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O Brasil por Imagens: Darcy Ribeiro com Glauber Rocha
Brasil a través de las imágenes: Darcy Ribeiro con Glauber Rocha
Brazil through Images: Darcy Ribeiro with Glauber Rocha
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 19, núm. 2, pp. 8-27, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 19, núm. 2, 2022

Recepção: 23 Abril 2023

Aprovação: 02 Maio 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: O artigo explora, a partir do encontro de Darcy Ribeiro com Glauber Rocha, certo campo imagético do Brasil que circula nos dois autores a fim de destacar uma visão mais radical dos problemas sociais do país desde as várias imagens textuais e cinematográficas produzidas pelas obras desses dois intelectuais brasileiros. Nossa aposta é que o encontro de Darcy com Glauber e o encantamento recíproco sintetizou a expectativa de ambos em relação à imagem de um Brasil profundo desconhecido do seu próprio povo.

Palavras-chave: Brasil, Cinema Novo, Atraso, Darcy Ribeiro, Glauber Rocha.

Resumen: Darcy Ribeiro estuvo presente en un momento crucial para la creación de un movimiento indígena de carácter interregional en Brasil, en un seminario que resultó en la creación de la Unión de Naciones Indígenas (UNI), en Campo Grande, en abril de 1980. En diálogo con los discursos del antropólogo en este evento y en la conocida polémica de 1979 con Roberto Da Matta, los dos autores, a partir de sus investigaciones sobre la historia del movimiento indígena en Brasil, discuten el significado de las acciones públicas y pronunciamientos de Darcy en el período de la redemocratización del país.

Palabras clave: Brasil, Cinema Novo, Atraso, Darcy Ribeiro, Glauber Rocha.

Abstract: This article explores, on the basis of Darcy Ribeiro's encounter with Glauber Rocha, a certain imagetic field of Brazil that circulates between the two authors, in order to highlight a more radical view of the country's social problems from the many textual and cinematographic images created by the works of these two Brazilian intellectuals. We assume that Darcy's encounter with Glauber and their shared enchantment synthesized the expectations of both of them in relation to an image of a deep Brazil that is unknown to its own people.

Keywords: Brazil, Cinema Novo, Backwardness, Darcy Ribeiro, Glauber Rocha.

Difícil acompanhar a unidade de um pensamento que perambula pelo Brasil a experimentar suas várias paisagens culturais e suas diversas formações e recomeços. É trabalho de leitura exaustivo navegar pela bússola de pensador inquieto que revira o solo de uma ‘nação’ que se estruturou sob a rubrica do sangue dos Índios, do trabalho escravo, do estupro de mulheres, do roubo de terras, da elitização de escolas e universidades, dos privilégios das famílias cujos laços se fortaleceram a partir da exploração do trabalho alheio. Não menos difícil é perseguir a letra crítica, densa, tensa e desconcertante à risca de um texto que traduz de forma singular a formação e estruturação da sociedade brasileira desde seu começo em regime de invasão, exploração, genocídio, escravidão e usurpação da força de trabalho dos nativos e dos escravos vindos de África. É tarefa indigesta a estômagos frágeis. A obra de Darcy Ribeiro se diz de uma trama, de uma urdidura, de um drama social cuja expressão mais significativa, para aquele leitor incauto acostumado à facilidade das epígrafes sem contexto literário, não é outra coisa senão a produção de uma multiplicidade de imagens do Brasil, do Brasil profundo à espera da consciência crítica a lhe revirar o solo. Trata-se de obra que se pode ler por imagens, malgrado o texto esteja lá em códigos gramaticais costurando as raízes do Brasil em novas linhas de pensamento, para além das raízes oficiais – ou contra elas –, de modo que uma visão em profundidade do processo civilizatório que se deu por terras brasileiras resta em campo imagético a partir do qual é possível ‘ver’ as mazelas de uma país arruinado por uma elite tosca, ao mesmo tempo em que, também a partir desse campo imagético, se pode ‘sonhar’ com um país por vir, com uma nova disposição da cultura em chave de igualdade social, um povo novo.

Se a ‘função’ do texto não é meramente informar, oferecer um código gramatical raso para fins de reconhecimento objetivo e superficial, seu lance mais excepcional é a produção de sentido multiplicada nas imagens que se podem formar desde os enunciados mais potentes. É certo que buscamos os pontos de referência em campo real, no mundo ‘concreto’, de modo a justificar a compatibilidade de um pensamento com um domínio de coisas. Re-cognição. Mas é certo também que as imagens nos lançam para o regime do sonho, do ainda-não, do talvez, do por vir. Darcy Ribeiro calculava bem sua utopia nessa aposta de que um pensamento crítico sobre o Brasil viria de uma conjunção de obras coletivas, de um trabalho exaustivo – em facetas diversas – a expor as vísceras o processo de formação do povo brasileiro. Talvez sua devoção intelectual a Glauber Rocha se deva justamente a uma produção estética que não se cansou de filmar em profundidade os efeitos-imagens de um país historicamente marcado pela fome, pela miséria, pela usurpação de terras, pela invasão europeia e pela dependência cultural e econômica do Brasil ao imperialismo norte-americano.

Darcy Ribeiro e Glauber Rocha, dois entusiastas do “Brasil por vir”, protagonizaram encontros e trocaram correspondências durante o período de exílio do primeiro. Considerado um dos mais importantes cineastas da história do cinema brasileiro, Glauber Rocha pode ser compreendido como o teórico do movimento Cinema Novo, que inaugurou novos cânones de expressão e linguagem cinematográfica no Brasil. Assim como Darcy Ribeiro, sua trajetória enquanto intelectual esteve intrinsecamente ligada à sua prática política. Em um de seus escritos, Glauber conta sobre o primeiro contato feito com o professor Darcy Ribeiro:

Conheci o Professor Darcy Rybeyro (era assim que Jango o chamava) em Santiago dos tempos de Salvador Allende numa visita que lhe fiz acompanhado por Norma Benguel. Em 20 minutos Darcy reduziu a História da Humanidade. Fiquei perplexo diante do Gênyuz. Queria fazer um filme! A fome do absoluto metaforizava a Utopia Brazyleyra. Sua crítica da queda de Salvador Allende é a melhor análise que se fez da tragédia chilena e provocou polêmicas entre as esquerdas latinamericanas. Antropólogo, romancista, professor, missionário e Santo eis como vejo Darcy Ribeiro ao som de Mozart. Pelas nuas praias de Montevideo e num quarto de hotel recebi as melhores aulas de minha vida - o privilégio de conviver com a maior sabedoria do mundo. Depois que Paulo Emílio morreu incorporei Darcy como meu Terceiro Pai Nacyonal. O primeiro é Jorjamado.

É possível, como afirma Anna Lee Rosa De Freitas (2007), atribuir a Darcy grande influência na interpretação e no interesse de Glauber sobre os acontecimentos que levaram à deposição de Joao Goulart pelos militares durante o golpe de 1964, tema esse abordado em seu filme Terra em Transe (1967). Outra influência perceptível a partir da análise dos escritos de Glauber é a contribuição de Darcy Ribeiro na sua compreensão de Casa Grande e Senzala, obra de Gilberto Freyre, que muitas vezes serviu de base sociológica para a sua cinematografia.

Foi o maior Debate Cultural da Década (a fita está com a jornalista Beth Carvalho, e a revista "Izto E" publicou uns trechos). Antes do Debate, em agosto, tive uma crise de Pankreatyvidade (AMILAZYS 70) - na mesma clínica onde morreu Carlos Lacerda, a "São Vicente", repouso de Vinícius de Moraes - ENTRE VIDA E MORTE, coloquei frente a frente meu PZYKALYSTA YUNG-FROIDIANO no divan de meu PZYKALYSTA REICH-LAKANIANO - recebi das mãos de Cacá Diegues e de Paula Gaetan o presente (o remédio) de Darcy: "CASAGRANDE E SENZALA", versão espanhola, made in Caracas, Fantazykamente prefaciada. Darcy desmascarou-me Gylberto. Vi Genyuz, curei-me lendo o Klazzyk Freyryano nas banheiras ferventes d'Eduard Maskarenhaz.

Se Darcy Ribeiro vislumbrava e teorizava sobre a construção de um Brasil possível, Glauber Rocha inventava um cinema brasileiro possível. A partir de uma linguagem cinematográfica original, disruptiva e adequada à escassez de recursos que marcava a produção do cinema brasileiro nos anos 1960, Glauber Rocha rompeu com a tradição do cinema clássico norte-americano, ao produzir imagens originais criadas com novas regras de encenação, composição de cenas, planos e montagem que se alinhavam a uma estética alicerçada na realidade social e cultural dos países latino-americanos.

Firmando-se como liderança principal do maior e mais importante movimento cinematográfico brasileiro, Glauber Rocha sintetizou o Cinema Novo na máxima “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. O lema simbolizava a liberdade de criação e experimentação propostas nesse novo cinema e determinava a posição política desse movimento que projetava a utilização dos meios de produção da arte na transformação social.

Caracterizado por produções de baixo orçamento, com uma linguagem própria, realista e substancial, o Cinema Novo fundou valores estéticos que fugiam dos interesses comerciais da indústria cultural e criavam uma identidade político-cultural para o cinema brasileiro. A despeito da clara influência dos movimentos de vanguarda europeus em seus filmes, como o Neorrealismo Italiano e a Nouvelle Vague francesa, Glauber defendia uma apropriação das técnicas desenvolvidas nos países ricos, mas que passariam a ser utilizadas na reinterpretação e reelaboração da realidade social do subdesenvolvimento nacional e latino-americano. Em uma espécie de antropofagia cinematográfica estaria a chave para superação do tradicional complexo de inferioridade do cinema e da arte brasileira frente às produções europeias e estadunidenses.

A proposta da criação de uma linguagem “terceiro-mundista”, em oposição ao modelo de cinema bem definido tecnicamente e importado de Hollywood, esteve alicerçada no cinema de Glauber e de seus colegas do Cinema Novo, que produziram filmes inseridos nos debates nacionalistas dos anos 1950-1960, a partir de uma estética “que teve como esteio os traços da pobreza que eram refigurados por suas câmeras”. Nesse sentido, deficiência técnica e baixo orçamento não seriam apenas marcas de um cinema precário, mas “uma forma de denúncia das condições materiais do próprio país onde eram produzidos” (SILVA JUNIOR, 2015, p.11). Esses filmes pretendiam, ainda, incorporar nas suas temáticas principais o subdesenvolvimento, as questões do neocolonialismo, do indígena, do negro, do sertão, da violência e da fome.

A proposta de Glauber teria, portanto, um interesse pedagógico, tanto no sentido de colocar os espectadores em contato com as mazelas do subdesenvolvimento e despertar a sua indignação, quanto no sentido de criar no público uma ligação mais visceral com a cinematografia local, pois os filmes retratavam as condições sociais na qual o espectador estava inserido. Criando o hábito, não apenas de assistir, mas de sentir e refletir que aquilo que é refigurado diz respeito ao espectador: as suas esperanças, medos e ideias. (SILVA JUNIOR, 2015, p.11).

Glauber denunciava a dependência da produção cinematográfica brasileira “oficial” aos interesses puramente comerciais de uma indústria nacional submetida às expectativas do público e que, por isso, falsificava a realidade utilizando imagens tão tranquilizadoras quanto ilusórias. Segundo o diretor, o Cinema Novo contestava essas produções convencionais, das quais os resultados costumavam ser:

[...] filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização (ROCHA, 2013, p. 2).

Reafirmando-se na contramão dessas produções, Glauber Rocha consagrou sua cinematografia a partir de narrativas que eram capazes de condensar os problemas sociais de seu povo em metáforas ou alegorias “capazes de desenhar o perfil de certas experiências históricas, oferecendo a imagem-síntese da crise vivida pelas suas personagens, com suas oscilações entre desencantos e esperanças” (XAVIER, 2011, p.15).

Na esteira da crítica cinematográfica de Glauber Rocha, numa intervenção no Simpósio sobre Ensino Público, por ocasião da 29ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em São Paulo em julho de 1997, Darcy Ribeiro traça o perfil da classe dominante brasileira reconstituindo peça a peça o quadro das obviedades ao qual o povo sempre esteve submetido, submisso e dependente. Não sem a ironia peculiar em seus discursos, Darcy Ribeiro faz o elogio da classe dominante brasileira no intuito de demonstrar, como ele mesmo diz, “toda a sua alta competência” na estruturação de um “Brasil como uma sociedade de economia extraordinariamente próspera” (RIBEIRO, 2015, p.17). A mais nítida das obviedades elencadas por ele diz respeito ao modo como o Brasil conseguiu, com bastante sucesso, produzir a si mesmo como um país dependente. Uma espécie de deliberação, um anseio pela subalternidade, um ímpeto ao servilismo estrangeiro atravessado por um desejo implacável de esvaziar o país de suas riquezas e entregá-las aos colonizadores, sejam europeus ou norte-americanos. Esse traço parece ser fundamental quando analisamos de perto os textos de Darcy Ribeiro. Não há um tema que tratado por ele isoladamente, o que é somente aparência, que não esteja coordenado pela perspectiva de construção do Brasil. Mas trata-se de uma construção em chave problemática, verticalizada a partir dos interesses sempre nefastos de uma classe economicamente abastada que soube, como ninguém, espoliar a força de trabalho dos povos escravizados, índios e negros, na elaboração de um projeto de país economicamente promissor. Desde a façanha genial em saber explorar as riquezas por meio da força de trabalho escravo, ou seja, produção a custo zero, passando pelo pioneirismo nos processos de independência na América Latina, a repressão ostensiva a qualquer tentativa de revoluções sociais, a Lei de Terras (1850) que determina a “compra” e o registro em cartório, até alcançar, também com sucesso, o prolongamento do fim da escravidão. O Brasil foi o último país a promover a abolição da escravatura.

O que essa genealogia do fracasso demonstra? Por que remontar às condições de possibilidade de um país tão vasto como o Brasil para diagnosticar suas mazelas? Que esperança pode trazer essa reconstituição, dado que ela só nos revela o pior de um país que tinha tudo para dar certo? Engana-se quem pensa que Darcy Ribeiro era partidário de um pessimismo nacionalista. Engana-se, do mesmo modo, quem pensa que ele era partidário de um contentamento sem fim com os resultados alcançados no processo de formação do Brasil. Não sendo nem uma coisa nem outra, uma chave de leitura plausível da obra de Darcy Ribeiro é a utopia. Há uma utopia em Darcy que salta de sua obra e de seus projetos com um vigor incomparável. O texto de Darcy lança o leitor numa viagem vertiginosa pelo Brasil profundo, aquele que nos foi negado no material didático do ensino básico e que continua sendo negligenciado no ensino superior. Mas é justamente essa vertigem que unicamente é capaz de traduzir as mazelas, as contradições, as aberrações, a exploração, o roubo, o grande projeto de uma nação que nasceu de joelhos e que se recusou historicamente a se levantar e caminhar com as próprias pernas. Então, parece que é disso que se trata, ao final das contas, na reconstituição das obviedades a que estamos acostumados; isto é, de uma vertigem necessária para recuperar o sentido de um projeto de país que pode dar certo e de uma potência histórica que não se perde no tempo e que se torna, no jogo memória-esquecimento, o combustível necessário para a retomada da utopia. E do mesmo modo que Darcy Ribeiro alimenta suas expectativas utópicas de um Brasil que pudesse resgatar sua memória social e política de uma nação culturalmente rica e próspera, Glauber Rocha projeta uma nova estética em sua obra a partir da qual pensaria os atravessamentos do subdesenvolvimento para superá-lo.

Em 1965, durante o Congresso Terceiro Mundo e Comunidade Mundial, sediado em Gênova, Itália, Glauber Rocha tornou público pela primeira vez o manifesto mais influente do cinema brasileiro, que receberia o título Eztetyka da Fome 65[1]. Como pensador crítico da produção artística nacional e internacional, o cineasta sistematizou as diretrizes do Cinema Novo e traçou estratégias para a articulação desse cinema que seria a expressão revolucionária do subdesenvolvimento. Suas reflexões não se limitavam às suas obras, mas partiam da proposta de criação de alternativas estéticas, econômicas e ideológicas para o cinema do “terceiro mundo”, potencializando as produções da América Latina e projetando-as internacionalmente.

Inserido no contexto dos anos 1960, seu manifesto estético-teórico adentrava os debates anticoloniais e colocava o Cinema Novo como um dos mais originais movimentos cinematográficos surgidos no pós-guerra[2]. Negando-se a ser puramente objeto de interesse antropológico e social no congresso europeu, Glauber subverteu as expectativas do público presente, aproveitando seu espaço de orador para apontar o interesse fetichista do mundo “civilizado” no subdesenvolvimento latino-americano:

Evitando a introdução informativa que se transformou em elemento constante nas discussões sobre a América Latina, prefiro pontuar o problema das relações entre a nossa cultura e a cultura “civilizada” em termos menos limitados dos que os que caracterizaram as análises do observador europeu.

(...)

O observador europeu se interessa aos processos de criação artística do mundo subdesenvolvido na medida em que estes processos satisfaçam a sua nostalgia do primitivismo; mas este primitivismo se apresenta de uma forma híbrida, herdada do mundo “civilizado”, mal compreendido porque imposta pelo condicionamento colonialista (ROCHA, 2013, p.1).

Tencionando as relações entre a produção artística latino-americana e o público estrangeiro, Glauber denunciava a incapacidade do cinema brasileiro de comunicar a verdadeira miséria vivida pelo seu povo, além da dificuldade desse espectador estrangeiro e do seu próprio povo em compreendê-la. Em sua perspectiva, o que o cinema e a arte vinham fazendo era uma comunicação de “mentiras elaboradas de verdade”, a partir de exotismos formais que banalizavam e vulgarizavam os problemas sociais. Sendo assim, a América Latina permanecia em situação de colônia na sua produção cinematográfica, com artistas castrados, dedicados apenas a exercícios formais em busca de uma universalização, não despertando nunca de um “ideal estético adolescente”. Para Glauber, o resultado desse condicionamento econômico e político aos países estrangeiros nos levava a um “raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso a esterilidade e no segundo a histeria” (GLAUBER, 2013, p.1 ).

Glauber defendeu uma originalidade trágica do Cinema Novo frente ao cinema hegemônico mundial na adoção da fome como cerne de sua estética. Uma estética da fome que seria, ainda, uma estética da violência. Interpretada na radicalidade da ruptura com a linguagem hegemônica do cinema clássico, mas também na adoção da violência “rústica” de seus personagens não como um primitivismo “pré-civilizatório”, como pensavam os europeus, mas como consequência da exploração colonial.

Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?

Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo; foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino. (ROCHA, 2013, p.3)

A postura radical do seu manifesto não abria espaço para a conciliação. A precariedade dos recursos deveria ser assumida na linguagem do cinema anticolonialista, pois a estética da fome seria aquela que não se preocuparia em disfarçar a pobreza, “mas a internalizaria na forma, encontrando uma duração, um ritmo de montagem, um estilo de iluminação que correspondesse à experiência da miséria e à condição de subdesenvolvimento” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2020).

O projeto artístico revolucionário de Glauber Rocha e do Cinema Novo, projetava uma função social para o cinema nacional que ia além da simples denúncia, mas o transformava em uma forte ferramenta da transformação social. Frente aos desafios de manter a sua arte revolucionária diante das transformações políticas e ideológicas, em 1971, Glauber lança um novo manifesto intitulado Eztetyka do Sonho. Se nos anos sessenta a radicalidade estava na estética da fome como uma estética de violência legítima, que levaria a compreensão do colonizador e do colonizado sobre a realidade social do terceiro-mundo, nos anos setenta Glauber afia a sua crítica tendo como alvo a própria “razão opressora do colonizador”. A adoção do irracionalismo na arte de vanguarda e do transe do misticismo popular seriam o meio para alcançar a utopia política.

A existência descontínua desta arte revolucionária no Terceiro Mundo se deve fundamentalmente às repressões do racionalismo.

Os sistemas culturais atuantes, de direita e de esquerda, estão presos a uma razão conservadora. O fracasso das esquerdas no Brasil é resultado deste vício colonizador. A direita pensa segundo a razão da ordem e do desenvolvimento. A tecnologia é ideal medíocre de um poder que não tem outra ideologia senão o domínio do homem pelo consumo. As respostas da esquerda, exemplifico outra vez no Brasil, foram paternalistas em relação ao tema central dos conflitos políticos: as massas pobres.

O Povo é o mito da burguesia.

[...] A colonização, em tal nível, impossibilita uma ideologia revolucionária integral que teria na arte sua expressão maior, porque somente a arte pode se aproximar do homem na profundidade que o sonho desta compreensão possa permitir.

A ruptura com os racionalismos colonizadores é a única saída. (ROCHA, 2013)

A Eztetyka do Sonho de Glauber projetava uma função libertadora da arte em relação ao pensamento tecnológico (e tecnicista) e progressista do mundo ocidental. A saída para a construção de uma arte realmente anticolonial estaria na negação dos modelos racionalistas que repreendiam qualquer manifestação do não racional.

A razão dominadora classifica o misticismo de irracionalista e o reprime à bala. Para ela tudo que é irracional deve ser destruído, seja a mística religiosa, seja a mística política. A revolução, como possessão do homem que lança sua vida rumo à ideia, é o mais alto astral do misticismo. As revoluções fracassam quando esta possessão não é total, quando o homem rebelde não se libera completamente da razão repressiva, quando os signos da luta não se produzem a um nível de emoção estimulante e reveladora, quando, ainda acionado pela razão burguesa, método e ideologia se confundem a tal ponto que paralisam as transações da luta. (ROCHA, 2013)

Nesse sentido, seria imprescindível um resgate das raízes indígenas e negras do povo latino americano que deveriam ser “compreendidas como única força desenvolvida deste continente”, uma vez que nossas classes médias e burguesias seriam apenas "caricaturas decadentes das sociedades colonizadoras”. A cultura popular deveria passa a ser vista não como folclore, mas como uma linguagem de permanente rebelião histórica. O resultado do encontro dos artistas e revolucionários desligados dessa razão burguesa com as estruturas mais significativas da cultura popular seria a “primeira configuração de um novo significado revolucionário”. Ademais, como afirmava Glauber, a arte revolucionária deveria “ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda”, por isso uma estética do sonho, já que “o sonho é o único direito que não se pode proibir” (ROCHA, 2013).

Um dos grandes legados de Darcy Ribeiro, que é também o de Glauber Rocha, está em nos alertar para a nossa conivência com esse escândalo que é o atraso cultural do nosso povo, com a miséria do povo brasileiro, do mesmo modo que o cinema novo de Glauber Rocha nos advertia para a dependência cultural do Brasil e o modo como a classe política se esforçava em abrir as compotas do entreguismo aos Estados Unidos. A letra do texto de Darcy Ribeiro não deixa dúvidas quanto ao cerne do problema nacional, o mais dos males a que o povo foi submetido desde a invasão europeia. Um exemplo sempre recorrente no discurso indignado de Darcy é o modo como a elite chucra culturalmente conseguiu se elevar à condição de uma elite abastada à custa da superexploração do trabalho. Uma prova disso está no fato de que uma das ideias mais fortes e vigorosas das elites brasileiras, principalmente as elites industriais, é a exportação de produtos. E nós, aqui embaixo, celebramos o fato de o Brasil ser o maior exportador disso e daquilo. Nos orgulhamos, sem cerimônia, do fato de o país se destacar entre os mais ‘produtivos’ do mundo. Mas logo em seguida a realidade nos chama à razão e nos apresenta o balanço geral desse processo. Como explicar que um país que é o maior produtor de soja do mundo, junto com os Estados Unidos, tenha seu povo passando fome? Como explicar que um país que é o segundo maior exportador de carne do mundo tenha seu povo passando fome? Como explicar que num país que tem um mercado imobiliário superaquecido, com a construção civil sempre em alta, um contingente expressivo de pessoas não tenha onde morar? Como explicar que um país que tem um dos maiores conglomerados de universidades públicas e privadas – mas deixo essas últimas sob suspeita –, com tantos pesquisadores financiados por agências de fomento, com tantos pesquisadores formados nas maiores universidades da Europa e dos Estados Unidos, não consiga fortalecer a universidade e protegê-la dos riscos inimigos? É preciso dizer, na questão geral, que a causa disso está, segundo a letra de Darcy Ribeiro, num certo discurso das classes dominantes que se estruturou na nossa sociedade.

É preciso entender bem, sem deixar-se iludir, que o discurso explicativo das classes dominantes, que ressoa por toda a parte, apesar de tão absurdo é da mais extraordinária atualidade e funcionalidade. Nele, se assentam políticas governamentais muito presentes. Por exemplo, a justificativa de que precisamos produzir para exportar é dada como uma compensação da nossa pobreza. A afirmação de que necessitamos de capital estrangeiro, quando é evidente que ele nos sangra e que somos de fato um país exportador de capital, também se funda na ideia esdrúxula de que somos, ainda, um país por fazer, uma área

Darcy Ribeiro, esse intelectual inquieto com um Brasil que não deu certo e que transfigurou toda a sua inquietude em imaginação política, em texto, em discurso e em imagens de um Brasil por vir. Criador do Parque Indígena do Xingu, na Amazônia, o Museu do Índio, projetou duas Universidades brasileiras e tantas outras em países da América Latina, esse nacionalista, inconformado com a superexploração do povo pelas elites, não cansou de esboçar em sua vasta obra um projeto utópico de um país em que as injustiças sociais fossem, em definitivo, superadas pela reorganização da política a partir de um ‘sentimento nacionalista’, que era também o sonho de Glauber Rocha, qual seja, aquele em que o país pudesse prosperar a partir das suas próprias virtudes culturais e econômicas.

Referências

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XAVIER, Ismail. A invenção do estilo em Glauber Rocha e seu legado para o cinema politico. In: Glauber Rocha e as culturas na América Latina. Ibero-Amerikaniches Institut, 2011. Disponível em https://publications.iai.spk-berlin.de/receive/riai_mods_00002489 . Acesso em 20 de abril de 2023.

Notas

[1] Título atribuído ao texto após sua publicação na Revista Civilização Brasileira em 1966.
[2] Diversos movimentos de vanguarda marcaram o cinema internacional no período posterior a Segunda Guerra, como o Neorrealismo Italiano nos anos 1950 e a Nouvelle Vague na França, o Free Cinema na Inglaterra e a Nova Hollywood nos Estados Unidos nos anos 1960.

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