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A emergência do sujeito em mobilização: tempos e espaços do ser e do agir
La emergencia del sujeto en movilización: tiempos y espacios del ser y del actuar
The emergence of the subject in the social mobilization: times and spaces of being and acting
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 19, núm. 2, pp. 100-116, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 19, núm. 2, 2022

Recepção: 23 Julho 2022

Aprovação: 29 Novembro 2022


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: Práticas insurgentes e mobilizações sociais são frequentemente lidas apenas a partir de seus impactos, propostas, legados e estruturações produtivas, relegando a ação política a uma condição meramente utilitarista e corporativa. No entanto, as minúcias da emergência dos sujeitos mobilizados e suas subjetividades postas em riste revelam prospectos que permitem compreender os significados conjunturais e sócio-históricos da atividade mobilizada e insurgente no tempo e no espaço. Neste ensaio, procura-se demorar o pensamento acerca da constituição e da substância do sujeito que se mobiliza, refletindo subjetividade, agência, potência e resíduos existenciais consubstanciais à performance sociopolítica e à realidade social em constante contratura.

Palavras-chave: Sujeito, Agência, Mobilização social, Insurgência.

Resumen: Las prácticas insurgentes y las movilizaciones sociales muchas veces son leídas solo desde sus impactos, propuestas, legados y estructuras productivas, relegando la acción política a una condición meramente utilitaria y corporativa. Sin embargo, los detalles del surgimiento de los sujetos movilizados y sus subjetividades puestas en el punto de mira revelan perspectivas que permiten comprender los significados coyunturales y sociohistóricos de la actividad movilizada e insurgente en el tiempo y el espacio. En este ensayo buscamos retrasar la reflexión sobre la constitución y sustancia del sujeto que se moviliza, reflejando subjetividad, agencia, potencia y residuos existenciales consustanciales al desempeño sociopolítico y la realidad social en constante contracción.

Palabras clave: Sujeto, Agencia, Movilización social, Insurrección.

Abstract: Insurgent practices and social mobilizations are often read only from their impacts, proposals, legacies and productive structures, relegating political action to a merely utilitarian and corporate condition. However, the details of the emergence of the mobilized subjects and their subjectivities put in the spotlight reveal prospects that allow us to understand the conjunctural and socio-historical meanings of the mobilized and insurgent activity in time and space. In this essay, we seek to delay thinking about the constitution and substance of the subject that is mobilized, reflecting subjectivity, agency, potency and existential residues consubstantial with the sociopolitical performance and the social reality in constant contraction.

Keywords: Subject, Agency, Social mobilization, Insurgency.

Introdução

A ideia de uma coletividade criativa, criadora e protagonista parece habitar os recônditos do imaginário como uma definição idealista do conceito fugidio de sociedade. A ideia de coletivos, grandes concentrações de indivíduos e de grupos só é bem quista no ordinário quando fazem supor ordem, progresso, estabilidade e certo compromisso para um determinado cultivo de valores, imprecisos tanto na forma como no conteúdo.

Por certo que termos que evoquem massas ou multidões são combalidos tanto nos arcabouços políticos, quanto acadêmicos e populares. A ideia de multidão ou de massa é lasciva, isto porque sua prática - muito mais do que uma tentativa teórica de aprisionamento - faz supor instabilidade, desordem, contratura, mudança. O princípio constitutivo do que é coletivo ou qualquer aproximação epistêmica sobre o que representam grupos de indivíduos esbarra invariavelmente em certo caos.

O indivíduo, e sua realidade complexa de constituição, se coaduna com a própria realidade fora de si (que é soma de si, dos outros e das coisas). Essa existência partilhada se desenvolve por meio de um processo que desajusta, desloca e destrói, para, a partir desse entulhamento, ajustar, realocar e reconstruir. E na emergência de um sujeito, esse processo se torna parte de um movimento difuso e que se inclina por meio de uma pulsão transformadora que, antes da plenitude desejada, é atordoante.

O sujeito é um indivíduo que, ao rechaçar a produção de si pelos centros de poder, emerge como ator em torno de uma leitura de suas vivências, determinando metas e desenvolvendo práticas para que estas sejam alcançadas. Estas metas representam anseios por lugares ideais com os quais a interpelação da realidade levaria. E esses anseios não se dão sem uma partilha de outros sujeitos.

Portanto, procura-se refletir aqui a constituição e a substância do sujeito na mobilização social, pensando sobretudo sua emergência e sua atuação, elementos constitutivos da participação social, da ação política e da insurgência. O exame do imaginário popular, da cobertura midiática e frequentemente da academia convencionam o olhar sobre a mobilização em uma medida utilitarista, olvidando perscrutar o elemento performático que arregimenta e dá sentido à ação social.

Inicialmente, o texto se debruça sobre o germe da constituição do sujeito e sua consolidação com tal ante à ode da mobilização social como marcador material da existência em sua pulsão por transformação e interpelação da realidade. A seguir, cerca-se os desdobramentos dos sujeitos em suas conjunturas espaciais e temporais. No sujeito e seus devires estão as telas de contato entre a realidade, o tempo, o espaço, o passado, o presente, o futuro e o real.

A emergência e a substância do sujeito mobilizado

Na compreensão da envergadura de movimentos e mobilizações, a figura do sujeito é determinante. Antes do processo que gera coletividade, a entidade unitária que compõe o tecido mobilizador é a reflexão primária para se investigar a capilaridade de um movimento de natureza variada, não apenas sociopolítico. O sujeito reclama atenção não só por sua participação na operacionalização de atos, mas por sua constituição e, antes disso, sua definição.

Touraine (2009) postula uma diferença substancial entre os termos sujeito e indivíduo, cuja compreensão é cara para o debate da formação e reprodução de mobilizações. O indivíduo como ente dotado de autonomia e consciência verte sua existência a partir da produção de si mesmo. Tal produção pode ser livre ou gerenciada pelos centros de poder.

Nesse sentido, opõem-se os termos indivíduo e sujeito. O primeiro está radicado no campo da autonomia, da consciência de si e dos outros, promovendo tessituras de subjetividade, a partir da atrição com a realidade e a noção de alteridade. O indivíduo, de posse dessas consciências circunstanciais, empreende um movimento para suprir uma lacuna existencial natural: produzir a si mesmo por meio de suas vivências, destarte o processo de subjetivação.

Todavia, a dotação da consciência do mundo e sua realidade, do outro e sua individualidade, das interações que remontam alteridade não sinalizam estabilidade. O indivíduo trava na realidade um processo de subjetivação que não é nem estanque e nem cômodo. Ao abrir os olhos da consciência à realidade e ao(s) outro(s) por meio da separação de suas substâncias à própria substância, portanto autônoma, abre-se também a necessidade de unidade.

Esta unidade harmônica que nasce com o indivíduo, balizada no uníssono da realidade, se quebra na medida em que a percepção do ordenamento da vida lhe aplica, sem crédito, o débito da produção de si. O processo de subjetivação diz da procura que o indivíduo faz de uma reconstituição de si, esfacelada pela consciência adquirida ao longo de seu desenvolvimento vital. Ora, seu anelo está em encontrar balanço e unidade, reconstituindo-se uno.

Touraine (1998) declara que esta unidade e reconstituição desejada pelo indivíduo só se estabelece na medida em que este se torna sujeito. Retoma-se aqui o segundo termo. A condição de sujeito é a autopercepção que o indivíduo assume ao se reconhecer como criador de sentidos e transformações no seio social, institucional e político. A individuação, nesse prospecto, está atrelada à ordem da vida e que, ao sabor dos centros de poder, se revela em um processo de cooptação da subjetividade dos indivíduos.

No ordinário, o indivíduo é consciente de sua liberdade existencial, social e jurídica. E, assim, crê na produção do si mesmo de modo autônomo, deliberado e autogerido. No entanto, sua mera consciência não o torna plenamente um ator, capaz de destravar atos e construir ele mesmo sua trajetória sem o torpor de outros narradores.

São os sistemas hegemônicos que definem, normatizam e sancionam os papéis sociais dos indivíduos, sejam eles os papéis de consumidores, eleitores ou outras nomenclaturas que fazem crer autonomia total, mas são marcados por lógicas e apelos de dominação. Os impropérios hegemônicos fazem com que o indivíduo encene sua liberdade a partir da instrumentalização de sua condição e ação, a partir dos estratagemas da produção e do trabalho, que aprisionam sua capacidade de se autodefinir.

Quando a produção dos indivíduos é coproduzida pelas forças de dominação, sua ação é demarcada por uma atitude de consumo, como salienta Canclini (2006) ao associar a emergência cidadã como estruturada sob uma lógica de consumir a sociedade, ao invés de produzi-la ou transformá-la. Todas as necessidades sociais - e os desejos, para se ater à lógica de consumo - são naturais e justificáveis, mas respondem aos núcleos de poder.

Quando o indivíduo, no processo de subjetivação, se afirma como tal e passa a produzir o seu si-mesmo opondo-se às estruturas de dominação, é que se torna sujeito. A constituição do sujeito diz da recusa à produção da vida de modo artificial pela objetificação que os centros de poder desenvolvem sobre os indivíduos, como esclarece Touraine (2009). Nessa recusa à condição de objeto, o indivíduo faz emergir o sujeito, uma condição de experiência e transformação ativa da realidade.

Sobre a entidade sujeito, o sociólogo francês destaca que sua natureza não é apenas semântica ou etimológica, afinal:

O Sujeito não é uma simples forma da razão. Só existe mobilizando o cálculo e a técnica, bem como a memória e a solidariedade, e sobretudo lutando, indignando-se, tendo esperança, inscrevendo a sua liberdade pessoal em combates sociais e libertações culturais. O Sujeito, ainda mais que razão, é liberdade, libertação e recusa. [...] A ideia de Sujeito não cresce nos locais demasiado protegidos. É uma planta selvagem (TOURAINE, 1998, p. 86).

No ideário do sujeito repousam as tensões pela operacionalização da realidade. As feições da subjetivação que compõem as facetas identitárias do indivíduo e o inserem em uma orientação cultural se imbricam em um movimento social. Isto é, quando o indivíduo rompe as tramas das teias do poder, passando a destravar a livre produção de si, passa a questionar a dominação e o controle que instrumentaliza a vida ordinária, mobilizando-a e mobilizando-se.

Enquanto o indivíduo se constitui na percepção de sua autonomia e na consciência da realidade por meio da estabilidade da subjetivação, o sujeito é uma substância instável, sísmica. O nascimento do sujeito decorre da morte do ego (TOURAINE, 1998). O questionamento da ordem vigente e a querela sobre as estratégias de dominação fazem parte do processo de constituição do sujeito, cuja essência é movimento e mobilização.

A reconstituição de si, do indivíduo que se fragmenta ao perceber-se autônomo em relação ao mundo e ao(s) outro(s) e busca recompor essa harmonia tenra, se satisfaz na medida em que, sujeito, agora pode produzir a si livremente, opondo-se a papéis pré-fixados - bem como destinos pré-fixados. A produção de si disputada com centros de poder - que tão logo assumem o papel de inimigos - encontra sua quintessência na luta, em seus signos, objetos, espólios e processos.

O participante da ação mobilizadora, isto é, das práticas e forças que em movimento reclamam e transformam a sociedade em suas instâncias diversas é o sujeito. Tal prerrogativa dá ao indivíduo a condição de ator, de produzir ele mesmo a si e o mundo a partir do manejo de afetos e signos de luta. Ao interpolar sua existência à experiência social, sendo esta pujante e violenta, a atuação do sujeito então cumpre seu pleito de anelo por alternativas e possibilidades.

Na poética existencial do ser e do não ser, aqui trabalhada como o indivíduo que é produzido pelos centros de poder - mesmo crendo sua autonomia plena - ou o sujeito que reelabora sua condição por meio das estruturas que o atravessam, outro fator é cadente: o afeto. O primeiro desses afetos a compor a substância do que aqui tem se construído como sujeito é o amor.

O amor como jargão amplamente presente no imaginário popular tem aqui contornos da filosofia agostiniana e ganha sua cadência em Arendt (2010), sob a alcunha de amor mundi. O termo amor constrange por fazer supor relacionamentos ou idealizações românticas, todavia sua adequação é pontual. Como amor, esse sentimento que toma os sujeitos é um cuidado responsável pelo mundo.

Esse sentimento é marcado por uma disposição aberta em partilhar com os outros dimensões comuns e benfazejas, não tornando o mundo um instrumento objetificado, mas tecendo nele e por ele laços e vínculos junto aos demais sujeitos. O amor mundi é um cuidado que parte do entranhamento do indivíduo sobre as coisas deste mundo, e que como sujeito entende que sua condição existencial extrapola as camadas de sua própria individuação ou subjetividade.

Arendt (2010) chama atenção para um afeto que se constitui corpo político, na medida em que os sujeitos articulam e interpolam sua existência a partir dele. E isto fazem aditivados por este afeto que os levam salvaguardar a pluralidade da realidade, da liberdade dos indivíduos e do equilíbrio de poder. Para a filósofa, a revolução só é possível se os indivíduos estão disponíveis para a ação - aqui entendendo-os como sujeitos -, marcados por este afeto e pelos signos de cuidado do mundo.

Brandão (2004) também ressalta a participação do afeto na constituição dos sujeitos e suas mobilizações. Nele, essa constituição do indivíduo em sujeito passa de uma afetividade pessoal para uma afetuosidade interativa. Isto é, o anelo que o sujeito ao constituir-se sente em transformar a ordem, é também a tentativa do estabelecimento de uma ponte que não apenas interliga o ego, um eu e um nós, mas diz da qualidade interativa disto, do envolvimento de afetos de si para com os outros e para com o mundo.

Esta afetuosidade como elemento que dá liga à ação em forma de movimento também é definida no sentimento do amor por Brandão (2004, p. 43-44) em consonância ao pressuposto do amor mundirevolucionário arendtiano:

Uma força de energia, mas também de uma certa qualidade de afeto, que mais do que qualquer outro fator poderia explicar como e por quê a partir de "instante zero" tudo o que existiu e existe tenha começado e, bem ou mal, dado no que deu. Uma misteriosa força propulsora, que quando em nós, seres humanos, parece impelir a nossa cognição e o nosso afeto em direção ao outro. Ao diálogo com o outro.

Nessa dimensão, a construção da vida social - e as possibilidades que ela abriga - partiria das formas em que os indivíduos feitos sujeitos encontram de traduzir e alinhavar com fidelidade sua existência. A existência se desenvolve na medida em que os indivíduos ampliam seu domínio cognitivo em um exercício reflexivo de se constituir e na motivação que o encontro com o outro oferece, ampliando as possibilidades existenciais, criando mundos, isto é, modelando a realidade em que se movem (MATURANA; VARELA, 1995).

A poética de emergência dos sujeitos - construída aqui como indivíduos que se abrem à ação - é uma poética de afetos. Do amor mundi de Arendt (2010), como reduto da existência que não é plena se não se coloca em agência, ao elemento do afeto como viço para as interações que formam a sociedade e pavimentam suas possibilidades para todos os sujeitos, o afeto é um componente determinante para a emergência dos sujeitos.

Castells (2013) destaca que a mobilização, formada por indivíduos no plural, é uma formação social que se corporifica a partir da mescla interativa entre ideais, vozes, origens e relações que se aglutinam em suas pulsões de vida sob projetos comuns. Nesse sentido, por sua conjuntura diversa e plural, as mobilizações sociais são emocionais. A ação se organiza primariamente a partir do afeto para enfim se consolidar organizada, estratégica e insurgente.

A emergência do sujeito, entendida como o indivíduo que se coloca em ação rompendo a produção hegemônica de si e passando a uma livre produção de si, se dá pela externalização de sua subjetivação. Isto é, essa passagem à condição de ator se efetiva na medida em que o indivíduo verte sua existência livremente para a imaginação e criação insurgente de alternativas vivenciais. Esse processo de agência e potência não se estabelece apenas em um plano cognitivo ou estratégico.

Esse processo é desencadeado por meio de um acontecimento afetivo. Ainda com Castells (2013), os sentimentos que da subjetivação passam à mobilização se orientam por meio dos sistemas motivacionais: evitação e aproximação. Os dois sistemas não ocorrem isoladamente, mas são interdependentes e cadenciam a ruptura que o indivíduo faz das noções de si, do outro e da realidade para colocar-se em ação.

Desse modo:

O sistema de aproximação está ligado ao comportamento voltado para objetivos, que leva o indivíduo a experiências gratificantes. Os indivíduos entusiasmam-se quando são mobilizados para um objetivo que apreciam. É por isso que o entusiasmo está diretamente relacionado a outra emoção positiva: a esperança. A esperança projeta o comportamento no futuro. De vez que uma característica distintiva da mente humana é a capacidade de imaginar o futuro, a esperança é um ingrediente fundamental no apoio à ação com vistas a um objetivo (CASTELLS, 2013, p. 22).

No acontecer do sujeito, os sentidos que sustentam a existência do indivíduo ganham acuidade a partir de causas que extrapolam sua própria condição e se abrem na imaginação de lugares onde a experiência da livre produção de si possa repousar. Desse modo, a motivação de aproximação ocorre quando o sujeito percebe que pode tornar suas perspectivas subjetivas parte de uma causa ou objetivo que ampliam seu alcance.

O entusiasmo eclode na medida em que o próprio devir é percebido como componente de um acontecimento criador. Na condição de ator, o indivíduo passa a enxergar na própria subjetividade uma tela maior, que dá acesso, por meio da imaginação criadora da ação, a possibilidades de outros mundos, isto é, à transformação da realidade quando do encontro consigo mesmo.

Esse constructo afetivo e vivencial denota a complexidade das necessidades humanas, isto é, forças propulsoras para a manutenção da vida e que servem à própria transformação de sua condição. A imaginação criadora, com a qual o sujeito verte seu entusiasmo, é um índice do real. Marcada por percepções contíguas do tempo e do espaço, essa condição do sujeito permite que ele instrumentalize sua experiência em um arranjo de mudança e rearranjo, de seu devir a um porvir.

Retomando:

Contudo, para que surja o entusiasmo e aflore a esperança, os indivíduos precisam superar a emoção negativa resultante do sistema motivacional de evitação, a ansiedade. A ansiedade é a reação a uma ameaça externa sobre a qual a pessoa ameaçada não tem controle. Assim, a ansiedade leva ao medo e tem sobre a ação um efeito paralisante. A superação da ansiedade no comportamento sociopolítico frequentemente resulta de outra emoção negativa, a raiva. Esta aumenta com a percepção de uma ação injusta e com a identificação do agente por ela responsável.[...] Quando o indivíduo supera o medo, emoções positivas assumem o controle, à medida que o entusiasmo ativa a ação, e a esperança antecipa as recompensas por uma ação arriscada (CASTELLS, 2013, p. 22-23).

A eclosão do sujeito é um processo de ruptura e de atrição. O processo em que o indivíduo confronta a realidade, renunciando a artificialidade da vida e os papéis sociais dados a ele por sanções dos centros de poder, é constituído pela agonia da visão da própria liberdade como velada e cooptada por sistemas simbólicos e de ordenamento. Todavia, ao se opor à lógica de dominação, cresce um repertório afetivo negativo.

A ansiedade pela crença da produção de si, refutada pela tomada de conhecimento da lógica de dominação, conduz a uma tríade emocional. Inicialmente, pela indignação, a partir da inconformidade com a realidade desvelada. A seguir, pelo medo, a instabilidade do próprio ponto de vivência e o futuro a ser construído a partir deste evento de despertar. Na internalização da indignação que fazem saltar os acontecimentos e do medo que paralisa, a raiva pode emergir como condicionante da ação.

O trânsito emocional negativo é necessário para que o sujeito ajuste sua percepção da dimensão do que lhe desafia quando desta emergência. Ora, tornar-se sujeito é um necessário e caótico processo de agência e de redescoberta da potência. Ao assumir sua postura de ator, o sujeito dilacera a realidade supostamente estável para desafiar a conjuntura propondo, por meio de sua ação, a instabilidade criadora da insurgência ao reivindicar novas possibilidades.

É comum sugerir à imagem do sujeito sociopolítico uma composição objetiva, técnica, estratégica e mecânica. Todavia, como sustenta Touraine (2009), é impossível separar sua essência de sua condição humana e de sua situação social. O cabedal emocional da emergência do sujeito tonifica a noção de que o sujeito da ação e da mobilização é um sujeito que não olvida suas instâncias afetivas, seu repertório como alguém que sonha e imagina futuros ou a vulnerabilidade que suas emoções o colocam, mas que o definem como humano.

O zoon politikon aristotélico como descritivo do pulso socializante e politizante humano ganha uma camada que deixa a imagem do sujeito vulnerável. Essa fragilidade advinda dos sentidos emocionais compartilhados por quaisquer indivíduos - militantes ou não - é consubstanciada pela força ostensiva da ação insurgente. Isto é, a mobilização escala na medida em que os sujeitos se apoderam de sua vulnerabilidade emocional e se empoderam com o que os faz mais humanos.

Nesta enseada emocional, os pressupostos do amor mundi arendtiano e do acontecer afetivo castellsiano ressaltam que para considerar o agente sociopolítico, antes de passar à (i)materialidade do movimento e da mobilização, passam pela experiência plenamente humana da emoção, em definir a retomada da realidade pela linguagem dos afetos e, a partir dela, munir o presente dos signos sociopolíticos.

A ideia de sujeito que não cresce em estufas bem protegidas, mas é planta selvagem (TOURAINE, 1998) repousa na constatação que, antes de um movimento além de si, a mobilização é um movimento que ocorre tendo por epicentro inicial a subjetividade, o si mesmo que se vê instrumentalizado pelo poder e sob riscos diversos. Da recusa à objetificação, os vínculos humanos primários representados nas emoções, fornecem a inclinação necessária para que a vertente subjetiva se espraie como torrente sociopolítica.

Espaços e tempos do sujeito na mobilização social

Passando pela travessia da intersubjetividade à subjetivação, e antes de visitar os conceitos de movimento e mobilização, convém demorar o olhar sobre as dimensões do sujeito no espaço e no tempo. A emergência do sujeito como um processo que se externaliza, procede a partir de movimentos que deslizam de um lugar inicial, trafegando pela memória (cumulativa de experiências e expectativas), encontra sua ocasião ou momento oportuno, para enfim alcançar seus fins.

Recorrendo a Certeau (2014, p. 148), pode-se observar esse processual e a meta-formação da mobilização:

Uma diferença entre espaço e tempo fornece a série paradigmática: na composição de lugar inicial, o mundo da memória, intervém no "momento oportuno" e produz modificações do espaço. Segundo esse tipo de diferença, a série tem por começo e fim uma organização espacial; o tempo fica aí como o espaço intermediário, estranheza que sobrevém de alhures e produz a passagem de um estado dos lugares para o seguinte. Em suma, entre dois "equilíbrios", a irrupção de um tempo. Uma diferença entre ser estabelecido (estado) e fazer (produção e transformação) se combina com a primeira. Joga aliás com uma oposição entre visível e invisível, sem lhe corresponder exatamente. Seguindo este eixo, temos a série paradigmática seguinte: dado um estabelecimento visível de forças e um dado invisível da memória, uma ação pontual da memória acarreta efeitos visíveis na ordem estabelecida. A primeira parte da série se compõe de duas situações de fato, onde o invisível saber escapa ao poder visível [grifo do autor].

O tempo é a primeira parada, afinal indivíduos e sujeitos estão sob suas elipses e sobre as transformações diacrônicas da produção de si e da qualidade da dominação, dos objetos de luta e seus ferramentais. No desvelar do sujeito, a realidade que se torna enfoque de ação é percebida a partir de um ponto de inflexão: um momento oportuno, uma ocasião pertinente.

Essa ocasião diz da quotidianidade, isto é, um panorama espaçotemporal da emergência do sujeito, a presentificação do momento em que o indivíduo rompe grilhões da produção de si pelos centros de poder e aspira ser ator. Esta ocasião é formada pelas protuberâncias da situação social na qual o indivíduo está inserido, afinal a noção de sujeito é inseparável de sua condição vivencial, visto que sua construção é experiência (TOURAINE, 2009). Mas acrescenta-se aqui o repertório da memória.

Quando o sujeito eclode, não o faz se não a partir de uma conjuntura social, visto que sua emergência é produto da experiência social presentificada e presentificante. Embora esse lugar do presente se mostre como um empuxo da constituição do sujeito, a orientação radical para o futuro é sua busca, visto que ao questionar o atual, o imaginário e o conteúdo insurgente dirigem a ação para uma atividade criadora de futuros diferentes e possíveis.

Benjamin (1994), ao tratar da modernidade, a examina como um momento de ansiedade por compreender-se a si mesma em um exercício de projeção do futuro, em que indivíduos vivendo o presente se lançam em um porvir como responsabilidade. Para ele, o imaginário moderno do futuro se compraz em um compromisso assumido no presente. Sujeitos do presente, constituídos como tal a partir de sua situação circunstancial, são sujeitos também de um futuro que é resposta comprometida com a atualidade.

Nesse sentido, para Benjamin (1994), a orientação para o futuro parte de um movimento de inflexão do presente, no qual a janela da oportunidade do sujeito que nasce desejando atuar pelo porvir, mas que não se estabelece se não a partir de uma orientação para o passado. E é aqui que a memória desempenha seu papel:

O passado traz consigo um índice misterioso, que impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está a nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo (BENJAMIN, 1994, p. 223).

O passado é predicado para a emergência do sujeito, na medida em que fomenta uma dinâmica que recombina o repertório pretérito ao presente, com vistas em um futuro pelo qual se quer ser ator para criar e do qual se mobiliza para lutar. Essa dinâmica anamnésica diz da leitura histórica pelos autos do imaginário, reelaborando as expectativas do passado de alguma forma esganiçadas, frustradas ou ainda lacunares no presente (SANTOS; CUNHA, PEREIRA, 2018).

Nesse sentido, a dinâmica anamnésica na emergência dos sujeitos se dá, quando da leitura da situação social em que o indivíduo se descobre e se põe em questionamento e/ou oposição. Essa leitura implica em abarcar as expectativas do passado fazendo delas experiências cuja continuidade se coaduna à pulsão sociopolítica que se forma.

As experiências do presente cujo arrocho fomentam a condição do sujeito se atrelam às expectativas do futuro criativamente construído a partir da relação entre agência, potência e insurgência. Por meio deste desenho, a envergadura da ação moderna se estabelece pela fusão entre tradição - na leitura do passado - e inovação - a partir do que se cria do presente para o futuro.

Brandão (1998, p. 29-30) esclarece:

Experiência e expectativa são duas ideias importantes nesse jogo de tempos entre modos. A primeira sugere o passado, a segunda, o futuro, e ambas parecem querer entrelaçar-se como os dois pólos através dos quais a consciência da modernidade se pensa e projeta os seus futuros. Experiência vivida e, mais ainda, de suas expectativas deixadas-de-viver como um valor para o futuro. O esquecimento, em nome de um progresso que, ao estabelecer um futuro a partir de si mesmo, coagula a história e elimina dos tempos que hão de vir toda uma possível qualidade do povo. Pois, então, o progresso programa a plenitude de sua realização de uma ênfase salutar de imprevisibilidade [...].

Quando do rompante de produção dos sujeitos, debatidos aqui como os indivíduos que se colocam em ação por meio de um processo que liberta sua autopercepção da realidade das prisões hegemônicas e reclama a livre produção de si pela querela, desenvolve-se pelo fluxo das circunstâncias (materiais e simbólicas) uma dívida solidária para com o passado (BRANDÃO, 1998), por meio da qual projeto e tradição arquitetam a modernidade das relações (BENJAMIN, 1994).

Nesse panorama temporal de manifestação da ação dos sujeitos, há um componente de trânsito entre o tradicional e o inovador. Brandão (1998) bem como Benjamin (1994) criticam que, no decurso do tempo, a noção moderna de progresso significou uma ruptura entre experiências do passado e expectativas do futuro. Isso se deu a partir do crédito ao signo do progresso cuja atualidade global significaria um ponto sempre novo de superação da realidade.

Todavia, esse quadro instaurou uma consciência temporal amortizadora da conjuntura geradora do sujeito. As razões estão na erosão do passado como condição de valor, direcionando o imaginário a tomar o sentido do progresso - aquecido pelo desenvolvimento, pela urbanização, pelo mercado consumidor e pelo avanço tecnológico - como critério central e regulador do porvir.

Assim, o próprio tempo encarregou-se de produzir a aniquilação dessa noção ou ao menos uma alternativa para que a cadência do tempo fosse incorporada novamente à energia da ação do sujeito. A produção de novas camadas de existência e experiência pela tecnologia, pela comunicação e, sobretudo, pelas tramas da rede, cumpriu o papel de tornar a narrativa do futuro como progresso uma possibilidade de desassossego, um lugar de distopia.

O retorno ao repertório da memória em busca de novos eixos de sustentação da estabilidade da modernidade, que cambaleia na medida em que degenera-se a consciência do tempo na rejeição das experiências, originou neo-utopias (BRANDÃO, 1998). O progresso assim como os aprisionamentos dos indivíduos nos cárceres da ética religiosa, da sexualidade, da burguesia e do mercado tornaram flácida a emergência dos sujeitos, tão vívida a partir do chão de fábrica e das lutas identitárias.

Destarte a conjuntura do afeto e da memória na constituição do sujeito, há a barreira da porosidade da agência e da potência produzida pelo signo do progresso e nele, a conjuntura do mercado, do consumo e do fetichismo da subjetividade. Esse quadro enfraqueceu as tendas das quais se levantam os sujeitos, reforçando os reflexos do eu e o primado do desejo em tratativas onde a ordem se estabelece por comportamentos de consumo localizados e cujo ideário de futuro é um ponto de consumo que não se compraz nas mercadorias apenas, mas na própria subjetividade (BAUMAN, 2008).

Essa conjuntura só pode ser superada quando os indivíduos se tornam sujeitos. Só como atores e questionando as linhas de dominação que o fitam sob as tramas do poder governamental, ideológico, midiático e mercadológico é que essa deriva temporal pode ser superada. Quando as tessituras das experiências do passado são articuladas a partir das expectativas do presente, tem-se a chave da mobilização, passando do ego ao nós.

Considerações finais

O sujeito é uma carta de contestação da ordem e suas estabilidades construídas pelos sistemas de poder. Sua emergência questiona a base da modernidade e seu cinismo na regulação homogênea do mundo pelo apagamento da possibilidade de que os indivíduos sejam atores e, naturalmente, de seus conflitos. A pretensa seguridade dos signos de progresso faz campanha por essa homogeneização e lastro da ausência de conflito como anseio.

Há que se considerar que a ideia do sujeito, antes de que ele evoque uma coletividade que se imposta, é contestação e movimento (TOURAINE, 2009). O sujeito é um movimento satélite que opera sob as ondulações feitas de conflitos, agendas, ideais, programas e contextos. Quando emerge, o sujeito passa de uma modalidade de liberdade estável - consumível, que não designa agência, mas reação de adesão - para uma liberdade emancipatória - que designa agência e movimento.

Ao status do sujeito, pensa-se um indivíduo que se posiciona como ator a partir de uma lógica de dominação, opondo-se a ela instaurando e uma lógica de oposição. Logo, cresce na medida em que sua situação torna-se consciência supersônica no testemunho da realidade, povoado de afetos que constituem sua natureza - afetos de si, para os outros e pelo mundo -, ao lado de dinâmicas amnésicas que o instruem e o animam.

O sujeito é o desejo de agir existindo para além dos muros da individuação, logo sua condição é coletiva. Não sendo contida sua substância, cresce na medida em que se torna um esforço pela constituição de um ator coletivo que só encontra sentido em outros iguais e diferentes para produzir suas narrativas e criar seus mundos. Essa é a natureza do movimento e da mobilização, pulsão que disputa e projeta, e como tal é repleto de relações sociais significantes.

Essas relações sociais significantes se traduzem nos atos que se revelam coletivos, e como tais guardam as riquezas abissais das interações plurais e de orientação multicultural; e pelo espaço, testemunha producente da gestão dos sujeitos, das alocações do tempo, das ingerências do poder e da envergadura das mobilizações, mas que aqui ganha contornos de arena e indumentária.

Referências

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Autor notes

i Professor do Centro Universitário FIPMoc (UNIFIPMoc), Montes Claros, Brasil. Membro do Citadino - Grupo de Pesquisa em Temáticas Urbanas e do POP - Grupo de Pesquisa em Imagem, Comunicação e Cultura. E-mail: gustavo.ccpv@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9712-2690.

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