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Entrevista - Antropólogo no pedaço: entrevista com José Guilherme Cantor Magnani
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 20, núm. 1, pp. 180-197, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 20, núm. 1, 2023

Recepção: 09 Fevereiro 2023

Aprovação: 18 Março 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Se a casa é o lugar dos parentes e a rua, do estranho, o pedaço é o lugar dos “chegados”. E aí como é que se dá essa sociabilidade? São pessoas que se conhecem, têm algo em comum que não é nem o cotidiano da casa, nem o suposto anonimato da rua, mas preferências compartilhadas: o mesmo time de futebol para o qual torcem, a igreja que frequentam, gênero musical ou formas de lazer que curtem. Para tanto, se apropriam de um recorte espacial, o pedaço, em determinados horários e aí desenvolvem uma sociabilidade bem peculiar entre iguais.

José Guilherme Cantor Magnani

Um dos mais destacados nomes contemporâneos da Antropologia Urbana brasileira, José Guilherme Cantor Magnani é autor de um já conhecido legado. Suas contribuições às discussões metodológicas do Campo incluem a produção de um conjunto de categorias de análise, cunhadas sob o método etnográfico e situadas nos seus contextos de pesquisa na cidade.

A família conceitual inaugurada com a obra Festa no Pedaço, resultante de seu doutoramento em 1982, logo passou a ser modelo de ampla aplicabilidade e apreciação multidisciplinar para a pesquisa no contexto urbano. É também leitura obrigatória para interessados em fazer etnografia na cidade a sua obra de vinte anos mais tarde, De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana.

As contribuições de Magnani ultrapassam a relevância de sua obra e se estendem por suas atividades como professor pesquisador à frente de grupos de estudo e pesquisa, com destaque para o Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo (NAU-USP), que abarca uma série de iniciativas envolvendo a comunidade acadêmica – como a revista eletrônica Ponto Urbe, a coleção de publicações em livro Antropologia Hoje (em parceria com a editora Terceiro Nome) e o LabNAU, laboratório de pesquisas que promove também eventos de interesse acadêmico no Campo da Antropologia Urbana. As marcas de sua passagem pela Academia situam também uma trajetória política instigante, atravessada pelos desdobramentos do Regime Militar em diferentes países da América Latina.

Nesse enredamento de experiências e proposições ativas, Magnani estabelece espaços notadamente marcados por uma frutífera pluralidade disciplinar, temática, geracional e geográfica na sua composição. Hoje, Professor Aposentado Sênior da USP, segue em movimento junto aos seus orientandos de pesquisa e aos demais pesquisadores vinculados às variadas derivações do NAU.

Isto posto, às 15 horas do dia 12 de setembro de 2022, na sala do LabNAU, situada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), o antropólogo concedeu a entrevista a seguir, que trata de sua trajetória acadêmica, seus feitos recentes, novidades instigantes no Campo da Antropologia e suas conexões com o Lazer – categoria, campo e experiência.

Eu fiquei animado por ter descoberto uma categoria que me ajudou a entender a sociabilidade na periferia, nas relações de vizinhança, até abrindo um campo para a questão do lazer e do entretenimento, como importante no modo de vida dos trabalhadores; não era uma coisa secundária. O que eles fazem no tempo livre não é simplesmente para repor as energias e voltar a trabalhar. Não. É um espaço de convivência, de sociabilidade, de criação.

José Guilherme Cantor Magnani

Bárbara Côrtes Loureiro: Boa tarde professor Magnani, muito obrigada por conceder esta entrevista. Gostaria de começar ouvindo um pouco sobre os pontos-chave da sua trajetória na Antropologia: o que você considera que foi mais decisivo para o seu ingresso nesse Campo, e de lá até aqui na construção como acadêmico antropólogo?

José Guilherme Cantor Magnani: Minha carreira acadêmica começou no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná. Na época, anos 1968, recrudescia a Ditadura Militar e eu, militante no movimento estudantil como presidente do Diretório Acadêmico Rocha Pombo, fui condenado com vários outros colegas pela Lei de Segurança Nacional, o que me obrigou a sair do país. Fui para o Chile, então sob o governo socialista de Salvador Allende. Aproveitei para fazer o meu mestrado na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, a FLACSO, e meu orientador, Emilio de Ipola, sugeriu como tema da pesquisa as manifestações culturais de campesinos. O tema tinha uma preocupação com a situação política, porque esse segmento social – pequenos proprietários do setor rural – não se coadunava muito com a proposta socialista do governo da UnidadPopular. A ideia era justamente estudar qual a ideologia desse setor para poder entender suas perspectivas com relação às mudanças estruturais pelas quais passava o país. O resultado foi a dissertação intitulada Los cuentos campesinos como productos ideológicos, com base na semântica estrutural de A.J. Greimas e também Lévi-Strauss, entre outros autores. Quando terminei o mestrado, terminou também o governo do Salvador Allende. Com o Golpe Militar tive que sair do país. Fui para a Argentina, fiquei quatro anos em Buenos Aires também na FLACSO, mas agora como investigador, na área de Comunicações. Passei lá o tempo regulamentar para a prescrição da condenação: o dobro do máximo da pena, ou seja, sete anos. De volta ao Brasil, fui recebido em São Paulo por uma grande colega minha já falecida, Maria Lúcia Montes. Ela morava na Freguesia do Ó; me acolheu e, em sua companhia fui retomando o contato com a nova situação: me levava para terreiros de candomblé, circo-teatro... O que de certa forma influenciou a minha escolha para o doutorado sem perder a ligação com a minha pesquisa anterior no Chile, que era sobre cultura popular. Se lá era cultura campesina, zona rural, aqui, cultura urbana, periferia da cidade.... E especificamente, a dramaturgia circense. E aí escolhi o meu tema de pesquisa que foi o circo-teatro, realizado sob a orientação da professora Ruth Cardoso e também de Eunice Durham – esta recentemente falecida; aliás, eu escrevi um artigo sobre a trajetória dela, que saiu na revista Ponto Urbe[1].

Bárbara Côrtes Loureiro: Você parece que foi fugindo de Ditadura em Ditadura… O seu retorno para o Brasil também foi nesse contexto, se não me engano, da Argentina para cá, certo? Quais as diferenças entre esses processos, da sua saída daqui e da sua saída de lá, sempre nesse contexto de repressão?

José Guilherme Cantor Magnani: Contextos de repressão, a esquerda – estudantes, intelectuais, trabalhadores. No meu caso, por exemplo, todos os colegas de graduação presidentes de diretórios acadêmicos foram condenados também. Alguns foram presos, outros, como eu, saíram do país. E as escolhas acadêmicas, de certa forma, estavam muito vinculadas à conjuntura política. Veja que interessante: o circo-teatro, aparentemente, não era um tema com conotações políticas diretas; no entanto, fazia parte do repertório inaugurado pelas professoras Ruth e Eunice, sobre a emergência da periferia urbana e seus moradores, seus movimentos sociais, para além dos sindicatos e partidos políticos – estes em recesso, fechados ou perseguidos pela repressão militar. As escolhas de temas, tanto delas como de seus orientandos, tinham a ver com as transformações que estavam ocorrendo no país – políticas, sociais, econômicas. Se você lembrar do tempo da Ditadura – você é mais jovem, não deve lembrar, mas deve ter lido –, com a implantação da Ditadura, a classe operária e as vanguardas políticas e intelectuais sofreram uma grande repressão e uma das consequências foi uma espécie de refluxo, tanto político como até espacial: operários e os segmentos mais avançados tiveram que deixar os seus lugares de militância clássicos, por exemplo, os sindicatos, o “chão de fábrica”, as sedes dos partidos políticos. Esse refluxo significou mais tempo passado nos espaços de moradia – na época, pejorativamente denominados “bairro-dormitório”. Começam a adquirir visibilidade, relevância na cena urbana, e atente, de novo, para a presença das mulheres: enquanto os maridos faziam a “grande política” no sindicato, no partido ou na fábrica, as mulheres seguiam a rotina do cotidiano, nesses bairros da periferia que incluíam reivindicações por creches, atendimento de saúde, melhorias no bairro. Foi preciso apelar para Michel de Foucault para admitir que era também política. E por falar em mulheres, cabe um registro: o pioneirismo das duas professoras no ambiente universitário de então, no tocante a questões de gênero, hoje tão em evidência. O meu tema, contudo, não era lá tão político assim, ao menos no entendimento que se tinha na época. Mas fui em frente.

Bárbara Côrtes Loureiro: E isso foi o alvo da sua perseguição, no fim das contas? O tema da sua pesquisa?

José Guilherme Cantor Magnani: Foi. Foi uma coisa interessante. Veja como o campo da Antropologia ao mesmo tempo está vinculado com as conjunturas políticas, econômicas e sociais, e ao mesmo tempo elas abrem pistas imprevistas. No meu caso, por exemplo, pelo fato de ter trabalhado com cultura, no Chile, eu achei que o circo-teatro era um espaço interessante. Mas era diferente daquilo que Teresa Caldeira ou a outra colega, Alba Zaluar, estudavam. Seus objetos de pesquisa eram mais claramente políticos. Eu foquei os espaços de lazer, de entretenimento da classe trabalhadora e, como não era muito comum, tive que fazer um esforço para dar um tom, tipo “acadêmico forte” e teórico para a minha disciplina, para a minha escolha. Quem me ajudou, também, foi a professora Marlize Meyer da área de Letras, cujos temas de pesquisa era, na cultura européia, a Commedia dell arte do século XV, o melodrama do século XIX, a formação do romance de folhetim inglês, por exemplo. Aí eu falei: olha, acho que o circo-teatro no Brasil tem a ver com essa produção. Então, elaborei o projeto para conseguir a bolsa da FAPESP [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], mostrando que o circo-teatro, sim, tinha relevância, estava alinhado com uma longa tradição dramatúrgica. E consegui a bolsa. Então fui para o campo, na periferia de São Paulo, fazer pesquisa com essa forma particular de cultura popular.

Bárbara Côrtes Loureiro: Era o seu doutorado, né?

José Guilherme Cantor Magnani: Sim, terminei-o em 1983. E o campo traz coisas interessantes, imprevistas, né? Iniciei a pesquisa, claro, com toda a formação acadêmica das nossas discussões, das nossas leituras, mas ainda com aquela dicotomia comum na época, “Cultura vs. Ideologia”. A minha pergunta era: será que o discurso do circo-teatro da periferia de São Paulo é progressista ou conservador? Fui com essa preocupação e, em campo, recebi a seguinte resposta dos meus interlocutores –– não nesses termos, mas o sentido era: “professor, pouco importa se o circo é conservador ou progressista, é um bom lugar para a gente do nosso pedaço se encontrar, pra se divertir, descansar...”. Poderia ter passado despercebido, mas prestei atenção: aí tem alguma coisa interessante. Um termo comum, uma categoria “êmica” que, para ser melhor entendida precisava de uma contextualização na literatura; para tanto, recorri aos textos do professor Roberto DaMatta e sua reflexão sobre a casa e a rua. Na verdade, não era uma expressão inicialmente relacionada com dinâmica urbana, mas à aldeia Apinayé, onde DaMatta tinha trabalhado e só depois é que foi aplicada na cidade. São duas categorias importantes na perspectiva da dinâmica urbana, um bom exemplo do intercâmbio entre a Antropologia Urbana e Etnologia Indígena. Assim, entre a casa, que para Roberto DaMatta é o lugar dos parentes, das relações de vínculos domésticos e, a rua, o lugar do imprevisto e do estranho e também de imprevistos, oportunidades – eu arrisquei: vou enfiar o pedaço no meio! E não é que deu certo? Se a casa é o lugar dos parentes e a rua, do estranho, o pedaço é o lugar dos “chegados”. E aí como é que se dá essa sociabilidade? São pessoas que se conhecem, têm algo em comum que não é nem o cotidiano da casa, nem o suposto anonimato da rua, mas preferências compartilhadas: o mesmo time de futebol para o qual torcem, a igreja que frequentam, gênero musical ou formas de lazer que curtem. Para tanto, se apropriam de um recorte espacial, o pedaço, em determinados horários e aí desenvolvem uma sociabilidade bem peculiar entre iguais.

Bárbara Côrtes Loureiro: E a partir do pedaço você vai produzir, conceituar e organizar uma série de categorias para fazer uma Antropologia na cidade, né. Essa produção – [das categorias] do pedaço, o circuito, o trajeto, o pórtico, a mancha –, ela se dá mais no âmbito do seu desafio de contextualizar o seu objeto de campo, para um uso pessoal na sua pesquisa que você vai justificar para o seu leitor, ou ela já é feita no intuito de apresentar um arcabouço de ferramentas para outros pesquisadores? Porque acabou se tornando – eu brinco que é o “Magnaniverso”[2] (risos) – um repertório de categorias que acaba sendo usado até para além dos limites da Antropologia Urbana. Como é que foi? Você já tinha essa consciência nessa produção?

José Guilherme Cantor Magnani: Muito boa pergunta, porque ela mostra a continuidade, digamos, de uma descoberta etnográfica. Eu fiquei animado por ter descoberto uma categoria que me ajudou a entender a sociabilidade na periferia, nas relações de vizinhança, até abrindo um campo para a questão do lazer e do entretenimento, como importante no modo de vida dos trabalhadores; não era uma coisa secundária. O que eles fazem no tempo livre não é simplesmente para repor as energias e voltar a trabalhar. Não. É um espaço de convivência, de sociabilidade, de criação. Aí digo, bom, ótimo, agora, como se diz, eu vou para a cidade, vou para o Centro – da periferia ao Centro. Aliás, ficou o título do meu livro de livre-docência: Da Periferia ao Centro.

Bárbara Côrtes Loureiro: Didático!

José Guilherme Cantor Magnani: Fui então a uma das regiões centrais da cidade – para quem conhece São Paulo, é onde está a Galeria do Rock, equipamento com grande afluxo de jovens. Meninos e meninas que iam lá com o seu skate, com os seus patins, que iam trocar disco de vinil; meninos e meninas afrodescendentes que iam fazer os seus penteados – demora para fazer, não é? Então rolava uma conversa: “onde será que vai ter um novo encontro de hip. hop? ” E por aí afora... Então era uma sociabilidade interessante, eu falei, olha, um pedaço no Centro. Comecei umas incursões de pesquisa e de repente eu me dei conta que não era bem um pedaço. As pessoas não se conheciam. Vinham de Guaianases, Freguesia do Ó, da Zona Leste, de Osasco, de cidades da grande São Paulo – diferentemente do pedaço, tal como tinha visto na periferia, onde todos se conhecem. É, não deu certo. Talvez outro enfoque? Mas a gente não desiste: o antropólogo vai uma vez, duas vezes, três vezes, incontáveis vezes, até que chega uma hora que tem um insight. O insight veio, percebi o seguinte: se eles não se conhecem, eles se reconhecem. Como? As camisetas tinham o mesmo nome de certa banda; a postura corporal de alguns era parecida; quando eles iam fazer o cabelo, a conversa rolava sobre os mesmos temas; compartilhavam equipamentos de esporte e lazer: eles não se conhecem, mas se reconhecem e compartilham gostos, preferências. Foi então que surgiu a ideia da “mancha”: um espaço delimitado no espaço urbano, contém fronteiras físicas, compartilhado, com o recorte de pedaços. Nova pista para pesquisa e não só para mim porque nessas alturas eu já estava orientando pesquisas no então Núcleo de Antropologia Urbana[3].Os meus alunos também iam a campo, e eles começaram também a se dar conta de que a cidade, que é o objeto da Antropologia Urbana, não é um bloco homogêneo: ela está sendo construída pelos seus atores sociais e reconhecida pelo pesquisador, com a atitude de perto e de dentro. Porque se ficar de fora e de longe, ele não capta essas especificidades. Não é que o de perto e de dentro se oponha ao de longe e de fora. À medida que a gente vai fazendo pesquisa com o olhar para nossos atores no seu cenário e tentando desvendar suas regras, começa-se a perceber a forma como a cidade vai sendo construída e assim abrem-se novos recortes de pesquisa.

Bárbara Côrtes Loureiro: O de perto e de dentro, para além das próprias categorias, você mesmo fala em alguma ocasião, é um “mantra”, e ele acaba se tornando muito presente nos estudos em Antropologia Urbana, evidentemente, mas também em outras disciplinas. Eu queria saber de você como é que você vê essa apropriação interdisciplinar dessas categorias que você propõe e da noção de uma observação de perto e de dentro por outros Campos do saber para além da Antropologia Urbana.

José Guilherme Cantor Magnani: Eu orientei alguns arquitetos nos seus trabalhos acadêmicos e eles se apropriam, de certa maneira, das categorias, porque também tratam da cidade, ainda que de outros pontos de vista. Mas a ideia da mancha e do pedaço são formas de organização do olhar. Passo a narrar dois casos que exemplificam essa questão. Um deles que está no meu livro Da Periferia ao Centro e também em um artigo da revista eletrônica Ponto Urbe, sobre surdos na cidade de São Paulo. Quem solicitou a participação do NAU na pesquisa foi uma professora do Departamento de Linguística da USP, Evani Viotti, que estava estudando LIBRAS, a Língua Brasileira de Sinais. Para ela, a forma de comunicação dos surdos não é um conjunto de gestos, mas um sistema com sintaxe, morfologia e demais características de uma verdadeira língua. Para o pessoal da linguística o que lhes importava eram as regras que organizam a comunicação e produção dos significados; agora, onde eles moram, o que eles fazem, por onde circulam não fazia parte de suas preocupações – diferentemente dos antropólogos. Aceitamos o convite e lá fomos nós a campo e a primeira incursão foi a uma festa de rua organizada pela associação chamada ADEFAV (Centro de Recursos em Deficiência Múltipla, Surdocegueira e Deficiência Visual), que congrega pessoas com deficiência de uma maneira geral, não só surdos. Fomos lá para ver como era a festa na rua, que era um pedaço deles e lá nos defrontamos com [singularidades] como o da moça chamada Cláudia Sofia, que era surda e cega. Como ela se comunicava? Não podia ver os sinais porque era cega, e não podia escutar a voz porque era surda e, no entanto, comunicava-se por meio de um método chamado “Tadoma”: a pessoa surdo-cega coloca os dedos na comissura dos lábios do interlocutor e, com a outra mão, encosta na garganta e assim vai decodificando os fonemas por vibração. Ficamos deslumbrados. A partir daí… bom, a partir de uma pista como essa não há como não seguir. O passo seguinte foi uma mancha, onde ocorria uma festa junina dos surdos, lá no Instituto Santa Terezinha, que é uma escola bilíngue das irmãs Camilianas. E a pergunta era: será que festa de surdo tem música? (Festa junina, né?).

Bárbara Côrtes Loureiro: E esse movimento de levar os orientandos a campo, para as incursões, você diria que é um movimento de coletivização dessas categorias, dessas ferramentas de análise? Qual é a importância e a centralidade do NAU na sua trajetória, nesse sentido?

José Guilherme Cantor Magnani: Denomino essa prática de etnografia compartilhada. Permite que se vá a campo em equipe e cada participante compartilhe seu olhar e achados com os dos colegas. Explico melhor com um exemplo: fizemos um exercício muito interessante na pesquisa sobre os SESCs [Serviço Social do Comércio] que como você sabe, são muitos em São Paulo. Uma das coordenadoras de determinada unidade, que tinha feito uma matéria comigo de Antropologia Urbana, perguntou se a gente poderia fazer uma pesquisa sobre os frequentadores dessa instituição. Em resumo, fizemos um projeto, com financiamento e lá fomos nós: seis unidades na capital, uma na região metropolitana, outra no litoral e a última no interior. Como entra aí a etnografia compartilhada? Bem, quinze pesquisadores, com diferentes graus de formação – havia doutor, mestre, alunos e alunas da graduação; havia um grupo de sociólogos e a questão de gênero estava presente assim como a de faixa etária: cada qual com o seu olhar. Tarefas: observação, caderno de campo, volta para casa, relato de campo, uma, duas ou três páginas. O olhar de uma menina vê coisas que para um menino passariam desapercebidas ou as vê de outro jeito; assim, ao ler um(a) o relato de outro(a), na próxima ida a campo, o olhar de cada um é alargado. Só um fato: em uma das unidades do SESC uma pesquisadora descobriu que mulheres idosas, depois da piscina ou do vôlei iam para o banheiro e lá, além da higiene, vendiam e trocavam tupperwares. Os funcionários não tinham ideia dessa atividade.

Bárbara Côrtes Loureiro: Uma rede comercial.

José Guilherme Cantor Magnani: Veja só! E era uma rede que elas faziam de uma maneira espontânea e que ninguém, além das interessadas, sabia. Sé foi possível identificar essa atividade porque havia pesquisadores do gênero feminino.

Bárbara Côrtes Loureiro: Bem de perto e de dentro, né?

José Guilherme Cantor Magnani: Pois é. E compartilhada. Nós, homens, ficamos sabendo por intermédio das colegas.

Bárbara Côrtes Loureiro: Interessantíssimo. E aliás, o NAU tem feito, recentemente, incursões a cemitérios, né? Qual é a centralidade dos cemitérios para as discussões sobre a cidade, ou como é que surgiu esse interesse?

José Guilherme Cantor Magnani: Pois é, quando eu dava uma das disciplinas de Antropologia Urbana, no Departamento de Antropologia da USP, sempre incluía exercício de campo e, quando era no segundo semestre, geralmente as caminhadas eram no dia 2 de novembro, comemoração de Finados. Divididos em diferentes cemitérios de São Paulo, os alunos, em dupla, com os seus cadernos de campo em punho, observavam, fotografavam, anotavam e, de volta para casa, relato de campo: o ritual etnográfico completo. Cemitérios de elite, o Araçá e Consolação, com túmulos e capelas mortuárias feitas por arquitetos e por escultores, inclusive internacionais; mas também São Luiz e Vila formosa, com suas tumbas ao rés do chão: verdadeiras manchas, tanto no Centro como na periferia.

Bárbara Côrtes Loureiro: Interessante. O cemitério me chama a atenção também, olhando mais particularmente para a sua trajetória, porque eu tenho a impressão de que ele está sendo observado como um lugar de expressão religiosa, que já é um assunto – que é a espiritualidade, que você já abordou bastante ao longo de sua carreira –, mas também de lazer. Você diria que o cemitério é um lugar de lazer?

José Guilherme Cantor Magnani: Pois então, para quem vê de fora e de longe, o cemitério é um lugar fúnebre, macabro; olhando de perto e de dentro, descobre-se que as pessoas circulam por lá, passeiam, porque alguns deles são como parques; levam seus pets para passear; há algum tempo, lugar de determinadas festas como as dos góticos. Percebemos que o cemitério era um interessante espaço para entender a própria cidade, pois é uma mancha, porosa, comunica-se com outros equipamentos e práticas urbanas não só ligadas a rituais de morte. Para completar o assunto, atualmente estou coordenando uma pesquisa ampla sobre cemitérios em diferentes contextos internacionais – São Paulo, Nampula e Tete (Moçambique) e Chicago, para efeitos de comparação entre três grandes contextos internacionais. A cada um dos participantes coube um cemitério para fazer observação (e compartilhar os resultados, lógico) e eu fiquei com o Cemitério Redemptor que fica bem na frente de outro, o Araçá, na Avenida Doutor Arnaldo. É um caso de cemitério confessional, de protestantes e imigrantes alemães, basicamente. E conversando com os funcionários e trabalhadores, durante algumas incursões, eles dizem que aquele é um cemitério tipo jardim, porque tem orquídeas, árvores, flores bem cuidadas, ou seja, o cemitério como um espaço a que as pessoas vão para desfrutar o espaço verde, calmo: cada árvore tem a indicação de sua origem, como o nome popular e o científico afixados em placas.

Bárbara Côrtes Loureiro: Sim. Um outro tema que também aparece no cemitério, não sei se aparece nessa abordagem atual, mas que também aparece na sua trajetória, é a relação com a ideia de doença e saúde. Talvez tenha aparecido esse assunto, não sei se ele apareceu como objeto para você, principalmente em decorrência da pandemia de COVID-19. Isso chegou a voltar para o seu interesse? Por que você já ministrou uma disciplina na UNICAMP, não foi? “Saúde e doença”, nos anos de 1980. Esse recorte voltou ao seu interesse com os estudos agora, sobre o contexto da pandemia ou não? Como que isso te atravessa?

José Guilherme Cantor Magnani: Fiz uma pesquisa que redundou no livro Mystica Urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na metrópole, que trata, entre outros assuntos, da questão da doença e da cura do ponto de vista não da medicina oficial, mas de práticas espiritualistas. Foi uma pesquisa feita no contexto da Nova Era e então, sim, trabalhei com o tema da doença e da cura, mas ficou por aí. O tema agora está voltando, na verdade, com a questão da pandemia e justamente nos cemitérios uma das questões é a comparação entre situações de antes e durante a pandemia: no uso daquele espaço, quais são os cuidados que tem que tomar etc. Mas atualmente não estou fazendo uma pesquisa diretamente ligada com saúde e doença, este trabalho nos cemitérios é mais ligado com Antropologia Urbana – uma mancha urbana com múltiplos usos, nos diferentes contextos nacionais.

Bárbara Côrtes Loureiro: Perfeito. Que novos assuntos e objetos você tem observado nos trabalhos dos seus orientandos, de novos pesquisadores, que te instigam, que você espera que ocupem uma centralidade nas discussões da Antropologia?

José Guilherme Cantor Magnani: Está em andamento um projeto que teve origem na pesquisa de mestrado de uma orientanda, Fabiana Botton, que agora passou para o doutorado, com um grupo de pessoas que se reúnem no CyberNAU[4]. É uma discussão sobre o tema que está difundido como “netnografia”: as redes sociais, das plataformas online, do uso que as pessoas fazem da internet até como “locais” de encontro. Então a pergunta que a gente fazia é: existe o “pedaço virtual”? Dá para falar de trajetos online? Os grupos que se encontram fazem parte, digamos, de uma mancha? Estamos lidando com isso, porque essas práticas não são mais pensadas como algo secundário, fazem parte agora do cotidiano das pessoas, do seu trabalho, sociabilidade; vieram para ficar. O problema adicional que se coloca é: como articular com a observação participante cara-a-cara, presencial, na linha do Malinowski? Pelo computador, internet, metaverso? É o desafio para o CyberNau, não dá mais para pensar em virtual e real, porque o chamado virtual é tão real quanto; produz efeitos. Seja online, off-line, é preciso requalificar as categorias.

Bárbara Côrtes Loureiro: E é interessante que nesses novos campos que vão surgindo e se abrindo, as categorias se mantêm presentes. Você falou agora do Malinowski, como referência a uma etnografia tradicional, e no começo da nossa conversa você fala sobre o seu diálogo com o Roberto DaMatta em certa ocasião. Você diria que você produz uma Antropologia brasileira? Uma Antropologia mais paulista, talvez? Como você definiria a constituição de uma Escola dessa Antropologia notadamente local, que se vale das suas categorias?

José Guilherme Cantor Magnani: Com alguns ex-orientandos, que formam o grupo Os Argonautas, estamos finalizando um livro sobre como fazer etnografia na cidade, como base nas experiências do LabNAU. Trata-se de uma das múltiplas formas de se fazer etnografia, não existe um manual. Dependendo das circunstâncias, da conjuntura, da tradição e das escolhas teóricas que se fazem, a Antropologia abre campo para tratar de recortes muito diferentes; claro, há um patrimônio, um legado comum: temos nossos ancestrais, não é? Os inúmeros estudos das hoje denominadas sociedades de pequena escala – nações indígenas, ribeirinhos, quilombolas, comunidades rurais – a partir das quais foram forjadas categorias de base, constituem esse legado e sua aplicação para o contexto das grandes metrópoles é um imenso desafio. Desafio, mas também uma hipótese: aquele olhar que permite o contato e a escuta com o outro, distante, diferente – como se adapta à cidade? Existe uma citação do Edmund Leach falando que os antropólogos se dão muito bem no espaço limitado de uma pequena comunidade onde todos se conhecem (está em Da Periferia ao Centro) e outra de Evans Pritchard, que da porta da sua barraca podia observar o que acontecia no acampamento ou aldeia[5] – e eu pergunto: o antropólogo urbano, quando abre a janela da sua quitinete no Centro da cidade, vê o que? Talvez a empena cega ou pichada do outro edifício! (risos). Não tem à sua disposição o cotidiano dos moradores. Precisa delimitar, construir o seu recorte para poder observar de perto e de dentro. Mas não pode ficar circunscrito a ele, seu terreiro de candomblé, o coletivo de jovens, os skatistas em seu pedaço, o grupo feminista... Se permanecer ali, o que eu chamo de “a tentação da aldeia”, pode virar especialista, mas perde a visão de conjunto, de fora e de longe, da cidade. É um desafio! Sobre a questão que você levantou, sobre uma “Antropologia brasileira”, realmente não se pode dizer que exista uma Antropologia brasileira genérica. Cada Universidade, cada centro de pesquisa apresenta desenvolvimentos a partir das demandas locais – claro, com base no que denominei nosso legado comum. Cidades de escalas diferentes, núcleos urbanos interioranos, apresentam características peculiares e o importante é compartilhar essas experiências, pôr à prova as categorias. O LabNAU arriscou pesquisas na Amazônia, em Manaus, com grupos indígenas vivendo em bairros de periferia e também em cidades ao longo do Rio Negro, até Tabatinga, na tríplice Fronteira – Brasil, Peru e Colômbia, com as categorias que foram forjadas na pesquisa aqui em São Paulo.

Bárbara Côrtes Loureiro: Aliás, por curiosidade, já que a gente está falando das categorias: qual você diria que é o seu pedaço, ou quais? É a Universidade, é o NAU, é uma outra prática?

José Guilherme Cantor Magnani: Olha, o meu pedaço… (risos). A gente não mantém sempre o mesmo pedaço; por exemplo, o meu pedaço acadêmico na mancha que é a USP, foi sempre o LabNAU, onde nós estamos agora fazendo essa conversa. Estou retomando agora, fiquei dois anos afastado por causa da pandemia e aí o pedaço presencial refluiu. Em termos bem pessoais, outro pedaço meu é onde faço a prática de meditação zen, que leva o nome de sangha. E também o pedaço no bairro onde eu moro, eu caminho por ele e conheço as pessoas em volta. Então na verdade a gente não tem um pedaço só, são vários, conectados por trajetos.

Bárbara Côrtes Loureiro: Se o antropólogo se observa nesse sentido de se reconhecer como um sujeito que percorre vários pedaços, você diria que isso participa, passa a participar, colaborar com a expansão de perspectivas? Você leva isso para a sua observação?

José Guilherme Cantor Magnani: Uma ex-orientanda, Ana Leticia – agora professora de Antropologia na Universidade Federal do Acre (UFAC) – cunhou uma expressão muito significativa, que ilustra essa atitude, “modo campo”: esteja onde estiver, nas férias, passeando, indo ao cinema, andando de metrô, você está com o “modo campo”, com o olhar vivo e atento.

Bárbara Côrtes Loureiro: E é uma influência do virtual, essa expressão, né? Ligou o “modo campo”, como tem o modo avião.

José Guilherme Cantor Magnani: Sim, não é que se esteja fazendo pesquisa acadêmica o tempo todo, mas, em todo caso, sempre atentos, o olhar e a escuta. E o seu pedaço, qual que é? Já que você perguntou o meu…! (risos).

Bárbara Côrtes Loureiro: Bom, eu diria que eu também tenho vários pedaços, na verdade. Então, recentemente – já que você está redirecionando o “vetor” da entrevista (risos), eu entrei nessa percepção de que eles podem dialogar, porque estou constituindo ainda um certo “pedaço acadêmico”, mas tenho o meu pedaço como “tabuleirista” – trabalho com jogos de tabuleiro, jogos de mesa –, é mais uma mancha que um pedaço, esse mundo nerd, né? Mas eu tenho um lugar que frequento, e eu tenho as práticas verticais. Então todas elas acabam, ainda que parecendo muito distantes entre si, tendo pelo menos um ponto em comum – que sou eu, né? Então, diria que vejo sentido nessa circulação entre pedaços.

José Guilherme Cantor Magnani: No meu caso, o meu pedaço de meditação se comunica com um outro pedaço que é Tai-Chi-Chuan. Que de certa forma se interrelaciona com a meditação – corpo e mente, Tao e Zen...

Bárbara Côrtes Loureiro: Perfeito. A gente está chegando ao fim desta entrevista, eu agradeço muito, e eu queria perguntar: qual o momento atual da sua jornada como antropólogo? Quais próximos trajetos você planeja?

José Guilherme Cantor Magnani: Estou coordenando algumas pesquisas. Já falei sobre a dos cemitérios e agora está em andamento, juntamente com a Pontifícia Universidade Católica do Peru, um projeto sobre as centralidades de Lima e de São Paulo. Trata-se de uma parceria da Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP) com a USP, mas é o LabNAU que está tocando. E em julho de 2022, vieram pesquisadores de Lima e com eles fizemos caminhadas etnográficas pelo Centro tradicional, Centro moderno e o Centro da Berrini e da Vila Olímpia, para comparação com territorialidades semelhantes de Lima. Agora em novembro de 2022 vamos nós para lá, fazer o retorno com eles. É uma pesquisa multissituada e compartilhada. Os primeiros resultados serão publicados na seção “Etnográficas” da revista Ponto Urbe. Outros grupos de pesquisa tratam da “netnografia”, já mencionado, o CyberNAU... estamos abrindo caminhos, retomando contatos e reuniões online, e agora voltando ao presencial aqui, no Núcleo de Antropologia Urbana.

Bárbara Côrtes Loureiro: Essa integração, São Paulo e Peru, Brasil e América Latina, também presente na sua trajetória há mais tempo, você diria que ela constituiu um diálogo particularmente latino-americano interessante para a Antropologia global? Como é que essa associação pode contribuir para uma produção global de Antropologia, para o futuro da Antropologia?

José Guilherme Cantor Magnani: Muito importante, pois levanta questões comuns e permite compartilhar quadros de referência conceituais e de método. Uma das minhas orientandas, Diana Paola, é colombiana e seu campo é a região do Putumayo, próxima à floresta amazônica brasileira. Assim, ao invés de trabalhar apenas com categorias que vêm tradicionalmente da Europa e dos Estados Unidos, nós estamos experimentando e compartilhando categorias de análise a partir da realidade latino-americana.

Bárbara Côrtes Loureiro: Você sente que, ao contrário daquilo que se possa esperar que tome centralidade, que ganhe interesse – como, por exemplo, as pesquisas sobre o campo virtual –, tem algo que você sente que se perde ou que deveria ser alvo de preocupação na Antropologia contemporânea, nos rumos que a pesquisa tem tomado? Alguma preocupação metodológica, alguma tendência?

José Guilherme Cantor Magnani. Um tema que está começando a despontar como relevante – estou com algumas leituras em vista – é a chamada “Cosmotécnica”: não só a internet, mas avanços tecnológicos em outras áreas, a decantada “inteligência artificial”, os robôs etc., vão, de certa maneira, conformar um estilo de vida diferente. E de certa maneira, uma outra questão linkada com essa, a presença dos “coletivos” e a ênfase na “localidade” em contraposição aos estudos de globalização, a internacionalização. Esses coletivos, nos seus encontros e militância – localizados, mas em contato – estão fazendo experimentos em seus modos de vida. Então há uma troca em um nível horizontal e não apenas uma submissão desses grupos às grandes metrópoles e às grandes tecnologias. Há uma apropriação que é ligada ao modo de vida mais particularizado. Eu acho que esse é um tema que está começando a ser pensado e ele é relevante para a Antropologia.

Bárbara Côrtes Loureiro: Você quando escreve sobre etnografia fala da apropriação, às vezes de uma forma não comprometida, da palavra etnografia por várias áreas. Mas como esse olhar de perto e de dentro, que a etnografia na Antropologia pode proporcionar, pode dialogar com outros Campos do saber de uma forma propositiva, construtiva? Quero dizer, se eu não sou antropólogo, mas gostaria de me apropriar dessa proposta, do de perto e de dentro, o que é que eu faço?

José Guilherme Cantor Magnani: Fizemos uma experiência com essa questão, uma experiência compartilhada não só entre antropólogos pesquisadores. Foi por conta de um projeto solicitado pela Secretaria Municipal de Ensino nos Centros Educacionais Unificados (CEUs) de São Paulo. São quarenta e seis CEUs, distribuídos principalmente na periferia da cidade, planejados e construídos de forma a mostrar que a periferia também merece equipamentos de qualidade, tanto arquitetônica como educacional[6]. Eles foram inspirados nos CIEPS [Centros Integrados de Educação Pública] no Rio de Janeiro, na gestão de Leonel Brizola. Com base na proposta educacional de Paulo Freire, em São Paulo foram iniciados no governo de Luiza Erundina e depois com Marta Suplicy. O projeto era CEUs: Memórias e Ação e foi-nos pedida uma assessoria da Antropologia. Então, ao invés de nós fazermos a pesquisa, demos um seminário para professores, funcionários e alunos sobre o método etnográfico e fomos a campo em caminhadas etnográficas com eles, no entorno de cada unidade: entrevistaram donos de botecos, costureiras, o mercado local, bancas, enfim, o entorno para saber qual é o papel que o CEU tem com a vizinhança. Eles se apropriaram das categorias do jeito deles, exercitaram o olhar de perto e de dentro, utilizaram o caderno de campo e, de volta, compartilhamos os dados recolhidos. E se divertiram, também.

Bárbara Côrtes Loureiro: Algum outro trabalho na sua trajetória até então te chamou a atenção nesse sentido, do diálogo entre a Antropologia e outros Campos?

José Guilherme Cantor Magnani: Fomos contatados pela empresa de arqueologia de Paulo Zanettini, para fazer uma pesquisa do ponto de vista da Antropologia sobre os efeitos que o desastre de Mariana, com o rompimento de barreira do Fundão, ocasionou ao longo dos seiscentos e cinquenta quilômetros do Rio Doce, de Minas Gerais até a foz, no Espírito Santo.[7] Paulo Zanettini tinha recebido a solicitação de uma empresa chamada LACTEC, de Curitiba que, por sua vez, fora contatada pelo Ministério Público. A ideia era fazer um levantamento sobre o impacto desse desastre e posterior ressarcimento para as populações atingidas. A equipe era mista, o trabalho foi compartilhado com arqueólogos, arquitetos – cada qual em sua área de atuação – e para os antropólogos caberia a tarefa de registrar o dano ao “patrimônio imaterial”. Contratada a equipe do LabNAU, iniciamos o nosso trabalho com uma expedição até a foz do Rio Doce, no litoral do Espírito Santo, para a “pesquisa-piloto”, etapa prévia antes da definitiva, que demorou quase um ano. A tarefa era, em contato com os moradores – e sobreviventes – saber de que maneira aquele desastre tinha impactado o modo de vida deles. Porque uma coisa é a destruição física da igreja e, outra, é, não tendo mais a igreja, como fica a realização das tradicionais celebrações da Folia de Reis, ou do Divino Espírito Santo, por exemplo? Pois estas festas não ocorrem apenas no dia do santo, mas duram o ano todo porque os fiéis vão uns às casas dos outros, fazem as novenas etc. É toda uma rede de sociabilidade que é desfeita. Outro caso: os dejetos invadiram campos de futebol na várzea e a destruição não é só física, mas impacta no calendário dos campeonatos, nos encontros das torcidas. Então não se trata apenas de um dano quantificável em termos materiais, é um dano na cultura imaterial. Daí a dificuldade de dimensionar financeiramente o ressarcimento pois, ao contrário dos sítios arqueológicos ou das edificações, concretos, seria necessário outro esquema de pesquisa para saber, do ponto de vista deles, como reparar o dano a esses aspectos de seu modo de vida. Outro problema foi negociar com o Ministério Público a divulgação dos resultados de nossa pesquisa: queriam que entregássemos os cadernos de campo – não, isso a gente não pode fazer, o caderno de campo é um instrumento pessoal do pesquisador. Podemos disponibilizar os relatos de campo, conforme nosso protocolo. O relatório final já está disponível na internet[8]. Esse foi mais um exemplo de antropologia coletiva e compartilhada.

Bárbara Côrtes Loureiro: Muito obrigada, mais uma vez, pela abertura e, enfim, em breve espero que possamos continuar esse papo.

Fim da entrevista.

Notas

[1] MAGNANI, José Guilherme Cantor. Somos gratos a ela: o legado de Eunice Ribeiro Durham. PONTO URBE, São Paulo, v. 30, 2022, p.1.
[2] Um universo tal qual definido sob as categorias do autor, em referência lúdica.
[3] O Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) – depois Laboratório do Núcleo de Antropologia Urbana (LabNAU) foi fundado pelo entrevistado na década de 1980, sob a proposta de reunir seus orientandos para incursões coletivas a campo, trocas de experiências e de relatos etnográficos. Com o passar dos anos, o NAU deu origem a frentes organizadas por especialidade, e é hoje realizador de pesquisas e iniciativas de divulgação científica reunindo pesquisadores de todo o país e além-fronteiras. Para mais detalhes, ver: https://nau.fflch.usp.br/historico
[4] Equipe ligada ao Laboratório do Núcleo de Antropologia (LabNAU) voltada a pesquisas sobre temas atravessados pelo universo cibernético/digital-tecnológico.
[5] Os Nuer, 1978, p. 20.
[6] Essa pesquisa contou com a equipe dos Argonautas-Pesquisa Etnográfica, bem como com o LabNAU, ambos coordenados pelo entrevistado, juntamente com a pesquisadora Cibele Assencio.
[7] Assim como a pesquisa conduzida sobre os CEUs, essa também contou com a equipe dos Argonautas-Pesquisa Etnográfica, com o LabNAU e com a participação de Cibele Assencio.
[8] Diagnóstico Socioambiental dos danos decorrentes do rompimento da barragem do Fundão na bacia do Rio Doce e região costeira adjacente. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/documentos/relatorios-lactec/lactec_resumo-avaliacao-pre-desastre-ambientes-aquaticos-ipct Acesso em: 2 fev. 2023.

Autor notes

i Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Brasil. E-mail: l.barbaracortes@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9257-683X

[1]

ii Doutor em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. E-mail: professorigormaciel@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6560-0475

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