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O livro de cabeceira de Peter Greenaway: silêncio, som, palavra, prazer, personagem
El libro del cable: del silencio a las palabras
The cable book: from silence to words
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 20, núm. 1, pp. 157-179, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 20, núm. 1, 2023

Recepção: 09 Fevereiro 2023

Aprovação: 18 Março 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: O presente trabalho tem como proposta apresentar o filme The Pillow Book, O livro de cabeceira, do diretor britânico Peter Greenaway. Inspirado em um clássico da literatura japonesa do século dez, o diretor constrói uma narrativa que evidencia as relações entre texto, imagem e som para tratar sobre temas como arte, prazer, sexo, literatura e escrita. O objetivo deste artigo é apresentar a obra e destacar elementos utilizados por Greenaway em sua narrativa audiovisual: a imagem, que foi denominada aqui de livro do silêncio; a música, denominada de livro do som; e a escrita, denominada de livro das palavras; a intertextualidade, denominada como livro do prazer; a construção da personagem, denominada de livro das mulheres-personagens. Essa escolha se deu para homenagear a forma como o diretor retoma no filme as referências ao diário de Sei Shonagon. Embora se trata de uma película de 1996, faz-se necessário salientar que a mesma encontra-se atual, seja pela múltiplas telas usadas para compor um narrativa complexa, seja pelas temáticas abordadas no enredo.

Palavras-chave: O livro de cabeceira, filme, silêncio, som, palavra, prazer, personagem.

Resumen: El presente trabajo propone presentar la película The Pillow Book, del director británico Peter Greenaway. Inspirándose en un clásico de la literatura japonesa del siglo X, el director construye una narrativa que destaca las relaciones entre texto, imagen y sonido para abordar temas como el arte, el placer, el sexo, la literatura y la escritura. El propósito de este artículo es presentar la obra y resaltar elementos utilizados por Greenaway en su narrativa audiovisual: la imagen, que aquí se llamó el libro del silencio; la música, llamada el libro del sonido; y la escritura, llamado el libro de las palabras; la intertextualidad, llamada el libro del placer; la construcción del personaje, llamado el libro de las mujeres-personajes. Esta elección se hizo para rendir homenaje a la forma en que el director retoma las referencias al diario de Sei Shonagon en la película. Si bien es una película de 1996, es necesario señalar que es actual, ya sea por las múltiples pantallas utilizadas para componer una narrativa compleja, o por los temas que aborda en la trama.

Palabras clave: El libro de cabecera, cine, silencio, sonido, palabra, placer, personaje.

Abstract: The present work proposes to present the film The Pillow Book, by British director Peter Greenaway. Inspired by a tenth-century Japanese literature classic, the director builds a narrative that highlights the relationships between text, image and sound to address topics such as art, pleasure, sex, literature and writing. The purpose of this article is to present the work and highlight elements used by Greenaway in his audiovisual narrative: the image, which was called here the book of silence; music, called the book of sound; and writing, called the book of words; intertextuality, called the book of pleasure; the construction of the character, called the book of women-characters. This choice was made to pay homage to the way in which the director resumes references to Sei Shonagon's diary in the film. Although it is a film from 1996, it is necessary to point out that it is current, either because of the multiple screens used to compose a complex narrative, or because of the themes addressed in the plot.

Keywords: The bedside book, film, silence, sound, word, pleasure, character.

Introdução

O filme The Pillow Book[1] (1996), traduzido para o português como O livro de cabeceira é uma adaptação cinematográfica de Peter Greenaway baseado em um clássico da literatura japonesa, escrito no século X por uma dama de companhia Nagiko Kiyohara No Motosuke Sei Shonagon[2], retratando os rituais da caligrafia no corpo humano. Abordando a união do sexo com a escrita, Greenaway traça uma sutil parábola sobre os prazeres do sexo e da literatura.

O artista britânico Peter John Greenaway, nascido a 5 de abril de 1942 na cidade de Newport, em Wales, decidiu que queria ser pintor e, com 12 anos, se matriculou numa escola da arte. Aos 16 anos, depois de assistir ao filme O Sétimo Selo,do sueco Ingmar Bergman, decidiu que queria ser cineasta. Inicialmente, trabalhou para o Central Office of Information (Escritório Central de Informações) em documentários e filmes publicitários de curta duração, para depois embarcar em uma série de curtas, documentários e longas metragens inovadores e de grande virtuosismo técnico.

O nome do artista foi impulsionado para o sucesso e reconhecimento devido aos seus longas para o cinema. Originais e polêmicos, seus filmes são carregados nas cores, têm figurinos extravagantes e criativos — tal fato se dá devido a sua formação em artes plásticas — e explora o nu nas múltiplas possibilidades estéticas, bem como as hipocrisias sociais, ao abordar temáticas como: homoafetividade, preconceito contra a mulher e contra a literatura. Como exemplo temos os filmes O Bebê santo de Maicon (1993), O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Esposa e o Amante (1989), Afogando em Números (1988), Prospero’s Book (1991), O livro de cabeceira (1996) dentre outros.

Os livros de cabeceiras foram durante mil anos um gênero literário no Japão (GREENAWAY, 2001), mas antes de adentramos nesse assunto é preciso esclarecer uma divergência que existe entre culturas diferentes com relação ao termo cabeceira. Na cultura ocidental, quando nos referimos à cabeceira, em especial a da cama, estamos pensando na parte superior do leito. No oriente também é assim, mas a distinção está justamente no uso que os orientais fazem de tal objeto.

Enquanto nós ocidentais recostamos nossa cabeça em um travesseiro, os orientais recostam suas cabeças diretamente na cabeceira. O que denota uma finalidade distinta para o mesmo objeto. No Japão em especial, a cabeceira é uma espécie de caixote que pode ter ou não a sua parte superior acolchoada, seria o nosso travesseiro só que mais parecido com uma caixa, mesmo porque ele é capaz de guardar outros objetos. Por isso, em algumas traduções são denominados de o livro do travesseiro.

Foi assim que surgiram os livros de cabeceira como gênero literário. No início, eles eram diários guardados em uma gaveta no travesseiro de madeira (a cabeceira). Escreviam-se neles importantes considerações antes de dormir, eram os relatos das atividades diárias. Após escrever, o livro era guardado e a sua dona dormia sobre ele. Com o passar do tempo, os livros tornaram-se afrodisíacos para amantes insones, depois transformaram-se em manuais para amantes entediados e por fim em livros didáticos, cuja finalidade era iniciar no sexo os inocentes (GREENAWAY, 2001). Um detalhe importante é que se tratava de um gênero textual feminino, só as mulheres escreviam livros de cabeceira.

Neste artigo são destacados elementos da narrativa cinematográfica “greenawayana”, que intertextualmente construiu para o espectador, assim como Sei Shônagon os seus próprios livros. Usou-se neste trabalho a metáforas dos livros para fazer menção a elementos dessa narrativa fílmica como o silêncio, o som, as palavras e a personagem. Além disso, foi dado destaque ao prazer que faz alusão a escrita apresentada no filme em diálogo com os textos de Sei Shônagon, dando luz ao caráter intertextual na obra de Peter Greenaway.

O filme: do contexto ao texto

O livro de cabeceira que Peter Greenaway escolhe para homenagear é o clássico escrito por uma cortesã real do século dez, Nagiko Kiyohara No Motosuke Sei Shonagon, ou simplesmente Sei Shonagon. Trata-se de um diário solto, impressionista, que não segue uma narrativa contínua como afirma o próprio Greenaway (2001). São relatos e descrições da vida na corte, nos quais a cortesã escreve várias listas, como a lista de coisas elegantes e a lista de coisas que fazem o coração bater mais forte[3], utilizadas por Greenaway em seu filme The Pillow Book .O Livro de Cabeceira), não como mera ilustração, mas como parte integrante e importante para o desenvolver o enredo fílmico.

A película faz parte da lista dos filmes mais sensuais de todos os tempos. Ele conta a história da modelo japonesa Nagiko (Vivien Wu) em sua busca por amantes que escrevam em seu corpo. Marcada por lembranças da infância — quando seu pai escrevia uma benção em seu corpo e a tia lhe contava a história de uma imperatriz que também se chamava Nagiko e possuía um livro no qual relacionava todos os amantes — Nagiko se lança à obsessão de ter seu próprio livro de cabeceira e encontrar o amante/calígrafo ideal. No filme, a protagonista, filha de um escritor e calígrafo, relembra que seu pai gostava de comemorar seus aniversários na infância e adolescência, escrevendo no rosto dela os caracteres de uma benção.

Em um dos aniversários de Nagiko, sua tia lhe conta sobre o livro de cabeceira, que teria mil anos quando Nagiko completasse vinte e oito anos. Enquanto a tia lia uma das várias listas que compunham o livro, a pequena Nagiko vê seu pai sendo sodomizado pelo editor, mas ainda era jovem demais para entender o que acabara de presenciar. Para publicar seus escritos, o pai, era obrigado a se relacionar sexualmente com o seu editor.

Com seis anos de idade Nagiko já estava decidida a escrever o seu próprio livro de cabeceira. O dia em que ela começa a escrever o seu livro é também o dia em que encontra o seu futuro marido pela primeira vez; ele estava com dez anos de idade. Eles não trocam nenhuma palavra, o encontro ocorre na livraria onde pai dela entregava ao editor os livros a serem publicados, sempre após manter relações sexuais com ele. Tamanho era o poder que o editor exercia sobre seu pai que até mesmo seu futuro marido fora escolhido por ele.

Nagiko se casa e assim como Sei Shonagon começa a escrever listas, só um fato separava as duas escritoras; enquanto Sei Shonagon escrevia listas de coisas que fazem o coração bater mais forte, as listas de Nagiko eram sempre de conteúdo negativo como coisas que a irritavam. Para o marido, que era esportista e notadamente preconceituoso para com a literatura, a esposa gastava dinheiro demais com livros. Em seu décimo oitavo aniversário, extremamente triste, pois acabaram as bênçãos e o seu casamento era um fracasso; o marido frustrado queima a biblioteca de Nagiko. Enfurecida com a atitude do marido ela decide queimar toda a casa e foge para Hong Kong, onde fica escondida por anos. Com o tempo ela vai para Tóquio e se torna uma modelo famosa.

As recordações familiares são muito fortes e ela acaba insistindo para que seus amantes lhe deem prazer escrevendo em seu corpo. Seu desejo é insaciável e ela experimenta uma grande quantidade de amantes que são melhores como calígrafos do que como parceiros sexuais – ou vice-versa –; o esteta arrogante com uma aprendizagem eclética, o humilde matemático, o jovem artista ambicioso com sua pena, o artista de grafite político com sua tipografia de moda, o velho professor. Nagiko só podia ter momentos de êxtase, mas nunca uma relação duradoura. Talvez porque ela ainda não tivesse encontrado o amante-calígrafo ideal.

Decidida a manter a tradição de seu pai, Nagiko sai a procura desse amante — ela pagava aos homens para escreverem em seu corpo até que encontra Jerome (Ewan McGregor), um jovem tradutor americano, pela primeira vez em um café. Faz-se necessário destacar que Greenaway escolhe o nome do personagem Jerome para fazer referência a São Jerônimo, “primeiro grande tradutor de texto para o mundo moderno” (GREENAWAY, 2001, p.12).

Nagiko pede a Jerome que escreva nos seios dela, mas não gosta de sua caligrafia, então ele a instiga a escrever nele e a partir daí, ela, que estava acostumada a servir como papel para seus amantes, descobriria que é melhor ser caneta do que ser papel. Portanto, Jerome a convence de que ela deve usar os outros como papel.

Incentivada por Hoki, um jovem fotógrafo que é apaixonado por ela, Nagiko tenta publicar um texto, que é bruscamente rejeitado pelo editor. Como não aceita ser desprezada, ela vai até o editor, e surpreendentemente encontra o homem que humilhava e chantageava seu pai. Ciente da homoafetividade do editor, descobre também ser ele amante de Jerome. A partir daí Nagiko passa a seduzir Jerome como meio de convencer o editor a publicar seus textos.

Sem esperar, as coisas não acontecem como Nagiko tinha planejado, porque ela se apaixona pelo tradutor americano. Os amantes, Nagiko e Jerome, passam seus dias e noites fazendo amor e escrevendo em seus corpos. Como modo de fazer com que os textos de Nagiko cheguem ao editor, Jerome oferece seu corpo para que ela escreva nele.

Nagiko cobre o corpo de Jerome com um texto que anuncia poeticamente um plano com doze textos posteriores, em que corpo e palavra são indivisíveis. Terá um total de treze ensaios caligráficos mostrando treze alegorias humanas do amor: o inocente, o idiota, o impotente, o exibicionista, o sedutor, a juventude, o segredo, o silêncio, o traído, os falsos indícios, os mortos; todos escritos pensando que o corpo e o texto são uma única manifestação, criaturas de palavras e sangue, capítulo e músculo, página e pele.

O editor fica intrigado e excitado pela ideia e especialmente com o método que ela usará. Nagiko executa seu plano, mas está impaciente para escrever mais. O editor não permite que o tradutor o abandone, e Nagiko, procurando continuar sua relação e conduzida por sua obsessão pela escrita, testemunha os encontros sexuais de Jerome e o editor. Furiosa e ciumenta, seduz outros amantes para escrever em seus corpos.

Quando vê outra pessoa escrita, o americano também sente ciúmes. Incentivado por Hoki, Jerome tenta estupidamente forjar sua morte, tomando uma overdose de pílulas, mas acaba morrendo de verdade[4]. Nagiko o encontra morto na cama de seu apartamento. Em honra ao seu amor passa um dia e uma noite escrevendo um belo poema erótico no corpo do amante.

Jerome é enterrado em um lugar tranquilo no cemitério de Tóquio. Nagiko queima seu luxuoso apartamento com seus livros, pinturas e seus papéis caligráficos – mais uma vez é queimada uma biblioteca –, abandona a cidade e volta para a casa de seus pais já mortos.

Hoki, triste por saber que tinha perdido Nagiko para sempre, conta ao editor que ela escrevera no corpo de Jerome antes dele ser enterrado. O editor exuma em segredo o corpo, tira sua pele e faz um livro com o poema erótico, guardando em uma caixa dentro da almofada tradicional de madeira, onde apoia sua cabeça todas as noites.

Nagiko gravida de Jerome, e sabendo do que acontecera com o corpo de seu amante, acaba completando seu plano, escrever treze livros com sua poética caligráfica sobre os corpos de homens e enviá-los à casa do editor na cidade.

A princípio, o editor interpreta de forma errônea sua intenção, acabando por compreender que os homens enviados a sua casa são um trato para poder fazer um enterro decente do livro de cabeceira da pele de Jerome. O editor, sem saber, os deixa esperando debaixo da chuva e a água borra o texto. Ele impacientemente acaba por descobrir que o texto pode estar escrito no couro cabeludo, entre os dedos, debaixo das pálpebras e na língua.

Sabendo que só faltam cinco textos, o editor fecha sua livraria, despede seus funcionários e reduz sua vida ao básico: dormir, comer e esperar. Se sente só, pacientemente, dia após dia, esperando a possibilidade de que um novo texto bata em sua porta.

Ironicamente Hoki, que se converteu em político extremista tenta arruinar o editor acusando-o de crimes ecológicos, atropela e mata acidentalmente um dos textos andantes, o jovem que leva em seu corpo o livro do traidor.

Finalmente, o décimo-terceiro e último texto chega belamente caligrafado na pele de um jovem aprendiz de sumô, é o texto do livro dos mortos, em seu corpo também está escrito sobre acusação de chantagem e humilhação que sofria o pai de Nagiko. O editor toma consciência de sua própria morte, entrega o livro de cabeceira e permite que o jovem o mate.

Ela recebe o livro de Jerome e o enterra dentro de um bonsai. Nagiko faz o ritual da benção, a mesma cena que inicia o filme, em sua filha. Ela lembra-se das palavras de sua tia, pois já está com vinte e oito anos e acredita que só agora tem experiência suficiente para escrever as listas de coisas que fazem o coração bater mais forte. Com belos cenários e fotografia, o filme exibe recursos inovadores, tudo tendo como pano de fundo o requinte e a delicadeza da cultura oriental.

O filme funciona nos mesmos quatro níveis que os livros de cabeceira citados por Greenaway (2001): diário, livros afrodisíacos para amantes insones, manuais para amantes entediados e livros didáticos para iniciar no sexo os inocentes. Também oferece ao espectador pensamentos e relatos de Nagiko (a protagonista), provoca fantasias sexuais, demonstrado como realizá-las e apresenta uma listagem dos procedimentos básicos. Por fim, justifica-se o título do filme devido ao caráter epidérmico que os livros de cabeceiras assumem, ao servirem de almofada. Por isso, eles tornam-se íntimos, parte integrante de quem os escreve, instigando a sensualidade do toque no papel.

O Livro do Silêncio

Pela formação de arquiteto e talento de artista plástico, o cineasta e escritor nascido no País de Gales em 1942, Peter Greenaway, consegue no filme em destaque fazer uma fusão entre texto, imagem e som num mesmo plano, e cria um deslumbrante espetáculo multimídia. O filme foi rodado em preto e branco e em cores, e editado em três diferentes tipos de formatos, efetuando uma superposição de imagens abrindo várias “janelas” na tela, criando uma sofisticação de linguagens.

A sobreimpressão e o uso de janelas, duas grandes características das experimentações videográficas dos anos 80, adquirem em Greenaway não apenas um caráter arrojado, mas também inerente ao mecanismo de construção da própria estória (embora já tenha sido dito que o uso de janelas em Greenaway também reflita a influência dos computadores multitarefa. Realmente é muito raro que uma pessoa use o computador para apenas uma tarefa e se dedique a ela integralmente em seu desktop. O mais comum é que várias janelas estejam abertas ao mesmo tempo). Desta forma, o texto não se desprende da imagem, ou seja, ambos estão intimamente conectados e só existem a partir desta relação, o que demonstra como o mecanismo de construção das imagens se interliga com o intricado nível narrativo do filme. (CUNHA, 2007)[5].

As múltiplas telas que retomam histórias em tempos distintos, por exemplo, passado e presente num mesmo plano requerem do espectador uma atenção a esta sofisticação na imagem, que em 1996 poderia parecer complexa, mas que hoje se tornou habitual devido ao uso de equipamentos como computadores, tablets e smartphones no cotidiano. Embora Greenaway condene a narrativa e procure utilizar efeitos como a multiplicidade de telas e a exacerbação do caráter multimídia do filme (valorização da música, por exemplo) para quebrar a sua linearidade, O Livro de Cabeceira é estruturalmente narrativo.

De fato, seus filmes compreendem o princípio de uma narrativa convencional com início, meio e fim, ou seja, introdução, conflito e resolução. Porém, existe dentro desse contexto uma flexibilidade que acrescenta ao campo narrativo elementos circunstanciais, enriquecendo a disposição do enunciado. Em outras palavras, a criatividade exposta por este cineasta tangencia tanto a condição adaptativa de uma estrutura regular quanto a implementação de arestas. (GARCIA, 2003, p.138).

Mesmo que a montagem do filme desconstrua a sua linearidade, o espectador consegue facilmente recuperá-la e "traduzi-la" numa história com começo, meio e fim. Pode-se dizer que existe um centro, uma vez que podemos identificar o tempo de uma ação, ou seja, relacioná-la com outras ações que as antecederam ou sucederam. Perder esse "centro" equivaleria a afastar-se do caráter narrativo tradicional, a desconhecer começo, meio e fim.

O Livro dos Sons

No filme encontramos a música dividida em três classes: uma tradicional relacionada com a época de Sei Shonagon no ano 1000, a segunda especialmente composta para o filme por um compositor japonês da música tradicional que antecipa a música do ano 2000, e a terceira usando as ideias nostálgicas ocidentais do século XX sobre a música oriental. Greenaway não utiliza a música como um mero adereço, ela é convertida em um elemento da estrutura fílmica.

Segundo Greenaway[6], nos filmes é raro encontrar uma parceria satisfatória entre imagem e música, porque os procedimentos tradicionais revelam a música um papel secundário usando somente como apoio para conseguir a emoção. Por isso, é excepcional usar a música como estrutura de um filme e não somente como um veículo para ilustrá-lo. Quando se sabe qual a melodia da música, qual o ritmo, pode-se fazer nascer um movimento da câmera, a escolha de uma cor. Para Greenaway, os produtores estão equivocados quando dizem que se o espectador não nota a música no filme, ela é boa. A música deve ser notada formando parte do filme.

S-éveille-t-elle em lui

Déloge l’ homme em lui

Un ange vole. (bis)

Beau

Se love-t-elle em lui

Furtive elle em lui.

Un Homme change (bis)

Etrange

Parfait mélage

S’ échange-t-il d’ aile en elle

Un homme sombre change en elle

Un ange bome

Un ange blonde

Dérange (...)

Un homme change(bis)

Etrange

Parfait mélange (...)

Doux

Parfait mélange

Seux d’ un ange[7]

A passagem acima é uma canção francesa apresentada em uma das cenas por Greenaway, de forma a expor o corpo e manifestar a força de seus versos. Através de sua escritura visual na tela cinematográfica, associa-se aos códigos verbais e sonoros, quando a palavra se manifesta vibrante pela sonoridade lírica emitida pela cantora, som, imagem e texto (apresentado como legenda), juntos formando uma linguagem próxima a dos videoclipes. Observa-se no texto a predominância de regras gramaticais: o modo imperativo dos verbos – ora uma ordenação, ora uma sugestão. Essa passagem no filme dura cerca de oito minutos o que comprova a importância da música, mas antes dessa apresentação que se assemelha a um videoclipe, é apresentada ao espectador de forma sutil quase imperceptível no primeiro encontro de Nagiko e Jerome, onde ele a instiga a escrever. A mesma música é novamente repetida na cena em que Jerome vai ao apartamento de Nagiko após ver o quinto livro, o Livro do Exibicionista. Por fim, a música toca pela última vez ao final do filme, quando Nagiko termina de escrever a benção em sua filha.

O Livro das Palavras

Greenaway sem dúvida quer provar que fazer cinema não é apenas narrar por imagens, por isso encontramos em O Livro de Cabeceira uma exacerbação de textos, em vários idiomas, falados e escritos nas mais variadas superfícies.

O filme tem diálogos escritos e falados em vinte e cinco línguas – inglês, francês, japonês; mandarim, cantonês, vietnamita, latim, hebraico, egípcio necrótico... – e apresenta texto caligráfico escrito sobre papel, madeira, carne, superfícies curvas e planas, verticais e horizontais, sobre carne viva e carne morta, em néon, telas, projeção, como subtítulo, intertítulo, sobretítulo, como Arte Elevada e arte baixa, como publicidade e cheque de banco e placa de carro, sobre fotografia, quadro-negro, correspondência, fac-símile e fotocopiado, além de falado, salmodiado, cantado, com ou sem música... um desafio provocador. Vocês querem texto? O cinema quer texto? O cinema tem a pretensão de prescindir do texto? Então tomem texto para zombar daquela impressão presunçosa de que o cinema é feito de imagens. (GREENAWAY, 2001, p. 12).

Segundo o autor, o cinema precisa deixar de ser escravo do texto e do quadro único, uma invenção renascentista que as novas tecnologias têm total condição de subverter. Ainda segundo o autor, o cinema também necessita deixar de ser escravo do ator, e mostrar que filmes não devem ser parques de diversão para Sharon Stone e, por último, o cinema precisa livrar-se da própria câmera cinematográfica, pois só assim será reinventado por completo.

Tudo no filme remete ao universo textual, o título, a temática, a obsessão de Nagiko e Jerome pela escrita. Há momentos no filme que nos fazem pensar num jogo, em que o espectador deve descobrir ou inventar uma chave ou regra de leitura. Ao utilizar-se desses recursos – várias línguas, música, telas sobrepostas, entre outros – o cineasta está criando uma obra de arte, ao obrigar o leitor-espectador a ter sua própria captação da realidade ali expressa.

No cinema de Greenaway as referências não se esgotam como signos, mas o autor oferece um grande leque de possibilidades como se estivesse a todo o momento refazendo a linguagem cinematográfica e precisasse de um novo espectador a cada plano projetada na tela.

Há passagens no filme que nos retratam espetáculos cinematográficos, como a cena em que a modelo Nagiko ao encontrar pela segunda vez Jerome no Café Typo, e contratar seus serviços como tradutor – ele a oferta seis idiomas, dois a mais do que no primeiro encontro dos dois. Nagiko em sua conversa elogia e admira todos os livros que Jerome ainda iria escrever, ela sabia como seduzir um homem. A primeira transação entre eles foi estritamente comercial, ele se oferece a pagar a conta, mas não possui dinheiro nem está com seu talão de cheques. Então, ela oferta a palma de sua mão, estendendo-a para que ele possa escrever e assinar como se fosse um cheque. Em seguida o dono do estabelecimento faz uma fotocópia da mão da modelo. Essa é apenas uma das mais variadas formas que Greenaway utiliza para mostrar o valor da escrita e que o cinema não é apenas narrar por imagens.

Nagiko em uma das passagens do filme, ao narrar relata o seguinte sobre Jerome:

Escrevia em tantos idiomas que me fez parecer um sinalizador

indicando o Leste, o Oeste, O norte e o Sul

eu tinha sapatos em alemão, meias em francês...

luvas em hebraico...

um chapéu com um véu em italiano.

Ele só me deixou nua onde eu costumava usar roupas.[8]

Na passagem acima, a modelo já demonstrava enorme admiração não só pelos dotes de escritor e calígrafo, mas parece ter a certeza de que sua busca pelo amante-calígrafo ideal terminara. Desde o início Greenaway predestinou a jovem a estar intimamente ligada a escrita, afinal todo enredo fílmico está em torno da escrita e da importância dela para os orientais.

Escrever é uma ocupação bastante comum.

Todavia é uma ocupação muito preciosa.

Se a escrita não existisse...

De que depressão terrível...

Nós sofreríamos! [9]

Greenaway consegue usar a palavra imprimindo certa visualidade. A palavra é iconizada, ganha espacialidade, profundidade, animação, tem diferentes corpos e tamanhos, proporcionando inúmeras possibilidades de se trabalhar com a escrita.

O livro dos prazeres

O filme retrata também os rituais da caligrafia no corpo humano – trata da união do sexo com a escrita.

O livro de cabeceira foi escrito mil anos atrás, quase exatamente, com relação ao ano que o filme foi feito, e escrito por uma mulher. Ser alfabetizado no Ocidente há mil anos era bastante raro; ser mulher e alfabetizada, improvável; ser alfabetizada, mulher e extremamente brilhante, quase que uma impossibilidade ocidental. Sei Shonagon soa moderno, quase uma proto-feminista numa época tão paternalista em que as mulheres da corte permaneciam, na maioria, silenciosas e quietas e disponíveis dentro de casa durante toda a vida. Ela diz muito, e diz duas coisas eletrificantes da escuridão silenciosa de suas prisões domésticas. Ela as diz, é claro, bem à sua maneira, mas afirma que duas coisas na vida são absolutamente essenciais, e que a vida seria insuportável sem elas: o corpo sensual e a literatura. (GREENAWAY, 2001, p. 10-11)

Em O Livro de Cabeceira, existem duas personagens que se chamam Nagiko: uma é uma escritora, que ilustra várias cenas com passagens poéticas de Hai-Ku; a outra é uma menina, filha de um escritor que, ainda pequena, descobre que o pai prestava favores sexuais ao seu editor. No filme as histórias destas duas escritoras estão incorporadas intertextualmente.

Faz-se necessário destacar como afirma Garcia (2000, p. 32) que “os intertextos expressos no filme deste cineasta podem salientar e demonstrar a adição de diversas significações no corpo da obra. Consequentemente, elabora-se um enriquecimento cultural do texto fílmico como fomentos de uma paisagem “greenawayana””.

Na primeira cena do filme, o pai de Nagiko faz sua saudação ao aniversário da criança, através de um ritual de passagem, escrevendo em seu rosto e em seu corpo uma benção que conta a história sobre a criação dos homens por Deus. Ao fim da benção um ensinamento importante – Se Deus aprova a sua criação, escreve na obra seu nome – e o pai assina nas costas da filha.

Quando Deus criou o primeiro modelo em barro de um ser humano.

Ele pintou os olhos...

Os lábios...

E o sexo.

Depois, Ele pintou o nome de cada pessoa...

Para que o dono jamais o esquecesse.

Se Deus aprovou Sua criação...

Ele trouxe à vida do modelo de barro pintado...

Assinando seu próprio nome.[10]

Ao promover essa benção, o pai escreve sobre a testa da criança a primeira parte de uma felicitação de aniversário. Em seguida a menina oferta sua nuca para receber a assinatura. Essa performance será executada por várias vezes ao logo da narrativa fílmica, evidenciando então, outro aspecto relevante na estética cinematográfica de Greenaway: a repetição – no filme em destaque, essa repetição ocorre em vários momentos; repetição da música, do incêndio, do nome Nagiko, da benção.

O pai celebra essa saudação junto à filha por duas vezes; a mãe, que divide com o editor o amor do pai, também dividirá a terceira benção sobre a filha; a própria Nagiko, quando se casa e no seu aniversário pedi ao marido que a abençoe, mas ele nega; no decorrer do filme quando Jerome torna-se cúmplice de seu jogo com o editor – no banho –, também participa da quinta benção; e por fim, a herdeira de Nagiko que no final recebe a sexta e última benção.

Em uma das cenas, o pai escritor passa para a habitação ao lado, para receber o editor. A menina espia, pela fresta, seu pai sendo sodomizado, em troca da publicação de seus livros. Ao mesmo tempo, no quarto em que Nagiko está, sua tia, de costas, sem querer saber sobre a outra cena, apresenta-lhe o livro das mulheres: a escrita milenar dos diários – o livro de cabeceira – onde as mulheres escrevem seu cotidiano. A menina, ao abrir a fresta, torna-se veículo de uma conjugação impossível: pai-Deus e pai-corpo; pai sublime e pai humilhado.

Ao sugerir o encontro homoafetivo, Greenaway camufla essa passagem, chamando a atenção dos menos interessados pela cena erótica, com outras pontas da narrativa que o espectador não consegue, nem precisa, compreender bem.

No aniversário de quatro anos de Nagiko, sua tia lê pela primeira vez o diário de Sei Shonagon, enquanto a menina via seu pai e o editor juntos também pela primeira vez, mas, com certeza, uma clara noção do que testemunhou ela só teria ao ficar mais velha. Só mais tarde ela pôde entender o porquê do espelho chinês ter ficado embaçado.

A metáfora do espelho embaçado se interliga ao tempo enunciativo dos acontecimentos na vida de Nagiko, que quando criança obtém a primeira visão do encontro sexual entre o pai e o editor. Segundo os estudos freudianos[11], é quando a criança toma consciência do que está acontecendo de fato e capta a mensagem do que está sendo visto. Nesse caso, o relacionamento entre o seu pai e o editor. Na versão de Greenaway, o destino das mulheres, é bem freudiano: decepção com o pai, atividade fálica bissexual, recuperação do valor paterno na maternidade.

Na medida em que a narrativa se desenvolve e Sei Shonagon é interpretada, a história de Nagiko cresce entre experiências felizes e traumáticas: sucesso profissional e fracasso familiar, amoroso e afetivo. A vida da jovem Nagiko é marcada por dois grandes incêndios: o fim do casamento com o seu marido esportista e o rompimento com Jerome, o inglês poliglota e amante. O fogo é apresentado como metáfora do desencanto, para que a protagonista ressurja das cinzas como fênix.

Despedidas podem ser tanto

bonitas, quanto desprezíveis

dizer adeus a quem você ama é muito complicado

Por que alguém seria obrigado a suportar

tão suave dor e tão amargo prazer?[12]

Enquanto os espectadores se deleitam com as listas de Sei Shonagon, — Lista de coisas que fazem o coração bater mais forte, Lista de coisas elegantes, Lista de coisas esplendidas[13] — também testemunham as coisas que irritam Nagiko: esportistas grosseiros e preconceito contra literatura. São argumentos que atacam o posicionamento do ex-marido realizador de críticas severas contra as ações e objetivos da jovem escritora. As listas de Sei Shonagon, revelam situações peculiares para o entendimento ocidental, pois pertencem ao cotidiano oriental.

As comparações no filme formam um jogo polifônico, promovido por variações sobre um mesmo tema.

Mamilos parecem botões feitos de osso;

Um dorso do pé é como um livro mio aberto;

Um umbigo como o interior de uma concha;

Uma barriga como um pires virado para cima;

Um pênis como uma lesma-dor-mar

ou um pepino em conserva;

Um instrumento de escrever nada especial.[14]

Na medida em que as cenas são apresentadas, as imagens que aparecem como ícones são incorporadas ao conjunto de metáforas que nos permitem brincar com partes do corpo humano. A pele culminando no lugar do papel, o jogo de linguagem manifesta contrastes e mutações. Nagiko deseja ser tratada como a página de um livro, o corpo humano e o corpo do livro parecem criar um diálogo.

Também, podemos notar a audácia sugestiva de quem tenta restaurar os sentidos corpóreos, através do olfato, tato e visão. O olfato incita a memória do espectador para apreciar o aroma do papel, como se alguém sussurrasse, sinta o cheiro do papel e lembre-se do perfume da natureza e do outro. O tato faz lembrar o contato do pincel com a pele e com o papel e a visão, a imagem como forma de contemplação da obra.

O aroma do papel branco

É como o aroma da pele...

De um novo amante...

Que acabou de fazer uma visita surpresa...

Vindo do jardim de um dia chuvoso.

E a tinta preta

É como um cabelo cheio de laquê.

E o pincel?

Bem, o pincel é como...

Aquele instrumento de prazer...

Cujo objetivo nunca

É colocado em dúvida...

Mas cuja eficiência

Surpreendente...

Alguém sempre, sempre esquece[15]

Para Nagiko criar seus mensageiros há um ritual de preparação dos corpos, principalmente da pele, com o tratamento de depilação e limpeza com suco de limão. A pele deve ser lisa e boa, para que a tinta não escorra no momento da escrita. Jerome foi o primeiro dos treze livros e também o sexto, o livro do amante, um pergaminho escrito por Nagiko e manufaturado pelo editor. O triângulo amoroso entre Nagiko, Jerome e o editor, foi o início para o contato entre ela e o editor. Na verdade, poderíamos entender que Jerome com sua bissexualidade se posiciona no meio de uma guerra que o próprio não tinha conhecimento a respeito, portanto, foi mais que amado, foi usado por ambos.

O segundo e terceiro livro são dois mensageiros em versões simultâneas, que representam: o inocente e o idiota. O quarto senhor mensageiro difere pela pressa desenfreada na correria, que procura o desejo - o livro do impotente. Em contraste aparece o quinto elemento, bem gordo, que tenta se promover de todas as formas - o livro do exibicionista. O sétimo volume - o livro do sedutor, tem apenas o corpo para oferecer, já que a tinta foi lavada pela chuva. O jovem que representa o oitavo livro aparece muito rápido: deixa algumas fotos, sem esperar pelo editor, é o livro da juventude. O nono mensageiro traz consigo incógnitas, que originam o livro dos segredos. O décimo manuscrito não diz nada, é o livro do silêncio. O décimo primeiro está morto atropelado na calçada da editora. É o livro do traído. O décimo segundo apenas buzina do seu carro numa noite qualquer, é o livro dos falsos inícios.

O décimo terceiro está no fechamento da história como o livro dos mortos. O editor que tanto mal fez às pessoas não merece continuar vivendo. Para este é reservado à morte. O último mensageiro possui em seu corpo a seguinte mensagem:

Na época dos antigos samurais, quando prendiam os criminosos tatuavam seus crimes em seus corpos. Você é um criminoso, merece carregar a vergonha de seus atos para sempre. Mas os seus crimes não estão escritos em seu corpo. É em sua alma que eles estão escritos. Deveriam estar à mostra para todos verem como é sujo. A única verdadeira posse de um ser humano é o amor que ele possui. Tudo se acaba ou então se consome, menos o amor. A única coisa que levamos da vida é o que nós sentimos. Os homens desonrados não merecem o Dom da vida. Você não tem honra. Você não merece viver.[16]

O editor é sacrificado após a leitura do texto feita por ele próprio, com uma navalha que o mensageiro leva consigo no cabelo. Mas antes de morrer ele pega o livro manufaturado com a pele de Jerome, e cobre seu corpo nu com o livro, que o samurai foi buscar. Nagiko ainda escreveu no Livro dos Mortos, o décimo terceiro, que ela sabia que o editor extorquiu, violentou e humilhou seu pai, arruinou o marido dela e cometeu o maior dos crimes que foi profanar o corpo de seu amante, Jerome.

Tenho certeza...

de que há duas coisas na vida...

que são dignas de confiança:

os prazeres da carne...

e os prazeres da literatura.

Eu tive a grande sorte...

de desfrutar dessas duas coisas...

da mesma forma.[17]

Os prazeres da carne cabem a cada indivíduo seguir a sua natureza para compreender melhor seus desejos e desfrutá-los. Já o prazer da literatura incide sobre os interessados pela leitura fílmica anunciar os caminhos.

O livro das mulheres-personagens

Ao entrar em contato com uma obra literária ou cinematográfica, muitas vezes nos apanhamos perplexos perguntando de onde os autores ou diretores tiram suas personagens. As narrativas mais realistas não conseguem afastar do receptor essa magia, esse inexplicável poder do ser humano em reinventar o mundo através de palavras, das imagens e da combinação desses dois elementos.

No Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem, organizado por Oswald Drucot e Tzvertan Todorov (1972), há um item pertinente para a ajuda na compreensão desta dicotomia entre personagem-pessoa. Para eles o problema da personagem é antes de tudo linguístico, pois não existem fora do universo das palavras, mas seria absurdo recursar a relação entre personagens e pessoas, pois essas representam seres humanos de acordo com as modalidades ficcionais.

Ao partirmos da premissa de que a personagem é um habitante da realidade ficcional, e que o espaço habitado por elas é diferente da matéria e do espaço dos seres humanos, também devemos reconhecer que esses dois universos mantêm um íntimo relacionamento.

Aristóteles (1966) foi o primeiro a discutir as manifestações da poesia lírica, épica e dramática. O pensador grego levantou alguns aspectos importantes, que até hoje marcam o conceito de personagem na literatura, no que diz respeito à semelhança existente entre personagem e pessoa, conceito centrado na mimesis aristotélica. Suas reflexões apontaram para dois aspectos essenciais: a personagem como reflexo da pessoa humana; e a personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares que regem o texto. Portanto, essas reflexões parecem apontar para o conceito de personagem enquanto um ente composto a partir de uma seleção do que a realidade oferece ao escritor/diretor, cuja natureza e unidade só podem ser conseguidos a partir dos recursos utilizados para a criação que entrelaçam possibilidades e verossimilhança.

Consideremos o filme O Livro de Cabeceira. Nessa narrativa cinematográfica, como já foi mencionado anteriormente, Nagiko, protagonista do filme, – enfrenta uma série de adversidades para poder vingar a morte e profanação do corpo de seu amado Jerome, as humilhações que o seu pai sofria, e poder escrever o seu próprio livro de cabeceira. A ação se passa em duas ambientações: Tóquio e Hong Kong. Quem assiste ao filme, depara-se com uma sequência de ações em que a heroína sempre consegue solucionar os problemas e recomeçar como uma fênix ressurgindo das cinzas para poder concluir seus objetivos. Deste modo o espectador poderá entender o significado de verossimilhança, ou seja, o modo de entrelaçar realidade compondo novas possibilidades, não apenas reproduzir, mas recriar.

O espectador assimila todos esses traços, e fica à espera de que a narrativa cumpra, assim como a personagem, seu destino. Dessa forma, as surpresas ficam por conta das ações e do desempenho da personagem em sua busca pelo amante/calígrafo ideal.

O cinema consegue materializar uma personagem, o que não ocorre na literatura. O teatro, por sua vez, conseguiu essa façanha antes do cinema, mas o que os distancia é a forma como se trabalha. Geralmente encontramos três tipos básicos de narração no cinema: figurativa, verbal e musical (sonora). O cinema tem a possibilidade de narrar por som, imagens e palavras, isso lhe dá a oportunidade de projetar as mais diversas situações em tempos e espaços muitas vezes inusitados para o espectador. A característica mais marcante com relação a narrativa cinematográfica, é a narração por meio de imagem, mas com o advento do som, o cinema afastou-se mais da literatura e de algumas formas de artes visuais como a pintura e a fotografia, e aproximou-se do teatro. A personagem teatral para dirigir-se ao público dispensa a mediação do narrador e os cenários por mais perfeitos que sejam jamais nos remetem a ideia de um lugar real, o cinema consegue um status maior de proximidade entre a personagem e o mundo real, seja por intermédio de recursos de câmeras, cenário, iluminação ou até pelo próprio modo de narrar. Não podemos negar a influência da literatura e do teatro nas questões que tangem o cinema e a criação de suas personagens, mas, retomando, o cinema compõe o personagem de modo mais completo, por fazer de um “ser de papel” uma figura materializada à frente do espectador. As personagens saltam das páginas dos livros ou roteiros e tomam vida em um corpo humano, os cenários deixam de ser apenas telas e painéis como no teatro, e passam a ser locações reais na maioria das vezes, possibilitando uma maior identificação dos espectadores com as personagens.

Essa materialização imposta pelo cinema limita a liberdade do espectador ao passo que a literatura abre as possibilidades de o leitor construir suas personagens, mesmo quando elas são descritas. O cinema trabalha com técnicas como o flash back[18] ou flash forward[19], que possibilitam ao espectador visualizar as retomadas a determinados locais ou ações, essências a compreensão do desenrolar da narrativa fílmica. A definição psicológica ou fluxo da consciência asseguram aos consumidores de personagens[20] uma liberdade maior do que a concedida pelo romance tradicional, e isso tem sido bastante explorado pelo cinema moderno. Peter Greenaway conseguiu fazer o mesmo ao construir uma exposição múltipla, onde são mostradas passagens que misturam passado, presente, futuro ou imagens como a de Sei Shônagon quando são apresentados textos da autora japonesa.

Para Candido (1998), algumas personagens são construídas exclusivamente de palavras, pelo menos em um primeiro contato. Rebecca[21] de Alfred Hitchcok é um exemplo, a personagem é apresentada ao espectador apenas por lembranças dos demais personagens, o único contato mais próximo que temos com ela é um de seus vestidos e outros pequenos objetos. Sei Shonagon assim como Rebecca só consegue sua materialização no filme por intermédio das leituras de seu diário, seu livro de cabeceira, que primeiramente, é lido pela tia de Nagiko e depois pela própria Nagiko.

O Livro de Cabeceira de Greenaway e Rebecca: a mulher inesquecível de Alfred Hitchock, apresentam mais detalhes em comum no que tange à questão das personagens Shonagon e Rebecca. Quando ambos começam, as duas personagens já estão mortas, mas seus trajes e seus comportamentos irão influenciar toda a produção narrativa fílmica e as personagens principais.

Em uma primeira análise, arriscaríamos afirmar que Sei Shonagon existe no filme de Greenaway. Claro que tal fato é incontestável, mas ela não está presente no filme como uma mera personagem – nem nos arriscaríamos a classificá-la como tal. Greenaway recria a cortesã, apenas com palavras e imagens. As palavras de Sei Shonagon são reproduzidas pela voz de Nagiko e imagens que funcionam como o fluxo de consciência da protagonista.

Um fato interessante é que, em nenhuma busca, encontramos na ficha técnica do filme o nome da atriz quer interpretou Sei Shonagon, ou melhor, personificou-a. Quanto às palavras, Greenaway realmente é um arquiteto, pois soube fazer a junção exata entre o seu próprio texto e o da escritora do século X. Portanto, Greenaway cria uma estrutura especular ao situar a obra de Sei Shonagon dentro do título homônimo do livro de Nagiko, que por sua vez, faz parte da narrativa fílmica também intitulada O livro de cabeceira.

Conclusão

As relações entre cinema e literatura existem desde o advento da modernidade. No decorrer do século XX os laços entre as duas linguagens artísticas foram se estreitando, não apenas pela realização de adaptações fílmica de textos literários, mas pelo fato de ambas tornarem-se mais complexas e conexas devido aos vários tipos de interseções e diálogos circunscritos nelas.

A partir dessa complexidade e desse entrecruzamento surgiu a ideia de contemplarmos as possíveis relações entre cinema e literatura. O filme contemplado, O Livro de cabeceira, busca desconstruir os lugares-comuns instituídos em torno da relação do cinema com o texto literário, desfazendo o estigma de que a imagem deve ser usada como mero adereço para acompanhar a narrativa fílmica.

O filme procura fundir imagem e texto dentro do que Greenaway descreve como uma “estrutura de apoio” de jogos narrativos, técnicas próprias da linguagem cinematográfica, atores talentosos e tecnologia inovadora. Se a caracterização desapareceu virtualmente, os ritmos estimulantes e as alusões artísticas predominam. A paixão do cineasta pela pintura é visível na importância concedida à força plástica da imagem cinematográfica e as citações de textos de Sei Shonagon. A trama, personagens e diálogos de O Livro de Cabeceira são de Greenaway, não de Sei Shônagon. Por fim, o filme entrega-se a sua busca, texto e sexo em um único corpo. Tudo a que se propõe é discutir a relação entre texto e prazer, cinema e literatura.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Trad., Pref., Introd., Com., Apend. de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.

CANDIDO, Antônio. A personagem de ficção. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.

CUNHA, Oswaldo Norbim Prado. Imagem e texto em O livro de cabeceira. Revista Espcom, v. 4, p. 1-12, 2007. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/espcom/revista/numero4/oswaldo.html. Acessado: 13 de dez. de 2022.

DUCROT, Oswald & Todorov, Tzvetan. Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage. Paris, Seul. 1972.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 18, pp. 13-85). Imago, 1980.

GARCIA, Wilson. Introdução ao Cinema Intertextual de Peter Greenaway. Co-edição Annablume – UniABC, São Paulo, 2000.

GARCIA, Wilton. Escritura fílmica de O livro de cabeceira. Galáxia (PUCSP), São Paulo, v. 01, n.05, p. 139-158, 2003.

GREENAWAY, Peter. Cinema 105 anos de texto ilustrado. Aletria Revista de Estudos de Literatura, Belo horizonte, v. 8, dez. 2001.

GOROSTIZA, Jorge. Peter Greenaway. Madrid: Cátedra, 1995.

SHONAGON, Sei. The Pillow Book. London: Penguin, 1967.

Notas

[1] O LIVRO de cabeceira. Direção de Peter Greenaway. EUA, 1996.
[2] HONAGON, Sei. The pillow book, 1967.
[3] SHONAGON, Sei. The pillow book, 1967.
[4] Cf. A leitura dessa cena, inserida no filme retoma o drama Shakesperiano, Romeu e Julieta.
[6] GOROSTIZA, Jorge. Peter Greenaway. Madrid: Cátedra, p. 217, 1995.
[7] O LIVRO de cabeceira. Direção de Peter Greenaway. FRA/ESC/UK, 1996.

Desperte-a nele. / Desaloje o homem nele. / Um anjo voa. (bis) / Bonito / Enrola-se ela nele / Esconde-se ela nele. / Um homem se modifica(bis) / Estranho / Mistura perfeita / Ela troca as asas nela / Um homem sombrio / se modifica nela. / Um anjo bomba / Um anjo loiro / Confuso / (...) / Um homem se modifica(bis) / Estranho / Mistura perfeita / (...) / Doce / Mistura perfeita / Sexo de um anjo.

[8] O LIVRO de cabeceira. Direção de Peter Greenaway. FRA/ESC/UK, 1996.
[9] O LIVRO de cabeceira. Direção de Peter Greenaway. FRA/ESC/UK, 1996.
[10] O LIVRO de cabeceira. Direção de Peter Greenaway. FRA/ESC/UK, 1996.
[11] Além do princípio do prazer (1980) - Trabalho original publicado em 1920.
[12] O LIVRO de cabeceira. Direção de Peter Greenaway. FRA/ESC/UK, 1996.
[13] SHONAGON, Sei. The pillow book, 1967.
[14] O LIVRO de cabeceira. Direção de Peter Greenaway. FRA/ESC/UK, 1996.
[15] O LIVRO de cabeceira. Direção de Peter Greenaway. FRA/ESC/UK, 1996.
[16] O LIVRO de cabeceira. Direção de Peter Greenaway. FRA/ESC/UK, 1996.
[17] SHONAGON, Sei. The pillow book, 1967.
[18] Flash back – cenas de um filme que revelam algo do passado de seus personagens.
[19] Flash forward – cenas de um filme que revelam parcialmente o que acontecerá aos personagens.
[20] Cf. GOMES, Paulo Emílio Sales. “A personagem cinematográfica”. p.111. (1998)
[21] REBECCA: a mulher inesquecível. Direção de Alfred Hitchcok. EUA, 1940.

Autor notes

i Mestre em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brazil. Professor efetivo do Curso de Pedagogia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG- Ibirité), Coordenador do Laboratório de Arte e Educação, Coordenador do Núcleo de Integração e Práticas (NIP). E-mail: jaider.reis@uemg.br Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9710-9384

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