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Virus in motion: notas sobre turismo mochileiro em tempos de pandemia
Virus en movimiento: notas sobre el turismo mochilero en tiempos de pandemia
Virus in motion: notes on backpacker tourism in times of pandemic
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 20, núm. 1, pp. 39-56, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 20, núm. 1, 2023

Recepção: 09 Fevereiro 2023

Aprovação: 18 Março 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumen: Este artículo aborda algunas de las repercusiones de la pandemia de COVID-19 entre los “mochileros”: personas que buscan realizar sus viajes en base a la “independencia” de las agencias de turismo, flexibilidad de itinerarios, mayor tiempo de tránsito, “presupuesto reducido”, contactos con diferentes temas (locales y viajeros) y compromisos en actividades sin guión. Se explorarán aquí dos conjuntos de temas: los efectos sociopolíticos del coronavirus entre sujetos que aún estaban “en el camino”, provocando acciones para enfrentar situaciones de cierre de fronteras, conflictos con agentes de los Estados receptores y con la comunidad local, estigmatización, vuelos de repatriación, constitución de redes solidarias de albergue, alimentación y también atención emocional y; el posicionamiento, ante la pandemia, de las plataformas digitales y redes sociales virtuales, en gran parte responsables de estimular y brindar información para llevar a cabo los emprendimientos viáticos de muchos “mochileros”.

Palabras clave: Turismo, Pandemia, Viajeros, Hostal, Movilidades.

Resumo: O presente artigo tematiza algumas repercussões da pandemia do COVID-19 entre mochileiros: sujeitos que buscam efetuar suas viagens a partir da “independência” frente às agências turísticas, flexibilidade de itinerários, maior tempo em trânsito, “orçamento enxuto”, contatos com distintos sujeitos (locais e viajantes) e engajamentos em atividades não roteirizadas. Dois conjuntos de questões serão aqui explorados: os efeitos político-sociais do coronavírus entre sujeitos que ainda estavam “na estrada”, provocando ações de lida com situações de fechamento de fronteiras, conflitos com agentes dos Estados receptores e com a comunidade local, estigmatizações, vôos de repatriação, constituição de redes de solidariedade para abrigo, alimentação e cuidados também emocionais e; o posicionamento, diante da pandemia, de plataformas digitais e redes sociais virtuais, responsáveis em grande medida pelo estímulo e provisão de informações para a realização dos empreendimentos viáticos de muitos mochileiros.

Palavras-chave: Turismo, Pandemia, Backpackers, Hostel, Mobilidades.

Abstract: This article discusses some of the repercussions of the COVID-19 pandemic among backpackers: individuals who seek to make their trips based on “independence” from tourist agencies, flexibility of itineraries, longer time in transit, “lean budget”, contacts with different subjects (locals and travelers) and engagements in non-scripted activities. Two sets of issues will be explored here: the political and social effects of the coronavirus among subjects who were still “on the road”, provoking actions to deal with situations of border closure, conflicts with agents from the receiving States and with the local community, stigmatization, repatriation flights, constitution of solidarity networks for shelter, food and also emotional care and; the positioning, in the face of the pandemic, of digital platforms and virtual social networks, largely responsible for encouraging and providing information for carrying out the viatic ventures of many backpackers.

Keywords: Tourism, Pandemic, Backpackers, Hostel, Mobilities.

Mobilidade e Covid-19

A experiência social contemporânea, dentre suas marcas, apresenta a da intensa mobilidade como um de seus fundamentais elementos estruturantes. Um breve olhar para as cenas cotidianas dos mais diversos locais, portanto, parece ser capaz de indicar um mundo forjado pelo fluxo contínuo não apenas de sujeitos plurais, mas igualmente de variados objetos. Pessoas em busca de asilo político ou sob deslocamentos diaspóricos, homens de negócio, estrelas do esporte ou das artes, estudantes internacionais, membros das forças armadas, migrantes e turistas, bem como armas, marcas, alimentos, medicações, dispositivos tecnológicos, informações, ideologias e doenças, estão em constante trânsito, exemplificando uma espécie de “avizinhamento” de partes antes mais distanciadas do Globo.

Importante destacar, no entanto, é o desafio que se impõe no intuito de pensar tais fluxos de coisas e pessoas para além da simples admissão do movimento. Como assinala Cresswell (2006), o agora é constituído por um complexo emaranhado de movimento, imaginários sociais e experiências, devendo, assim, ser considerada a dimensão política da mobilidade em qualquer esforço de análise social. E é, justamente, desse sentido que o presente artigo busca partilhar ao lançar-se, ainda bastante inicialmente, para o terreno de encontro entre os estudos turísticos e as ciências sociais, mais especificamente ocupando-se por refletir sobre alguns dos efeitos da pandemia do COVID-19 entre viajantes (auto)denominados de mochileiros ou backpackers.

Escusado dizer que a pandemia – ainda em curso, não obstante alguma cruel retórica negacionista – instaura-se como um dos eventos mais catastróficos do mundo atual ao ceifar milhares de vidas, acirrar tensionamentos políticos e desestabilizar uma multiplicidade de economias, atuando sempre em regime global, em escala planetária. Com a reconfiguração das lógicas de fronteira, físicas e simbólicas, robustas expressões de violência tomaram corpo em um sem-número de lugares, dando vazão a discursos e práticas de xenofobia e racismo, consolidando, inclusive, disposições necropolíticas (MBEMBE, 2019) por parte de alguns Estados. Como produções sociais, as mobilidades turísticas igualmente sentiram tais efeitos, acenando para a necessidade de serem pensadas na ultrapassagem de seus danos econômicos, do mero reconhecimento de que “chegadas e partidas” escassearam, interrompendo os índices de crescimento histórico da referida “indústria”.

Assim, o exercício reflexivo aqui proposto, em muito, é tributário de um diálogo com o “paradigma das novas mobilidades” (SHELLER & URRY, 2006) em que as viagens configuram possibilidades de tratamento não apenas do movimento de um ponto A para um B, mas de posicionamento central de temáticas tais como desigualdade, poder e hierarquias, assim como territórios, fronteiras e escalas, para compreensão deste mundo em permanente trânsito. Soma-se ao exposto, uma preocupação em pensar as relações entre as práticas de mobilidade e as experiências de imobilidade que sustentam estes próprios regimes de circulação. Há, portanto, uma “política de significado” da mobilidade, também tendo Cresswell (2006) como interlocutor, que se impõe aqui como desafio a ser enfrentado compreensivamente.

Em termos mais empíricos, são as mobilidades mochileiras que serão tratadas neste artigo mais privilegiadamente, uma vez que o universo discursivo “ideal” que as envolve é, justamente, defendido como sendo oposto ao das práticas racistas e de xenofobia. Ou seja, em linhas gerais, os deslocamentos dos mochileiros são marcados por uma abertura à diferença, reconhecendo-a também como dínamo de aprendizado: seja ele convertido em capital cultural ou dispositivo de mudança pessoal, operando como parte de uma espécie de rito de passagem (MONTEIRO SILVA, 2018).

Tais empreendimentos viáticos, buscando situar-se na contramão das práticas mais institucionalizadas de turismo, tem o contato – entre demais viajantes e entre estes e as comunidades visitadas, sobretudo – como um de seus principais fundamentos, apresentando-se como uma experiência completamente desestabilizada e, por vezes, impedida de realizar-se diante da necessidade dos distanciamentos e isolamentos sociais instituídos, em diversas localidades, como medida de combate ao COVID-19. Essa desestabilização, importante indicar, promove uma série de tensionamentos (especialmente, se considerarmos as vivências de sujeitos já em trânsito durante a pandemia) relevantes também para as análises aqui propostas.

Entre os anos de 2011 e 2015, no contexto de um doutorado em sociologia, desenvolvi uma pesquisa de inspiração etnográfica sobre viagens “independentes” de longa duração, estabelecendo íntima interlocução com um significativo número de sujeitos que estavam em trânsito, com suas mochilas, já por diversos meses ou alguns anos. As informações que balizam este artigo derivam, em grande parte, da retomada de contatos com tais viajantes, muitos empreendendo novos deslocamentos ou mesmo dando continuidade aqueles nos quais os conheci, inclusive sendo impactados em seus percursos pelos efeitos da pandemia. Outro relevante corpus de informações está em construção a partir de minha presença em plataformas digitais e redes sociais que tem o turismo mochileiro como uma de suas fulcrais temáticas de trabalho e discussão, a saber: Couchsurfing. Matadornetwork; Mochileiros.com .; Thorn Tree – Lonely Planet[1].

Mobilidades turísticas: “definindo” a experiência mochileira

Nas últimas décadas, as viagens “independentes” vêm crescendo em popularidade, desmobilizando, inclusive, um imaginário moral que a desqualificava por ser uma atividade empreendida, unicamente, por “hippies” ou por outros “desenraizados” (O´REILY, 2006). O desenvolvimento das tecnologias de comunicação e transporte, bem como o barateamento das passagens aéreas, contribuiu para o consumo ampliado desse tipo de viagem que, para alguns analistas, até mesmo, apresenta-se como uma espécie de rito de passagem (NOY; COHEN, 2005) ou oportunidade para aquisição de outras modulações de capital, aproveitadas – no limite – no regresso dos viajantes ao assumirem suas carreiras profissionais (TSAUR; YEN; CHEN, 2010).

Desse modo, aqueles que empreendem viagens “independentes” de longa duração – conhecidos como backpackers, notadamente, pela indústria turística internacional e como mochileiros, no Brasil – podem ser caracterizados, primeiramente, em relação à qualidade não institucionalizada de sua prática (COHEN, 1972). Eles assumem a organização “independente” de sua viagem, evitando, portanto, a compra de “pacotes turísticos” ou a mediação das agências turísticas. Ao configurar “independentemente” seus deslocamentos, procuram mobilizar valores como autonomia e flexibilidade, o que os permite, inclusive, trocar itinerários, desfazer planos, reformular horários etc.

Tais níveis baixos de planejamento antecipado (O´REILY, 2006), igualmente, possibilitam a extensão de sua permanência em uma dada localidade, o que pode ser motivada pelos encontros vividos em sua trajetória. Ou seja, certa abertura para a casualidade, para as relações que possam vir a ser construídas, mesmo que de forma efêmera, na viagem, também, é tomada como uma espécie de valor estruturante da prática. A natureza desses contatos, é importante destacar, não se faz unicamente em relação a outros viajantes, demais indivíduos em trânsito, mas também no que se refere às tentativas de vivenciar um pouco das rotinas dos lugares que se visita, engajando-se nas atividades cotidianas locais (PEARCE, 1990).

Ensaiando aqui uma tentativa preliminar para definir tal prática de viagem, por fim, deve-se mencionar o fato de que o tipo de deslocamento em questão tende a ser contabilizado em meses, às vezes em anos, e não em dias, o que caracterizaria possivelmente um deslocamento restrito aos períodos de férias ou feriados alongados. Se há uma tentativa de estabelecer um contato maior com os locais visitados ou experimentar um período de alegado autodesenvolvimento, de aquisição de novas habilidades (ATELJEVIC; DOORNE, 2004), a estadia reduzida seria talvez um óbice para tal forma de viajar. No entanto, a permanência na estrada por tempos alargados (uma permanência de “longa duração”), impele – pelo menos um considerável número de viajantes – a adotar algumas restrições orçamentárias; nesse sentido, é que albergues (hostels), campings ou “casas de conhecidos”, apresentam-se como espaços de acomodação privilegiados, bem como a utilização de transportes públicos e/ou de baixo custo (como ônibus, trens e até caronas).

Embora as características elencadas possam ser tomadas enquanto constituintes de uma categoria, vale frisar que não se deve admitir um a priori, uma noção substancialista, normativa, de viagem “independente” de longa duração.

Mochilando em tempos de pandemia: dilemas éticos, relações de conflito e troca

O decreto da Organização Mundial de Saúde (OMS), de março de 2020, informando que a COVID-19 (SARS-CoV-2) se consolidava enquanto pandemia, exigiu posicionamentos de todo mundo no sentido de combate ao citado vírus. Com uma taxa de mortalidade altíssima e uma capacidade de transmissão também bastante potente, a doença ainda desafia o Globo, a partir de suas novas “ondas” de contaminação, de modo muito dramático. Uma das ações mais concretas em termos de evitação de sua propagação, podendo ser notada em uma vasta extensão territorial, foi a suspensão dos deslocamentos que não eram imprescindíveis e o recrudescimento de fronteiras tanto entre países quanto no que diz respeito a cidades e povoados.

Sob esse contexto de suspensão, sujeitos que estavam de “malas prontas” foram impelidos a desmarcar ou remarcar suas viagens, compreendendo nesse processo de impossibilidade de deslocamento um conjunto de prejuízos no que tange ao turismo como atividade econômica em sua acepção mais ampla: eventos comerciais e de entretenimento, bares e restaurantes, alugueis de transporte e redes de hospedagem foram diretamente atingidos pelo presente cenário de crise. E muito embora haja uma série de esforços, por parte de governos e órgãos internacionais, a concretização de uma abertura da atividade permanece sob suspeita por conta dos índices de reincidência de contaminação que alguns países, como a China e o próprio Brasil, experimentam nas últimas semanas.

Contudo, para além desses sujeitos que tiveram de adiar seus planos de viagem, existem aqueles que estavam em trânsito já à altura do decreto da pandemia, tendo seus deslocamentos ganhado contornos também bastante delicados nesse momento. Conversando com alguns mochileiros, junto com os desafios mais práticos do cotidiano, ergueram-se questões, por alguns, consideradas cruciais para o entendimento do denominado turismo backpacker como (não)ético (SPEED, 2008), bem como foram vivenciadas tensões entre estes e algumas comunidades locais que os hostilizavam, representando-os como responsáveis pela disseminação do vírus. Por outro lado, redes de solidariedade também puderam ser observadas em determinados espaços, envolvendo viajantes que estavam em regiões próximas que se reuniram para se apoiar mutuamente e, igualmente, atores locais, mobilizados a oferecer, principalmente, suporte de hospedagem e a alimentação aos primeiros.

Marc, mochileiro inglês que conheci quando desenvolvia a pesquisa para minha tese e com quem retomei contato no último ano, explicitou em uma de nossas conversas o que entendia ser um profundo dilema para as viagens “independentes” dentro desse cenário de pandemia: ele afirmava que “ser mochileiro, ser viajante, é diferente de ser turista” porque havia algo menos predatório ao centrar seus deslocamentos em uma relação mais íntima com as comunidades locais, participando de suas atividades, contribuindo para sua economia e não ficando refém de agências ou pacotes turísticos. Para ele, então, a dimensão do contato mais aproximado com os “anfitriões”, sujeitos do lugar, gerava preocupações e responsabilidades ainda maiores com a pandemia, sobretudo, quando se tratava de destinações com pouca infraestrutura de saúde, distantes de grandes centros que poderiam oferecer maiores cuidados a um possível habitante contaminado.

O fato, portanto, de estar em contato, estar em relação com pessoas do lugar visitado, vindo – o que é comum entre esse tipo de viajante – de longos períodos de trânsito, cruzando outros territórios onde se relacionava com outros tantos sujeitos, o tornava um legítimo agente de transmissão, um “risco de mochila”, em suas palavras, que “precisava voltar para casa tão logo fosse possível”. Nesse sentido, para o inglês, a frustração de voltar para casa quando ainda restariam meses de viagem não poderia ceder lugar ao dever ético frente às comunidades a se visitar. Por seus próprios recursos, com auxílios de familiares ou mesmo por voos de repatriação, ainda de acordo com Marc, era preciso procurar meios de retornar à sua comunidade de origem e encerrar o trânsito, viajando unicamente “pelas memórias ou pelos escritos” por algum tempo.

Uma posição distinta da acima explicitada me foi apresentada por um viajante alemão, chamado Oliver, com quem só estreitei laços nos últimos meses, embora o conhecesse desde os tempos em que residia em um hostel na cidade do Rio de Janeiro. Perguntado se a pandemia o endereçava alguma questão ética quanto à manutenção de suas viagens, o alemão – de modo bastante direto – me respondeu negativamente, ao passo em que completou: “Os viajantes estão dispostos a correrem riscos e são vários, se quiséssemos algo menos arriscado optaríamos por uma viagem de férias com guias e tudo mais”. Tal dimensão do risco, é bem sabido, configura também um expediente de sedução para o empreendimento de modalidades diversas de turismo, tais como o de aventura ou mesmo o do ecoturismo. Contudo, ao ser novamente perguntado sobre sua compreensão acerca de um risco que poderia por sua própria vida em xeque, Oliver respondeu afirmando haver muito pânico e que isso não iria inibir seu “desejo de ver o mundo”.

Quando questionado sobre o impacto de sua presença nas comunidades visitadas, Oliver afirmou estar viajando, no momento, apenas por “grandes cidades”, tomando os “devidos cuidados”, mas sem “surtar”. E que estava, ainda, em constante monitoramento das fronteiras para que pudesse continuar sua jornada “como fosse possível”, mesmo considerando os fechamentos das mesmas e as mudanças dos planos iniciais: “Não me incomodo em ter de mudar algum itinerário, me incomodo em não ter a possibilidade de me mover”. Por fim, afirmou que havia passado bastante tempo “trabalhando naquilo que não gostava” para economizar dinheiro para seu périplo, enfatizando não estar disposto dele desistir.

Enquanto Marc, então, ocupava-se com preocupações de cunho ético, inclusive sustentando ter de lidar com suas frustrações para não prejudicar comunidades visitadas ou a se visitar, Oliver deixa transparecer uma disposição hedonista em suas falas, muito marcada por uma vontade de fruir as experiências do mundo, a despeito dos riscos, para si e para outros, que isso possa acarretar. Uma noção individualista de viagem, portanto, aqui se impõe no extremo oposto de um posicionamento alegadamente mais comprometido e mais responsável. Tais dilemas, é importante reportar, fazem com que “mochileiro” se torne efetivamente uma categoria em que as manifestações práticas se furtam às homogeneidades, interpelando seu ideário mais romântico ou revolucionário. E desse modo, considerando os tensionamentos no próprio campo de uma prática de viagem, começam a surgir mobilizações distintivas: sujeitos se denominando como viajantes (WEEK, 2012; O´REILLY, 2005), por exemplo, reivindicando-se como diferentes de mochileiros, agora muito mais alinhados ao mainstream que marcaria o turismo tido como convencional, institucionalizado ou de massa (COHEN, 2003).

Associado às contradições e disputas mencionadas, o contexto da pandemia atual também vocalizou uma considerável soma de relação hostis entre viajantes e comunidades anfitriãs e entre viajantes e governos locais. Nos fóruns de discussão como o Thorn Tree, do famoso guia de viagens Lonely Planet, algumas narrativas de ofensas dirigidas aos turistas foram partilhadas: elas consistiam em atribuições de responsabilidade pela transmissão do vírus que tomavam uma forma verbalizada (“voltem para casa, Coronas!”; “vocês não são bem-vindos aqui!”), bem como ganhavam corpo nos olhares descritos como “ameaçadores” por parte das populações dos destinos e nas dificuldades impostas para se comprar comida e solicitar a extensão de períodos de hospedagem. Alguns sujeitos, inclusive, indicavam enorme anseio diante da pressão que donos de estabelecimentos comerciais, sobretudo de acomodações, sofriam para que impedissem a manutenção das estadias dos viajantes.

Governos de países como a Austrália e Nova Zelândia, consagrados emissores e também receptores de backpackers, endureceram discursos no intuito de exigir que os mochileiros cumprissem os protocolos de saúde. Controle de períodos de “quarentena” para os recém-chegados, blitz em albergues, aplicação de multas, indicação de realização de isolamento social em fazendas de produção de frutas, situadas fora dos grandes centros, e até deportações foram algumas das ações mobilizadas por vários Estados. Habitantes das destinações turísticas, por seu turno, afirmavam que mochileiros não se interessavam pela saúde local, centrando-se na continuidade de aglomerações festivas, sem uso máscaras e sem qualquer respeito aos altos índices de mortalidade localizados em inúmeras regiões[2].

A instauração de um registro de relações hostis entre viajantes e moradores das comunidades anfitriãs, como aponta uma significativa literatura (KOCK, JOSIASSEN & ASSAF, 2016), tem como um de seus principais efeitos a produção de ranhuras nas imagens das destinações turísticas. Como pontuado por Urry (2001), o olhar do turista é construído por uma conjunção de forças diversas, cujo resultado é a elaboração de uma imagem do local a ser consumido que se impõe como parâmetro para a satisfação daqueles que para ali viajam. A desestabilização da imagem de determinado lugar, portanto, afeta diretamente os processos de tomada de decisão dos turistas, suas escolhas, podendo minar suas possibilidades enquanto destino, o que ocorre quando repercutem acentuados conflitos políticos, práticas terroristas, desastres naturais e, como é o caso, doenças (ALVAREZ & CAMPO, 2014).

Admitido como uma importante valência econômica para múltiplos territórios, o turismo é interpelado, portanto, na medida em que não se sustenta pelo desencadeamento de severos conflitos, sendo este mais um desafio dos tempos hodiernos: reestabelecer uma prática sob novos contornos, envolvendo pactuações entre atores plurais. Esse é um chamado que parece subjazer às expressões de solidariedade que, igualmente, podem ser notadas frente aos impactos do Covid-19 em algumas destinações turísticas. A mobilização de redes coletivas de apoio, via CouchSurfing, surge como um exemplo interessante de se destacar: como uma plataforma de oferecimento de hospedagens gratuitas, onde a ideia de “partilhar o mundo” é viabilizada pela “partilha de um sofá”, como explicou um de seus usuários, ela faz/fez comunicação entre sujeitos que precisavam de acomodação urgente no referido contexto e anfitriões que tinham a possibilidade de os receber por tempo alargado, considerando a imprevisibilidade que caracteriza a pandemia.

Alguns desses relatos podem ser encontrados não apenas nos perfis dos usuários na citada plataforma, mas no próprio espaço do Couchsurfing em redes como o Instagram. As narrativas de viagem durante a pandemia, reconhecendo a experiência de acomodação proporcionada por habitantes locais por meio dos “sofás”, é sublinhada como algo da ordem do único, uma oportunidade de aquisição de outros olhares para o mundo. Se a viagem em si, no sentido alegado por vários mochileiros, é ferramenta de conhecimento, o dano causado pela COVID-19 também pôde tornar-se pavimento para mudanças de perspectivas, para mais extensos e intensos engajamentos com a diferença, para uma maior abertura à alteridade.

Novas (i)mobilidades mochileiras

Os deslocamentos mochileiros, como as demais expressões de mobilidades presentes no cotidiano, não se fazem apenas a partir de sua liquidez, de seu caráter fluido. É válido frisar, uma vez mais na interlocução com Sheller (2016), que as mobilidades são sempre localizadas, tributárias de processos de (re)territorializações conformados, por sua vez, a partir de rearranjos das materialidades dos lugares. Essa é uma outra contribuição bastante potente do “paradigma das novas mobilidades” (SHELLER & URRY, 2006): o oferecimento de uma lente analítica que não celebra apenas o movimento, mas ocupa-se das relações assimétricas que o produzem e dele são efeitos, bem como considera os aspectos materiais necessários para a garantia do dinamismo tanto de pessoas quanto de objetos, ideas e informações.

No que diz respeito à mobilidade backpacker, no intuito de perseguir um entendimento mais alargado e encarnado das repercussões da pandemia em suas práticas e significados, seria um grande equívoco não nos debruçarmos sobre as “estruturas” que estimulam, oportunizam, permitem ou, no limite, sustentam tais empreendimentos viáticos. Os hostels, as redes sociais (com suas “comunidades virtuais”) e os sítios eletrônicos (como blogs), que detém sua especificidade ancorada nas narrativas de viagem, são exemplos relevantes de pontos de “paragem” no circuito de fluxos em questão. Isso posto, é escusado dizer que tais materialidades também foram substancialmente afetas pela consolidação da COVID-19, o que resultou em tentativas de reconfiguração de seus modelos de atuação.

Para um amplo número de viajantes, os albergues (hostels) apresentam-se como lugares privilegiados de hospedagem porque, em sua maioria, são fundamentados pela ideia de interação. Sem dúvida, soma-se a isto alguma preocupação orçamentária, sendo aqueles menos custosos que hotéis, em sentido geral. Todavia, ao longo das conversas que tive com mochileiros oriundos de diversos países, o hostel – via de regra – ocupava uma posição de centralidade em seus trânsitos, justamente, por não apenas permitir, mas principalmente estimular contato: contato entre os viajantes em si; entre viajantes e membros da comunidade local, por exemplo, nas dependências de bares abertos ao grande público e; entre viajantes e funcionários (staff), muitos deles também mochileiros experimentando o trabalho nesses espaços de acomodação como possibilidade econômica de retomar seus próprios deslocamentos (MONTEIRO SILVA, 2018).

Assim, à título de ilustração, na lógica dos albergues não se reserva um quarto e sim uma cama. A ideia de reservar um quarto diz respeito ao consumo privado do espaço da dormida, próprio de hotéis ou pousadas. No hostel, a unidade básica com a qual se trabalha é a cama; ela é o objeto de consumo primário que se situa, por seu turno, em um ambiente (quarto ou dormitório) que será ocupado por distintos hóspedes. “Fragmentar” o quarto, transformá-lo em dormitório coletivo, portanto, é o princípio que rege a redução das tarifas de pernoite. Quanto mais camas existirem em um dormitório, ou seja, quanto mais “fragmentado” for o espaço, menor será o preço cobrado por cada noite de estadia. Nesse sentido, é que se encontram variações, por vezes, significativas nas tarifas dentro de um mesmo albergue: elas dependem do número de camas e, igualmente, dos serviços (como banheiros internos ou disponibilidade de ar-condicionado) presentes no dormitório.

No entanto, é precisamente essa experiência coletiva de pernoite o que oportuniza e motiva o estabelecimento de um conjunto plural de relações entre os viajantes. Muitas vezes suspendendo uma trajetória “solo”, a vizinhança de camas aparece como possibilidade de fruição de uma parceria que pode ser bastante efêmera (durar o tempo do consumo de algumas cervejas no bar do próprio hostel) tanto quanto ganhar contornos mais dilatados: são comuns as narrativas de sujeitos que passaram a partilhar itinerários, mudando planos anteriores, a partir dos engajamentos vivenciados nas ambiências de um dormitório coletivo. Trocas de informações sobre destinos já visitados, alertas de perigos ou riscos em determinadas localidades e sugestões de acréscimos ou reduções em roteiros também são ali objeto de realização.

A decisão de alojar-se em um lugar como um albergue, portanto, não ocorre de forma “acidental”. A experiência do que Aubert-Gamet e Cova (1999) chamaram de “proximidade comunal” é definidora dessa escolha, configurando-se, inclusive, ainda segundo os autores, como um elemento de distinção mobilizado pelos usuários de tal espaço frente àquilo que caracterizaria o que foi denominado de “turismo de massa”. Há, assim, um regime de “co-presença”, de interação “face a face”, que permite, como apontado, intercâmbios de “produtos” diversos: trocam-se informações, mas também se intercambiam ideias e narrativas de aventura, bem como – dentro desta ambiência – afetos, amizades e novas companhias para as próximas etapas de uma viagem podem surgir. Esse regime relacional baseado na co-presença, no entanto, não se centra, apenas, na prática de se partilhar um quarto, o que poderia aparecer como característica mais marcante desses lugares. Outros tantos espaços que compõem a estrutura dos hostels (como cozinhas, salões de jogos, salas de TV, bares, quintais e jardins) são igualmente divididos, resultando em uma “proximidade comunal” que desce os beliches e ultrapassa as soleiras das portas dos dormitórios.

Contudo, essa experiência de partilha, atualmente, é posta em xeque pelo alto grau de transmissibilidade da COVID-19. Os protocolos de saúde, em todo o mundo, são configurados por práticas de distanciamento que, muito contundentemente, abalam a possibilidade do “estar junto”. Em alguns discursos, então, os albergues deixam de ser espaços desejados para serem legítimos territórios de evitação. E o que se fazer, diante do cenário atual, com um sistema de acomodação cuja principal marca são os processos interativos? Essa pergunta ecoou entre diversos proprietários e gerentes de hostels que afirmaram haver uma gradação nos efeitos da crise: se a hotelaria experimentava um momento de extremo desafio, a “hostelaria” parecia estar com seus dias contados. Nesse sentido, uma série de reconfigurações foram conduzidas, bem como diversas unidades por todo o país fecharam suas portas.

A primeira e talvez mais dramática, pelo menos em termos financeiros, reconfiguração nos hostels foi a redução do número de camas disponíveis nos dormitórios. Seguindo-se a isto, como medida de segurança, os demais espaços coletivos – como cozinhas e bares – foram fechados, bem como se instituiu a suspensão de múltiplas atividades de congregação que compunham muito fortemente o cotidiano dos albergues, tais como churrascos, campeonatos de sinuca, maratonas de filmes, festas temáticas e jogos coletivos. Aqueles que não fecharam, e esse é o caso de alguns dos que residi enquanto fazia trabalho de campo para o doutorado, agregaram outras atividades ao negócio: transformaram-se em acomodação para mensalistas, espaços para coliving, converteram suas cozinhas e bares em serviço de delivery ou mesmo substituíram seus dormitórios por salas de coworking.

Tais modificações precisam ser ainda mais profundamente examinadas, uma vez que não nos endereçam unicamente questões econômicas. Ao contrário, elas desestabilizam um conjunto de relações e de valores (tais como os de contato e interação) que definem um modo de viajar e, para alguns, uma maneira de estar no mundo a partir das experiências de viagem. De acordo com O´regan (2010), sobre os hostels também se ergue um imaginário de liberdade, tolerância, cooperação, vivência comunitária etc. que engendra uma performance, que produz o próprio ser em trânsito, mesmo não negando a existência de ocasiões plurais em que contradições se inscrevem entre tal imaginário e o regime de práticas e condutas concretas (sociabilidades conflituosas, hostis, também tem enorme lugar no fluxo das viagens mochileiras).

Outros exemplos de mudanças no tratamento das circulações, na lida com as disposições viáticas, situaram-se nos ambientes virtuais. Redes sociais, como o citado Couchsurfing, além de apresentarem-se como veículos de sociabilidades solidárias (casos aqui destacados), engajaram-se em campanhas de suspensão de viagens, mas preocupando-se em manter o “desejo pela a estrada” ainda aceso. Desse modo, no curso de várias de suas publicações, pode ser observado um chamado para que os usuários partilhassem registros de viagens anteriores: fotos panorâmicas, tematizando paisagens naturais, evocando a importância do “resguardo” e da “quietude” compuseram uma das coleções mais emblemáticas, operando no sentido de estimular a interrupção momentânea dos deslocamentos sem deixar de representar as “belezas do mundo”.

A Matador.network, sítio eletrônico conformado por narrativas de viagem que abordam múltiplas temáticas, também se preocupou em publicar artigos contendo reflexões sobre os desafios atuais. Uma série de produções, por exemplo, constitui-se como oferecimento de “conselhos de saúde” e “dicas de atividades” para serem realizadas em ambiente doméstico enquanto não se pode viajar: yoga, culinárias regionais, informações sobre livros e documentários de viagem, figuram como alguns dos exemplos. Blogsde viagem, por seu turno, se viram interpelados pela impossibilidade de produzir seus conteúdos específicos e pela consequente redução de seus rendimentos, advindos de parcerias com agências de viagens, redes de hospedagem ou seguradoras. Clubes do livro (onde os assinantes ganhavam acesso a edições de literatura de viagens), concurso de contos, cursos de gerenciamento dos próprios blogs de viagem e um sem-número de lives com analistas de mercado, empreendedores do turismo e viajantes foram algumas das ações também mobilizadas por essas plataformas.

Interessante é perceber que as formas hodiernas de atuação dos sítios eletrônicos e das redes sociais, interessadas no tema dos deslocamentos, acenou para necessidade de se pensar de modo ainda mais íntimo acerca do papel das “viagens imaginativas” (URRY, 2007) no contexto mais ampliado das mobilidades. Os contos, as memórias, as fotos e os filmes publicados ou partilhados nos referidos espaços oportunizaram acessos a outros lugares, impossibilitados de serem visitados fisicamente. Desse modo, pela imaginação, aquilo que P. Theroux (2012) chamou de “a importância de alhures” continuava mantido, “alhures” permanecia um local onde se queria estar. E, por fim, é indicativo já em alguns discursos de mochileiros que a intensificação das “viagens imaginativas” irá repercutir de modo bastante concreto nos deslocamentos físicos, quando estes forem novamente possíveis, ao assinalarem “novos destinos”, muitos deles ainda off the beaten track (WELK, 2004).

É o fim do turismo?

Em notícia publicada ao final do mês de outubro de 2020, quando a pandemia experimentava um de seus picos mais dramáticos, a Organização Mundial do Turismo (OMT) divulgou a alarmante constatação de que o citado ano apresentava uma redução de mais de 700 milhões de chegadas em relação a 2019 (o último antes do estabelecimento mundial da COVID-19), implicando um vultoso prejuízo para a atividade de exportação do turismo internacional estimado em mais de US$ 730 bilhões. A OMT, ainda, disponibilizou dados referentes ao impacto da pandemia nos contextos dos negócios turísticos em todos os continentes, revelando a necessidade de ações coordenadas para a reconstrução do setor, sobretudo, baseadas em princípios de sustentabilidade e responsabilidade[3].

Esse delicado cenário (ainda em curso), contudo, talvez possa ser melhor compreendido na medida do reconhecimento e da mobilização de contribuições investigativas advindas dos campos das Ciências Sociais. Desse modo, para além da utilização única das representações estatísticas e das análises macroeconômicas, parece fundamental o empreendimento de esforços de pesquisa informados também por uma perspectiva daquilo que M. de Certeau (1994) chamou de “rés de chão”. O nível das práticas dos sujeitos protagonistas das viagens, os tensionamentos presentes no cotidiano dos sistemas de hospedagem ou transporte e as inventividades inscritas nos demais espaços de sustentação das mobilidades turísticas (como os blogs e outras expressões de redes sociais em âmbito virtual), logo, figuram como matéria privilegiada de exame rumo à construção de uma reflexão mais encarnada, com maior vitalidade, que saia da obviedade do simples decreto de crise.

Ainda muito inicialmente, reconhecendo a carência de maior aprofundamento em variados pontos, o presente artigo buscou inscrever-se nesse movimento reflexivo que se ocupa, primordialmente, de uma espécie de “fazer-viagem”, reconhecendo a importância de se pensar o turismo a partir dos movimentos dos próprios viajantes e de seus processos de dotação de sentido no que diz respeito aos deslocamentos que experimentam no atual contexto de pandemia. Em conjunto com a preocupação dirigida às viagens em si, há aqui também uma tentativa de as posicionar em um circuito de mobilidade mais amplo, sustentado por “atamentos”, “ancoradouros”, como os hostels, por exemplo.

Como exposto, a empiria principal desse trabalho são as mobilidades mochileiras, compreendidas como experiências significativamente abaladas pela consolidação da pandemia por serem, sobretudo, discursiva e praticamente informadas por ideias de contato e interação, por uma performance que mobiliza uma multiplicidade de sentidos e não apenas o “olhar” (LARSEN & URRY, 2011). Tais impossibilidades de contato e interação, destarte, aparentam endereçar sérios questionamentos para a manutenção da prática em si, o que se estende às suas formas de hospedagem ou, de modo ainda mais alargado, a todo um segmento de turismo, denominado de backpacker. Seriam, então, os empreendimentos mochileiros ainda viáveis? A resposta a esse questionamento talvez só possa ser ensaiada se temas como mudanças no comportamento dos turistas e das comunidades anfitriãs, diante de situações concretas de risco, tornarem-se “objeto” de um olhar mais atento e delicado, o que implica também pensar sobre o turismo enquanto atividade dinâmica, composta por imaginários e representações que incidem diretamente em suas destinações.

E sob uma ótica mais geral, é válido frisar que a COVID-19 trouxe consigo duas vigorosas problematizações no que concerne às mobilidades. A primeira delas diz respeito à trepidação da retórica da “liberdade de circulação” que marcaria o mundo atual. Expressões de mobilidade estão sempre alinhadas com relações assimétricas de poder; “quem pode ser móvel?”, no entanto, parece ser uma pergunta nova dentro do contexto das práticas turísticas (MONTEIRO SILVA, 2016). É o recrudescimento das fronteiras nacionais e a imposição de um regime de circulação, que agora se aplica também aos turistas (e não apenas aos migrantes e refugiados, por exemplo), que exprime a indagação enquanto problema: escusado lembrar que, por nacionalidade, turistas são “barrados” em destinações, ocorrendo um processo de (des)qualificação/hierarquização entre países emissores (pensemos, provocativamente, nas diferenças de aceitação entre um visitante portador de um passaporte brasileiro e um detentor de documento neozelandês).

Por fim, retomando a interlocução com Sheller (2020), é necessário perceber que no curso da exigência de respostas à emergência instaurada, também, se inscrevem possibilidades de mudanças. A referida pesquisadora nos acena com a oportunidade de pensarmos, desde já, um processo de reconstrução do mundo social que passe por um outro registro da maneira de efetuar as mobilidades: menos poluente, mais ético, responsável e sustentável. E se, de fato, vivenciamos aquilo que Beck (2018) anunciou como a “metamorfose do mundo”, uma experiência radical de transformações bastante extensas – de ordem global, da qual ninguém parece conseguir escapar –, tal chamado deve ser encarado com extrema seriedade, concretizado a partir de ações criativas coletivas. Que lugar o turismo irá ocupar nesse movimento, então, é a dúvida a ser respondida a partir das disputas políticas e de significado mobilizados por diversos atores: população local, empreendedores, representantes governamentais, analistas e turistas. Assim, mesmo que paradoxalmente, subjazendo ao drama, surge um espaço de ação ainda em aberto.

Referências

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WELK, Peter. The beaten track: anti-tourism as an element of backpacker identity construction. In: RICHARDS, Greg; WILSON, Julie (Org.). The global nomad: backpacker travel in theory and practice. Great Britain: Cromwell Press, 2004.

Notas

[2] Como ilustração do exposto, um conjunto interessante de reportagens acerca dos temas acima destacados pode ser encontrado nos seguintes endereços:https://southeastasiabackpacker.com/corona-virus-southeast-asia/; https://www.dw.com/en/australia-asks-backpackers-to-leave-in-corona-induced-u-turn/a-53016943; https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/10/brasileiros-temem-esquecimento-no-camboja-e-no-laos- apos-ficarem-de-fora-de-voo-de-repatriacao-na-asia.ghtml
[3] Para mais, ver: https://www.unwto.org/es/news/turismo-internacional-cae-un-70-mientras-las- restricciones-de-viaje-afectan-a-todas-las-regiones; https://www.unwto.org/es/news/la-omt-reune-al- sector-turistico-para-planificar-el-futuro

Autor notes

I Doutor em Sociologia (UFC), Professor Adjunto do Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), vinculado aos cursos de Licenciatura em Sociologia e Bacharelado em Humanidades. Coordenador do Núcleo de Estudos das Performances Culturais e do Patrimônio Cultural Imaterial (PerformArte/UNILAB) e vice coordenador do Laboratório de Estudos da Oralidade (UFC). E-mail: igor.monteiro@unilab.edu.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3763-2442

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