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Apresentação do dossiê - Darcy Ribeiro e suas transfigurações
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 19, núm. 2, pp. 4-7, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 19, núm. 2, 2022

Recepção: 22 Novembro 2022

Aprovação: 30 Novembro 2022

Introdução

Em 2022 completaram-se 100 anos do nascimento do antropólogo, escritor, sociólogo, educador e político montes-clarense Darcy Ribeiro, e não faltaram celebrações e retomadas de suas contribuições e trajetória.

O que motivou e norteou a construção deste dossiê em particular foi a capacidade de Darcy Ribeiro de localizar e animar novas figurações e potências naquilo que a interpretação social de sua época tendia a reconhecer apenas como despojos da tragédia colonial, o que fez dele um pensador e um mobilizador singular. Reconhecer o papel civilizacional dos povos indígenas para muito além do paradigma da sobrevivência cultural - sem com isso ocultar a extensão e profundidade do seu genocídio; apostar em que também os colonizadores são transformados pelo processo colonial, e que seria possível incidir politicamente nessa transformação; apostar na riqueza das trocas numa classe popular diversa, embora agressivamente desenraizada; reconhecer o sexo como espaço de troca e produção, com todas as contradições e violências que implicam tanto uma como a outra; reconhecer no paradigma do evolucionismo cultural um possível discurso sobre a adaptabilidade e a transformação, mais que sobre a supremacia: somadas, desenvolvidas e revistas ao longo de sua trajetória de pesquisador, servidor público, político e educador, essas visagens desenharam um projeto de Ciências Sociais somo uma linguagem não apenas de diagnóstico e interpretação do mundo, mas de imaginação e de convocação de novas humanidadades e políticas.

Vinte e cinco anos após sua morte, Darcy pode ter deixado de figurar entre autores de leitura obrigatória em certos meios acadêmicos. Não obstante, ele é considerado precursor, por exemplo, das inovações da crítica decolonial (Ribeiro, 2012). Vejamos o conceito de “necropolítica”, hoje em voga, que lembra a expressão “moinho de gastar gente” (Silva, 2018; Costa; Mendes, 2021)), aplicada por Darcy ao projeto colonial implantado no Brasil em “O Povo Brasileiro” (Ribeiro, 1995), e perceberemos que, há várias décadas, ele escreveu profusamente sobre temas que hoje são debatidos com intensidade.

Darcy efetivamente redispôs e transformou diferentes signos da experiência de povos e países colonizados pelo capitalismo, percebidos até então como incompletos e imperfeitos, subjugados, dominados, e mesmo inviáveis - encontrando nas várias "ninguendades" produzidas pela máquina colonial capitalista a oportunidade de recusa da identificação com os opressores e, com ela, de uma perspectiva capaz de construir um caminho fortalecido para o enfrentamento do próprio contexto que as produz. O impacto do reposicionamento atitudinal e estético que ele contribuiu para construir como figura pública afeta sucessivas gerações no Brasil e na América Latina, e merece uma frequentação para a compreensão de dimensões importantes da construção de subjetividades resistentes na segunda metade do século XX.

Essa frequentação significará, necessariamente, atravessar os desconfortos de uma leitura contemporânea, felizmente afetada pelas novas vozes e presenças na intelectualidade pública, que dirão e farão mil coisas diferentes daquilo que os intelectuais da esquerda talvez imaginassem naquele período (e em muitos casos imaginam ainda). Completando 100 anos, Darcy se revela frequentemente como uma espécie de esfinge: um homem mineiro (mestiço, como ele quer, ou branco?) velho, feroz e às vezes inadequado na sua performance de autoridade masculina risonha, franca e libidinal. E, no entanto, no ano de 2020, quando concebemos esta proposta, esse senhor que parecia capturado por um tempo mítico e meio inacessível, reaparece pela internet enquanto o país vive o retorno violento de um autoritarismo recalcado desde a Assembleia Constituinte; a assombração de um novo genocídio de povos indígenas pela pandemia de COVID-19; o assédio inclemente à educação básica e universitária. Essas e outras tragédias ironicamente propiciaram um reencontro entre as gerações formadas já na Nova República e aquelas que atravessaram o longo século XX, construindo seus próprios estilos, discursos, corpos e subjetividades no enfrentamento dos autoritarismos que estruturam a experiência brasileira.

Propusemos o seguinte dossiê no sentido de exercitar estes muitos descentramentos simultâneos, de fazer uma comemoração como memória comum, um momento de encontro e troca entre gerações diante de sistemas de contradições que se reproduzem e se transformam - aproveitando, dos experimentos darcynianos, a coragem de expô-las, atravessá-las, alimentando esperanças e alegrias para recompor continuamente o tecido do futuro.

Sabíamos que, por ocasião do centenário, haveria múltiplas homenagens e análises dos estudiosos, e dos íntimos de sua trajetória e contribuições, posição que não nos cabia, mas não diminuía o nosso interesse nesse problema.

Diante disso, perguntamos aos colaboradores: como aproveitar algo da teimosia de Darcy Ribeiro em pensar e fazer o futuro, da sua ousadia em formular e reformular posições ao longo das décadas, para construirmos o nosso próprio futuro e alimentar nossas imaginações num cenário de imensos desafios políticos, sociais e ecológicos? Como, a partir de suas contribuições, encontrar modos e atitudes para nos relacionarmos com as construções, as estratégias e os conflitos vividos pelas gerações engajadas num século XX que se afasta de nós cada vez mais velozmente?

Embora concebido de forma separada, nosso dossiê dialoga com a recente obra coletiva “Darcy Ribeiro: o homem e suas peles”, organizado pelo professor João Batista de Almeida Costa, da Unimontes - quando destaca alguns dos diversos temas aos quais Darcy se dedicou ao longo de sua movimentada vida, como a questão indígena e a educação. Aqui, buscamos convidar autores que discutissem desdobramentos possíveis das proposições teóricas e práticas de nosso homenageado comum, infletidas pelo nosso presente.

Em sua entrevista, o médico Naomar Monteiro de Almeida, ex-reitor por duas vezes e considerado um dos principais idealizadores dos princípios que nortearam o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), criado durante o segundo governo Lula, nos fala do papel de Darcy como um pensador e criador de universidades. Como Darcy, Naomar considera-se fortemente inspirado pelo pedagogo baiano Anísio Teixeira, figura fundamental para entender a guinada que o mineiro deu em sua carreira, sobretudo após retornar do exílio.

Neste momento em que o país discute a proposta do novo governo eleito de criar o Ministério dos Povos Originários, Spensy Pimentel e Clovis Brighenti resgatam documentos do período da redemocratização do país (1978-9) para demonstrar que Darcy vislumbrou, para os povos indígenas, naquele momento, um futuro em que a auto-representação política era fundamental para que eles também pudessem ser efetivamente incluídos na democracia.

No terceiro artigo do dossiê, o filósofo e crítico de cinema Bernardo Oliveira nos apresenta um ensaio que experimenta um reposicionamento do conceito de “transfiguração étnica” extraído da obra de Darcy para a análise do cinema indígena contemporâneo - um dos espaços mais férteis de expressão pública e inovação dos povos indígenas no presente.

Referências

COSTA, Paulo H. A. da; MENDES, Kissila T. A morte como força produtiva no capitalismo brasileiro. Fim do Mundo n. 4, 2021.

RIBEIRO, Adelia M. Darcy Ribeiro e a crítica pós-ocidental de Walter Mignolo: notas sobre processos civilizatórios nas Américas. Dimensões, vol. 29, 2012, p. 281-308.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

SILVA, Rafael dos Santos da. Brasil: o moinho de gastar gente. Alice News, 16 abr. 2018. Disponível em: https://alicenews.ces.uc.pt/index.php?id=24858. Acesso em: 23 nov. 2022.

Autor notes

i Doutora em Antropologia Social e, também, pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (USP), Brasil. E-mail: luisa.valentini@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4055-9533.
ii Antropólogo e jornalista, professor do Centro de Formação em Artes e Comunicação da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Porto Seguro, Brasil. E-mail: spensy@ufsb.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7256-9384.

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