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Cinema indígena, transfiguração étnica do cinema
Cine indígena, transfiguración étnica del cine
Indigenous cinema, ethnic transfiguration of cinema
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 19, núm. 2, pp. 45-64, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 19, núm. 2, 2022

Recepção: 15 Novembro 2022

Aprovação: 30 Novembro 2022


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: Este ensaio parte da premissa de que a “transfiguração étnica” preconizada por Darcy Ribeiro pode ser reutilizada de forma paródica para pensar algo que o próprio Darcy não previu: o cinema indígena. Pretendo com isso ressaltar o aspecto singularíssimo desse conjunto de filmes e posicionar uma indagação de fundo: a partir do debate em torno da história transformacional preconizada pela categoria “transfiguração étnica”, de que forma pensar a aparente contradição e a força renovadora do cinema protagonizado por povos originários? Pretendo expor aqui essa diferença através da análise de dois filmes: Ava Yvy Vera — Terra do Povo do Raio (2016), do coletivo Kaiowa formado por Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Johnaton Gomes, Joilson Brites, Johnn Nara Gomes, Sarah Brites, Dulcídio Gomes e Edna Ximenes; e Yãy tu nũnãhã payexop: Encontro de Pajés (2021), de Sueli Maxakali. Adianto aqui minha hipótese: trata-se de uma forma da diferença que é inventada e produzida pela consistente inconstância da alma selvagem: da assimilação interessada ao simultâneo desprezo pela reificação da coisa assimilada e seu posterior reaproveitamento, seletivo, negociado, ressignificado.

Palavras-chave: cinema indígena, transfiguração étnica, Darcy Ribeiro.

Resumen: Este ensayo parte de la premisa de que la “transfiguración étnica” preconizada por Darcy Ribeiro puede ser reutilizada de manera paródica para pensar algo que el propio Darcy no previó: el cine indígena. Con esto, pretendo resaltar el aspecto muy singular de este conjunto de películas y plantear una pregunta fundamental: a partir del debate en torno a la historia transformacional que preconiza la categoría “transfiguración étnica”, cómo pensar la aparente contradicción y la fuerza renovadora del cine protagonizado por pueblos originarios? Pretendo exponer aquí esta diferencia a través del análisis de dos películas: “Ava Yvy Vera — Terra do Povo do Raio” (2016), del colectivo Kaiowa formado por Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Johnaton Gomes, Joilson Brites, Johnn Nara Gomes, Sarah Brites, Dulcídio Gomes y Edna Ximenes; y “Yãy tu nũnãhã payexop: Encontro de Pajés” (2021), de Sueli Maxakali. Adelanto aquí mi hipótesis: es una forma de diferencia que se inventa y produce por la inconstancia consecuente del alma salvaje: de la asimilación interesada al desprecio simultáneo por la cosificación de la cosa asimilada y su posterior reutilización, selectiva, negociada, resignificada.

Palabras clave: cine indígena, transfiguración étnica, Darcy Ribeiro.

Abstract: This essay starts from the premise that the “ethnic transfiguration” advocated by Darcy Ribeiro can be reused in a parodic way to think about something that Darcy himself did not foresee: Indigenous cinema. With this, I intend to highlight the very unique aspect of this set of films and pose a fundamental question: starting from the debate around the transformational history advocated by the category “ethnic transfiguration”, how to think about the apparent contradiction and the renewing force of the cinema starring native peoples? I intend to expose this difference here through the analysis of two films: Ava Yvy Vera — Terra do Povo do Raio (2016), by the Kaiowa collective formed by Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Johnaton Gomes, Joilson Brites, Johnn Nara Gomes, Sarah Brites, Dulcídio Gomes and Edna Ximenes; and Yãy tu nũnãhã payexop: Encontro de Pajés (2021), by Sueli Maxakali. I advance my hypothesis here: it is a form of difference that is invented and produced by the consistent inconstancy of the savage soul: from interested assimilation to simultaneous contempt for the reification of the assimilated thing and its subsequent reuse, selective, negotiated, resignified.

Keywords: Indigenous Cinema, Ethnic Transfiguration, Darcy Ribeiro.

Introdução

A premissa de que parte este ensaio é a de que a “transfiguração étnica” preconizada por Darcy Ribeiro pode ser reutilizada de forma paródica para pensar algo que o próprio Darcy não previu: o cinema indígena. Onde o poder hegemônico se farta de distribuir o direto de viver e morrer, impressiona que entre os povos originários ainda ressoe a voz e a expressão da diferença, voz que ecoa em alto e bom som na realização de filmes. Seria cruel imputar à produção cinematográfica indígena algo que remetesse a um indício de resistência minimamente suficiente para que essas populações sobrevivam e preservem o seu direito à vida, quando se sabe que a comunhão entre a gana do capital e o braço armado do estado resulta em morte e destruição. O que pretendo aqui é, parodiando a transfiguração étnica darcyniana, a forma e o método, ressaltar o aspecto singularíssimo desse conjunto de filmes. Apesar de sua forma breve e um tanto quanto acelerada, meu objetivo aqui neste ensaio é posicionar uma indagação de fundo: a partir do debate em torno da história transformacional preconizada pela categoria “transfiguração étnica”, de que forma pensar a aparente contradição e a força renovadora do cinema protagonizado por povos originários? O ensaio não se furta a perceber a diferença indígena à contraluz do progresso coletivo e nacional, diferença esta que esteve na base teórica, tanto do Positivismo como, mais tarde, do Modernismo paulistano — ainda que o faça com reservas e reconhecendo os limites dentro dos quais se moveram as respectivas tendências políticas, sociais e culturais.

Para encaminhar essas questões, tomaremos como ponto de partida as duas produções cinematográficas que foram se atualizando nas florestas em um interstício de mais ou menos cem anos. O cinema na floresta corresponde aos filmes de Major Luiz Thomaz Reis, que, no âmbito da Comissão Rondon, foi responsável por colocar em prática uma estética estruturada por pressupostos positivistas, encenando diversas modalidades de normalização dos povos originários, indicando o que podemos chamar de “modernização conservadora”. O cinema da floresta, por sua vez, indica o vasto cinema produzido por diversas etnias originárias, cinema este que eclode em meados dos anos 1970 a partir das investidas de Andrea Tonacci com o Betamax e o VHS, e, posteriormente, no projeto Vídeo nas Aldeias, animado por Vincent Carelli. Nossa hipótese é que este movimento, do cinema na floresta para o cinema da floresta, produziu um campo único de experimentação através das potencialidades sensoriais, filosóficas e políticas do cinema. Através desses filmes, penso que se pode tensionar os sentidos da chamada modernização e de sua inserção em um espaço de expectativa bastante divergente daquele que originou o termo “transfiguração étnica”. Adianto aqui minha hipótese: trata-se de uma forma da diferença que é inventada e produzida pela consistente inconstância da alma selvagem: da assimilação interessada, ao simultâneo desprezo pela reificação da coisa assimilada e seu posterior reaproveitamento, seletivo, negociado, ressignificado (CASTRO, 2013). Pretendo expor aqui essa diferença através de dois filmes: Ava Yvy Vera — Terra do Povo do Raio (2016), do coletivo Kaiowa formado por Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Johnaton Gomes, Joilson Brites, Johnn Nara Gomes, Sarah Brites, Dulcídio Gomes e Edna Ximenes; e Yãy tu nũnãhã payexop: Encontro de Pajés (2021), de Sueli Maxakali. Parte dessa diferença se relaciona diretamente às inovações no exercício do extracampo e do antecampo, ambos assinalados em artigos importantes assinados por André Brasil e Bernard Belisário — “...como o jogo entre campo, extracampo e antecampo – tão central em nossa teoria do cinema – se apresenta aqui complexificado.”

Antes de prosseguirmos, cabe contextualizar eventuais rasgos críticos em torno da expressão darcyniana – nunca ao indivíduo que a criou. Basta recapitular a intensa e volumosa trajetória política, militante e intelectual de Darcy Ribeiro para pormenorizar quaisquer aspectos eventualmente problemáticos de suas teorias. Suas ações, que ecoam até hoje na forma como pensamos o Brasil e os meios de superação do subdesenvolvimento, indicam similaridade com o “homem de ação” preconizado por Maquiavel, portador de Virtú e capaz de desenvolver, dentro de uma lógica eficaz, um agir no estado em torno do bem comum. “Etnólogo de peso, educador de grandes projetos, político que almeja um devir histórico mais coerente, romancista consagrado, enfim, uma pessoa plural.” (CARVALHO, 1986, p.171). Trata-se, assim, de um ensaio redigido de um ponto de vista simpático a Darcy Ribeiro, ainda que reconheça limites no método e nas formulações, como, por exemplo, na forma conceitual do conceito de transfiguração étnica.

Transfiguração étnica do cinema

Antes, porém, será necessário fundamentar a paródia. A possibilidade, enquanto método e perspectiva ética, de uma antropologia simétrica, nos impele a reconsiderar o prefixo “etno” como, por exemplo, nos termos “etnologia” ou “etnomatemática”. Como o prefixo “xeno”, que opera tendências antagônicas em termos como xenofilia e xenofobia, e o prefixo “homo”, como se pode perceber em homofobia e homossexual, a ideia de uma etno-coisa opera dentro de um campo de transigências e intransigências determinadas por relações de exclusão e inclusão, de tal maneira que a questão nunca se delimita por um debate meramente terminológico. Para cada uma dessas expressões, cimentam-se ferramentas políticas e dispositivos de conflito, configurando um campo de batalhas e negociações, uma agonística entre perspectivas. Ante a história crítica do conceito “transfiguração étnica”, sua relevância hoje na antropologia parece ser a de um fóssil conceitual cujo único interesse se resumiria a servir como fragmento de ideologia, uma pista ressequida que sedimenta e confirma os descaminhos de todo progressismo, de toda “história transformacional”. Se pudéssemos, contudo, realocar as percepções mais corriqueiras do problema étnico em termos como “transfiguração étnica” — ou, a partir de um estudo etimológico, termos como “etnomusicologia” — não seria legítima a pergunta pelo tipo de relação perspectiva que determina o enunciado, pelo ponto de vista de quem enuncia? Se puder levar adiante essa hipótese experimental, pergunto: o que é que se transfigura no conceito de “transfiguração étnica”? A etnia ou a própria transfiguração? A etnia de quem, a transformação de quem, do que e no que? E as operações de transformação, estéticas, técnicas, filosóficas? Quem está sendo avaliado dentro deste diagrama conceitual circunscrito às vicissitudes de um termo como “étnico”? Ou, por fim, seria a diferença étnica a força transformadora e transfiguradora de perspectivas?

Em todo caso, talvez Darcy não esperasse que eclodisse, no Brasil do século XXI um cinema indígena que fosse capaz de tensionar a própria noção de “transfiguração étnica”. Pois, no caso do cinema indígena, parece que a transfiguração que se opera é a do próprio cinema, prática estabelecida no campo de um “outro” aparentemente desprovido de sentido “étnico”, isto é, no campo do Ocidente, dos movimentos do capital e do aparato científico na Modernidade. É legítimo também imaginar que não é o branco que inventa o cinema, mas o índio que jamais cessou de ser inventado pelo cinema dos brancos, seja John Ford, seja Jean Rouch. Há duas questões que podem justificar a crítica a uma suposta injustiça simétrica, pois não foi o índio que inventou a antropologia, tampouco o cinema. Mas o que me parece, em suma, é que, ao se apropriar da linguagem e da técnica cinematográficas, coletivos e indivíduos indígenas foram capazes de produzir uma transfiguração étnica do cinema, tido como majoritariamente branco, criando um cinema irredutível ao Cinema com C maiúsculo da história oficial. O cinema, cuja criação atribuímos à etnia caucasiana, se transfigura em uma máquina que desacelera a aculturação, que cimenta tradições (isso é muito perceptível no caso dos Xavante e dos Kuikuro) e até mesmo cria novas tradições (como no caso dos Maxakali).

Darcy Ribeiro considerava que a “transfiguração étnica” — sobretudo em O Processo Civilizatório (1968) e Os Índios e a Civilização (1970) — decorria de um método de observação que se constituía a partir de uma visão geral e crítica da imposição violenta de padrões civilizatórios sobre esses povos, do qual o cinema parece representar uma exceção subversiva. Primeiramente, Darcy toma como ponto de partida uma avaliação quantitativa e generalizante dos efeitos da expansão civilizadora sobre os povos originários:

O processus, tal como o reconstituiremos, não se aplicará em todos os pormenores a qualquer tribo tomada em particular. Em cada caso ele tende a assumir uma feição característica, decorrente das diferenças econômicas regionais, das peculiaridades das culturas tribais ou dos segmentos da sociedade nacional com que elas entraram em contato. Estas variantes lhes imprimem colorações especiais que só historicamente poderiam ser determinadas. Mas não impossibilitam seu estudo num nível teórico de análise.” (RIBEIRO, 1977b, p.217).

Se a grande questão colocada pela antropologia contemporânea continua sendo “a diferença”, o método darcyniano parece seguir o movimento contrário, pois, como o próprio escreve, haveria uma certa incompatibilidade política entre as diversas “colorações” imanentes a cada grupo originário e a necessidade de se produzir teoria, análise e, em última instância, políticas públicas. Em defesa de uma “análise global”, Darcy anuncia, de saída, que seu método não pretende privilegiar, nem dar-se ao cotejo dos casos particulares e das singularidades para, em suas palavras, “romper a historicidade das situações concretas de enfrentamento entre os índios e a civilização para, transcendendo delas, construir um modelo hipotético do processo de transfiguração étnica”. Para tanto, toma como ponto de partida quatro dimensões “conceitualmente isoláveis” da realidade. Como descreve Edgar de Assis Carvalho:

“A transfiguração étnica procuraria, por outro lado, destacar os processos históricos de formação e transformação das etnias tendo como pano de fundo o conjunto das compulsões ecológicas, bióticas, socioeconômicas e ideológicas que a sociedade nacional lhes impõe. Quem folheia Os índios e a Civilização vê desfilar diante de si as consequências deletérias das frentes de expansão “civilizatória” representadas pelo extrativismo, pela expansão pastoril e agrícola, os resultados fundamentais da visão humanista de Rondon, os propósitos reais da catequese, as pressões sociais que cercaram a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910, a propagação das doenças, os efeitos neutralizadores da pacificação, os processos programados de depopulação étnica e tantas outras realidades que moldaram o perfil dos grupos indígenas no século XX. Diante dessas condições, caberia aos antropólogos, além de executarem com zelo suas pesquisas de campo, algo mais: denunciar frente à opinião pública internacional qualquer ato de genocídio praticado contra as populações indígenas, devolver aos índios o capital cultural que lhes foi retirado na pesquisa e usurpado em sua história e incluir como prioridade na área educacional, do primário à universidade, uma análise mais pormenorizada das formas de sobrevivência, libertação e florescimento étnicos.”(CARVALHO, 1986, p.172).

Em uma perspectiva biótica, ao nível das relações entre índios e não-índios, transita-se pelo plano ecológico; e no plano biopolítico, seja na frequência com que os brancos transmitem suas doenças, seja nos elementos que os povos originários herdam da governança, da tecnologia, da economia política egressa dos não-indígenas. É a partir desses eixos de debate, isolados em suas particularidades, mas generalizados pelo método, que Darcy avançará na hipótese de uma “transfiguração étnica”, isto é, um modelo de interpretação estruturado sobre três imposições: um primeiro modelo que impõe “a fuga para territórios ermos, com que apenas adiam o enfrentamento”; um segundo, caracterizado pela reação hostil, que impõe “um estado de guerra permanente”; e um terceiro, aquele que impõe um convívio forçado, uma “fatalidade inelutável”. Nos três casos, os povos originários são como que empurrados de sua coletividade constituinte para fora de seu habitat natural, espiritual, filosófico, técnico, em suma, fora daquilo que lhe constitui e lhe é imanente.

Contudo, a categoria cunhada por Darcy parece alinhavar uma posição ambígua, simultaneamente científica e crítica, em relação às estratégias a que recorrem os povos indígenas em vistas de buscar meios de sobrevivência. Em parte, porque seu objetivo era destronar outras generalidades, como, por exemplo, a que permanecia resguardada sob o termo “assimilação”, herança do Evolucionismo e, particularmente do Funcionalismo. Tanto o funcionalismo em sentido estrito, como no caso de Lamark e Raymond Firth, como o “funcionalismo estrutural”, que servirá como fundo conceitual, por exemplo, para a antropologia social de Malinowski, acabavam por formular argumentos incapazes de perceber as diferentes colorações cosmopolíticas como um dos campos possíveis de garantia da permanência e da potência da indianidade. A carga de generalização no conceito de transfiguração étnica visa a estabelecer a solidez do método contra as limitações do funcionalismo, mas, em contrapartida, seu relativo desprezo pela diferença a torna maleável, adaptável a determinados contextos. O jogo que proponho aqui parte, portanto, da mesma sensação de “cobertor curto” exposto pelo jogo teórico e analítico proposto por Darcy: substituir o pólo de atenção que orienta as limitações da generalização dialética por delimitações que deem conta de como o cinema parece imputar um outro aspecto à transfiguração. Pois, além de gerir e criar a própria imagem, os povos indígenas que produzem cinema conservam e criam também um espaço-tempo que decorre de suas visões próprias, e não aquelas visões de tempo, imagem, acontecimentos e história hipotecadas ao primado do cinema do colonizador.

É justamente no cinema que a própria noção de transfiguração étnica parece alcançar alguns limites particulares. Essa transfiguração parece provisória em relação ao ser-índio, pois essas equipes formadas nas aldeias se apropriam do cinema como uma máquina de fabricação de outros tempos e espaços-tempo. Como se dá esta fabricação? Que tipo de pensamento, de técnica, de percepção do plano, da montagem, da sonorização etc., agita e constitui a diferença cinematográfica indígena? Mais do que isso, trata-se de também de sublinhar como, devido à proliferação intensiva da diferença, a própria expressão “cinema indígena” parece inadequada. Trata-se, portanto, da transfiguração do próprio cinema: transfiguração, operada por indivíduos de comunidades originárias, de uma arte que nasce no ápice da cultura europeia moderna, no contexto histórico e cultural de culminância triunfalista da noção de progresso técnico e científico, que decorre da mesma empresa colonial que massacrou os povos ameríndios. Minha hipótese é a de que estaríamos presenciando, então, um duplo movimento da realidade: uma espécie tenebrosa de guerra final, onde os povos indígenas estão sendo massacrados a olhos vistos e sem travas pelo governo que assume o Brasil em 2018, bem como os interesses econômicos correlatos a esse governo; enquanto, por outro lado, um estado de coisas no qual a cultura indígena nunca esteve tão acessível e produtiva, a ponto de, diante de filmes extremamente originais, levantarmos a possibilidade de uma “transfiguração reversa”, a transfiguração étnica do cinema.

Pretendo, então, focar mais na transfiguração (e na figuração) do que na etnia; o cinema indígena transfigura o cinema enquanto expressão étnica não-indígena. A transfiguração parodiada implica em repensar a “transfiguração étnica” em termos de um campo dialético, tensionado continuamente pela perspectiva (as chamadas “colorações”, isto é, a diferença). Em contraponto à dialética da transfiguração, temos a diferença afirmada na inconstância da alma selvagem preconizada por Eduardo Viveiros de Castro: ouvidos moucos, esquecimento, relação simultaneamente intensa e vaga, mármore e murta, relação refratária e aberta com a cultura que se pretende dominante. A inconstância, porém, implica em uma certa constância da inassimibilidade seletiva, o caráter reitera a singularidade. A reversibilidade do esquema: a antropologia considera o sistema religioso no campo da cultura, mas a cultura também se oferece como um sistema religioso, visto que demanda fé, culto e continuidade. Haveria uma dialética da diferença embutida na inconstância da alma selvagem? Haveria uma reversão sub-reptícia da diferença na transfiguração darcyniana? O cinema indígena, pelo modo como transfigura a gramática e a sintaxe do cinema, mostra que não há dialética, apenas diferença e diferenciação nesse cinema. O cinema indígena, pelo caráter resistente e a inconstância da alma ameríndia — que acolhe de maneira própria e insubmissa às formas de culto ocidentais —, produz as condições de possibilidade para uma transfiguração étnica do cinema.

O foco no termo agora recai sobre o problema da sensibilidade: que transfiguração, que potência de metamorfose? A própria possibilidade de trans-figuração do cinema, implica em observar modos e maneiras de transmutar ou modificar a figura e a figuração com que se produz um “cinema indígena”. Para a transfiguração, a figura busca escapar da “dialética entre não-ser e ser outro” (Paulo Emílio); no jogo estabelecido pela inconstância da alma selvagem, a diferença impõe uma atenção descuidada, uma “incompetência criativa em copiar” (novamente, Paulo Emílio), uma produção própria de algo que talvez nem deva se inscrever em campos correlatos às noções de estética, percepção ou forma. Darcy: o índio se transforma, mas não deixará de ser índio. Sim, ele se torna outro índio, um índio cineasta, um criador de tempo e de espaço. A inconstância é uma constância: a da vingança. Viveiros observa: a bebedeira, a troça, a poligamia, o canibalismo, a má vontade. A vingança afirma uma diferença: não é o ouvido mouco e a obediência necessariamente que corresponde a essa atitude, mas a apropriação, a recusa positiva. A dialética darcyniana recalca o drama indígena, recalca a diferença de forma dramática. A inconstância da alma selvagem é compreendida a partir de uma comédia dialética da assimilação, assinalando o seu ridículo. O cinema, portanto, dentro desta comedialética da assimilação, se transfigura em uma ferramenta capaz de afirmar, de forma irônica (pois não submissa), as diferentes “colorações” de que nos fala Ribeiro.

Cinema na floresta: Duas histórias separadas por 100 anos.

A primeira consiste na trajetória e nos feitos de um major cineasta. Do ponto de vista de uma modernização conservadora, difícil cogitar um signo, um episódio tão enigmático e contraditório como o do Major Luiz Thomaz Reis. Criado o Serviço de fotografia e cinematografia da Comissão Rondon, Reis assume a seção. Enviado a Londres e Paris em 1912 com o objetivo para comprar equipamentos de ponta, como as câmeras Debrie, e tomar lições de como operá-la nos laboratórios Pathé. Entre 1912 e 1927, Reis foi responsável até 1930 pela finalização de 9 longas-metragens. Outro signo da modernidade tardia: Reis montou seu laboratório fotográfico na escuridão da Floresta: tambores para enrolar as películas virgens, cubas para banhos de revelação, fedor de hipossulfito e hidroquinone. A revelação muito provavelmente era realizada com a água do Rio Amazonas, e como observa Reis:

“A temperatura não nos deu as condições necessárias para processar os banhos químicos.... Outro problema era o número de pequenos insetos, como mosquitos, que atacavam o filme e grudavam na gelatina, atrapalhando nosso trabalho. A natureza triunfou em todos os lugares.”(MACIEL, 1998, p.257).

Todo esse esforço no âmbito militar (“morrer se for preciso, matar nunca...”) para reproduzir, através de um aparato técnico-científico e estético, uma documentação ideologicamente essencialista, plenamente associada ao positivismo e suas visões totalitárias. Em seus filmes, perfis biométricos e closes, vastas panorâmicas e registro de hábitos e ritos, se interpenetram para revelar a perene ambiguidade do registro etnográfico. Para Jurandyr Noronha, “nos filmes de Reis habita o registro de tudo aquilo que “enfim, implica o conhecimento de uma cultura”, o que de alguma forma nos leva a perguntar sobre seu pioneirismo na prática do filme etnográfico, ao lado de Edward Curtis e, mais tarde, Robert Flaherty (NORONHA, 1987, p.45). Para a historiadora do cinema Maite Conde, e nesse caso tensionamos o veredito otimista de Noronha: “Ao projetar o projeto nacionalizador da comissão Rondon, a produção cinematográfica de Reis visava encadear uma nação visual, imaginativa e afetivamente interligada.” Acerca do cinema, o próprio Reis escreveu: “O cinema é um instrumento de investigação e de registro da realidade, mas a elaboração artística do cineasta também é importante.” Sobre si mesmo, Reis declarou: “sou um artista expedicionário.”

Segundo Fernando De Tacca, em Rituais e festas Bororo (1917), Major Luiz Thomaz Reis mostra o índio como “bom selvagem”, a estruturar visualmemte um “mito de origem” — lemos na última cartela: “tínhamos ali a sensação dos remotos tempos do Descobrimento”. Registro descritivo, mediado pela cartela, que descreve aquilo que será mostrado. Comentários de enaltecimento da cultura (“fazem tecidos melhor que os feitos à máquina...”), junto a observações de cunho etnográfico sobre ritos e práticas. A uma certa altura, os índios posam para a filmagem, o que denota um grau além da descrição e do registro. Há algo aqui que se aproxima mais de Jean Rouch do que de Flaherty: assumir a alteridade difere da atitude de forjá-la. Mas há algo mais Flaherty do que Jean Rouch: o que é o outro ainda ressumbra, como resquício, o tempo infinito do mistério e do desconhecido.

Em Posto Alves de Barros dos índios Cadieus (1930), Reis constrói uma representação do indígena “pacificado”. Porém, em Ao redor do Brasil (1932), percebe-se a inclinação a iluminar um registro do desbravamento, das “descobertas” voluntárias, dos missionários de boa vontade. As dificuldades impostas pelo Rio Ronuro e a densa mata são retratados em seus pormenores: homens de pele escura derrubando a mata densa e convertendo jatobá em canoas, com o objetivo descer o rio. As imagens dos índios trabalhando parecem não terminar nunca. Já em Inspetoria especial de fronteiras (1938), Reis, auxiliado por Charlotte Rosenbaum, nos lega uma forte impressão de que nesse caso, na classificação criada por De Tacca, o índio é retratado como “integrado/aculturado”. “Quase todos são índios”, “as jovens índias também têm a sua instrução de horticultura”; “há entre elas algumas arianas...”. As cartelas indicam o que vemos nas imagens: crianças de pele escura e cabelos lisos, trajando vestimentas ocidentais, perfiladas em salas de aula e realizando tarefas em oficinas de carpintaria. As imagens de uma enfermaria, “tudo atendido por irmãs salesianas”.

Major Reis se utiliza do aparato técnico e científico para reproduzir uma imagem da nação e do que seria especificamente nacional, uma visão total de país, ordem e progresso como manda o figurino positivista, abusando da ortopedia social e do humanitarismo de origem francesa, talhando seus filmes a partir de critérios ambíguos entre a ciência e a arte. Uma imagem do tempo: o tempo é linear; a seta do tempo move-se para frente; a evolução é inevitável; o passado é algo a ser cultuado como também superado; o presente é o espaço de experiência de ordenação, catequese e disciplina; e o longo futuro, o desconhecido, se afigura como horizonte de expectativa; a seta do tempo ensaia uma imagem do movimento. A relação entre plano e montagem, entre observador e observado, apesar da beleza das imagens, reflete cinematograficamente o campo moral correspondente.

Cinema da floresta: 100 anos depois, a segunda história.

A partir do filme Bicicletas de Nhanderu, André Brasil e Bernard Belisário redistribuem alguns conceitos da linguagem cinematográfica. O campo diz respeito à construção ficcional; o antecampo se refere ao que está atrás da câmera, e diz respeito à construção de fato: trata-se da relação do que é filmado com a equipe de filmagem ou, pelo menos, com o que está por trás da câmera. Em filmes de ficção, o espaço entre a equipe e o que é filmado é demarcado, trata-se de outra realidade. Em documentários, a relação obedece a determinadas gradações entre o fato e a representação. Já o extracampo age enquanto uma força simbólica capaz de produzir o desdobramento da temporalidade, como se entre fato e representação houvesse uma mudança de fase: as imagens reais são modificadas por uma relação especial com o tempo (BRASIL, 2013). O extracampo mobiliza “as mensagens e o auxílio dos deuses”, de tal forma que há o “extracampo cosmológico”, isto é, uma demanda anunciada por meio dos sonhos e o “extracampo geopolítico” (“a ‘resposta’ dos Guarani – no filme, fora do filme”). Para Deleuze, o “extracampo” corresponde “ao que, embora perfeitamente presente, não se ouve nem se vê” (DELEUZE, 1983, p.27). Essa teia de negociações entre o campo/contracampo, extracampo e antecampo, é, nas formas do cinema indígena, liberadora de outros modelos e perfis de temporalidade que incidem decisivamente sobre a experiência cinematográfica.

A partir dessa percepção, através de filmes realizados por Takumã Kuikuro e Ariel Ortega, Brasil e Belisário estudam o modo variável como o fora-de-campo invisível se relaciona ao campo visível, fenomênico (BRASIL, BELLISÁRIO, 2016). Em outro artigo, o mesmo André Brasil menciona o termo “antecampo”. Ambos testam essa hipótese a partir do filme A iniciação do jovem xavante (1999), do cineasta xavante Divino Tserewahú, que, segundo os pesquisadores, foi obrigado a refazer o filme, distendê-lo, alongar seus planos, abrir o filme a suas relações com o fora de campo — obedecendo a exigências dos anciãos para que deixasse no filme o tempo real dos acontecimentos e rituais. Os pesquisadores observam a partir do resultado, que “no filme, as falas não são traduzidas para o português, e os planos, em sua maioria, mantêm uma intrincada relação com a duração dos eventos rituais; a montagem segue o movimento cíclico e reiterativo das performances corporais e sonoras.” Em relação a esse processo, nas palavras de Tserewahú, trata-se de “desmanchar um filme”. A dialética que se coloca é a que impõe um artifício capaz de diluir ou estender o tempo: devora-me ou desmancho-te? Devora-te ou desmancho-me? Devorar ou desmanchar, eis a questão.

Com essas ideias em mãos, adentremos no universo do filme Yãy tu nũnãhã payexop: Encontro de Pajés, de Sueli Maxakali. Pois este dilema, entre a montagem que suaviza a transcorrência do tempo e uma outra, que reforça essa mesma transcorrência, parece ser uma constante entre os filmes produzidos pelos Maxakali. Também conhecido como Tikmũ’ũn, esse povo conseguiu, apesar da devastação, da violência e da perseguição, preservar em seus corpos e em sua memória a diversidade dos seres animais e vegetais da Mata Atlântica, registrada em cantos, histórias e rituais. Os Tikmũ’ũn preservaram, inclusive, seu idioma originário, a última língua da família maxakali falada nos dias atuais. Para além de termos genéricos como “cinema indígena”, é marcante o surgimento e o desenvolvimento do cinema Maxakali, expresso em filmes como Yãy tu nũnãhã payexop: Encontro de Pajés, de Sueli Maxakali.

Em julho de 2020, em plena pandemia de Covid-19, cerca de 100 famílias Tikmũ’ũn-Maxakali deixaram a reserva de Aldeia Verde (Ladainha, MG) em busca de uma nova terra. A tensão causada pelo isolamento tornou mais urgente a necessidade de uma terra rica em matas e, sobretudo, água, na qual pudessem fortalecer as relações com os povos-espíritos yãmĩyxop, através dos cantos, rituais, festas e brincadeiras. Uma breve análise do plano final deste filme revela a extraordinária experiência proposta por Sueli Maxakali. O enquadramento específico de um ritual carrega consigo uma sorte de explosão festiva no registro de um banho de rio. O campo, enquanto construção ficcional, é ideativo, é uma concepção de imagem. O extracampo cosmológico se materializa no plano que dá conta de uma expressão exultante de alegria, tendo por antecampo a necessidade da água com o objetivo de atender à demanda enunciada em um sonho. Há o extracampo geopolítico que responde pela dificuldade de encontrar a terra e negociar uma permanência. A sequência trabalhada a partir da justaposição de um tempo mítico (uma celebração de cunho ritual) e um tempo histórico (pois, o registro, tal como foi realizado, denota uma certa relação com a ideia de acontecimento e memória). A solução encontrada é a câmera estática, como um olho que assiste pacientemente o transcorrer de algo que não pode ser editado e remontado para a fruição de um espectador. O plano estático, nesse caso, tem uma dupla função: resguardar, através do registro, um acontecimento em sua integridade espaço-temporal; e, simultaneamente, exibi-lo sem as habituais concessões que os clichês etnográficos geralmente transmitem — como, por exemplo, um foco no movimento ou a narração em off com tom explicativo ou ilustrativo.

Cabe agora um breve interlúdio em torno do chamo aqui figuração e de que forma se torna elemento correlato a uma transfiguração. Na Lógica da sensação, Deleuze (2007) nos mostra que a figura no quadro é um campo operatório e sensível, ao passo que a figuração, ao contrário da figura, ilustra algo que já se encontra previamente na representação. “A narrativa é o correlato da ilustração.” A figura, ao contrário, não ilustra, não representa e, sobretudo, não narra, não ordena a representação, mas atém-se ao fato. A figura é um fato, uma ação. “Liberar a figura para ater-se ao fato”. Figurar a figura para exibir o fato, isto é, a diferença. Mas o que significaria transfigurar a figura? Usar os aspectos consolidados — gerativos, sintáticos e técnicos do cinema —, de uma forma completamente anômala em relação ao cinema recebido. A figura no cinema indígena — o fato, a ação, a criação — está atrelada não a uma representação ou expressão, mas a uma dimensão ambígua, primordial e atual, que se atualiza e se desdobra mediada pela cumplicidade do antecampo e de uma percepção aguda do extracampo. Para Deleuze, a figura é o signo de deformações, transformações ou transmutações, justamente como se pode perceber na forma como antecampo e extracampo são trabalhados pelo filme Maxakali, isto é, a filmagem é um registro de metamorfose e de descoberta, algo que não está exatamente mostrado no plano. Ter uma ideia figural corresponde a uma forma de ação e, no caso de O Encontro de Pajés, essa ideia é o plano estático de uma explosão cósmica de alegria. Aquelas crianças gritando e jogando a água para cima excedem, em muito, a representação direta de uma festa ou mera brincadeira. É o signo de uma operação portadora de sentidos geopolíticos, cosmológicos e poéticos produzidos por uma relação transformadora do campo, do extracampo e do antecampo. No discurso cinematográfico, as figuras são imagens atrativas e atratoras, capazes de produzir experiências entre o que é visto e ouvido e o que só aparece enquanto elemento de extracampo.

Sueli Maxakali é uma cineasta que tem uma importância imensa nesse processo de luta porque, para além do registro, ousa utilizar a máquina cinematográfica para plasmar uma imagem do tempo e uma imagem do movimento que nós não conhecíamos no cinema brasileiro. De outra forma, ela usa o cinema como forma de registrar a vida comum do seu povo e, através dessa prática, revela mais do que hábitos, subjetividades e lutas — como as situações terríveis registradas de forma intensa e corajosa em Essa Terra é nossa —, revelando também uma forma de pensar e projetar imagens do tempo e do movimento absolutamente diferente daquelas apresentadas por Reis. Uma imagem do tempo: o tempo é nao-linear; a seta do tempo justapõe o espaço de experiência e as visões de passado e futuro, mas sobretudo as de passado, fonte de imaginação, máquina do mundo. A transfiguração como figuração transformada: o plano parado, que, contudo, conserva trepidações e movimentos sutis, estratégia liberadora de fantasmas. O exercício do antecampo e o extracampo, assinalados por Brasil e Belisário, se mostra ativo.

Um outro filme que chama a atenção por transfigurar a máquina cinematográfica é Ava Yvy Vera – Terra do Povo do Raio (2016), direção coletiva protagonizada por lideranças e jovens da Tekoha Guaiviry (território retomado do povo Kaiowa) no Mato Grosso do Sul: Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Johnaton Gomes, Joilson Brites, Johnn Nara Gomes, Sarah Brites, Dulcídio Gomes e Edna Ximenes. O filme tem como ponto de partida a luta Guarani e Kaiowa no Mato Grosso do Sul para retomar as terras tradicionais tekohas, “reconstituindo a possibilidade de viver o seu modo de ser, o seu teko.” Realizado por um coletivo egresso das terras Guaiviry, Ava Yvy Vera expõe, de forma original, uma experiência de cinema que mostra a luta que culminou na retomada do território onde vivem hoje.

O início do filme é marcado por um plano parado, câmera na mão, que, no entanto, desenha pequenas oscilações de enquadramento. Uma estrada de barro ladeada por campos onde se observa um verde rigidamente disciplinado. Ventania inclemente. Ao fundo do plano, cobrindo o longo do caminho, duas árvores. A voz em off, narrada em língua Guarani-Kaiowá, indica os perigos do caminho:

“Todo dia eu vou para debaixo daquela árvore para fazer uma ligação. Seria melhor ter vindo de noite. Só é seguro vir à noite, durante o dia não é seguro. Há muitos, muitos pistoleiros por aqui. Eles estão sempre pela estrada, atirando e atirando ao longo da estrada. Durante o dia é impossível vir sozinho. Mas eu venho sozinho, pego meu tacape e venho sozinho. E ali, embaixo daquela árvore, eu faço a ligação, esta árvore funciona para mim como uma antena. (...) Eu ligava para FUNAI para virem aqui nos ajudar. Eles sempre diziam: ‘nós vamos amanhã’. Mas o sinal de celular parou, somente embaixo daquela árvore. Se minha câmera tivesse celular eu poderia tirar fotos daqueles que nos ferem.”

A câmera faz um movimento de aproximação da árvore e depois se vira para o descampado. Ele continua:

“Esse vento... Esse vento não havia no tempo da Floresta. Esse vento acontece porque os karai derrubararm a floresta.

A preocupação registrada no momento é obter sinal de internet e uma câmera “para registrar aqueles que nos ferem.” Somente embaixo de uma árvore particular, o protagonista em off obtém o sinal de internet. O personagem caminha em direção à árvore e diz: “essa árvore é como uma antena para mim”, enquanto mostra uma panorâmica da terra devastada: “isso aqui costumava ser uma floresta.” Rapidamente se percebe que as duas árvores que se tornaram referência para o narrador são as árvores que restaram. A floresta foi substituída pela plantação de soja. A sequência é brutal em vários sentidos, devido ao tipo de tensão que se constitui nesse filme entre a voz over — a voz de um sobrevivente —, o que é mostrado — um campo desmatado e disciplinado — e o que não é mostrado, pois ausente — as árvores, os frutos, as ervas medicinais e o espírito da floresta. Entre o “pensar sobre” ou “pensar enquanto” que caracteriza a narração over de Jean Rouch e o “pensar ao lado” de Trinh T. Min-há, há uma voz própria dessa voz over no cinema indígena. Essa voz se entranha no plano e desfaz qualquer evidência mais direta que a imagem possa representar. Estamos ainda no campo de um desenvolvimento muito desafiador de uma filmagem atravessada pelo extracampo e pelo antecampo. A transfiguração do cinema enquanto transformação dos meios para a construção da figura. A voz over descreve, explica, contextualiza, fala ao lado; no caso de Ava Ivy Vera, ocorre algo que afirma uma diferença na percepção técnica e sensorial: a voz over entranha a imagem de elementos que informam e são informados pelo antecampo e o extracampo. Sobre Ava Ivy Vera, o crítico de cinema Fábio Andrade escreveu

“O acesso a uma realidade sentida torna-se ainda mais complexo quando a câmera é guiada por uma cosmologia inteiramente diferente – uma não limitada ao mundo visível, e passada entre os cineastas que trabalham completamente fora a indústria documental. (...) A riqueza do real recordado contrasta com a mesmice ordenada das colheitas, à medida que a câmera ganha mobilidade, movendo-se em direção à árvore e panorâmica. Camadas de história se fundem nesse fluxo entre imagem e som, criando toda uma paisagem que, embora indisponível para observação indicial, existe na dobra entre não ser e ser outra pessoa.”

Do contraste, porém, surge uma outra possibilidade de real, um real que é afetado por outra temporalidade, não necessariamente a temporalidade da recordação, sem que seja também o produto de algo que se deseja repetir em um futuro indeterminado. A sequência final registra uma celebração kaiowa chamada “katyhu”, uma dança para “incomodar os brancos na estrada” que se inicia durante o dia e vara a madrugada. Mais velhos e crianças, homens e mulheres, irmanados em danças, cânticos, bebida e comida. Ao final da festa, no plano fechado e absolutamente escuro, mergulhado no breu da noite, cintilam os trovões. Um diálogo se inicia onde se fala de uma “terra dos trovões infinitos”, onde os kaiowa vivos e mortos se reúnem. As palavras de um “mais velho” são ditas sobre um plano escuro, com sutis movimentações internas:

“Meu pai fala comigo lá do céu e suas palavras chegam a mim. Os trovões se unem para andar e cantar. Eu posso ver o relâmpago e ouvir o trovão, são palavras de Nhanderu. O trovão em suas palavras. Ele canta ‘eu estou vindo junto com o brilho, o brilho me protege’.”

Um vagalume cai ao longo da lateral esquerda do plano, ouvimos murmúrios de cansaço da dança e das libações. Os trovões, cada vez mais brilhantes, desenham uma paisagem de nuvens que encobrem o fundo do céu. Trata-se de uma narrativa mítica alicerçada em imagens presentes, tão míticas quanto aquilo que é dito pelo mais velho, que se estabelece de uma forma original através da utilização do extracampo e do antecampo.

Esta análise breve de dois filmes — em uma constelação filmográfica que cresce e se expande a cada dia — são insuficientes para delimitar diferenças tão profundas. Mas notem que esta análise testemunha em dois exemplos o que chamamos aqui de transfiguração étnica do cinema. O cinema de Sueli Maxakali usa o plano estático com uma densidade especificamente atrelada à temporalidade Maxakali, justapondo registros do tempo e da imaginação, produzindo algo entre a dilatação e a concentração do tempo como meio para exprimir uma epifania sensorial. Já o cinema coletivo dos Guarani-Kaiowá opera a câmera subjetiva e a voz over de forma, não a fazer uma explicar a outra, mas entranhá-las, implicá-las entre si de tal forma que, como em alguns poucos filmes de Apichatpong Weerasethakul (particularmente Cemitério do Esplendor, na cena em que os personagens passeiam por um palácio imaginário), o que não é visto participa ativamente do que é filmado e mostrado. Entendo que os dois casos são marcados por uma lógica de apropriação reversa, que transfigura a gramática e a sintaxe cinematográfica ocidental e cria novas formas de ver e sentir, outra sensibilidade. A inconstância da alma selvagem também modula conforme os termos de uma alegre traição: vingança sob a forma de um sequestro provisório da linguagem.

Conclusão

Se existem ecos e ressonâncias de uma concepção específica do Modernismo que não cessa de se imiscuir no imaginário do tempo brasileiro, observa-se que a despeito do massacre, o Brasil permanece atravessado pela presença daqueles cuja história a história não conta. A história geralmente é definida como um texto que implica na construção de um método de leitura e interpretação. Uma epistemologia da história revela questões candentes, questões embrazadas que, como na antropologia contemporânea, parecem acorrer a problemas filosóficos como identidade, alteridade e ontologia. Neste contexto, geralmente problematiza-se o método; mas o método nunca é neutro, porque sua maquinaria conceitual obedece a outras concepções que não remetem necessariamente a questões metodológicas: o que os filmes de Reis e os filmes dos povos Maxakali e Guarani Kaiowá nos mostram em toda sua complexidade são imagens variadas do tempo e imagens do movimento, imagens do massacre e da resistência de pontos de vistas singulares. Se a transfiguração étnica prevê a possibilidade de uma história transformacional, mesmo que a contragosto do intérprete, e essa história é marcada por insubmissão e violência, não parece de todo inadequado observar essa outra vanguarda do olhar, essa visão sintética de um mundo que não se explica, pois nos diz respeito apenas enquanto se coloca o termo cinema. O cinema, novamente, como em Reis, opera como mediador: Darcy e os missionários eram mediadores, mas que, seja para integrá-los, seja para denunciar sua integração forçada, recorriam ao único ponto de vista que lhes era possível acessar: o do protagonismo histórico. Quando o cinema dos povos originários começa a ser produzido, vislumbramos a transfiguração de uma autoridade: a autoridade discursiva eurocêntrica.

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