação do equipamento receptivo turístico; implantação dos roteiros turístico-ecológicos”; “divulgação dos roteiros turístico-ecológicos”; “supervisão do funcionamento do projeto”; “verificação das metas atingidas para posterior aperfeiçoamento do projeto”.

Mas segundo Di Francisco Junior (2008), desde 1991, o consórcio perdeu expressividade e diminuiu suas atividades. Então, com a possível instalação do curtume na cidade, como o COMDEMA estava com as atividades enfraquecidas e praticamente desativado, foi constituído o “Movimento Rio Vivo”, uma Organização Não Governamental (ONG) que tinha como objetivo ampliar a participação da comunidade e retomar as discussões e também as ações de educação ambiental.

Acusada por muitos de tentar barrar o crescimento da cidade, a ONG apoiava-se nas iniciativas do COMDEMA e CODERJ ao reforçar o turismo como alternativa de desenvolvimento para o município. De acordo com Agnelli (2006), em 1993, o município de Brotas dá início ao processo de fomento ao turismo e o Movimento Rio Vivo passa a realizar “expedições” que tinham como objetivo levantar o que se chamou de patrimônio natural do município, além de avaliar e documentar a possibilidade de exploração do Turismo Ecológico em Brotas.

A primeira apresentação do levantamento se deu em uma exposição fotográfica realizada na cidade após a catalogação, durante a qual, segundo Oliveira Junior (2003), os moradores locais questionavam se o que viam era realmente o município de Brotas. Muitas cachoeiras estavam em propriedades privadas e não eram acessadas pela população como um todo. Para iniciar o trabalho com o ecoturismo foi preciso convencer os proprietários destas terras do retorno financeiro e outros benefícios que a abertura de suas propriedades à visitação poderia trazer.

Foi feita uma primeira exposição de fotografias desse material e foi uma coisa até pouco divulgada, só foi dado um toque no jornal regional. Depois dessa exposição e dessa chamada no jornal regional, começou a aparecer os turistas. Então, o povo batia na casa da gente, domingo de manhã ‘ah vocês que são da galera do Rio Vivo, que sabe onde é tal cachoeira’, e daí a gente levava o pessoal para ver, e daí a gente começou a sacar que isso poderia se transformar, a gente já estava trabalhando de graça e informalmente, de uma maneira errada, então precisava transformar isso de verdade em produto. (Eva Firmino Santana citada por Agnelli, 2006, p.73).

Segundo Oliveira Junior (2003), um mestre em Agronomia, numa reunião da ONG, teria sugerido tomar as rédeas do processo de turismo na cidade abrindo uma empresa. Três jovens que acabavam de entrar na faculdade e um colegial aceitaram o desafio. Surgia assim a “Mata D’entro”:

Nós nem conhecíamos todo o potencial pra ecoturismo da região na época, então, montamos a empresa para fazer o levantamento dos atrativos da região, que era um levantamento basicamente das cachoeiras, que eram setenta, e nem as pessoas da cidade conheciam e lançar na mídia as descobertas. E a mídia queria reportagens pós Eco92, então, foi muita mídia espontânea. E daí foi evoluindo muito rápido. Além do fato de que, antes disso, já havia aqui o COMDEMA,[3] o Consórcio do Rio Jacaré,[4] que eram coisas que já vinham ao longo do tempo. E para a não vinda do curtume, o que nós tínhamos apresentado como alternativa ao prefeito para a geração de empregos e renda na cidade foi o ecoturismo. Então, algumas pessoas do Movimento Rio Vivo criaram a primeira operadora de ecoturismo da cidade que foi a Mata D’entro (J.J.).

Além da desconfiança sobre as imagens da exposição não serem de Brotas, outras correntes opostas à implantação do turismo preconizavam que a cidade seria invadida por forasteiros que não teriam compromisso com seu patrimônio e que isso levaria ao aumento da desordem e da insegurança.

Em Setembro de 1993 foi criada, em Manaus, por ocasião do evento World Congress On Adventure Travel & Ecotourism, a Associação Brasileira de Ecoturismo, que seria a primeira organização não-governamental de ecoturismo do Brasil. Segundo seu site oficial[5], uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que tem por finalidade: “fazer do turismo um instrumento eficaz de desenvolvimento econômico e conservação dos recursos naturais e culturais do Brasil”, “promover a capacitação e treinamento de profissionais e empresários para atender o mercado e elaborar e implementar estudos, pesquisas e projetos”. No ano seguinte, o Brasil publica sua definição oficial para ecoturismo:

Ecoturismo é o segmento da atividade turística que utiliza, de forma sustentável, o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista através da interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das populações envolvidas. (EMBRATUR/IBAMA, 1994, p.19)

Di Francisco Junior (2008) afirma que, consequentemente, em 1994, estabelecem-se diretrizes para uma Política Nacional de Ecoturismo. Além disso, no mesmo ano, é criado um comitê para coordenar o Programa Nacional de Municipalização do Turismo, cujo objetivo era promover uma conscientização de que a população local seria a maior beneficiária das ações turísticas realizadas em seus municípios. Em Brotas, estas atividades passaram a ser organizadas dentro dos pressupostos não só do ecoturismo, mas também do que se chamou de turismo ativo e turismo de ação:

Quando a gente estava com a empresa, era um grupo de meia dúzia de pessoas e a gente fazia tudo. Então, eu lembro que nessa ocasião eu administrava a agência e os meninos eram guias [...] não tinha gente, e assim a gente sacou que precisava abrir esse leque e envolver mais pessoas, foi quando fizemos o primeiro curso de guias, eu e o Renato que ministramos. Fizemos uma grande pesquisa, com SEBRAE, com EMBRATUR, e todo material que a gente pegava era outra coisa porque o povo do turismo era um turismo de massa, uma outra história. Pegava as fitas de vídeo, eram umas mulheres de tailler dentro dos ônibus, falando de vegetação, não era o que a gente fazia aqui... (Eva Firmino Santana citada por Agnelli, 2006).

A Mata D’entro, a partir da procura crescente por Brotas e seus serviços, passa a fazer experimentações para a criação de um modelo de ecoturismo ativo em Brotas que culmina com a ideia de um turismo esportivo na natureza. Assim como relatado a seguir, as noções de turismo esportivo e aventura passam, então, a ser pensadas como um diferencial e uma alternativa para que a empresa recuperasse seu lugar no ecoturismo.

Nós tínhamos levantado as cachoeiras; e o que a gente fazia? Levava os turistas para caminhadas, observação e banho de cachoeira. Só que as cachoeiras começaram a ficar conhecidas e os turistas começaram a ir sozinhos, e os donos das cachoeiras a cobrar entrada direto dos turistas. Então, depois de a gente fazer toda a catalogação, ninguém mais precisava da gente. Aí a gente percebeu que a empresa não tinha nenhum produto dela mesma, que a catalogação não podia ser uma atividade, mas apenas um começo. Além disso, a gente percebeu que a beleza de Bonito (MS) e outros destinos estavam despontando no ecoturismo. E começou a pensar o que de diferente em ecoturismo a gente poderia oferecer, que as pessoas precisassem da gente e de Brotas pra fazer. Aí entrou a questão da aventura, do aparecimento do esporte radical misturado com ecoturismo, não tinha muita definição pra isso, isso era 1995, mais ou menos (J.J.).

A aventura seria, portanto, participativa e performativa, no modelo da prática esportiva, relativa a embodied practices, como sugerem Cater e Cloke (2007). Mas a história da opção pelo termo aventura para designar o tipo de turismo a que Brotas se voltou teria ainda mais uma peculiaridade. É preciso escrutinar o processo reflexivo que soma ao estatuto de radical a preocupação ambiental e associa o esporte à preocupação com a segurança:

Quando Brotas começou, se usava o termo ecoturismo e esporte radical, mas isso acabou atraindo realmente pessoas radicais pra cá. Pessoas que não estavam preocupadas com segurança. Então, se ele vai pular de uma pedra, como ele é radical, ele já vai pular logo de cabeça. Ele vem sem equipamento pra fazer o rio e é isso que causa os acidentes. E isso assustou um pouco a gente na época. E por isso a gente trocou o radical pelo aventura. Juntou o pessoal do meio na época e conversou sobre esse perfil mais ousado que a propaganda atraía e até pra não deixar acontecer acidentes, manchar mesmo a beleza e a magnitude de toda a natureza de Brotas, e por consenso nos decidimos a tirar essa ideia de radical (T.C.).

Segundo este e outros relatos, não se tratava apenas de repelir o perfil e a imagem de radicalidade, mas de atingir e até mesmo de produzir um perfil de turista disposto a pagar pelas atividades oferecidas pelas agências, já que aquele que se considerava radical era ávido por autonomia em suas práticas. Nesta busca, notaram uma demanda de certos clientes pela importância de um resgate do contato com a natureza e com a família, e entenderam que este seria o público alvo a atingir e não mais os mochileiros, que buscavam formas de viajar a baixo custo. A pesquisa de Bahia (2005) corrobora a impressão da primeira frase do entrevistado:

na década de 1980 praticamente não existia turismo, mas agora era como se o litoral fosse a varanda, e nós fossemos o quintal de São Paulo. Então, notamos muitos paulistanos vindo nos finais de semana com um perfil de público familiar e disposto a gastar mais, além do perfil jovem. Então, na prática, várias formas de turismo se misturaram, e na primeira Adventure Fair, em 1999, nós já começamos a pensar em definições que remetessem a prática simultânea de todas essas formas de turismo. Pra você saber que aqui tem um turismo de ação, mas que você pode praticar com a sua família. Então, pensamos: o que nós podemos oferecer pra esse público? Primeiro, atividades mais rápidas, para que eles pudessem fazer uma de manhã e uma à tarde e pudessem aproveitar ao máximo nossos diferentes produtos em um final de semana. Então, elas foram sendo desenvolvidas para que tivessem uma duração controlada, fossem mais estruturadas, pra que o turista de São Paulo saiba que ele vai conseguir acabar e voltar no horário. Esse é um turista que quer retomar o contato com a natureza e quer emoção, mas ele não está engajado a ponto de enfrentar riscos de desaparecimento, lesões graves ou morte, ele quer garantias de que vai sair da experiência ileso. Então, nós decidimos tirar o radical, pra oferecer isso a ele, como se fosse um parque de diversões da natureza ao ar livre (J.J.).

Em 1994, de acordo com Agnelli (2006), a Secretaria de Esportes e Turismo do Estado de São Paulo organizou e lançou o projeto de regionalização e interiorização do Turismo. Nesse projeto, os municípios do Estado de São Paulo foram agrupados em 14 núcleos. Brotas foi incluída no Núcleo das Serras. Com este projeto, a Secretaria tinha o intuito de incentivar o paulista a viajar dentro do próprio estado. Isto mobilizou a divulgação mais ampla dos atrativos de Brotas e o incentivo à criação de melhor infraestrutura para a recepção dos turistas na cidade.

Em 1995, Dóris Rushmann, professora da Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo, realizou uma análise do material coletado pelo Movimento Rio Vivo para avaliar a viabilidade do ecoturismo e a elaboração do Projeto para o Desenvolvimento do Turismo em Brotas.

E todo esse processo foi inédito no Brasil. Existiam pouquíssimos profissionais em ecoturismo. Turismo de aventura nem se fala, quase não existia. Cursos de graduação e pós graduação, especialização nem se citava. Nós procuramos dissertações e teses e não tinha quase nada, elas eram mais gerais sobre turismo e citavam muito por cima. Então, foi o começo pro próprio Brasil, Brotas foi bem inicial, uma fase de vamos desbravar, vamos ver no que dá e aprender com exemplos da literatura, de documentários de fora e tentar aplicar ao que a gente tinha. E os estudos brasileiros começaram a partir disso, muitos de nós tínhamos feito faculdade ou estávamos fazendo e trouxemos pessoas de nossas universidades pra esse processo, alguns pesquisadores que começaram a fazer trabalhos. Então, tem muito trabalho científico. Lá na secretaria de meio ambiente, foi feita uma biblioteca pra esses trabalhos, todos sobre o começo do processo. E eu comprei uns livros sobre aventura nos últimos cinco anos nas Adventure Fair de um pessoal da Educação Física e da Geografia que traz outras referências (J.J.).

Face às duas empresas locais - uma que tinha no trekking (Mata D’entro) e a outra no boiacross (Vaca Náutica) as suas atividades principais – se posicionaram duas empresas de “forasteiros” especializadas em outros dois conjuntos distintos de técnicas: a canoagem, especialmente o rafting (Canoar) e as técnicas verticais (H2Omem), especialmente rapel em cachoeira. Estas quatro empresas, competindo entre si, deram origem a dois tipos de condutores de aventura e ao formato atual das agências turísticas de Brotas, que passaram a oferecer todas a maior variedade possível de atividades de aventura.

Em 1998, ano em que o número de agências passou a aumentar vertiginosamente, Brotas conquistou o selo turístico da EMBRATUR, tornando-se oficialmente uma cidade turística (Agnelli 2006). Mas, além disso, uma série de eventos esportivos aconteceram em Brotas e corroboraram para a divulgação do município e para a sua construção enquanto cidade esportiva. Entre eles, eventos de moutain bike e corrida de aventura, aparentemente incentivados pelo FERA - Festival de Esportes de Aventura, que ocorrera em São Paulo em 1997, segundo Uvinha (2001), realizado pela ESPN Brasil como prévia dos X-Games[6] Brasil. Especificamente em Brotas, dois esportistas tiveram influência expressiva no formato assumido pela aventura.

unto a essas iniciativas se dava o turista de aventura, figura chave para dar concretude aos projetos políticos daqueles que transformaram Brotas em destino turístico e daqueles que em torno de práticas radicais almejaram se profissionalizar no esporte e na condução desses turistas.

Eu já tinha feito assessoria de imprensa em São Paulo [...]. Então a gente fez um trabalho de divulgação super seleto, direcionado, profissional mesmo, a gente só divulgava em tv a cabo, onde o número de pessoas que assistem é menor, o público é bacana, a gente sabe o que a gente queria para cá, isso desde o começo, a gente queria transformar isso aqui numa viabilidade econômica; não adianta trazer farofeiro para cidade que detona e não dá o retorno financeiro que a gente queria, então essa coisa que as pessoas falam que o turista que vem para Brotas é bacana não caiu do céu, teve um trabalho árduo para a gente cativar, são pessoas viajadas, que têm um nível de exigência grande, então, a gente teve esse cuidado em divulgar só em revista especializada, Revista Terra, jornal, no caderno mais bacana, mas nem muito lido, para a gente andar do tamanho das pernas (Eva Firmino Santana citada por Agnelli, 2006).

O fato de ter sido instituído pela prefeitura, mais recentemente, o dia do turismo, feriado municipal no qual as pousadas da cidade oferecem um café da manhã comunitário para a população e as agências turísticas, organizadas pela ABROTUR (Associação da Empresas de Turismo de Brotas e Região), oferecem um número determinado de cortesias de passeios aos moradores, e a instituição do dia do condutor de aventura, celebrado por um churrasco, que podem ser vistos como políticas de compensação, reforçaria o argumento de que a aventura não era implementada e/ou acessível para grande parte da população local, assim como também problematiza Ribeiro (2012).

Entretanto, também percebemos que a apropriação da aventura por outro tipo de público não pôde ser evitada por sua elite intelectual idealizadora. Isto está revelado nas narrativas sobre o “boom” do turismo de aventura. Mesmo com esse cuidado na divulgação, não havia mecanismos para impedir o acesso de outros tipos de visitantes e o interesse de outro tipo de população local, não tão “bacana” segundo seus critérios.

Em 1998, Brotas sentia fortemente as consequências do aumento do número de turistas por temporada e foi assinado um termo de cooperação técnica com a Fundação Florestal, entidade ligada ao Instituto Florestal do Estado de São Paulo, elaborando-se, assim, uma agenda ambiental e de controle do produto turístico. Mas, somente em 2001, foi efetivamente publicada a Política de Desenvolvimento e do Turismo Sustentável de São Paulo, conferindo autonomia aos governantes municipais para que elaborassem suas próprias diretrizes e leis.

Neste período, entretanto, Brotas já entrava em sua fase de saturação e enfrentava dificuldades.

No começo a gente controlava a mídia, era uma mídia que os caras vinham e a gente que fazia o contato, eles escutavam o que eu queria que eles escutassem, eles viam o que eu queria que eles vissem, então eles divulgavam o que eu queria que eles divulgassem. Depois de um certo momento, quando Brotas ficou na moda, a gente tinha uma mídia espontânea, é a mídia free e que essa você não segura[...] a gente tentava podar dentro do possível, já havia um canal maior via prefeitura, porque algumas coisas passavam por lá, quase tudo na verdade, mas muita coisa você nem fica sabendo, então, esse segundo momento de mídia teve os dois aspectos, positivo de um lado e negativo do outro, porque daí você começa a divulgar demais, começa a vir gente demais. Nesse boom, nesse momento de mídia, de modinha, veio muita gente pra cá, gente bem intencionada e gente mal intencionada. Pessoas que apareciam, não por sacanagem, mas por falta de competência e conhecimento mesmo e faziam besteira. Porque para montar um negócio você precisa de dinheiro, e o povo abria agência aqui como se abria um boteco (Eva Firmino Santana citada por Agnelli, 2006).

Quanto ao monitoramento de impacto ambiental, segundo Magro et al. (2002), os problemas mais frequentes relatados por estudos nos sítios turísticos em Brotas foram: erosão e drenagem deficiente, relacionadas diretamente com a localização, a falta de planejamento e manutenção das trilhas que levam às cachoeiras, ou seja, a largura excessiva de algumas trilhas em locais sujeitos a formação de lama, surgimento de trilhas não oficiais e árvores danificadas.

Segundo Agnelli (2006), embora o turismo tenha sido uma alternativa contra a implantação de uma atividade poluidora (como o curtume), ainda que seja visto como indústria não poluidora, ele é, de qualquer forma, uma indústria, e como tal, criada para ser lucrativa.

Quando se percebeu que a atividade ecoturística gerava ainda mais empregos, rendas e tributos que o curtume, para a autora, houve uma banalização de conceitos técnicos e científicos relacionados ao ambiente. Na ânsia de aproveitar o que foi visto como uma oportunidade e uma demanda de mercado e com o aumento do número de empreendedores no mercado turístico brotense, teria havido um uso indevido dos conceitos desenvolvimento sustentável, turismo sustentável e ecoturismo. Ela conclui que o uso do prefixo “eco” foi atribuído a qualquer empreendimento baseado na natureza com o objetivo de atingir um nicho de mercado cada vez maior, e não necessariamente para protegê-la.

A invenção da figura do turista de aventura, esse que geraria a riqueza para a cidade, traz novas preocupações em torno das críticas ambientalistas. Paradoxalmente, toda a discussão em torno da segurança, da aventura segura ao homem, poderia gerar uma “insegurança ambiental”. O relato a seguir une impressões dos dois tipos sobre as consequências negativas e positivas do processo turístico de Brotas que são mutuamente possíveis.

E eu fico feliz de ver como meninos que começaram com a gente aos 15 anos hoje, aos 30, definiram suas vidas e suas profissões a partir da aventura. Alguns são professores de educação física, outros militares, bombeiros, né, ou fizeram bacharelado em turismo, fazem mestrado em alguma coisa relacionada com gestão ambiental, essa foi a influência. E houve muita troca entre o turista e a comunidade local. As pessoas ficavam amigas, umas conheciam coisas das outras. Os locais conseguiam contatos, capacitação, oportunidades fora daqui. E aconteceu muito de turistas largarem tudo e virem pra cá abrir um negócio de aventura, ou guiar por um tempo. O turismo proporciona isso. O mais importante são as pessoas, a vontade de se relacionar, de sair do isolamento da grande cidade e do apartamento. E aqui o cara vê que uma pessoa mais humilde pode ter conhecimentos práticos que o executivo não tem e eles conseguem trocar. Mas a gente sabe que tem o risco, que na verdade é a tendência agora, da Disneylândia de aventura, que é a automação. O modelo de operação, os procedimentos bem definidos e o aumento do volume de turistas pode fazer perder isso, as características filosóficas que eram a base no começo (J.J.).

Em 2002, a Prefeitura Municipal, o COMTUR, a Eco Associação, ONG envolvida com a formação de polos de ecoturismo no Brasil e a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ-USP) realizaram um trabalho de monitoramento do impacto ambiental de alguns sítios turísticos e o levantamento do perfil do turista que visitava o município. Elaboraram, em seguida, o Plano de Manejo do Público Visitante: uso turístico do ambiente natural em Brotas, o Sistema Municipal de Controle da Visitação Turística (SMCV) e a Lei sobre o Licenciamento para Turismo Ambiental. Em 2004, foi criada a Associação Brotense das Empresas de Turismo de Brotas e região, a ABROTUR que, segundo seu website, tem como objetivo “fortalecer o destino turístico procurando harmonizar as exigências ambientais, econômicas e sociais do mundo moderno”.

Nesse momento, o poder público local e os empresários procuram estabelecer ações conjuntas. Uma delas é o Projeto Empreender, do SEBRAE, no qual foram discutidos os problemas do turismo local e que exaltou a necessidade de normatização do turismo, como parte da Política Municipal de Desenvolvimento do Turismo Sustentável. A normatização representou um fator de promoção de Brotas frente a outros municípios brasileiros que pretendiam iniciar ou consolidar um processo de implantação da infraestrutura necessária para a atividade turística.

Segundo Agnelli (2006), a normatização foi feita, virou lei, mas não havia fiscalização suficiente para averiguar a obediência a essas normas. Entretanto, sua elaboração alavancou uma discussão sobre a necessidade de uma normatização a nível nacional e de um órgão normatizador. E teve como consequência a criação da ABETA, Associação Brasileira de Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura, que representou os empreendedores membros nas instâncias federais e galgou convênio com o Ministério do Turismo para implantação do programa nacional Aventura Segura, com Inmetro e ABNT. Análise da relação desta com entidades esportivas não cabe no presente artigo, mas está em parte em Bandeira e Amaral (2020).

Considerações finais

Com o intuito de descortinar o desenvolvimento de um processo de construção de um destino ecoturístico e esportivo que culminou em seu conhecimento como “capital brasileira da aventura”, esse artigo objetivou contrapor narrativas sobre a cidade de Brotas, que remetem a uma vocação natural da localidade como destino de aventura, a falas de pessoas envolvidas com o turismo na cidade.

As entrevistas, aliadas à um aporte documental que estruturou essa construção em meio a uma ambiência que legitimou o turismo como atividade econômica promissora no país, demonstram nuances de um processo direcionado não apenas ao impedimento da instalação de um curtume na cidade, mas ao reconhecimento do potencial lucrativo do turismo esportivo de aventura. Tal percepção motivou a consecução de estratégias concretas de ação, que se direcionavam até mesmo à escolha do público frequentador da cidade, em uma clara tentativa de se criar um perfil consumidor considerado adequado.

Percebemos, assim, um processo proposital, voluntário e interessado, ancorado nas possibilidades de um período histórico específico, distante das narrativas fundacionais repetidas de forma padronizada nos veículos de informação.

Referências bibliográficas

AGNELLI, Selma. A implementação da atividade turística em Brotas–SP: euforia e declínio. Dissertação de mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente. Centro Universitário de Araraquara. São Paulo: UNIARA, 127p., 2006.

BAHIA, Mirleide. Lazer meio ambiente: em busca das atitudes vivenciadas nos Esportes de Aventura. Dissertação (Mestrado em Educação Física). Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba. 144p., 2005.

BANDEIRA, Marília Martins et al. " No galejo da remada": estudo etnográfico sobre a noção de aventura em Brotas, SP. Dissertação de mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, 199p., 2012.

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CATER, Carl; CLOKE, Paul. Bodies in action: the performativity of adventure tourism. Anthropology today, v. 23, n. 6, p. 13-16, 2007.

CARNICELLI-FILHO, S. O prazer e o medo nas atividades físicas de aventura na natureza (Dissertação de Mestrado em Pedagogia da Motricidade Humana). Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro, 156p., 2007.

OLIVEIRA JUNIOR, A. F. Valoração Econômica da Função Ambiental de Suporte relacionada às atividades de turismo, Brotas, SP. Tese de Doutorado. Tese (Doutorado em Ecologia e Recursos Naturais), Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Federal de São Carlos. São Carlos. 277p., 2003.

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RIBEIRO, Olivia. Um estudo das políticas públicas de lazer de Brotas-SP. Tese de doutorado em Educação Física. Universidade Estadual de Campinas: 167p., 2012.

RAMOS, Adriana; BUSSAB, Leila; SOUZA, Mônica e SANSONI, Silvia. Brotas: cotidiano & história. 1996.

UVINHA, Ricardo. Juventude, Lazer e Esportes Radicais. São Paulo: Manole, 2001.

Referências Fontes

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RUSCHMANN, D. V. M, et al. Projeto de Aproveitamento Turístico da Primeira Cachoeira do Astor. São Paulo: ECA-USP, Departamento de relações públicas, publicidade e propaganda e turismo, 1996.

SÃO PAULO. Decreto nº 20.960 Declara área de proteção ambiental regiões situadas em diversos municípios, dentre os quais Corumbataí, Botucatu e Tejupá. 08 de junho de 1983.

Notas

[1] Segundo tradição da escrita antropológica estarão em itálico palavras próprias do campo de pesquisa.
[2] Segunda maior reserva subterrânea de água doce do mundo. Disposta no subsolo do centro-sudoeste do Brasil, o nordeste da Argentina, o noroeste do Uruguai e o sudeste do Paraguai.
[3] Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente.
[4] ‘Consórcio Intermunicipal para Defesa e Preservação da Bacia do Rio Jacaré Pepira’ – CODERJ.
[6] X seria uma derivação de eXtreme, do inglês.

Autor notes

1 Doutora em Educação Física (UNICAMP). Professora do Departamento de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2 Doutora em Estudos do Lazer (UFMG). Professora do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Governador Valadares.

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