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Reserva de vagas para negras e negros no Serviço Público: uma análise do processo implementado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Acciones afirmativas y reserva de vacantes para personas negras en el Servicio Público: un análisis del proceso implementado en la Universidad Federal de Santa María
Affirmative actions and reservation of vacancies for black people in the Public Service: an analysis of the process implemented at the Federal University of Santa Maria
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 20, núm. 1, pp. 198-221, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 20, núm. 1, 2023

Recepção: 09 Junho 2022

Aprovação: 13 Abril 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: O artigo aborda as comissões de verificação da condição étnico-racial dos concursos públicos na Universidade Federal de Santa Maria. Os procedimentos metodológicos. E incluem a análise da Lei 12.990/2014 (reserva de vagas de 20% em concursos públicos para /negras e negros), da Portaria Normativa Nº 4, de 2018 (normatiza as Comissões de Heteroidentificação) e a formação da Comissão de Verificação. São analisados dados dos editais de concursos para docentes e técnico-administrativos de 2016 a 2019, com a respectiva nomeação de negros/negras. Em termos teóricos, o artigo se encontra sustentado nas perspectivas de Rawls (1997; 2011), Fraser (2001) e Young (2006), sobre reconhecimento, justiça, políticas afirmativas e reparatórias; e Piovesan (2008), Haas e Linhares (2012), Silva e Silva (2014) e Mello e Resende (2019), acerca da baixa presença de negras e negros no serviço público federal. Os dados indicam que, no período analisado, envolvendo editais para provimento de vagas ao magistério (três no ensino superior e um na educação básica), foram nomeados 4 docentes negros e negras e, dos editais dos TAE’s, 47 profissionais de nível médio e superior. A publicação de editais conjuntos e os procedimentos da Comissão, com contribuições na formulação dos editais, criaram condições para o cumprimento da reserva de 20% das vagas.

Palavras-chave: Raça, Reserva de vagas, Comissões, Heteroidentificação, Ações Afirmativas.

Resumen: El artículo aborda las comisiones de verificación de la condición étnico-racial de los concursos públicos en Universidad Federal de Santa María. Los procedimientos metodológicos analizan la Ley 12.990/2014 (20% de reserva de vacantes en concursos públicos para mujeres negras), de la Ordenanza Normativa 04/2018, con los datos de las licitaciones públicas de docentes y técnicos administrativos del 2016 al 2019, con la respectiva postulación de hombres negros. En términos teóricos, el artículo se basa en las perspectivas de Rawls (1997; 2011), Fraser (2001) y Young (2006), sobre reconocimiento, justicia, políticas afirmativas y reparatorias; y Piovesan (2008), Haas y Linhares (2012), Silva y Silva (2014) y Mello y Resende (2019), sobre la baja presencia de negros/negras en la función pública federal. Los datos indican que, en el período analizado, involucrando avisos públicos para la provisión de vacantes para la carrera docente (tres en educación superior y uno en educación básica), fueron designados 4 profesores negros y, de los avisos públicos del TAE, 47 de enseñanza media. y profesionales de la educación superior. La publicación de convocatorias conjuntas y los procedimientos de la Comisión, con aportes en la formulación de las convocatorias, crearon condiciones para el cumplimiento de la reserva del 20% de las vacantes.

Palabras clave: Raza, Reserva de vacantes; Comisiones; Heterodenficación; Acciones afirmativas.

Abstract: This paper discusses the commissions to verify the ethnic-racial condition of public tenders at the Federal University of Santa Maria. The methodological procedures include the analysis of Law 12.990/2014 (20% reservation of vacancies in public tenders for /black women), of Normative Ordinance 04/2018. Data from public tenders for teachers and administrative technicians from 2016 to 2019 are analyzed, with the respective nomination of black men. In theoretical terms, the article is based on the perspectives of Rawls (1997; 2011), Fraser (2001) and Young (2006), on recognition, justice, affirmative and reparatory policies; and Piovesan (2008), Haas and Linhares (2012), Silva and Silva (2014) and Mello and Resende (2019), about the low presence of black women and men in the federal public service. The data indicate that, in the analyzed period, involving public notices for the provision of vacancies to the teaching profession (three in higher education and one in basic education), 4 black professors were appointed and, from the TAE's public notices, 47 high school and higher education professionals . The publication of joint notices and the procedures of the Commission, with contributions in the formulation of the notices, created conditions for the fulfillment of the reserve of 20% of vacancies.

Keywords: Race, Reservation of vacancies, Commissions, Heterodenfication, Affirmative actions.

Introdução

O sistema de reserva de vagas para a população negra no Serviço Público Federal foi definido pela Lei 12.990/2014, normatizando que 20% das vagas deveriam ser destinadas para negras e negros. Entre as questões que envolvem a Lei estão as dificuldades no cumprimento do percentual destinado e pela análise dos seus efeitos nos cerca de sete anos de vigência. Um dos pontos está nos procedimentos que cada instituição de ensino federal superior definiu para a efetivação da política de ingresso, situação que gerou formas procedimentais específicas no sentido de sua implementação.

O artigo, portanto, aborda as características e procedimentos das bancas de verificação da condição étnico-racial dos concursos públicos realizados na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) para a validação dos processos seletivos ao ingresso docente e o ingresso na carreira de técnico-administrativos em educação. A UFSM optou por nominar como Comissão de Verificação, com funções equivalentes às da Comissão de Heteroidentificação estabelecida pela legislação, o conjunto de indivíduos responsáveis por verificar as autodeclarações dos/as postulantes à vaga na instituição.

A base argumentativa deste trabalho considera como importante as aproximações, desenvolvidas, na UFSM, entre a Comissão de Verificação e a formulação dos editais para concurso e seleção pública. Contexto que remete à experiência acumulada pela Universidade em formar, desde 2008, comissões permanentes responsáveis pelo acompanhamento da autodeclaração dos candidatos à confirmação de vagas dos processos seletivos para o acesso ao ensino superior. A estruturação da Comissão tem por pressuposto critérios de representatividade de gênero, etnia/raça, experiência e a formação continuada, constituindo fatores determinantes para que os processos ocorram com efetividade, evitando fraudes e a judicialização de ações por candidatos/as que resultam em indeferimentos, principalmente depois da assinatura dos candidatos se comprometendo com a autodeclaração e possível sanção no caso de haver inverdade.

Os procedimentos metodológicos adotados neste trabalho incluem a análise da Lei 12.990/2014, da Portaria Normativa Nº 4, de 2018, a qual normatiza as comissões de heteroidentificação, e os processos de formação e funcionamento da Comissão de Verificação da UFSM. Além disso, são analisados os dados dos editais de concursos para docentes e técnico-administrativos de 2016 a 2019, com a respectiva nomeação de negros/negras.

Em termos teóricos, o artigo se encontra sustentado nas perspectivas de Rawls (1997; 2011), Fraser (2001) e Young (2006), abordando as questões que envolvem reconhecimento e justiça como elementos centrais para as políticas afirmativas e reparatórias. A análise também incorpora os trabalhos de Piovesan (2008), Haas e Linhares (2012), Silva e Silva (2014) e Mello e Resende (2019), os quais tratam da baixa presença de negras e negros no serviço público federal brasileiro e os efeitos da Lei 12.990/2014, especificamente, no âmbito das universidades federais.

O artigo possui três seções. Na primeira,Políticas afirmativas e o enfrentamento de injustiças e desigualdades, são apresentados alguns pressupostos teóricos sobre as políticas de ações afirmativas e justiça. A segunda seção, Ações afirmativas, .aça, etnia e reserva de vagas no serviço público federal: a Lei 12.990/2014 e a normatização das comissões de heteroidentificação, trata das características da lei federal e da portaria que embasa o funcionamento das comissões. Na sequência, a terceira seção, A Comissão de Verificação da UFSM e o cumprimento da reserva de vagas para negras e negros, descreve e analisa as características e especificidades da Comissão na UFSM e os dados dos editais e nomeações dos concursos públicos ocorridos no período de 2016 a 2019, incluindo os dados sobre as nomeações de negras e negros para os cargos de docente e técnicos administrativos em educação. Em função da pandemia, a retomada das nomeações ocorre apenas em 2021, o que alargou os prazos de validade dos concursos públicos.

1. Políticas afirmativas e o enfrentamento de injustiças e desigualdades

O contexto sociopolítico estrutural que, ao longo de vários séculos, produziu situações aviltantes, discriminatórias e de extrema violência à população negra brasileira, teve, após o início do período republicano, em 1889, uma mudança de perspectiva. Se a escravidão deixou de ser, do ponto de vista formal, uma política de Estado em 1888, o seu fim não veio acompanhado de políticas públicas de cunho reparatório e outras visando a garantia de direitos. Ou seja, ao mesmo tempo em que o uso de mão de obra escravizada deixa de ter a autorização estatal, os seus efeitos e consequências, a rigor, não recebem ações do Estado com o sentido de cumprir os princípios mínimos de liberdade e igualdade, propagados nas constituições republicanas. Como efeito, afora as frequentes situações de discriminação do dia a dia, a população negra, não sem resistência, também se viu afastada de espaços, equivalentes ao da população branca, vinculados ao mercado de trabalho, educação e, na ocupação de cargos no âmbito da administração pública. Mesmo que, durante o século XX, iniciativas e defesas de políticas reparatórias e ações afirmativas tenham, de forma esporádica, ocorrido, foi apenas nas duas primeiras décadas do século XXI que ações específicas foram implementadas.

Apesar de o Brasil ser signatário de convenções internacionais que enfrentam o racismo, com a criação de políticas públicas que solucionem a histórica desigualdade racial e social, há recorrentes e constantes desafios para a formatação de ações que demandem a eliminação de todas as formas de discriminação e intolerância racial. Se vislumbra, assim, a partir da participação, em 2001, na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância[1], realizada pela Organização das Nações Unidas em Durban, África do Sul, a qual definiu várias linhas de combate ao racismo, invocando uma cruzada mundial para o combate às desigualdades e a criação de oportunidades de ascensão social para uma população mundial significativa, que, apenas no Brasil, constitui mais de 50% da população.

Outras ações percorrem este breve período[2], o que substancialmente contribuíram para tornar visíveis, ainda que de forma tênue, mudanças nos níveis educacionais e de geração de renda para famílias negras.

Pode-se argumentar que, no âmbito de Políticas da Diferença, um dos instrumentos seria a Discriminação Reversa, onde os casos da efetivação do acesso à terra[3] e à educação superior por populações tradicionais constituem dois exemplos tangíveis. O primeiro caso reverte para uma política de redistribuição para se atingir uma sociedade de iguais e, no segundo, o fim não é a igualdade, mas a afirmação da diferença com o recorte racial e acesso a pretos, pardos e indígenas ao ensino superior, ainda que as consequências, em um futuro próximo, venham a consolidar uma reprodução social mais equânime após mais de um século do pós-abolição.

O debate acerca das ações afirmativas e reparatórias desenvolvido, principalmente, nas últimas décadas, afora suas variantes e complexidades, tende a gravitar em torno do aparente paradoxo existente entre os direitos na perspectiva liberal (universais e individuais, por exemplo) e os seus limites no sentido de superar desigualdades de cunho estrutural (YOUNG, 2006; FRASER, 2006). Mesmo que as assimetrias de ordem socioeconômica não possam ser separadas das de ordem cultural, configurando a discussão sobre reconhecimento e redistribuição, situação que pode conduzir a uma dissociação, definida como um falso paradoxo, entre as questões que envolvem o reconhecimento da diversidade cultural e simbólica e as questões que tratam da redistribuição material e econômica, a definição de justiça incorpora ambos (FRASER, 2006). A argumentação, por decorrência, também se sustenta na ideia da impossibilidade de um contexto espontâneo capaz de reduzir ou extinguir as injustiças, aqui entendidas como exclusões e discriminações sob os pontos de vista social, econômico, cultural, racial e de gênero. Ou seja, as ações afirmativas e reparatórias, nessa argumentação, são um dos elementos centrais no sentido de enfrentar as assimetrias e desigualdades.

As desigualdades, portanto, demandam um conjunto de ações contra as injustiças de ordem econômica (reestruturação político-econômica, redistribuição de renda e fundiária e reorganização da divisão do trabalho) e as injustiças definidas como culturais (mudança cultural ou simbólica, identidades, diversidade cultural e transformação dos padrões sociais) (FRASER, 2001).

A redistribuição é baseada na correção da justiça procedimental, na moralidade, o reconhecimento é elemento fundamental de uma noção de ética. A argumentação estabelece que, frente a políticas de identidade mais ligadas à noção de multiculturalismo, as quais vêm, em parte, sendo debatidas na academia como antagônicas às demandas por redistribuição, em alguns desdobramentos, seria contraproducente perseverar esse antagonismo, pois a justiça requer ambas as coisas: redistribuição e reconhecimento (FRASER, 2001).

O reconhecimento, dessa forma, não se limita e nem se restringe à redistribuição e vice-versa, configurando um entendimento bidimensional da justiça, concebendo a redistribuição o reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas da justiça (FRASER, 2001). Ambas dimensões, embora tenham características específicas, se entrelaçam no sentido do combate às injustiças.

A ideia de justiça com equidade (RAWLS, 1997; 2011) possibilitou, junto com outros fatores, o desenvolvimento de um amplo debate envolvendo as temáticas do reconhecimento social, redistribuição e políticas da diferença cultural. O princípio da liberdade, no qual cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que sejam compatíveis com um sistema de liberdade para as outras e o princípio da igualdade, a partir da consideração de que as desigualdades sociais e econômicas precisam ocorrer, de forma conjunta, com outros dois princípios, o da diferença e o das oportunidades iguais (RAWLS, 1997). O princípio da igualdade de oportunidades está vinculado ao pressuposto de que as posições e cargos devam estar acessíveis a todos/as (RAWLS, 1997), situação que remete ao desenvolvimento de ações afirmativas e reparatórias voltadas para segmentos sociais específicos.

As políticas afirmativas e reparatórias, nessa argumentação, possuem um caráter voltado para o enfrentamento de injustiças, cujo processo demanda uma ação de cunho mais direto e específico, voltado a criar condições para que segmentos da população excluídos e/ou discriminados possam ocupar espaços sociais, políticos e culturais que são também seus. É o caso da Lei 12.990/2014, que estabelece uma política de reserva de vagas para negras e negros no serviço público, enfrentando um contexto no qual a presença da população negra foi, em termos gerais, obstaculizada, como um efeito das desigualdades e assimetrias ocasionadas pelos séculos de escravidão e, pelo, já no período republicano, não reconhecimento e não reparação das injustiças.

2. Ações afirmativas, raça, etnia e reserva de vagas no serviço público federal: a Lei 12.990/2014 e a normatização das comissões de heteroidentificação

Após 10 anos de tramitação, foi aprovado o Estatuto da Igualdade Racial, instituído pela Lei nº 12.288/2010, cujo objetivo consiste em assegurar à população negra igualdade de oportunidades, defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos, além do enfrentamento à discriminação e outras formas de intolerância étnica, o que possibilitou um arcabouço legal para efetivar políticas públicas e ações afirmativas no âmbito do Estado, implementando diretrizes já presentes na Constituição Federal de 1988, especialmente no campo dos direitos.

Antes, na alçada da Administração Pública Federal, o decreto federal 4.228/2002 criou o Programa Nacional de Ações Afirmativas, o qual estabeleceu normativas no sentido de, nos processos licitatórios, beneficiar fornecedores que possuíssem políticas de inclusão de mulheres, negras e negros e pessoas com deficiência. Em 2003 entra em vigor a Política Nacional de Promoção de Igualdade Racial, junto com a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (PIOVESAN, 2008).

No âmbito das ações afirmativas de acesso e democratização ao ensino superior público, a primeira política pública efetiva foi a Lei n. º 12.711/2012, a qual trata de política de cotas e reserva de vagas pra ingresso nas Instituições Federais de Ensino Superior e de ensino técnico de nível médio, a qual define, além do critério raça/etnia, também pré-condições socioeconômicas, renda e frequência em escolas públicas do Ensino Médio.

A Lei n. º 12.990/2014, que destina 20% das vagas em concursos públicos para negras e negros, tem a primazia, no âmbito federal e visando o preenchimento de vagas no serviço público, no estabelecimento de uma política pública centrada na ação afirmativa tendo como parâmetro raça e etnia.

Portanto, é possível concluir que as políticas públicas de ações afirmativas e reparatórias, nas últimas duas décadas, tiveram como foco principal as áreas da educação e do trabalho. No caso da primeira, com a política de acesso no ensino superior; em relação ao trabalho, tratando da reserva de vagas para ingresso na administração pública (HAAS; LINHARES, 2012).

Na área do trabalho, visando estabelecer medidas para reparar a baixa presença de negras e negros na administração pública, em 2014 entra em vigor a Lei Federal nº 12.990, a qual destina, no seu Artigo 1º, à população negra 20% das vagas disponibilizadas em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

A Lei nº 12.990/2014, além de ser uma norma infraconstitucional, tem resguardo jurídico no Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288/2010, Art. 39, no qual infere ao Poder Público o dever de promover ações e implementar medidas para garantir à população negra a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho. Portanto, sua abrangência ficou restrita primeiramente às carreiras do Poder Executivo, embora o Judiciário também tenha adotado.

O projeto de Lei, em sua justificativa, argumentava que a composição dos cargos públicos da administração pública federal, mesmo com provimento ocorrendo via concurso público, reproduz as diferenças de cunho racial existentes na sociedade brasileira, situação que obstaculiza a presença de negras e negros, contexto que, ao longo das décadas, não foi revertido com a ampliação dos direitos assegurados pela Constituição de 1988. Situação que estabelece a necessidade de uma política pública de caráter afirmativo, de corte étnico/racial.

A Nota Técnica 17, publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em 2014, ao analisar o então projeto de Lei 6.738/2013, indicava a reduzida presença da população negra nos cargos e carreiras de Estado, sobretudo nas posições mais valorizadas, de nível superior e com maior remuneração (SILVA; SILVA, 2014).

A Lei Federal nº 12.990, no seu Artigo 1º e nos parágrafos 1º, 2º e 3º, estabelece em 20% a reserva de vagas para candidatos/as negros e negras, considerando o total de vagas ofertadas nos concursos públicos destinados ao provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Com isso, a reserva de vagas, necessariamente, tem de constar, de forma objetiva, nos editais, especificando o número de vagas correspondente para cada cargo, levando em conta que o quantitativo mínimo de vagas oferecidas no respectivo concurso público deverá ser igual a três, sendo sempre arredondado para cima no caso de a fração ser igual ou maior que cinco décimos. A população negra que se inscrever, conforme estabelecido no Artigo 3º, disputará, de forma concomitante, as vagas disponibilizadas em ampla concorrência e as da reserva e, não serão computados, para o provimento dos 20%, os/as aprovados/as na ampla concorrência, conforme o parágrafo 1º.

No caso da desistência de candidato negro e candidata negra na vaga que integra a reserva de 20%, o Artigo 3º, nos parágrafos 2º e 3º, estabelece que será convocado quem estiver imediatamente classificado, sendo que, não havendo negros e negras aprovados/as, as vagas serão remetidas para a ampla concorrência.

De acordo com o Artigo 2º, a reserva de vagas será disputada pelos/as candidatos/as que se autodeclararem pretos ou pardos no momento da inscrição (pretos ou pardos segue o sistema de classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A definição de ‘pretos/pardos’ enquanto categoria racial conjunta remete à ideia do fenótipo como fator decisivo. Ou seja, a verificação da autodeclaração tem como critério significativo as características fenotípicas, as quais integram, enquanto critérios de ordem subsidiária, a heteroidentificação, ou seja, o momento de ocorrer o carômetro[4], com a presença do candidato/a e a comissão. Também pode remeter às discussões polêmicas e teóricas que definem o colorismo no Brasil, o que não foi possível tratar neste estudo.

A constatação de autodeclaração falsa, Artigo 2º, Parágrafo Único, implica a eliminação do concurso e, caso já tenha ocorrido a nomeação, a Lei estabelece a anulação da admissão ao serviço ou emprego público, desta vez após procedimento administrativo com direito à ampla defesa.

Em 2018 é publicada e entra em vigor a Portaria Normativa Nº 4, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, que regulamenta o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos/as negros/as às vagas reservadas por decorrência da Lei 12.990/2014.

A Portaria estabelece, no seu Parágrafo Único, como princípios e diretrizes o respeito à dignidade humana e o direito à ampla defesa no âmbito do processo legal. Também integra, entre outros pontos, a garantia de padronização e de igualdade de tratamento entre os candidatos submetidos ao procedimento de heteroidentificação promovido no mesmo concurso público, publicidade e controle social do procedimento. A efetividade da ação afirmativa de reserva de vagas a candidatos negros nos concursos públicos de ingresso no serviço público federal também é um dos princípios da Portaria.

A Portaria Normativa, no seu Artigo 2º, reitera a autodeclaração a ser realizada no momento da inscrição e os critérios de raça e cor utilizados pelo IBGE, já presentes na Lei de 2014, com os/as candidatos/as indicando se pretendem concorrer pelo sistema de reserva de vagas, situação que pode ser mudada pelo/a candidato/a, o/a qual pode desistir de concorrer pelo sistema de reserva de vagas. A Portaria também mantém a possibilidade de os/as candidatos/as negros/as optarem por concorrer às vagas reservadas, concorrendo de forma concomitante às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com sua classificação no concurso público, conforme o Parágrafo 3º.

Segundo o Artigo 3º, a autodeclaração é considerada como dotada de presunção relativa de veracidade, tendo de ser confirmada mediante procedimento de heteroidentificação. No Parágrafo 2º do Artigo 3º, a presunção relativa tem prevalência nos casos de dúvida a respeito de seu fenótipo, a qual deve ser motivada no parecer da comissão. Muitos dos pareceres de indeferimento da Comissão de Verificação da UFSM, ao ser analisados no âmbito da judicialização, foram considerados uma peça jurídica fundamental para manter a decisão tomada e acompanhar a primeira análise e assim a perda da vaga pelo/a candidato/a.

O Artigo 4º estabelece que o processo de heteroidentificação deve estar estabelecido nos editais de abertura de concursos públicos para provimento de cargos públicos da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, definindo as providências a serem adotadas.

A Portaria define o procedimento de heteroidentificação como sendo a identificação por terceiros da condição autodeclarada, o qual deve ser realizado por uma comissão criada de forma específica com esta finalidade (Artigos 5º e 6º da Seção 2).

A comissão de heteroidentificação, segundo o Artigo 6º, Parágrafo 1º, deve ser integrada por cinco membros e seus suplentes, sendo formada, conforme a Portaria, por cidadãos de reputação ilibada, residentes no Brasil, que tenham participado de oficina sobre a temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo com base em conteúdo disponibilizado pelo órgão responsável pela promoção da igualdade étnica, previsto no Parágrafo 1º do Artigo 49 da Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010 e que, preferencialmente, tenham experiência na temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo.

A composição da comissão também deve seguir o critério da diversidade (Artigo 6º). Ou seja, seus integrantes devem ser distribuídos por gênero, cor e, de forma preferencial, naturalidade. Os nomes dos/as integrantes não serão tornados públicos, sendo disponibilizados apenas para os órgãos de controle interno e externo, mediante requerimento. Cada integrante da comissão assinará um termo de confidencialidade acerca das informações pessoais dos/as candidato/as no concurso, conforme Artigo 7º.

A fase específica do procedimento de heteroidentificação ocorrerá antes do curso de formação, quando houver, e da homologação do resultado final do concurso público. Serão convocados/as para o procedimento de heteroidentificação, no mínimo, a quantidade de candidatos equivalente a três vezes o número de vagas reservadas às pessoas negras previstas no edital, ou dez candidatos, o que for maior, resguardadas as condições de aprovação estabelecidas no edital do concurso.

A Portaria também estabelece, de forma exclusiva, o critério fenotípico no momento da presença diante da comissão para aferir a condição declarada pelo/a candidato/a, segundo o Artigo 9º. Não são passíveis de análise registros, imagens e documentos apresentados. Todo o procedimento será filmado, para uso em eventual interposição de recurso, de acordo com o Artigo 10º.

Segundo o Artigo 12º, a deliberação, no âmbito da comissão, se dará, segundo a Portaria, por maioria, na forma de parecer motivado. A deliberação tem validade apenas para o concurso específico.

3. A Comissão de Verificação da UFSM e o cumprimento da reserva de vagas para negras e negros

Na esteira das políticas públicas de inclusão social e racial, implantadas a partir de 2012, com acesso ao ensino superior federal e também às escolas técnicas e tecnológicas federais, pela Lei 12.711, houve a seguir manifestações de cunho reivindicatório, e intelectual, para que houvesse a extensão para o fim das desigualdades sociais, as quais são prementes, entre brancos e negros no mercado de trabalho.

Um aparato em diversas pesquisas e muito envolvimento dos movimentos sociais negros que há décadas indicavam a necessidade de reparação, na esteira da democratização do ensino superior público, possibilitou tornar efetiva uma política pública que reconhece a existência do racismo institucional. Evidências empíricas da disparidade significativa entre negros e brancos no âmbito da administração pública federal[5], naquelas carreiras mais reconhecidas e em cargos de nível superior, justificam a Lei de Cotas para o Serviço Público, a qual busca diminuir as desigualdades sociais e raciais entre as populações branca e negra, desconstituindo o que está enraizado na sociedade brasileira, pois parte da iniciativa de cortar esta chaga nas próprias instituições.

Sendo assim, o esforço pessoal e, portanto, meritocrático aos brancos, enquanto a preguiça e a incapacidade ficam com os negros, passa por uma igualdade reversa, pois o princípio da lei com abrangência no serviço público, trata de desmistificar incapacidades antes atribuídas aos negros.

Um princípio é que, ao surgirem novas demandas alcançadas por políticas públicas nacionais, a instituição deve ser modificada para facilitar uma gestão mais competente. Assim, o espírito da Lei deve se materializar e ganhar representação física por meio da criação de novos órgãos como núcleos, coordenadorias, pró-reitorias e/ou secretarias, de acordo com o âmbito de abrangência da administração pública.

A manutenção das bancas de verificação, existentes na UFSM desde 2009, proporcionou efetividade ao processo de inclusão. Com este intuito, após a adoção da Lei de acesso ao Serviço Público, a mesma comissão passa a tratar do acompanhamento da autodeclaração de pretos e pardos em todos os certames para o acesso de docentes do Magistério Superior, Carreira do Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) e das carreiras do Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação (PCCTAE)[6]. Inclusive com monitoramento do processo evolutivo dos cotistas nas várias instâncias de cada curso[7], em estudos realizados pelo Afirme e atualmente pela Coordenadoria de Ações Educacionais (CAED).

Diferente da Lei de Cotas para acesso ao Ensino Superior (Lei 12.711/2012, com alterações em 2016, na qual passa a incluir as pessoas com deficiência[8]) enquanto demarcava um percentual mínimo de inclusão racial, de acordo com a população de cada estado federativo, a Lei de acesso ao Serviço Público definiu o percentual de 20%, a partir de um quantitativo de três vagas, para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, o que foi entendido pelo Judiciário como partícipe dessa ação. A Lei apenas confirma a autodeclaração individual, a mesma declaração de preto e pardo aos moldes do censo do IBGE.

Relatos de fraudes no acesso ao ensino superior, com a judicialização por parte dos candidatos e das instituições levou o Ministério do Planejamento a emitir medidas de monitoramento, que resultaram em duas orientações normativas, incluindo a necessidade de que os órgãos de gestão e educacionais organizem comissões de heteroidentificação, e filmem o ato de acolhimento dos candidatos, dado que a autodeclaração realizada no momento da inscrição é validada apenas presencialmente. A UFSM, por meio da Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas e a Coordenação de Concursos[9], procede, desde a vigência da Lei 12.990/2014, à reserva de vagas aos candidatos negros e candidatas negras (pretos e pardos) em 20% do número total de vagas do Edital, cujo cumprimento passa pela abrangência do Edital, considerando o número total de vagas em disputa. A estratégia da Instituição foi considerar a peça, ou seja, o Edital para os Concursos Docentes, a qual atende aos vários cargos do Magistério Superior ou da Carreira do Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT)[10].

A opção em ter como a iniciativa o emprego público uma categoria de análise única, independente de quais unidades de ensino, ou departamento didático[11], resultou em efetiva nomeação de docentes pretos e pardos, simplesmente por impor a inclusão como objetivo primeiro. A adoção de cotas raciais na democratização do ensino superior na UFSM ocorreu desde 2008[12], enquanto o acesso ao Serviço Público teve sua primeira nomeação aos quadros da Instituição em 2016, muito embora os certames para a seleção pública de docentes tenham contemplados cotistas negros e negras em data anterior.

É responsabilidade da Comissão de Verificação da condição étnico-racial a decisão sobre a permanência ou não dos candidatos na concorrência às vagas reservadas para negros e negras. O indeferimento ocorre nos casos dos candidatos não tiverem os aspectos fenotípicos característicos da cor, raça, etnia negra, os quais garantem sua permanência em duas listagens: ampla concorrência e reserva de vagas para negros e negras. Esta mesma Comissão também será responsável, no caso de indeferimento, por analisar eventual recurso.

Ressaltando então o emprego público, o Edital 177/2019-UFSM, o qual previu 7 vagas para a carreira docente de Professor Adjunto A, para a sede, Santa Maria, e para o campi de Palmeira das Missões, refere aos 20% de reserva destinados para negros e negras, o que resulta em 1 vaga. Se o Edital previsse 8 vagas, garantiria mais uma vaga as candidatas negras e candidatos negros. O edital conjunto possibilita que, para a terceira vaga será nomeado/a, se houver, um/a candidato/a classificado/a autodeclarado/a negro/a, não havendo a necessidade de sorteio entre as vagas disponíveis nos sete departamentos (uma vaga em cada um dos sete departamentos), ou outro critério que possa ser adotado.

O destaque aqui é para o item 5.23 do Edital:

A ocupação das vagas dar-se-á de tal modo que o primeiro classificado na listagem específica de candidatos negros neste concurso será convocado para ocupar a 3ª vaga do Edital. Os demais candidatos negros aprovados serão convocados para ocupar a 8ª, a 13ª, a 18ª, a 23ª vaga e assim sucessivamente, quando houver mais vagas a serem preenchidas, dentro do prazo de validade do concurso. (Edital 177, de 25 de setembro de 2019)

Importante enfatizar que o objetivo da Lei é a inclusão, pois o Edital[13] prevê a manutenção das vagas para os candidatos negros e candidatas negras, ainda que tenham sido aprovados e aprovadas dentro do número de vagas oferecidas para ampla concorrência, o que se considera uma inclusão efetiva, pois durante a vigência do concurso, poderão ser preenchidas mais vagas do que aquelas previamente anunciadas.

A Comissão de Verificação originária da Lei de Cotas de 2012, no período de 2009 a 2012, passou por ajustes nas práticas devido à judicialização do processo de monitoramento. Outras comissões foram criadas para ter um sistema de confirmação de vaga e matrícula mais eficiente na UFSM. Assim, a Comissão de Verificação atende a ambas as leis 12.711/2012, como a Lei 12.990, 2014[14]. A PROGRAD lança anualmente o Edital Interno de Seleção de Servidores para a constituição das comissões: Comissão de Autodeclaraçãoe Comissão de Acessibilidade[15] e a Comissão Socioeconômica, para examinar os comprovantes de renda per capita dos candidatos às cotas sociais. Todos os servidores são remunerados, de acordo com os quesitos da Resolução interna e legislação da Gratificação por Encargo de Curso ou Concurso (GECC)[16].

Quadro 1
Nomeações da Lei 12.990/2014 - Concurso Docente

Elaboração própria a partir dos Editais da PROGEP/UFSM/Coordenadoria de Concursos

O Quadro 1 trata das nomeações ocorridas por meio dos certames realizados para as carreiras do Magistério Superior e, Carreira do Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT). A reserva de 20% das vagas para negros e negras ocorreu em todos os Editais, desde que o Edital previsse o quantitativo de três vagas. A inclusão foi efetiva até o momento para quatro docentes negro/as. No entanto, nos Editais 093 e 176/2019, os quais previram quatro vagas cada um, houve a nomeação de um docente para o Departamento de Economia e Relações Internacionais e de um docente para o Departamento de Estrutura e Construção Civil. É de se destacar que para o primeiro, o edital nomeou, em ordem de chamada, para a 6ª vaga, enquanto no segundo, para a 3ª vaga. No Edital 082/2017, o qual previu inicialmente sete vagas, um docente é nomeado para o Departamento de Engenharia Elétrica/Circuitos Elétricos, Magnéticos e Eletrônicos, pela ordem de chamada, 3ª. O Edital para a carreira do EBTT previu 14 vagas, portanto, três vagas (20%) resultariam em recorte racial. Até agora um docente foi nomeado, para o Departamento de Enfermagem e Saúde Pública, pela 10ª posição na ordem de chamada. Em todos os certames os candidatos negros e negras obtiveram o primeiro lugar na classificação da cota de 20%.

O Quadro 1 aponta o efetivo preenchimento de vagas no período por quatro docentes negros e negras. O resultado adota a estratégia de considerar o número total de vagas do Edital docente.

Quadro 2
Nomeações da Lei 12.990/2014 - Concurso TAEs

Elaboração própria a partir dos Editais da PRPGEP/UFSM/Coordenadoria de Concursos

Os sete Editais para o Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação (PCCTAE), de 2016 a 2019, contemplam a reserva de 20% de vagas para negras/os a partir três vagas em cada Cargo, resultando na nomeação de 47 negro/as. Como a carreira prevê a possibilidade de mais nomeações, observa-se que, desde 2016, muitos técnico-administrativos em educação foram contemplados pela cota racial, sendo 13 profissionais de nível superior e 34 em cargos de nível médio e técnico. Sempre que houver uma segunda vaga, e, a partir desta, a 8ª, a 13ª, a 18ª e assim sucessivamente, a partir da 5ª vaga na ordem de chamada, será ocupada por um/a negra/o. Observa-se que para o cargo de nível médio, Assistente em Administração, nos diversos campi da UFSM, foram nomeados 24 novos servidores negros/as nas chamadas a partir da 3ª a 113ª, pela ordem de classificação (3ª, 8ª, 13ª, a 18ª,23ª, 28ª, 33ª, 38ª, 43ª, 48ª, 53ª, 58ª, 63ª, 68ª, 73ª, 78ª, 83ª, 88ª, 93ª, 98ª, 103ª, 108ª, 113ª). Como efetivamente o certame para o acesso à carreira do PCCTAE sempre tem mais vagas, as quais podem surgir durante a validade do certame, concomitante foi a inclusão de mais negros e negras na UFSM.

A análise de cerca de três mil editais de concursos para docentes de 63 universidades federais, publicados entre 9 de junho de 2014 (data de sanção da Lei n.º 12.990/2014) e 31 de janeiro de 2018, indica que não há um padrão na definição da exigência de um número superior a duas vagas por edital para que a reserva seja assegurada, cumprindo a Lei 12.990/2014 (MELLO; RESENDE, 2019). No período analisado, os/as negros/as ficaram com percentual de 4,3%, considerando 15.055 vagas. A pesquisa identifica que os concursos para a carreira de magistério superior não atingem sequer 1/5 dos 20% de reserva de vagas. Nove universidades, das 63 analisadas, cumpriram a Lei 12.990/2014, entre as quais a UFSM. As demais ou não reservaram nenhuma vaga, ou não cumpriram o percentual estabelecido. Os dados também apontam que a conjunção de vagas no mesmo edital foram mais exitosas no cumprimento da reserva de vagas, sendo que as universidades que publicaram editais específicos para cada área de conhecimento, em geral com um número de vagas inferior a três, acabaram obstaculizando a oferta das vagas específicas conforme a Lei 12.990/2014, considerando que a legislação aborda o número mínimo de três vagas para que seja calculado o percentual da reserva. (MELLO; RESENDE, 2019).

Considerações Finais

Um dos efeitos que as características estruturais que perpassam sociedade brasileira geram, ao longo do tempo, é a reduzida presença da população negra no âmbito do serviço público. Para enfrentar essa situação desde 2014 está em vigor a Lei 12.990, a qual estabelece uma reserva de 20% das vagas disponibilizadas em concursos públicos no âmbito da administração pública federal para negras e negros, ou seja, com um específico critério étnico/racial. Como qualquer política pública, afora a sua intencionalidade, definida no seu desenho e normatização, depende, em grande parte, do processo de implementação. Ou seja, depende de parâmetros e dados para avaliar e verificar se os objetivos estão sendo atingidos.

No caso das instituições federais de ensino superior, considerando a autonomia universitária, é possível depreender uma variedade considerável de procedimentos adotados para atender as determinações da Lei 12.990. E, a partir daí, também é possível entender que determinadas definições internas contribuem mais para que a reserva de vagas seja cumprida.

Na Universidade Federal de Santa Maria, a decisão de publicar editais conjuntos, incorporando vagas em distintas áreas de conhecimento para preenchimento de vagas à carreira docente e de técnico administrativo de educação proporcionou que o cálculo da reserva de 20% das vagas tenha sido cumprido, ao menos no período analisado. Outra medida importante está nas características da Comissão de Verificação da autodeclaração, cuja atuação envolve, também, contribuições na formulação dos próprios editais, aproveitando a experiência na formação de comissões similares desde 2008, quando a instituição passou ter uma política de cotas, também com corte étnico/racial, para acesso ao ensino superior, questão que foi adequada, em 2012, quando entra em vigor a Lei 12.711, federalizando as ações afirmativas para ingresso nas universidades federais e institutos federais.

Os dados indicam que, no período analisado, envolvendo quatro editais para provimento de vagas ao magistério (três no ensino superior e uma na educação básica), houve a efetiva nomeação de quatro docentes negros e negras. Em relação aos técnico-administrativos em educação, 47 profissionais de nível médio e superior foram nomeados. Situação que cumpre o percentual de reserva de vagas.

A busca por igualdade começa a ser moldada no estado brasileiro a partir de ações de mobilizações que deram voz às diversas reivindicações dos movimentos organizados com as questões de raça e etnia na sociedade brasileira. O que se viu em respostas por meio da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Igualdade Racial de 2010 e, principalmente por iniciativas nas Instituições de Ensino Superior a partir de 2002.

Portanto, quando se torna efetiva a política pública de democratização racial no ensino superior em 2012 e, posteriormente o acesso ao Serviço Público em 2014, muito de uma luta de décadas se vê concretizada, embora com a necessidade de monitoramento e de avaliações constantes.

A aprovação, pelo Senado Federal, do decreto legislativo, da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância[17] corrobora a necessidade de proposições efetivas para a punição do racismo, a criação de políticas públicas de inclusão racial em todos os níveis e setores da sociedade brasileira, como na educação mais inclusiva e com recorte racial nos cursos de pós-graduação; políticas públicas de saúde, acesso ao setor produtivo e empresarial, agregando-se assim às medidas adotadas desde 2014 para o serviço público federal.

Referências

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BRASIL. Portaria Normativa n. 4, de 06 de abril de 2018, que “regulamenta o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, para fins de preenchimento das vagas reservadas nos concursos públicos federais, nos termos da Lei n. 12.990, de 9 de junho de 2014”. Brasília: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG). Secretaria de Gestão de Pessoas, 2018. Disponível em: http://www.dpu.def.br/images/stories/Infoleg/2018/04/10/portaria_mpog2.pdf. Acesso em 18 de julho de 2021.

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Notas

[1] Algumas medidas: em 2010, a OEA cria a Resolução 2550, como o Reconhecimento do Ano Internacional dos Afro-descendentes como forma de assegurar igualdade de condições na vida social política, econômica, social e cultural dos países das Américas. No Brasil é aprovado o Estatuto da Igualdade Racial, que tramitou por 15 anos no Congresso Nacional (CN ), (Lei nº 12.288/2010), a qual tem como princípio básico o dever do Estado de promover a igualdade de oportunidades, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira. Reforçou a obrigatoriedade do ensino da história geral da África e da história da população negra no Brasil na educação básica, afirma os direitos das comunidades remanescentes de quilombos, a liberdade de crença e do livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana, bem como o dever do Estado de promover a igualdade de oportunidades em educação, emprego e moradia.
[2] Prouni, Programa Brasil Quilombola, Bolsa-Família, FIES, TCE e o acompanhamento das responsabilidade e ações dos municípios em relação ao combate à discriminação racial e à inclusão no currículo da educação básica das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008.
[3] Estudos realizados na primeira década do século XXI indicam os percalços a que o etnodireito e a cultura negra enfrentam para a efetivação do direito ao acesso à terra, garantido pela Constituição Federal de 1988, Art. 68 do ADCT. Ver em SILVA, Sergio Baptista da. Etnicidade e Territorialidade: o quadro teórico. In: São Miguel e Rincão dos Martimianos: ancestralidade negra e direitos territoriais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004 e MELO, A.L. e DAVID, C. “Palmas” para o Quilombo: processos de territorialidade e etnicidade negra. Santa Maria: Editora da UFSM, 2011
[4] Debate importante sobre a primeira identificação da etnia ser realizada pela autodeclaração e após confirmada pela heteroidentificaçao, momento em que a presença de uma comissão valida a consistência da identificação individual (JESUS, 2021).
[5] Nota técnica sobre a reserva de vagas para negros em concursos públicos, nº 17 de fevereiro de 2014. Disponível em:

https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140211_notatecnicadisoc17.pdf.pdf. Acesso em 01 de julho de 2021

[6] A UFSM tem em sua estrutura uma Escola de Educação Infantil, dois Colégios de Educação Básica e Tecnológica e 122 cursos de Graduação, atendendo cerca de 30 mil alunos. Ver mais em: https://www.ufsm.br/60-anos-ufsm/. Acesso em 01 de julho de 2021
[7] Desempenho acadêmico dos alunos cotistas e não cotistas – 2008-2014. Disponível em https://www.ufsm.br/orgaos-executivos/caed/desempenho-academico/
[8] Lei 13.409, de 28/12/2016. Acesso em 01 de julho de 2021
[9] Conforme previsto no Art. 10 da Lei Complementar nº 173, de 27/05/2020, os prazos de validade dos concursos e seleções públicas que haviam sido homologados até 20/03/2020, ficaram suspensos no período de 20/03/2020 a 31/12/2020, voltando a correr a partir de 01/01/2021, data do término da vigência do estado de calamidade pública estabelecido pelo Decreto Legislativo nº 06, de 20/03/2020. https://www.ufsm.br/https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/341/2019/10/Edital-N_-030.2021.pdf . Concurso Docente e Concurso para TAE’s: https://www.ufsm.br/https://www.ufsm.br/app/uploads/2021/03/Edital-016-Prorroga-prazo-de-validade-concurso-e-selecao-TAE-completo-e-consolidado-com-retificacoes-1.pdf Consultar em PROGEP/UFSM.
[10] A UFSM tem em sua estrutura uma Escola de Educação Infantil, dois Colégios de Educação Básica e Tecnológica e 122 cursos de Graduação, atendendo cerca de 30 mil alunos. Ver mais em: https://www.ufsm.br/60-anos-ufsm/. Acesso em 01 de julho de 2021.
[11] Em relação ao certame para o acesso de docentes, a análise enfatiza o Edital n. 177, DE 25 DE SETEMBRO DE 2019, CONCURSO PÚBLICO PARA DOCENTES DO MAGISTÉRIO SUPERIOR, com as novas orientações da Portaria Normativa N. 4, de 06 de abril de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, as quais apontam para a necessidade da Comissão de Heteroidentificação filmar o acompanhamento da confirmação da autodeclaração presencial. Ver em https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/341/2019/09/EDITAL-N_-177_-de-25-de-setembro-de-2019.pdf . Acesso em 28 de julho de 2021
[12] Resolução 011/2007. Em reunião histórica no CEPE (Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão) foi aprovado em julho de 2007 a adesão ao sistema de cotas: para estudantes da escola pública, para negros e para pessoas com necessidades especiais e para indígenas aldeados. A decisão foi de 19 contra 18, sendo o voto de minerva do próprio Reitor (QUEVEDO; DUTRA, 2007)
[13] O item 5.21 do Edital UFSM 177/2019 estabelece os critérios de apresentação dos candidatos negros classificados: a divulgação dos resultados em Edital, pela Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (PROGEP), será realizada em duas listas, uma da ampla concorrência, por área, e outra específica dos candidatos negros, que contemplará a classificação de todos os candidatos negros aprovados, independentemente da área escolhida, classificados na ordem decrescente das notas finais obtidas;
[14] Somente em 2014 foi retomada a Comissão de Verificação para cotas raciais, pois em novembro de 2012, o MEC recomenda apenas “seguir o critério de autodeclaração do IBGE”.
[15] Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD). A Comissão de Acessibilidade vem desde 2009, pois a UFSM destinava 5% das vagas, por curso, para pessoas com deficiência.
[16] Ver em RJU. Art. 76-A, Lei 8.112/1990.
[17] Em agosto de 2013, na Organização dos Estados Americanos (OEA), foi aprovado o texto agora ratificado pelo Senado. O documento traz diretrizes para a luta contra o racismo. O projeto de decreto legislativo foi relatado pelo senador Paulo Paim (PT-RS) e, anteriormente, na Câmara dos Deputados, pela Deputada Benedita da Silva. Fonte: Agência Senado.

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/02/25/paim-celebra-ratificacao-da-convencao-interamericana-contra-o-racismo. Acesso em 12 de março de 2021

Autor notes

i Administradora aposentada da Universidade Federal de Santa Maria. Doutora em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pós-doutora em Sociologia e Ciência Política pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Voluntária da Universidade Federal de Santa Maria. Email: laguiar.ana@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9537-5846
ii Professor de Ciência Política na Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Ciência Política (NPCP-UFSM). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Email: cleber.martins@ufsm.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3539-0507

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