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“A luta de Darcy continua viva”: entrevista com Naomar Monteiro de Almeida Filho
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 19, núm. 2, pp. 28-44, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 19, núm. 2, 2022

Recepção: 15 Novembro 2022

Aprovação: 30 Novembro 2022


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Palavras chave: Darcy Ribeiro, Naomar Monteiro de Almeida Filho, educação brasileira, universidades

Introdução

Como Darcy Ribeiro, o médico Naomar Monteiro de Almeida Filho tornou-se, ao longo da carreira, um discípulo do pedagogo Anísio Teixeira e é, hoje, um dos pensadores do país que são referência no debate sobre a educação pública, de forma geral, e, em particular, sobre a universidade.

Professor titular de Epidemiologia no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, Almeida Filho foi reitor dessa mesma universidade entre 2002 e 2010. Ali, por meio do projeto conhecido como Universidade Nova, e recuperando ideias de Anísio, criou as bases de um plano de reforma universitária que foi adotado pelo governo federal por meio do Programa de Apoio a Planos de Expansão e Reestruturação das Universidades Federais (Reuni). Posteriormente, entre 2013 e 2017, foi reitor pró-tempore da Universidade Federal do Sul da Bahia, uma das últimas instituições de ensino superior criadas durante o ciclo do Reuni e que adotou, já desde o nascedouro, várias soluções inovadoras (cf. Tugny e Gonçalves, 2020).

O projeto de uma “Universidade nova” inclui a remodelagem completa do ensino nas graduações, adotando um regime progressivo de ciclos – compatível com o que é aplicado há décadas nos Estados Unidos, por exemplo, ou, mais recentemente, na Europa, com o Processo de Bolonha –, bem como a aplicação intensiva dos princípios ligados à interdisciplinaridade.

O intenso envolvimento de Almeida Filho com o debate sobre as instituições universitárias também está registrado em livros como “Universidade nova: Textos críticos e esperançosos” (Almeida Filho, 2007) e “A universidade no século XXI: Para uma universidade nova” (Santos; Almeida Filho, 2008), este em coautoria com o português Boaventura de Sousa Santos.

Na entrevista a seguir, concedida por vídeo chamada, em março de 2022, o ex-reitor relembra e comenta as contribuições de Darcy Ribeiro para o debate sobre a educação no Brasil. Como estudioso da obra anisiana, Almeida Filho também nos ajuda a entender melhor o papel que a parceria com Anísio Teixeira exerceu na carreira de Darcy.

Atualmente, Almeida Filho atua junto ao Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, como titular da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica. Em março, a cátedra promoveu o evento online “100 anos de Darcy Ribeiro”, celebrando o legado do intelectual mineiro para a educação[1].

Spensy Pimentel: Como o sr. definiria, em síntese, a contribuição de Darcy Ribeiro para a educação no Brasil? As marcas do que ele construiu permanecem entre nós?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: Darcy tem uma primeira fase muito vinculada à história de Anísio Teixeira, quando a educação entra na vida dele quase como um terceiro campo, um terceiro espaço. Ele teve uma formação antropológica inicial e, em seguida, toda uma rica experiência política – ele era muito jovem e conseguiu ser uma pessoa de muito poder, de muita influência, pelo brilho, pela inteligência, no momento em que o país estava passando por uma série de dificuldades. Ele tinha a política inclusive como uma paixão declarada. Ao encontrá-lo, Anísio o atraiu para o campo da educação. A sua contribuição na elaboração do projeto da Universidade de Brasília faz parte dessa primeira fase, que ele, imerso na política, não completa – quem completa essa tarefa é justamente Anísio.

Depois, Darcy, já no seu quase canto de cisne, manteve uma atuação política muito intensa, quando foi vice-governador no Rio de Janeiro e também acumulou a Secretaria de Educação. Na verdade, aí replicou o projeto de Anísio Teixeira com os Cieps (Centros Integrados de Educação Pública), formulados à semelhança do sistema de Escolas Parque de Anísio. Com muita energia e muita competência política, Darcy fez com que sua experiência e talento político viabilizassem esse projeto. Também foi um projeto incompleto, porque o governo Brizola não teve continuidade. Mas as marcas ficaram. E o terceiro momento dele na educação é já no Senado, na batalha pela aprovação da lei de diretrizes e bases da educação nacional (LDB – Lei 9.394/1996), já em meados da década de noventa.

Essas três fases deixaram marcas, mas não foram sucessos. E aí tem aquela frase famosa sobre os fracassos de Darcy, que todo mundo repete[2] – eu acho que é mais uma frase de efeito, porque realmente as marcas ficaram, e sua vida, o legado dele é merecidamente celebrado no campo da educação. E é claro que, do seu legado, o que é mais polêmico, porque está vigente ainda, é a LDB. Darcy foi o relator da LDB e praticamente reescreveu uma proposta que estava posta em discussão. Sua luta continua viva, pois é essa lei que fundamenta o arcabouço normativo da educação brasileira.

Spensy Pimentel: O sr. poderia explicar melhor qual seria essa polêmica? Como que o senhor enxerga essa polêmica com relação a LDB, nessa versão reescrita?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: É que a educação e os educadores no Brasil têm quase que um descompasso em relação aos aspectos normativos, ao sistema de regulação da educação. Por isso, muitos dos pontos que são avançados na legislação encontram resistência no mundo real das instituições de educação. Por exemplo, há um elemento que é a marca de Anísio, e o Darcy traz também, que é a busca da inovação, da experimentação.

Há um artigo da LDB que fala, promove e fomenta a experimentação. Mas infelizmente é muito pouco usado. É o artigo 81 na LDB,[3] que permite experimentos, fomenta e, mais ainda, encoraja. É realmente incrível o pouco compromisso com a inovação e com a experimentação nas instituições de educação no Brasil, notadamente nas instituições de ensino superior, principalmente na rede pública, que apresentam elementos de conservação muito fortes.

Então, a LDB tem um traço visionário, o que é bastante típico de Darcy e é pouco entendido. Darcy concebeu, por exemplo, a UnB com plena autonomia, inclusive financeira e patrimonial. E as universidades brasileiras, que poderiam ter seguido esse modelo fundacional, terminaram aceitando um modelo de autarquia. Elas se tornaram instituições do Estado. Isso de fato faz as instituições dependentes dos governos, nem é do Estado. Isso faz da universidade pública brasileira mais estatal do que pública, o que ao mesmo tempo a torna, por isso, submissa. Veja o desastre atual da condução da gestão da educação brasileira no plano federal, em que as universidades são reféns de um governo protofascista, pelo fato de elas dependerem totalmente não só de orçamento público, mas das regras da administração pública.

Darcy anteviu isso não só na modelagem institucional, que foi contribuição dele, isso é inegável, no experimento da UnB. Ele introduziu no projeto da UnB elementos que propiciariam a sua independência e real autonomia, inclusive financeira. Essa visão sempre produziu polêmica na vida de Darcy, porque ele não era um estatizante, no sentido de que tudo precisa pertencer ao Estado. Ao contrário, ele era um socialista: para ele, a sociedade precisava ter um espaço de protagonismo na condução das suas instituições, não necessariamente os governos, nem mesmo o Estado, mas a sociedade.

Spensy Pimentel: Já foi dito por Darcy que o encontro dele com Anísio Teixeira foi um dos mais importantes da sua vida e que ele tinha dois alteregos, ambos Santos e Missionários, Rondon e Anísio (Ribeiro, 1997: 184). Como o sr. interpreta essa avaliação que ele fazia?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: Eu a interpretaria fazendo um pequeno jogo de palavras. Rondon e Anísio eram alteregos de um enorme ego. O Darcy se divertia inclusive com isso. Era conhecido por ser uma das pessoas mais autocentradas e mais ciosas da sua própria personalidade. Então ele buscou alteregos à altura dele, quer dizer, realmente figuras míticas. Rondon, em relação à questão indigenista, e Anísio em relação à questão educacional. O que posso imaginar é o seguinte (sem tentar fazer nenhuma psicanálise selvagem do Darcy): o ego dele era tão grande que os alteregos tinham que ser personalidades desse porte.

Agora, no caso de Anísio, eu diria que isso ocorreu com grande ambivalência. Muita coisa que Darcy fala de Anísio é uma reconstrução da própria história por Darcy. E até com muitas atribuições de protagonismo que foram autoatribuídas, quer dizer, o quando pôde, ele reescreveu a própria história. E não só nos livros: Darcy era um entrevistado maravilhoso. E esse talento era acompanhado de muita sedução. Às vezes ele era tomado pelo discurso, pode-se ver em várias de suas entrevistas, é incrível como era possuído no diálogo. O diálogo fazia com que ele realmente se tornasse extraordinariamente criativo, e essa criatividade envolvia inclusive uma série de reconstruções de eventos. Uma delas, já que se pergunta sobre Anísio: Darcy chega a inverter a autoria do projeto da Universidade de Brasília. É como se fosse ele que tivesse convidado Anísio a participar de um projeto seu. Ele conta que concebeu a ideia e chamou Anísio para executá-la. Mas foi exatamente o oposto.

Naquele momento, a figura de maior importância no cenário político brasileiro, no campo da educação, era Anísio Teixeira, à frente de vários órgãos, liderando movimentos importantes. E Darcy era um jovem talentoso, um enfant terrible, um garoto prodígio, muito jovem e já com imenso trânsito na política, uma inteligência prodigiosa, mas ele era ainda muito jovem, e ele foi na verdade convidado por Anísio para coordenar esses aspectos do projeto. É interessante que, na reconstrução que o Darcy faz dessa história, seria como se o Presidente Juscelino diretamente tivesse atribuído a Darcy a missão de pensar, e planejar, o sistema de educação do Distrito Federal. Foi exatamente o contrário. A pessoa que estava fazendo isso, inclusive numa acumulação de cargos e funções, era o Anísio. Anísio criou e dirigiu o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), criou e dirigiu a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), era assessor do Ministério da Educação (MEC) em inúmeras frentes e estava no planejamento de todo o sistema de educação do Distrito Federal, não só da Universidade de Brasília – a UnB seria uma das etapas desse sistema. Muito se fala hoje de pensamento sistêmico na educação, mas pouco se faz nessa direção. Esse episódio é uma demonstração da força do pensamento sistêmico na educação, de planejamento intersetorial integrado. O plano mestre, que Anísio chamou de plano diretor da educação do novo Distrito Federal, foi pensado integralmente.

Quem chama atenção sobre isso é o Professor Hélgio Trindade, autor de um texto sobre essa questão específica. Ele narra que o Darcy atribui a Anísio uma visão elitista da UnB, e que ele, Darcy, teria sido mentor de um desenho mais popular da UnB. E, novamente, foi exatamente o contrário. O ponto em questão era que Anísio pensava a UnB como um grande centro de pesquisa e pós-graduação dentro de um sistema integrado de educação. Aí o Darcy diz que foi ele quem definiu o caráter mais aberto, a gente pode até dizer mais popular, do projeto da UnB. Só que o que o Anísio concebeu foi um pouco o que fizemos lá na Universidade Federal do Sul da Bahia: uma rede de colégios universitários, que eram chamados assim mesmo por Anísio – Colégios Universitários. E bem lembro que nossa referência principal para essa ideia é sempre Anísio. Por isso, a UnB poderia ser esse lugar que captaria os alunos dessa rede orgânica, já sistêmica. Então minha interpretação sobre Darcy é exatamente esta: ele se autoatribui um protagonismo em elementos que claramente resultaram de um trabalho conjunto.

Spensy Pimentel: Darcy Ribeiro tem o conhecido livro em que fala da “universidade necessária” (Ribeiro, 1969), uma expressão próxima ao que o sr. tem desenvolvido ao longo das últimas décadas. Como o sr. pensa que se poderia definir, hoje, o que seria essa “universidade necessária”?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: Essa ideia de universidade necessária também tem muito a ver com o conceito de universidade popular. A universidade popular seria uma universidade para o povo, e não para as elites. Darcy foi um ferrenho defensor da ideia de que a educação superior teria que superar o império das faculdades e também da noção de que a universidade era um lugar pra poucos. Essa questão da massificação – até existe uma certa discussão, acredito que muito deslocada, como se massificar fosse sempre reduzir qualidade.

Posso até dizer que o que Darcy quer dizer com universidade necessária é que a educação superior é necessária para todos, em diferentes níveis e com diferentes especificidades. Então, não é uma universidade que tenha certa centralidade, até territorial, mas é também necessária como acesso aos temas da civilização. Darcy, ele mesmo disse em alguns momentos, era um iluminista. Ele dizia assim: “Eu não pertenço a este tempo”. Ele falava muito “eu”. As entrevistas dele são fascinantes também por isso. É uma postura de um “sujeito centrado” em si, por ele mesmo. Ele se referia a sua própria atuação às vezes até na terceira pessoa mesmo, como se estivesse falando de uma personagem ou de outro sujeito.

Mas há um segundo sentido da “Universidade necessária”: Darcy acreditava nisso, ele inclusive escreveu um livro com esse título para demonstração desse ponto, que a universidade é necessária para o desenvolvimento da civilização brasileira. E a gente não pode esquecer que a convivência de Darcy com o próprio Anísio, com Celso Furtado, se deu no momento do desenvolvimentismo. Quer dizer: é quase a utopia de uma sociedade que agregasse o desenvolvimento econômico com o desenvolvimento humano. E para isso a universidade era absolutamente necessária.

Então, como definir isso hoje? Eu acho que hoje a universidade é mais ainda necessária do que naquela época. Nós temos enfrentado uma onda de obscurantismo anticivilizatório. A gente pode dizer que o que está em curso no Brasil é um regresso a trevas medievais, ao pré-iluminismo. O que se contesta são os valores da Revolução Francesa, dois séculos para trás! Basicamente está se fazendo isso. Eu acho que é somente por ignorância o capitão dizer que veio para retroceder cinquenta anos. Ele na verdade está querendo voltar duzentos, trezentos anos no passado. Veja por exemplo a questão do negacionismo científico. É um retorno civilizatório a proposta de pautar as práticas sociais por crenças e superstições. Não é nenhuma questão de respeito antropológico às cosmologias, não é isso. É a negação de que existem modos de produção de conhecimento que têm uma fundamentação nas ciências, na cultura, nas artes. E tudo isso fica de algum modo contraposto à fundamentação na religião e em narrativas conspiratórias. Não se trata nem de certos elementos ideológicos ou éticos mais nobres, mas sim em crenças em textos supostos como sagrados ou então em práticas claramente fundamentalistas. E é por isso, em função dessa crise civilizatória, que Darcy é muito atual e faz falta. Mas o que estamos passando não é só em nosso país, o mundo inteiro está enfrentando essa questão.

Spensy Pimentel: Darcy Ribeiro fez várias críticas à academia no período em que ele assumiu a luta pela educação como mote na política (Ribeiro, 1979a; 1979b; 1980), e isso no mesmo período em que Maurício Tragtenberg também criticava a “delinquência acadêmica” no interior das nossas universidades nos seus escritos (2004: 11-19). O senhor também já advertiu para algo parecido, uma espécie de pulsão de atraso, digamos assim, que advém dos próprios professores universitários. Nós podemos pensar, a partir da obra de Darcy, que a própria academia pode ser uma expressão, de certa forma, da “elite predatória” que ele tanto criticava como um dos pilares do nosso atraso?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: Eu tenho uma convergência muito grande com esse ponto. Até porque essa elite dominante tem uma relação complexa e também predatória com o sistema público de educação. Por exemplo, muitas pessoas acham que a universidade pública é uma parte do Estado a serviço dos seus projetos pessoais ou familiares. É por isso que os cursos de profissão são muito procurados, valorizados e colonizados em nossas universidades públicas. É como se as universidades fossem parte de um certo patrimônio de uma elite dominante, para usar essa categoria. Ou então para uma certa classe média – Marilena Chauí faz muito esse discurso – que é uma formadora de opinião e, por isso mesmo, tem uma hegemonia até no sentido pleno, no plano ideológico. E essa classe média trata as universidades públicas como parte de seu patrimônio, inclusive individual. Por isso que temos tantas linhagens de especialistas, famílias de juristas, famílias de médicos, famílias de engenheiros, formadas em instituições públicas. Então, o que eu estou querendo dizer é que a academia talvez não consiga nem enxergar que esse processo se passa, e ao fazer isso ela se torna cúmplice da dominação.

Agora, Darcy também tinha um discurso em princípio provocativo, ou provocador. Eu acho que em primeiro lugar ele buscava produzir um certo choque. A dialética dele, os diálogos que ele trazia, eram muito aguerridos. Então isso produziu, na época em que ele era um grande formulador, um grande influenciador – ele foi um influencer até antes de a própria palavra entrar entre nós –, porque ele não perdia uma chance de marcar suas posições de forma bem agressiva. E essa agressividade, ao denunciar algumas contradições perturbadoras, incomoda os que são cúmplices das contradições. Isso em muitos planos. Darcy fazia isso muito bem no plano da política, por exemplo.

Agora, no cenário da universidade, isso produziu, eu diria, toda uma geração de sujeitos que, trazendo para a linguagem dos nossos dias, eram haters de Darcy. Intelectuais que iam atrás de Darcy para se contrapor e também participar dos debates com ele de uma forma tão agressiva quanto aquela. Ele não fazia isso como uma tática defensiva, ele realmente ia pra cima. Eu acho que essa expressão delinquência acadêmica é bastante forte, mas não é de todo imerecida. Nela não está implicada somente uma certa resistência conservadora, aí tem também um elemento ético envolvido. Isso porque em vários momentos, em vários escritos, Darcy “joga na cara” de intelectuais, de acadêmicos suas próprias incongruências e contradições. Eu pessoalmente acho que ele incomodava muito porque denunciava uma cumplicidade não de todo inconsciente. Então, eu iniciei essa resposta dizendo que não é só uma elite predatória, é toda uma sociedade que se estrutura com base numa relação patrimonialista com o Estado. Minha resposta fazia essa análise, da relação patrimonialista das elites nacionais com a academia, no tempo dele, Darcy. Mas eu diria que hoje nós temos novas formas dessa correspondência entre uma suposta visão progressista, mas que é no fundo conservadora, só que no tempo dele, os conservadores não se apresentavam como progressistas, eram conservadores.

Então, novamente, eu quero evitar fazer uma psicanálise do nosso homenageado, mas aparentemente ele gostava disso, ele extraía gozo disso. E aí, também, porque ele também dizia que tinha várias personas, e uma das personas de Darcy era o Quixote, o paladino que enfrentava moinhos de vento. Isso fazia parte de uma certa montagem dessa relação construída, que aparece não só nos escritos, mas também e principalmente nas manifestações públicas de Darcy.

Spensy Pimentel: No prefácio ao livro “Universidade Necessária”, Darcy fala de uma rebeldia estudantil nas universidades em oposição a uma juventude trabalhadora. E hoje, cada vez mais, essa juventude trabalhadora ocupa as universidades do país. O que muda para o ensino superior brasileiro com esse ingresso?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: Eu acho que há um movimento demográfico, sociológico e também cultural que precisa ser melhor entendido. Por exemplo, toda essa movimentação de abrir as universidades, e principalmente as universidades públicas, para segmentos da população que não estavam nessas instituições eventualmente traz para dentro das instituições de conhecimento representantes de segmentos da sociedade que têm suas marcas culturais, políticas, religiosas. Estávamos falando há pouco do projeto fundamentalista de guerra cultural, de uma certa recriação negativa do Estado brasileiro. E está aí na mídia: pastores e sacerdotes de crenças e credos determinando a política de investimentos na educação, com um grau imenso de corrupção. Aí vem a questão de o quanto isso é, de algum modo, aceito e incorporado pela sociedade (ou por parte significativa dela), não produz nenhum sentimento generalizado de indignidade. E aí a gente tem que analisar que, se isso se passa na sociedade como um todo, nós podemos dizer que o movimento de ampliação de vagas nas universidades públicas, com a chamada inclusão de segmentos da população excluídos por diferenças e desigualdades sociais, econômicas, étnicas, territoriais, traz para dentro da universidade um certo retrato do que é esse Brasil real. Esse Brasil real, é claro, tem quase que uma maioria demográfica de sujeitos que não têm acesso a meios de produção, a recursos financeiros e econômicos, e são sujeitos que lutam pela própria sobrevivência o tempo inteiro.

E é por isso que Darcy, creio que de uma forma novamente provocativa, diz que essa rebeldia estudantil é muito daqueles que não têm a questão da sobrevivência como parte do seu cotidiano. Aí contrapõe a isso, que é essa maioria da população jovem que – é claro, a gente tem aí toda a luta política pela emancipação dos sujeitos e pelo aumento da sua participação na vida política do país – são pessoas que precisam enfrentar o desafio de, a cada dia, buscar emprego ou não ter emprego, ou mesmo ter alternativas e soluções e estratégias de sobrevivência que são muito mais vulneráveis aos vetores de desestruturação do nosso próprio sistema produtivo.

Nenhuma surpresa, por exemplo, que não faça parte de uma certa pauta sindical ou popular nem Sistema Único de Saúde, nem Sistema Público de Educação, nem mecanismos e programas de políticas públicas para proteção social geral – as pautas são muito dirigidas para focos específicos de interesses. A gente pode dizer que a luta pelo diploma é uma luta individual, no máximo uma luta familiar. Não temos uma concepção coletiva de que a educação e a educação superior sejam ou se manifestem como um ativo para uma emancipação também coletiva. Então eu acho que Darcy, do modo bem peculiar dele, põe o dedo nessa ferida.

Spensy Pimentel: O que o sr. acha que Darcy diria hoje, e qual sua avaliação sobre a entrada dessa juventude trabalhadora nas universidades? Será que ela já conseguiu imprimir uma marca nas universidades? Ou será que também a maneira como essa entrada se deu – uma boa parte dela via PROUNI, via Fies, nas instituições particulares – influenciou de outra forma?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: Acho que a gente precisa ser até mais crítico do que Darcy conseguiu ser. Porque Darcy, de muitas maneiras, colocava o dedo na ferida, mas o que construía como alternativa, como saída, até poupava parte da responsabilidade das instituições por serem, de muitas maneiras, mais protagonistas em processos de contestação e superação dessas contradições que Darcy chegava a revelar.

Eu vou trazer um exemplo, só pela necessidade de clareza: a rápida cooptação dos sujeitos que atingem a educação superior universitária. É possível, por exemplo, todo um conjunto de inquietações, algumas até pessoais, individuais, mas outras mais coletivas, mais políticas, mais militantes tenham influenciado a escolha por essa ou aquela profissão. Três, quatro, cinco anos de passagem pelas formações disciplinares, currículos rígidos, currículos ocultos, inclusive, absolutamente submissos a corporações e instâncias de controle social, fazem com que, por exemplo, os médicos que estão sendo formados agora, em proporção bastante grande, nas instituições federais pelo menos, pessoas que são os primeiros de suas famílias a entrarem na educação superior, não tem sido qualitativamente, nem politicamente, nem eticamente, diferente dos anteriores.

Então, essa é uma discussão a ser feita seriamente. Como, por exemplo, os processos de inclusão social com base em reserva de vagas, com processos seletivos que continuam ainda dependentes de memorização, de um certo adestramento, para a aprovação nos filtros, nos exames, mesmo que não seja mais o velho vestibular restrito, e sim um exame nacional como o ENEM, mesmo assim esse adestramento traz para as universidades sujeitos que se alfabetizaram em livros sagrados, em famílias e comunidades que têm, digamos, uma organização disciplinar paramilitar ou fundamentalista religiosa. E aí trazem para dentro das instituições que, na história do Ocidente, se organizaram para a autonomia, para a liberdade, para a tolerância ao diferente, sujeitos que continuam tendo uma dificuldade muito grande de lidar com questões civilizatórias, como o respeito à diversidade, a liberdade, aos processos de construção de opinião, isso que está se chamando de pauta de costumes. Eu não vejo que o ingresso de uma juventude trabalhadora, representante desses segmentos da sociedade, nas universidades evite que uma certa acomodação ocorra. E essa acomodação resulta, por exemplo, em um reforço à educação superior como solução de processos de formação baseados em tecnologia, ou baseados em burocracia, ou baseados em modelos conservadores. Então, não tenho grande otimismo em relação a essa questão. Nesse aspecto, Darcy era mais otimista: ele achava, escreveu, analisou, que elementos de uma cultura brasileira, no tempo certo, amadurecerão e serão capazes de superar esses núcleos de retrocesso. Eu não tenho um otimismo equivalente não.

Spensy Pimentel: Para certos setores na academia, a ideia de uma ciência engajada, como defendeu Darcy (Ribeiro, 1980), continua parecendo uma contradição ou algo a ser evitado. É possível nós termos uma transformação da educação e do ensino superior sem uma ciência engajada? E engajada com o quê?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: Essa questão se conecta com aquele comentário inicial que fiz sobre a emergência do negacionismo, com essa força surpreendente. Aliás, a pandemia serviu como um grande divisor ideológico, no qual acreditar na ciência ou contestar a ciência passa a ser quase como um dualismo estruturante da sociedade. Algo que a gente chama de ciência – e aí talvez mereçamos uma digressão rapidíssima – é um conjunto de práticas ou modos de produção de conhecimento com base em transparência, sistematização, comunicação constante e fundamentalmente uma descrença. A ciência se baseia na dúvida, a famosa dúvida sistemática. Se há algo cartesiano válido, é isso. Eis uma construção em permanente ceticismo ou contestação – isso é que é ciência. Então, quando se pede à ciência algum grau de certeza, a ciência, sendo ciência, não pode fornecer essa certeza. Há uma assimetria muito grande no contraste entre o discurso da crença e o discurso da ciência.

Aí encontro a questão que você está trazendo e que, de propósito, especifica para certos setores da academia. Eu posso, inclusive, imaginar que por trás disso tem uma posição dualista, de que se tem duas ciências, uma distinta e às vezes até contraditória com a outra: uma ciência de fatos versus uma ciência de ideias ou de valores. Quando a gente pensa, de um modo mais respeitoso, a própria história recente do mundo, o que chamamos de ciência cada vez é mais assumido como também um conjunto de crenças, só que não são crenças para afirmar verdades, são crenças sobre modos de permanente construção e desconstrução desses mecanismos ou métodos de produção de verdades. Acrescento um elemento que o Boaventura de Souza Santos chama atenção, repete e insiste: o pluralismo epistemológico. Trata-se não só de um pluralismo metodológico, mas também a posição de uma permanente abertura ao discurso do outro. Aí vem a questão adicional do que significa esse engajamento, e eu fecho a digressão assumindo que o que eu expus até agora compreende uma justa descrição ou pelo menos uma justa delimitação do que chamamos de ciência.

Bom, esse é um problema chave do campo da educação. Porque o engajamento dos processos formativos envolve uma discussão de qual é o foco, qual é o objetivo, qual é a missão desse engajamento. Se for uma missão libertadora coletiva, se for, digamos, uma utopia emancipatória, esse engajamento não se justifica para projetos parciais. É preciso pensá-lo como responsabilidade em relação à própria constituição livre da ciência. Ou seja, a ciência tem um engajamento com uma missão emancipatória dela própria – não só para outros, mas quase que uma luta permanente para garantir que a ciência seja livre, que o próprio trabalho da ciência seja livre. E aí, novamente faço referência ao pluralismo sugerido por Boaventura, o plural é falar de ciências, não de uma única ciência. Um engajamento nessa direção é às vezes difícil até de apresentar como uma certa pauta no campo da educação, porque a maior parte dos construtores, operadores, gestores, produtores da ciência tem uma concepção da ciência como produtora da exclusiva verdade no seu território ou região conceitual, no espaço respectivo de cada um. Há todo um embate em torno disso, que se chamou de guerra das ciências, foi recente, coisa de duas décadas. Isso apenas recuperando aquela discussão do pós-guerra das duas ciências ou das três ciências, do famoso texto do C.P. Snow, As Duas Culturas (1995 [1959]).

Para a educação, acho que é um tema extremamente relevante, porque uma das saídas que o campo da educação tem proposto e tentado é trazer modelos de produção de ciências de outros lugares, de outros espaços, de outros setores, de outros assuntos. Por exemplo, é moda agora no campo de educação falar em educação baseada em evidências. Lembra todo um discurso antigo de cinco décadas, inclusive da minha geração, de uma medicina baseada em evidências. Aí se encontra toda uma proposta de medicalização da sociedade, uma medicalização até subliminar. Na analogia, aparece quase como se a educação fosse um processo terapêutico, não um processo formativo. Então vejo aí temas candentes que estão abertos e que, é claro, foram ultrapassados no campo de origem de uma concepção dessa natureza. A pergunta será que superação foi essa, se já superou, mas em qual direção? No campo da saúde – aliás, é o meu campo de origem – cada vez mais se fala em ciências translacionais, ou ciências transdisciplinares translacionais. As ciências da educação sequer pensam seu objeto dessa forma, o problema sequer é posto assim. Vejo aí uma armadilha: nós criticamos os fundamentalistas dizendo que eles se baseiam em crenças. E, pelo menos no campo da educação, muitas das práticas, processos, políticas, programas, também são baseados em crenças. Não há tratamento lógico nem cautela heurística para além da retórica confirmatória desse conjunto de questões.

Para dar um exemplo supersimples. Veja que não estou propondo uma comparação entre saúde e educação de forma rasteira, mas cabe uma questão: o que é que chamamos de controle social na saúde? Do ponto de vista político, temos conferências nacionais de saúde (elas foram suspensas momentaneamente, mas a gente espera que voltem), temos conselhos em todos os planos (Conselho Nacional de Saúde, Conselho Regional, Conselho Estadual, conselhos municipais). E aí, em paralelo, um sistema de avaliação tecnológica que regula práticas e procedimentos – que aliás agora na pandemia entraram muito na visibilidade da opinião pública com essas questões da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Conselho Nacional de Saúde (CNS), toda essa tensão.

E aí uma pergunta, existe algo minimamente similar no campo da educação? Não. Os conselhos de educação são normativos, quase como se fossem cartórios ou pequenos tribunais para certas coisas. A discussão deixa de ser uma discussão de política de educação, no sentido pleno de produção de política pública, e se torna política naquele sentido pequeno, quase que eleitoral provinciano. E também não temos uma estrutura de verificação, de validade, de eficácia, de efetividade e de qualidade na direção da equidade dos processos, procedimentos, métodos. Esse é um tema que Darcy, por exemplo, não me consta que tenha se debruçado sobre isso. Anísio sim se preocupou com isso, Anísio tem repetições e dispersões, mas escreve inclusive sobre a questão da ciência engajada. Eu sei que você tem estudado o Darcy, talvez até conheça algum tratamento dele nessa direção, mas não me lembro não-

Spensy Pimentel: Darcy militou tanto pela educação básica como pelo ensino superior. O senhor foi responsável pela criação de projetos de novas universidades cujo fundamento estaria ele próprio no comprometimento com a educação básica. Esse seria um caminho para essa nova universidade? Esse seria o engajamento necessário? Esse engajamento com a própria educação básica?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: Sem dúvida. Mais ainda, diria que, se existe um certo ideal darcyniano, é esse. Tem-se falado muito em uma concepção sistêmica de educação. Aliás, quando o Tarso Genro era ministro da Educação, popularizou bastante esse tema, avançou nesse debate, que o sucessor dele, o Fernando Haddad, também levou à frente. E acho que esse é um traço de Darcy e também herdado, talvez compartilhado com Anísio. E não há ingenuidade nisso. Eu acho que aí tem uma crença originalmente iluminista de que a educação, em todos os planos, possui um potencial libertador, compreende um processo emancipatório.

O próprio Paulo Freire se encontra nessa vertente, mas sem o viés institucionalista, que é o viés anisiano, e também sem o viés político no sentido de atuação política, que é o viés darcyniano. A concepção freiriana desse processo emancipatório é uma terceira dimensão desse tema, que está muito forte na própria atuação de Darcy no cuidado constante com processos legislativos. Darcy chega num certo momento a quase que produzir um escritório de concepção normativa. O que é curioso, porque isso é contraditório com certo espírito anárquico que também foi muito próprio dele. Ele mesmo dizia que não pertencia a projetos de tomada de estruturas de governo através do que se conhecia como partidos políticos, porque nenhum partido podia contê-lo. O que é interessante em relação à própria história, com uma enorme inquietação que é da sua própria personalidade.

Outra questão também que termina focalizando nesse aspecto sistêmico é o papel da universidade. Eu acho que Darcy concordaria que as instituições públicas de educação superior e notadamente as universidades têm uma missão formadora e que essa missão é exercida no sentido de formar sujeitos capazes de operar a enorme máquina pública destinada à educação formal, os sistemas públicos de educação. E as universidades não fazem isso. Boa parte dessas iniciativas que você está mencionando, das quais eu participei e ajudei na cocriação desses projetos, partem da identificação de que, nas universidades públicas brasileiras, a proporção de docentes formados por ela para o sistema público de educação básica é mínimo. Em qualquer grande universidade brasileira, a imensa maioria de vagas é ofertada para bacharelados, cursos de profissão, segmentações profissionais, especializações. Uma pequena, realmente muitas vezes minúscula oferta de vagas para cursos de pedagogia (e há aí muitas discussões que têm relação com o que a gente está conversando agora), uma proporção também muito pequena de formação em licenciaturas disciplinares em áreas de ciência, quer dizer em campos segmentados de ciências, Física, Química, Biologia, História, Geografia, Sociologia. Não há um mecanismo massivo, que deveria existir, para minimamente contestar o espaço cedido ao setor privado de ensino superior.

Então, termina-se num paradoxo em que as universidades públicas se queixam de que a qualidade da formação dos alunos que vêm de escola pública é pequena, mas a contribuição delas para a formação de formadores para o setor público de educação é irrisória. Quando um curso de licenciatura ou de formação de professores numa instituição pública tem sucesso, em geral oferecem formação de boa qualidade, os egressos vão reforçar o setor privado de educação, ou então seguirão para mestrados e doutorados para a reprodução da própria universidade.

O lado perverso do paradoxo é que, como esse setor de ensino é um mercado de baixo custo, com pouco investimento em qualidade (mas é um mercado), essa imensa demanda social é preenchida, respondida pelo setor privado. Temos aí um super paradoxo: qual é o interesse que tem o setor privado em propiciar uma formação de qualidade suficiente para que os alunos do setor público sejam “competitivos” para as universidades públicas? Então, essa questão da inserção sistêmica e orgânica da educação superior pública no sistema de educação via formação inicial de professores é uma questão extremamente atual. Tanto que acabaram de aprovar uma lei do Sistema Nacional de Educação em relação à qual ainda se está por demonstrar não só a viabilidade de aplicação, mas que questões essa lei responde, porque, com esse Congresso que está aí, a gente não pode esperar aprovação de nada que tenha um elemento efetivamente transformador da sociedade.

Spensy Pimentel: A interdisciplinaridade, essa “quebra de caixinhas”, digamos assim, dentro das universidades, é um caminho para a democratização delas, segundo Darcy, e segundo o senhor também. Mas, como a gente enfrenta o bacharelismo, que é tão arraigado na cultura brasileira e que desafia justamente essa interdisciplinaridade, como a gente está vendo em alguns casos, tentando desmontar a todo custo a interdisciplinaridade – às vezes inclusive em uma aliança entre professores e alunos?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: Essa é uma questão realmente crucial e urgente. Porque, mesmo do ponto de vista de um sistema produtivo engajado numa economia dinâmica, podemos dizer que estamos ficando para trás, porque a ciência do mundo é cada vez mais meta, inter, trans. E nós continuamos realmente aqui no Brasil formando pessoas nessas caixinhas. Mas até a metáfora das caixinhas me parece insuficiente para pensar o modo de fragmentação existente. Ela é uma metáfora efetiva, uma metáfora robusta para indicar a caixinha fechada, quer dizer, o fechamento. Mas nem o próprio setor produtivo aguenta mais esse tipo de universidade que a gente tem. Aí, é claro, cada um resolve o seu problema. Há no Brasil centenas de universidades corporativas e empresas de reciclagem de pessoas, ou o que eles chamam de recursos humanos. Parece que isso acontecia quando o país tinha um setor industrial, que aliás foi sucateado e a economia dramaticamente submetida a uma lógica rentista, quase como se fosse possível existir uma sociedade baseada em investimentos, somente em renda, em apostas no abstrato e não numa produção industrial direta.

Então, eu diria que o mundo mudou, continua mudando, e o sistema universitário, dentre nós especialmente, continua realmente numa autorreferência superada. E isso começa, claro, na base, mas numa base que reproduz um certo ciclo de formação de sujeitos. As universidades formam sujeitos dessa maneira, sujeitos que vão exercer uma prática social, uma atividade econômica, uma função gerencial que não dá conta nem com eficiência nem efetividade dos problemas da nação. Mas os sujeitos que chegam são formados por outros que já estavam dentro desse modelo de formação. Então não tem possibilidades de inovação nesse sistema, não tem vetor de mudança nesse sistema. O curioso é que, à semelhança do campo ambiental, da saúde, de certa maneira, mesmo no campo da educação, a legislação parece mais avançada do que o sistema real de formação.

Veja, por exemplo, essa discussão atual da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), das Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores[4]. Os documentos falam dessas categorias que você lembrou, interdisciplinaridade, falam até mais, avançam para transversalidade, e o processo de formação continua disciplinar, empírico e reducionista. Já tem três décadas que a LDB de Darcy foi aprovada, e o que posso dizer é que continuamos com um sistema de educação que, de fato, é quase como se fosse uma pequena fraude. Continuamente desrespeita os próprios marcos normativos. Eu lhe peço até desculpas se não consigo um otimismo maior, mas é isso.

Spensy Pimentel: Darcy já escreveu que “a ciência é uma atitude charlatanesca, uma postura de gente que escreve discursos uns para os outros, com a finalidade de fazer sua carreirinha, e que o compromisso com a verdade é muito mais formal do que verdadeiro” (Ribeiro, 1979b: 95). Ele estava especificamente criticando a antropologia, mas formulou suas críticas de forma geral. Como criar uma universidade que supere essa ciência criticada por ele?

Naomar Monteiro de Almeida Filho: Eu atribuo essa fala muito àquele traço de personalidade que, de alguma forma, tentei explorar aqui: Darcy não perdia a viagem para provocar, ele realmente tinha um grande prazer em provocar debates. E inclusive dizia que, ao modo dele, herdou isso de Anísio, porque Anísio disse que não tinha compromisso nem com o próprio pensamento. No debate intelectual Darcy não tinha compromisso com a pacificação, com a acomodação. Então eu atribuo a crueza dessas palavras a esse traço de personalidade.

Agora, em sério, como lidar com isso? Existe uma necessidade de a universidade se repensar, pensar a si mesma, ela precisa ser muito mais reflexiva. O fato de os sujeitos entrarem em instituições que se chamam universidades, sem serem apresentados a um projeto institucional altivo e claro, sem conhecerem o projeto político-pedagógico do próprio curso, sem nenhuma apresentação sistemática e continuada do que é essa instituição, nem do ponto de vista histórico, político, sociológico, antropológico, é um sintoma disso, de que a universidade não tem um compromisso com a ética milenar da formação universitária.

Agora, não é de um modo curricular que isso será de algum modo reposto. É preciso que a gente faça isso muito mais em função do ethos institucional das universidades. E Darcy concordaria, não tenho a menor dúvida, até do ponto de vista antropológico, em atuar dessa forma, na afirmação da cultura institucional dessa maravilhosa invenção que a história chamou de Universidade.

Referências

Almeida Filho, Naomar A. Universidade Nova: textos críticos e esperançosos. Brasília, Salvador: Editora UNB/EDUFBA, 2007.

Ribeiro, Darcy. A Universidade necessária. Rio de Janeira: Paz e Terra, 1969.

Ribeiro, Darcy. Antropologia ou A Teoria do Bombardeio de Berlim. Entrevista por Edilson Martins. Encontros com a Civilização Brasileira n. 12, jun. 1979a.

Ribeiro, Darcy. Por uma Antropologia melhor e mais nossa. Encontros com a Civilização Brasileira n. 15, set. 1979b, p. 93-96.

Ribeiro, Darcy. O papel reservado ao intelectual e à ciência nos países pobres. Encontros com a Civilização Brasileira n. 25, jul. 1980, p. 213-216.

Ribeiro, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Santos, Boaventura S.; Almeida Filho, Naomar A. Universidade no século XXI: para uma universidade nova. Coimbra: Almedina, 2008.

Snow, C.P. As duas culturas e Uma segunda leitura. São Paulo: Edusp, 1995.

Tragtenberg, Maurício. A delinquência acadêmica. In: Sobre educação, política e sindicalismo. 3ª ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2004. p. 11-19.

Notas

[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iahTNMSZ7So&t=4s . Acesso em: 1º mai 2022.
[2] “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”. Aparentemente, uma versão transformada de parte do discurso proferido por Darcy quando a Sorbonne outorgou-lhe o título de Doutor Honoris Causa em 1978 – segundo explicação do próprio Darcy, no livro “Confissões” (1997).
[3] Art. 81. É permitida a organização de cursos ou instituições de ensino experimentais, desde que obedecidas as disposições desta Lei.
[4] Resolução CNE/CP, n. 1, de 27 out. 2020.

Autor notes

i Antropólogo e jornalista, professor do Centro de Formação em Artes e Comunicação da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Porto Seguro, Brasil. E-mail: spensy@ufsb.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7256-9384.

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