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Não existe ciência aplicada na democracia: algumas considerações a respeito de quem as universidades pensam que são
No hay ciencia aplicada en la democracia: algunas consideraciones sobre quiénes se creen las universidades
There is no applied science in democracy: some considerations about who universities think they are
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 19, núm. 1, pp. 133-169, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 19, núm. 1, 2022

Recepção: 01 Dezembro 2021

Aprovação: 07 Abril 2022

Resumo: A partir de uma série de provocações institucionais transcorridas durante o ano de 2020 em uma universidade federal na caatinga, o presente artigo busca refletir sobre a constituição da noção de ciência aplicada como uma forma específica de manutenção de esquemas classificatórios e administrativos de tipo Grande Divisor. Desta forma, visamos descrever algumas práticas de pesquisa e extensão universitárias que se beneficiam bastante desta divisão, compreendendo-a como, na produção da pesquisa científica, elaé efetivamente um marcador contra-democrático e componente formal de instituições coloniais. Buscamos assim olhar com desconfiança para o atavismo institucional que sugere que os diversos sistemas universitários seriam produtores de democracia quando parte significativa de sua liturgia institucional opera na obstrução da participação direta da parte das populações atingidas diretamente por projetos que considerados estratégicos. O artigo compreende, por fim, que a ecologia política compreendida radicalmente permite que possamos estender processos descritivos de forma a potencializar as relações de aliança e, por conseguinte, de inimizade necessárias para a defesa dos territórios de caatinga em contexto de ataques permanentes à sua autonomia e liberdade.

Palavras-chave: Ecologia Política, Extensão Universitária, Caatinga.

Resumen: A partir de una serie de provocaciones institucionales durante el año 2020 en una universidad federal de la caatinga, este artículo busca reflexionar sobre la constitución de la noción de ciencia aplicada como forma específica de mantenimiento de esquemas clasificatorios y administrativos del tipo Gran divisor. De este modo, pretendemos describir algunas prácticas de investigación y extensión universitarias que se benefician en gran medida de esta división, entendiendo que, en la producción de la investigación científica, es efectivamente un marcador antidemocrático y un componente formal de las instituciones coloniales. Se trata, pues, de mirar con recelo el atavismo institucional que sugiere que los diversos sistemas universitarios serían productores de democracia cuando una parte importante de su liturgia institucional opera en la obstrucción de la participación directa de la parte de las poblaciones directamente afectadas por los proyectos que se consideran estratégicos. Finalmente, el artículo entiende que una ecología política radicalmente entendida permite ampliar los procesos descriptivos para potenciar las relaciones de alianza y, en consecuencia, deenemistad necesarias para la defensa de los territorios de la caatinga en el contexto de los permanentes ataques a su autonomía y libertad.

Palabras clave: Ecología Política, Extensión Universitaria, Caatinga.

Abstract: From a series of institutional provocations during the year 2020 in a federal university based in Caatinga, this article explores the notion of applied science as a specific form of maintenance of classificatory and administrative schemes of the Great Divide type. In this way, we aim to describe some university research and extension practices that benefit greatly from this division. We effectively understand it as a counter-democratic marker and formal component of colonial institutions. We thus face it with suspicion at the institutional atavism. In other words, a process in which various university systems would be producers of democracy when a significant part of their institutional liturgy operates in obstructing the direct participation of the part of the populations affected by projects that are considered strategic. Finally, the article understands that a radically understood political ecology allows us to extend descriptive processes in order to enhance the relations of alliance and, consequently, of enmity necessary for the defence of the territories of the caatinga in the context of permanent attacks on their autonomy and freedom.

Keywords: Political Ecology, University Extension, Caatinga.

Introdução

Este artigo é, primeiramente, fruto de uma composição, de uma combinação de esforços e de um acordo que começou a ser constituído no momento em que a Associação Territorial do Quilombo Lagoas requereu a parceria do Colegiado de Antropologia da UNIVASF, lotado no campus de São Raimundo Nonato (PI). A demanda, fruto da invasão das terras do mesmo Quilombo Lagoas[1] pelas companhias Galvani Mineração e pela SRN Mineração, deu luz a um projeto de extensão iniciado ainda em 2016, formalizado em 2017 que, até o presente artigo, segue em atividade[2]. É por isso que, ao redigir um artigo que é uma versão de uma palestra oferecida no XI Mês das Consciências Negras do NEAFRAR, escrevemos nos termos dos compromissos assumidos. Assumidos, vale dizer, nos tempos da iniciais das atividades de extensão de um professor de antropologia nas paisagens de caatinga.

Por tratar-se de uma composição que se resolve no presente artigo, fruto de autorias múltiplas, esta mesma multiplicidade está registrada na sua composição heterogênea. O trabalho de sua elaboração cumpre uma divisão do trabalho em que todos são autores, mas somente uma pessoa trabalhou na figura de autor e redator, cuja distinção acompanha as fronteiras, nem sempre tão rígidas, entre o oral e o escrito. Essa distinção é importante na medida em que reflete a estrutura do artigo.

O artigo é dividido em três partes. Cada um dessas partes procura dar vazão a uma forma da relação específica da composição autoral articulada por meio dos trabalhos de extensão universitária conduzida pelo coletivo representando parcialmente pelos autores elencados (Fórum de Cartografia Quilombola). A primeira parte, centro orbital do artigo e dos trabalhos de extensão conduzidos em parceria, é um roteiro elaborado para ser lido como abertura da palestra dada no XI Mês das Consciências Negras. De uma forma muito precisa, nele encontramos os temas, os assuntos, tudo aquilo que o autor-redator não poderia deixar de dizer em público, especialmente diante da situação em que nos encontramos em São Raimundo Nonato e, de forma mais abrangente, na Caatinga como um todo.

A segunda e a terceira partes deste artigo, por sua vez, foram redigidas com vistas em definir a parte do branco com relação aos compromissos assumidos no roteiro. Esta parte do branco diz respeito exatamente às responsabilidades institucionais a serem assumidas por projetos como os coordenados pelo antropólogo-redator deste artigo. Devido ao fato do branco ser o autor-redator, sua figura será identificada na primeira pessoa do singular cuja persona autoral é Bernardo Freire. Isso faz da primeira pessoa do plural a expressão da composição que elaborou o roteiro e algumas das orientações presentes no artigo, tanto em momentos destacados quanto na articulação de questões mais abrangentes que atravessam o artigo transversalmente.

A esta altura cabe mais uma advertência. A leitura do texto que segue abaixo deixa evidente uma assimetria. Veremos que a parte do branco é muito maior que o espaço que o roteiro ocupa. Sabendo ser possível afirmar que este é um dos sintomas daquilo que o artigo busca argumentar, podendo também ser considerado uma contradição, peço atenção para um detalhe. A assimetria do espaço ocupado pela parte do branco neste artigo também pode ser observada como expressão da enorme lacuna de esforços a ser preenchida, podendo também ser compreendida como o tamanho do buraco em que estamos nos enfiando, com o perdão do trocadilho. Sendo uma carta-compromisso do redator com relação à composição que assina pelo roteiro abaixo e a assimetria reflete o tamanho dos compromissos a serem assumidos diante da pauta da negligência universitária. Entendendo que o compromisso é a parte do branco, convém entender que ninguém é branco sozinho. Por sua vez, a autoria coletiva é fruto da oralidade que precisa ser, antes de mais nada, verdadeira para consigo mesmo para conseguir construir uma forma qualquer de objetividade. A objetividade oral, por sua própria característica, é concisa, fazendo com que a escrita não seja nem sua representante, muito menos sua substituta.

A vida e a cor do redator: confluências e a primeira pessoa

Mas, afinal de contas, porque sou eu quem redige este artigo? Porque aceitei falar no XI Mês das Consciências Negras? Vale a pena dizer que, se aceitei, não foi sem ter recusado, mais de uma vez. Afinal, como Petronilha, amiga nossa da comunidade do Pé do Morro, em Fartura do Piauí, sempre ressalta ao me encontrar, eu sou um dos filhinhos brancos que ela tem. Sou desses filhinhos que aparecem de vez em quando para assuntar e, vez por outra, pernoitar. Esta imagem que ela me transmite a respeito de mim mesmo tem respaldo em uma segunda imagem, aquela que Nailde Marques (Lagoa das Emas/Quilombo Lagoas-PI) faz de mim ao pirraçar. Afinal, como eu poderia ter a pele mais escura sendo tão inapto na lida com o facão? Sem sol, sem cor - o que mostra que o cromatismo quilombola entende, ao contrário da ótica newtoniana, que no quesito pele, a ausência de cor é branca. Com isso quero dizer que aqui, na parte que me couber, falo e escrevo como branco. Por sua vez, a negritude quilombola terá sua voz no plural, no coletivo que este artigo carrega consigo.

Se eu, que assumo o papel de redator, não tenho a pele e tampouco as mãos que me colocariam no debate a respeito das consciências negras, e muito menos nas qualidades cosmológicas das vidas quilombolas e das comunidades de fundo de pasto, o que eu estaria fazendo aqui? Afinal, não há uma linha que eu possa escrever sobre ser quilombola ou ser negro, ser negra. Isto necessariamente me exclui. E ainda assim, Nilton Araújo, coordenador do NEAFRAR, reiterou o convite e me pediu para falar da cartilha socioambiental que estamos, ainda, elaborando no território Lagoas. E isso teria a ver com uma certa ideia do que é uma matriz, conceito proposto como tema do Mês das Consciências Negras - Quilombos e Fundo de Pasto: nossas matrizes. É a partir dele que elaboramos nossa contribuição, iniciando com o desafio inescapável a respeito de qual seria a minha contribuição.

Se formos considerar matriz no sentido materno, a única consideração a fazer teria a ver com a linhagem materna da qual eu sou descendente. Assim, apontaria para a minha avó Clodomira, meus bisavós fazendeiros da região da antiga Betim (MG), onde a pele negra expressa seu vigor, viva e potente. Mas, tal como com os diversos passados de minha família em Minas Gerais, isso tudo me é muito distante e eu, desenraizado como ambos, colonizador e colonizado, acabei vivendo uma vida branca.

De outra maneira, caso dissertássemos sobre a noção de matriz como fonte matricial, ela também me seria negada ou, ao menos, estaria ausente de mim. E não há nada que eu pudesse fazer agora que não fosse dissimulação. Mas a noção de matriz também carrega consigo uma acepção geracional, de geração, de criatividade a partir de um paradigma ou fundação que cabe nesta que, daqui por diante, cumpre ser a matriz de uma ação coletiva. Para participar de uma conversa sobre consciências negras, então, elaboramos uma fala coletiva que respeita a confluência, e não a miscigenação, na forma de ajuntar sem, com isso, misturar (SANTOS, 2019). Com isso os quilombos, no caso o Quilombo Lagoas, são o ponto de partida de um movimento que faz o esforço de criar as formas de confluir sem esquecer das diferenças e, principalmente, das assimetrias.

O roteiro: o que eu não poderia deixar de falar

O conteúdo do roteiro é fruto de uma longa reunião realizada em um dia de trabalhos na comunidade do Calango, onde reside Cláudio Teófilo Marques, liderança histórica do território, em 13 de dezembro de 2020. O roteiro que apresentamos mais abaixo é, antes de mais nada, um posicionamento de defesa intransigente do Território Quilombola Lagoas, que acolheu com assombro os procedimentos utilizados para a elaboração do termo de cooperação técnica entre os Programas de Pós-Graduação Profissionais em Agroecologia e Desenvolvimento Territorial e Extensão Rural da Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), a Reitoria da UNIVASF, a Companhia Baiana de Pesquisa Mineral e a Mineração Caraíba S. A., assinado em 27 de novembro de 2020, na ocasião do I Fórum Regional de Sustentabilidade, Inovação e Desenvolvimento na Mineração. A partir do roteiro, prossigo com algumas questões relativas ao exercício das ciências em uma democracia de um ponto de vista bastante particular, que não pode ser generalizado. Ele é, digamos, a parte do branco no compromisso, a parte de quem assina como Bernardo Freire e todas as instituições coloniais que ele representa.

A despeito da falta de transparência com relação ao termo assinado[3], apelidado como Carta de Juazeiro, o fator decisivo com relação à manifestação pública da parte do compromisso do Fórum Permanente de Cartografia Quilombola diz respeito à obstrução ativa da presença de comunidades e povos de caatinga atingidos por mineração, particularmente os municípios de Campo Formoso (BA), Curaçá (BA), Campo Alegre de Lourdes (BA), Sento Sé (BA) e Jacobina (BA) no referido Fórum[4]. Longe de ser uma prática isolada, esta forma de exclusão das instâncias deliberativas é constitutiva da liturgia dos contratos e audiências públicas, das deliberações de alinhamentos partidários e da própria definição daquilo que poderia ser considerado um critério técnico-científico. Cientes disso, os autores deste artigo elaboraram tópicos em série com algumas questões relativas a quem a universidade pensa que é. Sigamos, então, com o roteiro do que deve ser dito em público pela parte do branco. Assim, compõe a parte do branco:

1) Discutir as dimensões do que é, e quais seriam, algumas das implicações de um diagnóstico socioambiental comunitário para práticas institucionais ligadas às práticas de pesquisa em contextos de extrativismo mineral e de energia. Sabendo que o conhecimento da paisagem é fruto da vivência e da experiência, entendemos que o conhecimento das comunidades tradicionais é inestimável na avaliação das reais condições dos empreendimentos extrativistas. Reconhecemos assim que o conhecimento de paisagem, que pode ser parcialmente traduzido em diversas formas de cartografia e hidrogramas colaborativos, permite a avaliação e a crítica de projetos econômicos de forma consistente. Da mesma forma, diversas práticas econômicas tradicionais podem efetivamente avaliar megaempreendimentos com um apuro não somente rejeitado com frequência como, também, ignorados ou subestimados pelas práticas de pesquisa e extensão universitárias, especialmente na elaboração de convênios e termos de cooperação técnica.

2) Apresentar questões relativas à participação nas câmaras técnicas da parte das comunidades tradicionais. Lembramos que, se as comunidades Quilombolas, se a comunidades de Fecho e Fundo de Pasto, enfim, que se as diversas formas de negritude e vida humana na caatinga só manifestam sua condição em espaços destinados à negritude e ao folclore e não, também, na deliberação técnica, como no que diz respeito ao ordenamento do solo e as dimensões éticas da conversão à pobreza e a comodificação das tradições, esta é uma forma de dizer que o lugar institucional dedicado ao povo preto é discutir as coisas de preto. Esta é a forma típica de redução ao folclore próprios do racismo estrutural e, de forma mais abrangente, do colonialismo.

3) A posição dos três representantes do Território Quilombola Lagoas que, à luz de sua história e de como o mesmo território navegou por entre mentiras e abusos da parte do governo do estado do Piauí e da empresa SRN Mineração, é contrária à mineração no semiárido brasileiro. Vale lembrar que o Quilombo Lagoas é signatário da Carta do III Seminário dos Povos Indígenas, Quilombolas e de Terreiro de 22 de novembro de 2019, Petrolina (PE) (vide Anexo). Importante notar que o redator deste artigo também colaborou como redator dessa mesma Carta.

4) À realização do I Fórum Regional de Sustentabilidade, Inovação e Desenvolvimento na Mineração, ocorrido em 27 de novembro de 2020 no auditório da UNIVASF em Petrolina (PE) sem a participação de populações da caatinga atingidas pela exploração mineral, cabe uma advertência. Consideramos arrogante e desmedida a postura de qualquer instituição universitária em assinar convênios ou termos de cooperação técnica com megaempreendimentos de mineração, de produção de energia eólica ou solar em nome de uma agenda de sustentabilidade qualquer. Ressaltamos que nenhuma universidade tem poder algum de remediação, de prevenção, de mediação ou qualquer outra forma de contenção de danos. Este destaque parece óbvio, mas na propaganda dos contratos celebrados, toda e qualquer forma de objetividade parece se converter em uma nuvem de ambiguidades e interesses. A disparidade de poderes evidente entre uma corporação/empresa de caráter neo-extrativista e uma universidade federal/estadual, quando diante de que qualquer prática de abuso, desrespeito e, aquilo que é óbvio, práticas predatórias de ocupação de espaço e do tempo das comunidades tradicionais, mostra o quanto a assimetria é perigosa. Nenhuma universidade teria consigo, ou em sua malha institucional, poderes eficazes de prevenção ou remediação em caso de infração da lei ou catástrofe ambiental. O caso fica ainda mais grave. Entre as instituições que assinaram o convênio, a UNIVASF é aquela que assume caso a posição de quem teria um corpo técnico com conhecimento aprofundado a respeito extrativismo mineral, seja do ponto de vista tecnológico, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista legal, ou do ponto de vista socioambiental. Caso este corpo técnico exista, o mesmo não participou de nenhuma instância da elaboração do termo de cooperação técnica. Isso quer dizer que, para lidar especificamente com o campo da mineração de escala industrial, a instituição está desguarnecida. Vale destacar que nenhum dos pesquisadores que porventura tenham publicações que abordam a atividade de mineração em algum aspecto pôde participar do evento ou da elaboração da carta de cooperação técnica. Quando a assinatura do termo de cooperação técnica rejeita a produção de especialistas no campo em questão e obstrui de forma ativa a presença de associações e de comunidades atingidas pela mineração; quando, ao elaborar seus projetos de extensão e pesquisa no campo da atividade de mineração industrial, trata os conflitos e crimes socioambientais como fenômenos marginais ou inexistentes, e não como constitutivos do ordenamento territorial da implantação da atividade mineral, a instituição transforma-se em cúmplice das atividades em questão.

Sabendo que nem todo mundo é do mesmo jeito, como Cláudio Teófilo Marques afirmou precavidamente, e que não estamos simplesmente colocando toda a instituição da UNIVASF em suspeição, o que reivindicamos é a transparência das instituições com relação não somente aos contratos conveniados, mas também que as mesmas instituições universitárias assumam uma posição que reafirme a participação efetiva dos coletivos atingidos na elaboração dos termos de cooperação técnica entendendo, inclusive, o poder de veto. Isso serviria, exatamente, para que a aplicação do Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho não seja aplicada somente quando já for tarde demais.

Diante do atual estado das relações que resistem à instauração de procedimentos democratizantes de abertura das câmaras técnicas, dos conselhos éticos e instâncias deliberativas, as quatro pessoas que assinam este artigo afirmam a urgência da elaboração de Protocolos Comunitários de Consulta e de Convivência da parte dos territórios de caatinga, sejam eles atingidos ou não. Esta prática deveria ser subsidiada pelas instituições superiores de ensino e pelas agências governamentais muito antes da chegada dos empreendimentos extrativistas que, por sua vez, só deveriam apresentar-se nos territórios após a devida regularização fundiária dos mesmos territórios. Na ausência deste suporte, que os territórios mobilizem suas forças e seus aliados na direção de garantir a segurança territorial e constituir-se como força de seu próprio futuro.

A parte do branco e a responsabilidade da democracia

Uma vez que o roteiro fora estabelecido após um dia de conversas na comunidade do Calango, uma das 118 comunidades do Quilombo Lagoas, coube a mim o trabalho de redigir uma palestra que viria a ser convertida em artigo. Tanto a palestra quanto o artigo foram redigidos em uma situação particularmente difícil, na medida em que sua redação combina-se à pandemia do vírus SARS Cov-2, às tensões entre territórios quilombolas e às gestões públicas municipais de saúde e, por fim, um abandono institucional histórico que os diversos campi afastados do centro administrativo da Universidade Federal do Vale do São Francisco carregam consigo como parte do desenho institucional desta instituição federal[5].

Ainda que, diante de um quadro que parece reclamar por revolta e inconformismo dado o desrespeito que o I Fórum Regional de Sustentabilidade, Inovação e Desenvolvimento na Mineração manifesta com relação aos povos da caatinga, nosso objetivo é o de tratar do nosso tema de uma forma mais propositiva do que reativa. Queremos contribuir para uma abertura de horizontes de reflexão, pesquisa e, principalmente, em deliberar a respeito de assuntos comuns sem com isso esquecer que, diante do que será afirmado, existe uma dinâmica institucional específica que trabalha para obstrução da potência e para o silenciamento dos povos da caatinga justamente, eis a ironia, em nome da democracia.

O que se desdobra daqui por diante leva em consideração uma característica peculiar da disseminação de políticas de democratização, como a expansão da universidade pública, que seguem reforçando seus laços com o ordenamento territorial próprios do racismo ambiental que grassa no semiárido brasileiro[6]. Ainda que não haja novidade alguma no que estamos afirmando, e que seja de conhecimento comum que as universidades contêm multidões, o que estamos fazendo é afirmar exatamente isso. As universidades contêm multidões. Daqui por diante procuro demonstrar algumas das consequências desta afirmação.

Apresento a seguir algumas questões de metodologia, ou seja, de ética de pesquisa, cujo esboço parte de uma premissa que considero fundamental, a saber, como fazer ciência na democracia. Vale ressaltar que o recurso à bibliografia de Bruno Latour (LATOUR, 2001, 2004, 2020) tem como estratégia não esquecermos que não discutimos aqui a democracia em geral, abstração tão inútil quanto potencialmente perigosa, mas de como instituições de pesquisa científica lidam com a democracia como um paradigma científico, se é que o fazem. É, seguramente, a parte do branco deste artigo e, assim, não é mais coletivo, ao menos não da mesma forma. A partir de agora este artigo expressa, por meio de uma ligeira revisão bibliográfica, alguns dos meus compromissos com o coletivo que assina o roteiro, assim como com o território quilombola Lagoas, os territórios do sul-sudeste do Piauí e as populações tradicionais de caatinga. Este é um compromisso que torna-se público, conceito que vamos desenvolver aos poucos.

O recurso às pesquisas de Bruno Latour, pesquisador francês dedicado aos estudos das práticas científicas modernas, tem como objetivo lembrar o quanto da pesquisa científica moderna é avessa às multidões, às massas, ao povo. Esse afastamento, compreendido como uma forma de objetividade, participa da produção desencarnada de tantas pesquisas que parecem sugerir, assim, que o exercício da pesquisa é algo além de humano, apesar de sua obsessão com o progresso desta espécie. A partir dos efeitos produzidos pelos enunciados sem corpo, pelas metodologias sem gente e pelos contratos sem testemunhas, a vida pública das instituições de pesquisa são assombradas por toda espécie de suspeita. É quase como se a sociedade de contrato estivesse produzindo, ironicamente, o universo hobbesiano de todos contra todos contra a qual deveria nos prevenir. A aversão às multidões, sem surpresa alguma, assume a forma histórica de aversão das multidões. Fazer ciência na democracia implicaria, portanto, em reconstituir as vias públicas em que a democracia seja praticável, executável, ou seja, como algo que faça parte da vida em comum. E aqui começamos a desenhar a ideia da democracia como forma de assumir responsabilidades de acordo com as condições de agência.

Ao fim de algumas páginas, de qualquer modo, pouco nos importará diferenciar aqueles que querem conhecer ecossistemas, defender o ambiente, proteger a natureza ou regenerar a via pública, uma vez que iremos aprender a distinguir, mais depressa, a composição do mundo comum que se faz segundo as normas, daquela que se faz fora de qualquer procedimento regrado. Para o momento, conservamos o termo ecologia política, que permanece um emblema enigmático, permitindo-nos designar, sem o definir rapidamente, a boa maneira de compor um mundo comum, que os Gregos denominavam um cosmo. (LATOUR, 2004:23)

Na emergência, já nem tão recente, de um horizonte de preocupações, que poderia ser chamado de campo de implicações ou de Zona Crítica (LATOUR, 2020;399-452), aquilo que veio a se chamar ecologia política assume a tarefa de manter relações com o ambiente em que distinções consideradas seguras começam a ser compreendidas segundo sua própria genealogia. São distinções, modernas, de segurança que não carregam consigo qualquer forma de segurança real. Nesse sentido, as formas de definição das práticas de governo e governança, assim como a determinação dos agentes e agências legítimas que estabelecem as transformações, as interferências e o governo das terras, dos ares, das águas e dos povos parte de premissas que caminham distantes da vida dessa multidão de pessoas. Daí que a distinção entre a economia e a ecologia que, se causa escândalo quando presente na discussão a respeito do conflito sobre a manutenção do comércio de tudo, da saúde, da população, mostra-se como condição sem a qual não é possível reinvestir a liturgia dos poderes instituídos na gestão dos conflitos socioambientais. E é justamente esta distinção, entre economia e vida, ou entre economia e ecologia, aguda nos conflitos políticos relativos à gestão da pandemia, parece desaparecer quando miramos para os territórios tradicionais e a vida dos povos. Se esta distinção tem o poder de desaparecer, e ela desaparece justamente quando nos aproximamos das comunidades tradicionais, então esta dinâmica pode nos ajudar a compreender alguma coisa sobre a democracia e, também, sobre a impotência arrogante de alguns projetos universitários.

O termo oikós, de onde o conceito eco deriva em uma longa história de pelo menos 2500 anos de uso contínuo, refere-se a uma espécie de unidade fundiária que serviria de esteio material da existência política do cidadão, no caso, ateniense. O divórcio dos usos relativos ao logos e ao nomos que caracterizam a distância moderna entre ecologia e economia é um problema à parte. Tão à parte quanto o fato de que a noção de oikos não participa da imaginação territorial helênica, sendo um termo relativo somente à polis, deixando de fora outros termos preponderantes como topos, khora e ge (ELDEN, 2013), indicando que, na era moderna, usamos símbolos que tem muito pouco a ver com as coisas que indicamos como aquilo que efetivamente fazemos. Nossa famosa herança grega já se apresenta um tanto quanto mirrada, quando não completamente esgarçada pela erudição. É nessa herança esgarçada que, para efetivamente bloquear qualquer prática de comunicação, o prefixo oikós presente tanto na noção de ecologia quanto na de economia já não parece ser o mesmo absolutamente. A bem da verdade, já se apresentam como se fossem palavras de tradições e línguas completamente distintas. E, de certa forma, são. E isso tem a ver com a forma pela qual pensar .logos) e medir .nomos) parecem ser práticas profundamente distintas. E distantes entre si (LATOUR, 2004:223-224), também. Ao menos no que diz respeito à gestão do conhecimento moderno na sua forma institucional.

Pois bem. À luz das urgências das coisas sem medidas, ou seja, de tudo que subtrai-se do nomos, e outras tantas que parecem desafiar nossa capacidade de pensarmos e planejarmos individualmente; ou, se colocarmos de outra forma, para além da divisão taylorista entre os especialistas da economia e da ecologia que estabelece boa parte das distinções internas entre pesquisadores de universidades e centros de pesquisa, a proposta de uma ecologia política, ao menos essa que acompanha as linhas da pesquisa de Bruno Latour, sugere borrar essa distinção que constitui o espaço monopolista do uso da Razão. Afinal, neste quadrante, a história pareceria que somente um dos termos, um dos pontos de tensão, teria as condições ótimas do conhecimento. Ou a medida, ou o pensamento. Nessa disputa, há quem diga que a correta expressão do logos é a capacidade de medirmos e traduzirmos medida em tecnologia. De outro lado, há quem diga que é o exato oposto e que o pensamento é fundamento da ética compreendida como forma humana de agir. Esses polos promovem uma rejeição sucessiva da mera possibilidade de existência do outro polo como ontologia. No final das contas, a perspectiva que se apresenta como oposição é simplesmente crença, superstição ou utopia. É então que a noção de cismogênese, que indica a diferenciação progressiva/agressiva em uma dada relação, permite que atravessemos o terreno do absolutismo, que é demasiadamente humano, tendo como horizonte o seu contrário: o ambiente que nos circunda com a face, ora verde, ora em hibernação, da caatinga e seu trafegar incessante de vento, sol, insetos, bichos, poeira e, por vezes, água, como parte da composição de tudo aquilo que é humano, fazendo do humano uma composição possível de tudo aquilo que se apresenta como externalidade, se me permitem a provocação aos economistas.

A premissa primeira da ecologia política, segundo o tema que nos toca, é que não é aconselhável discutir a política como se fosse um assunto exclusivamente humano da mesma forma que é profundamente desaconselhável tratar do ambiente como se fosse um assunto em que algo que chamamos de Natureza resolveria todas as questões sozinha. Essas distinções desqualificam rapidamente a diversidade das formas de vida e seu entrelaçamento nos itinerários, nas caminhadas, impedindo que saibamos que carreiros podem ser fruto da aliança entre cabras, ovelhas e humanos da mesma forma que rios se fazem com peixes, sedimentos e encantados.

Quando a ecologia política aparece como uma forma de introdução do racismo no debate sobre as competências técnicas dos povos, uma forma contra-intuitiva de imaginarmos a história toma forma. Afinal, negar aos povos da caatinga a participação de câmaras e deliberações técnicas é tão absurdo que evidencia um flagrante bastante desconcertante. Isto porque os órgãos colegiados de instituições universitárias operam com um grau ainda mais elevado de segregação do que as estratégias mercantis do trato escravocrata transatlântico dos séculos XVI -XVII que, longe dos debates palacianos, buscavam no trato escravocrata o aprisionamento de pessoas detentoras de uma certa excelência técnica identificadas nas tradições de diferentes nações e aldeias africanas (HALL, 2017). O trabalho escravo é, em primeiro lugar, um trabalho especializado no plantio, na mineração, no pastoreio de caprinos e bovinos. É como tecnicamente qualificado que se dá a incorporação do corpo escravizado como mediador entre o trabalho e o ambiente. É certo que essa relação transforma-se completamente tanto com o caminhar da vida colonial quanto pela emergência do materialismo psicológico do século XIX, que faz da submissão ao trabalho a expressão, também, da submissão racial (GILROY, 2012; MBEMBE, 2018)[7], ou seja, desumanização pela força do capital e a emergência da gestão do trabalho abstrato, trabalho morto. Este trabalho morto é o trabalho que não é atividade humana, mas expressão de valor de mercado que aproxima perigosamente, como nos lembra Clóvis Moura (1981; GILROY, 2015:126, em remissão a Du Bois, The souls of the Black Folk, [1903]), as populações negras, indígenas e afroindígenas escravizadas, da utilização motora de bois, criando prejuízos tanto para a população negra como, não surpreendentemente, para a população bovina (LEAL, 2014)[8]. É assim especialmente porque o tema da política frequentemente se utiliza de artifícios retóricos da supremacia científica a respeito da monocultura da razão, produzindo todo tipo de distinção orientada por forças e poderes de tipo Grande Divisão para a gestão dos espaços de domínio: Natureza/Cultura; Sujeito/Objeto; Bárbaros/Civilizados; Fiéis/Infiéis; Privado/Público[9].

Assim, meu objetivo ao me aproximar dos trabalhos de Bruno Latour é o de mudar de ponto de partida e, com isso, de horizonte. Como ponto de partida distinto, defendo que as pesquisas afirmem que distinções como as acima mencionadas sejam consideradas como provisoriamente dispensáveis como fundamento. Com a suspensão das Divisões, também estão suspensas quaisquer pressuposições sobre aquilo que há de comum, fazendo com que a noção comum apresente-se como uma instância a ser disputada, como campo propício para a rede de actantes e a formação de uma biopolítica em favor o trabalho vivo, da criação. O comum está por vir (LATOUR, 2004; HARDT & NEGRI, 2016). As pesquisas de Latour que mais nos interessam aqui fazem um outro movimento igualmente interessante. Ao invés de partir de uma Grande Divisão, como a de Natureza e Cultura, toma como ponto de partida a precariedade da distinção entre Natureza e Política, muito mais relevante para abordarmos a natureza da gestão as instituições destinadas à pesquisa científica.

Se a distinção entre Natureza e Política é precária, ou pior, dissimula as práticas reais das instituições de pesquisa, incorporar a ecologia política à compreensão da gestão universitária implicaria reconhecer que a distinção acima é ociosa, quando não simplesmente absolutista e avessa a quaisquer expressões deuma vida livre e democrática. Mais do que isso, que essa distinção deveria entrar no cabedal ético das distinções perigosas a serem evitadas pelas crianças. Afinal, é ela quem dá legitimidade para que agentes da Natureza possam enunciar livremente como se não fizessem política, assim como atores políticos poderiam agir como se seus assuntos, políticos, remetessem-se exclusivamente aos assuntos humanos, sem com isso serem um termo relativo aos vermes, vírus e porcos. Isso também permite com que seja afirmado, politicamente, quem é e quem não é humano, parcial ou inteiramente, o que é um fator de distinção racial por excelência. Esta forma de dividir os temas e assuntos como se a distinção fosse real, e não analítica ou simplesmente fruto de uma divisão taylorista do trabalho e especialistas, faz emergir aquilo que discutiremos mais adiante: o bicameralismo, ou seja, o sistema de duas câmaras que regem às instituições universitárias. Mas antes de avançarmos na direção da descrição do bicameralismo de Bruno Latour, convém nos dedicarmos mais um pouco ao problema dessas Grandes Divisões aplicado à administração dos espaços de dominação - que buscam exercer a maior probabilidade de obediência -, que parecem sempre coisa muito abstrata ou erudita, mas frequentemente exprimem-se na forma material de cerca, muro e violência. E como é que a orientação de uma ecologia política sugere que algo distinto pode ser feito? Ora, complicando as coisas.

Em favor de uma ecologia política. Radical.

A definição de ecologia política aponta para a produção de coletivos (assembleias[10], fóruns híbridos[11], coalizões cooperativas[12], enfim, confluência[13]) que tenham como objetivo a resolução de impasses relativos ao comum. Isso implica que a noção de comum não cabe na afirmação de que, no final das contas, somos todos humanos, o que nos garantiria um ponto de partida comum que serviria de alguma garantia com relação ao futuro. O comum é fruto da atividade em comum visando finalidades provisórias entre coletivos heterogêneos, o que implica dizer que existe no comum o exercício constituinte do que é público, que terá, em cada percurso histórico, uma duração específica incerta. Cabe então compreender que as instituições universitárias estão sujeitas às mesmas forças de composição, especialmente quando estabelecem a distinção entre ciência pura e ciência aplicada como absolutas, dado que a ciência pura enunciaria a Natureza, e as ciências aplicadas, especialmente na forma da extensão universitária, disputariam o monopólio da expressão política. É o que vimos mais acima, no caso em que instituições de ensino superior no semiárido vêm na extensão o desenvolvimento de dispositivos para esta finalidade específica: a construção da monocultura do político dentro da vida universitária.

O primeiro passo nessa direção estaria em reconhecer que a natureza é o obstáculo principal que congela, desde há muito, o desenvolvimento do discurso público (LATOUR, 2004:25). Nas próximas páginas vamos nos dedicar a compreender como Latour fundamenta esta afirmação de forma a reconstruir aquilo que ele mesmo define como público, como vida pública bem cultivada, ou seja, aquilo que ele compreende como objetividade científica. Como o acesso à Natureza, como parte do discurso público, se faz pela produção de ciência, Latour adscreve uma distinção importante entre ciências e Ciência, sendo esta a politização das ciências pela epistemologia, a fim de tornar impotente a via política ordinária, fazendo pesar sobre ela a ameaça de uma natureza indiscutível (LATOUR, 2004:26). O que Latour faz aqui é tornar visível uma noção de natureza como um domínio que, no sentido weberiano da palavra, implica uma relação de obediência mais ou menos provável daqueles que não participam do poder soberano. No limite, esta constituição absolutista de Natureza serve para fazer calar aqueles que não detém poder de solução de problemas da mesma ordem. Isso constrói, por sua vez, um domínio eminentemente Político que, por sua vez, fará o esforço para reforçar a mesma divisão[14].

E este problema está posto exatamente na emergência do quadro de especialistas que detém, no cômputo geral de suas atividades públicas, o poder de silenciar a dissenção a partir da prática do argumento técnico ou especialista, o argumento de quem não é ingênuo, feito sob medida. A Natureza então opera somente para fazer calar, remetendo-nos mais uma vez ao medo que a pesquisa científica nutre com relação às massas, que são uma expressão animal humana por excelência, forma patológica histórica e polo assimétrico do verbo, ou seja, a barbárie que nada sabe fazer senão balbuciar (LATOUR, 2001, especialmente o capítulo 08). E aqui podemos acrescentar o medo que a Política tem da Ciência nesta verdadeira batalha de Arcanos.

Se esta afirmação soa exagerada, absurda ou abstrata, basta procurar informações específicas relativas a litígios socioambientais, como na mina no rio Ok Tedi (KIRSCH, 2006), a construção da barragem de Sobradinho no Rio São Francisco (ROSA, SIGAUD & MIELNIK, 1988), o episódio de Belo Monte no rio Xingu (FRANCESCO, 2020; MANTOVANELLI, 2020) ou a liturgia das Audiências Públicas segundo as práticas das diversas Secretarias de Meio Ambiente (BRONZ, 2016; MANTOVANELLI, 2020), para não mencionar as ausências flagrantes de atingidos por megaempreendimentos, assim como de suas associações e do corpo técnico parceiro consultado, na formação de câmaras técnicas (MANTOVANELLI, 2020; ZHOURI, 2011; ZHOURI & LASCHEFSKI, 2017). Esta lista está longe de ser exaustiva, vale notar, e convém que tenhamos um olhar atento em alguns desses episódios.

A pesquisa levada à cabo por KIRSCH (2006), etnografia Yonggom /Muyu das florestas nas terras baixas do centro-sul da Nova Guiné, merece nossa atenção exatamente pelo teor pedagógico. É suficientemente clara para que sejamos previdentes com relação ao óbvio e, especialmente, para aquilo que é óbvio do ponto de vista dos povos que insistimos em ignorar como parceiros na difícil arte da democracia. Essa etnografia é orientada por premissas estabelecidas por pesquisas como as de Marilyn Strathern entre os Hagen papuásios e de Roy Wagner com relação aos Daribi. Tanto Strathern quanto Wagner, juntos, são responsáveis pela produção de pesquisas relativas às teorias etnográficas, ou seja, a elaboração de uma etnografia que leve em consideração a formulação de problemas locais e sua capacidade de solução diagnóstica na articulação entre cosmos e socius.

Kirsch ocupa-se dos modos nativos de análise de conflitos políticos contemporâneos que alcançam dimensões socioambientais. Caracterizados como praticantes de formas de composição de paisagem que representam vidas individuais por meio de movimentos através da paisagem, os Yonggom têm os aspectos do passado revelados pelo movimento por meio da paisagem, seja em uma jornada física ou em uma narrativa que dá conta da viagem entre lugares (KIRSCH, 2006:11). Convém notar aqui que a paisagem referendada como viagem traz consigo, para além de narrativas e simbolismo, a própria remissão às formas de viajar ancoradas em técnicas e uma cultura material específica que conseguem fazer do movimento uma forma de especulação a seu próprio respeito. Atentar para isso na análise de conflitos socioambientais é decisivo.

O livro descreve os modos de relação, o que inclui a violência desferida no rio Ok Tedi pela Ok Tedi Mining Ltd. (OTML; joint venture da BHP Billiton) e sofrida pelos Yoggom, etnônimo que inclui uma enorme gama de coletivos de viventes. A companhia Ok Tedi praticou a extração de ouro (1984) e cobre (a partir de 1987) de forma abusiva, ainda que seguindo as legislações vigentes da Papua Nova Guiné e, principalmente, desconsiderando a capacidade de diagnóstico dos Yoggom com relação à construção das barragens de rejeito. O problema cria corpo na medida em que:

O governo de Papua Nova Guiné concede para a companhia de mineração uma permissão temporária para a eliminação de resíduos (partículas finas de solo remanescentes da extração do minério valioso) que, junto com rochas rejeitadas, eram descarregadas nos rios locais. Quando a mina de cobre Panguna, na província de Bougainville, na Papua Nova Guiné, foi forçada a fechar por proprietários de terra em 1989, o resultado da pressão econômica levou o estado a permitir que a OTML continuasse a operar sem barragem de rejeitos (Filer 1997:59-61). Essa decisão refletiu nos interesses financeiros estatais na OTML como acionista minoritário e coletor de impostos ao invés da responsabilidade de proteger os cidadãos e o meio ambiente ao regulamentar o comportamento corporativo. (KIRSCH, 2006:15, tradução minha)

O resultado dessa relação foi de 1 bilhão de toneladas de rejeitos despejados diretamente no rio Ok Tedi. Os efeitos registrados pela etnografia de Stuart Kirsch incluem: contaminação evidente do rio por mais de 40 km, com largas áreas de árvores mortas a mais de 3 km de distância do rio. Impossível medir o impacto na fauna. Por falta de investimento, não houve acompanhamento intensivo e independente com relação às avaliações de impacto ambiental, assim como não houveram ações proporcionais de barragem ao volume real dos dejetos lançados no rio Ok Tedi. Tampouco houve compensação socioambiental de qualquer medida. Como de hábito, a população não é contrária à atividade da mineradora, mas esses efeitos são incompatíveis com a possibilidade de viver bem, o que nos leva a considerar sobre qual atividade de mineração essas populações seriam favoráveis. Ninguém sabe. Especialmente as empresas mineradoras, que confundem-se, sempre de forma perigosa, com a gestão estatal (KIRSCH, 2014).

Sabendo que eu não conseguiria abordar o argumento de Kirsch em sua integridade, gostaria de destacar uma dimensão da análise nativa da população Yonggom com relação à reciprocidade não correspondida com a mineradora quanto ao elemento mais irônico do diagnóstico socioambiental:

A falha em não construir uma barragem de rejeitos foi especialmente irônica para o povo Yonggom, aqueles de cuja língua a mina Ok Tedi deriva seu nome. Ok Tedi, ou Ok Deri, tal como é usualmente pronunciado, não é somente o nome dado para o rio em cujo percurso muitas das vilas Yonggom na Papua Nova Guiné são localizadas, mas também refere-se à barragem ou açude. Os Yonggom usam de rochas, bastões e lama para bloquear seções do rio e, então, sequestram água por detrás da estrutura de forma a coletar peixe e camarão encalhados na piscinas rasas [possíveis pedrais]. Em outras palavras, a ruína da mina Ok Tedi foi causada pela falha da companhia em construir uma ok tedi, uma barragem. (KIRSCH, 2014:27, tradução minha)

A incapacidade de deliberar tecnicamente em conjunto com as populações tradicionais que constituem as paisagens por meio de suas diversas atividades está também muito bem representada na elaboração do Hidrograma de Consenso (PEZZUTTI et. al., 2018) realizado pela coalizão entre a população Juruna (Yudjá) e o Instituto Socioambiental em Altamira, no Pará. A elaboração do hidrograma de consenso desafia a empresa Norte Energia na sua capacidade de avaliação quanto à vazão da barragem da Usina de Belo Monte, assim como coloca em xeque a objetividade, ou seja, o péssimo cultivo da relação com a esfera pública, da parte da gestão técnica. Aliás, esta condição, da contradição entre a avaliação técnica da gestão contrariando os diagnósticos locais com relação à vida dos rios, é tão repetitiva quanto desastrosa.

Após 40 anos de debates e conflitos, a UHE de Belo Monte começou a ser erguida em 2010. A partir de 2013 o povo Juruna (Yudjá) da aldeia Miratü, da Volta Grande do rio Xingu, vem se dedicando ao monitoramento do rio em caráter independente. O monitoramento tinha como objetivo construir uma outra imagem do rio, que não fosse dependente do argumento técnico que, por sua vez, não conseguiu sequer reconhecer o modo de vida beiradeiro-xinguara. Sem sua transformação em Conselho Ribeirinho e a formação de um acervo técnico de pesquisa comunitária de demarcação e descrição dos modos de vida e econômica, a anulação Técnica da política e a anulação Política da técnica seguiriam anulando sua existência (FRANCESCO, 2020). Tanto as ações da coalizão xinguana mobilizada pelos Juruna (Yudjá) quanto pela mobilização xinguara (beiradeira) parecem atender a um princípio evidentemente científico, ou seja, público.

É claro para os Juruna (Yudjá) que a importância de se produzirem dados independentes vem da necessidade de informação de qualidade, obtida de forma ao mesmo tempo rigorosa e transparente, para se poder avaliar com autonomia as mudanças que o empreendimento traz para o rio, para os peixes e para o povo como um todo. (PEZUTTI et. al. 2018:07)

Operações de esvaziamento simbólico e real dos espaços xinguanos aparecem em medidas técnicas. A Volta Grande do Xingu transforma-se em "trecho de vazão reduzida", que por sua vez é reconvertida em sigla TVR da UHE Belo Monte. Essa conversão indica que a as terras indígenas estão abaixo da barragem e, como não seriam alagadas, como foram as comunidades rio acima da barragem da usina, assim como se deu no caso de Sobradinho (BA), como descrito por SIGAUD (1988), essas mesmas aldeias não seriam impactadas. Ao menos não do ponto de vista do argumento técnico, dos avatares da Ciência e, coincidentemente, da Política também. O que estamos discutindo com relação à mobilização Juruna (Yudjá) diz respeito à diminuição de vazão do rio em 80%, o que faria com que o regime das águas passasse quase que exclusivamente pela gestão da usina, o que inclui inundações sem aviso prévio, sem agendamento ou mesmo instalação de sirenes, fazendo com que o rio se transformasse em algo, mais uma vez, demasiadamente humano.

A proposta do hidrograma de consenso busca restabelecer, artificialmente, o regime sazonal do rio nas suas variações de vazão cuja volumetria deveria ser estabelecida por um regime consensual entre as partes em conflito. Considerando que nunca houve tentativa de pactuação da parte da Norte Energia, a possibilidade de que o hidrograma não seja fundamentalmente a expressão de conflito merece nossa atenção, especialmente porque revela uma profunda assimetria de poderes envolvidos. Afinal, a Agência Nacional de Águas aprovou o hidrograma proposto pela Norte Energia antes da conclusão do parecer técnico do IBAMA (Resolução nº 740/2009; PEZUTTI et. al., 2018:17). Esse hidrograma sugere que a vazão de cheia ocorra somente a cada dois anos, fazendo com que no ano ímpar as populações atravessem um regime de seca severos, reduzindo a vida à mera sobrevivência. Desnecessário dizer que o parecer técnico do IBAMA foi negativo, dado o risco de extinção de espécies que o hidrograma causaria, além de comprometer de forma decisiva na navegabilidade e na migração de peixes. Fica claro que o que está em questão, do ponto de vista da gestão, não é o rio, mas a UHE Belo Monte que, por acaso, seria construída sobre o rio Xingu. E foi, finalmente construída.

A história, no meio da Caatinga e no final do artigo

Este cenário, discutido de forma bastante ligeira, não é nenhuma novidade na paisagem da região do médio São Francisco. Afinal, a construção da barragem de Sobradinho (BA) esteve no centro das inventivas da Comissão do Vale do São Francisco em sua missão de recuperar o Vale do São Francisco na reocupação do vazio demográfico em que a região se encontrava. Este vazio, vale dizer, merece ser severamente questionado, como todos os vazios demográficos de políticas de desenvolvimento dado que, por um outro ponto de vista, o semiárido é frequentemente descrito como uma região com excedente populacional pelas políticas de migração interna, como nos episódios dos soldados da borracha. No entanto, este vazio descrito pela Comissão era tão grande que bastou a construção de uma barragem para, ao inundar terras dos municípios de Juazeiro (BA), Sento Sé (BA), Xique-Xique (BA), Casa Nova (BA), Remanso (BA) e Pilão Arcado (BA), desalojar entre 60.000 e 72.000 pessoas entre 1976 e 1979. Vale lembrar que esta mesma população, quando referida pelo diretor de obras de então da Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco (CHESF) em sua completa ausência, era chamada de barranqueira. O barranqueiro é pobre, subdesenvolvido, sem qualificação e condicionado pelo rio. É descrito como isolado, vivendo com o contato quase que exclusivo de seus vizinhos e participando das feiras como se essas fossem qualidades a serem rejeitadas.

Cidadão de segunda categoria, o "barranqueiro" é percebido e uma forma que se assemelha em muito à visão do colonizador "civilizado" diante das sociedades tribais "bárbaras e primitivas" que pretende submeter. O "barranqueiro" que aparece nesta carta, a rigor, é uma construção ideológica, sem qualquer suporte na realidade da vida social, construção essa montada a partir de sinais negativos escolhidos por oposição a um suposto cidadão de primeira categoria, alfabetizado, ligado aos meios de comunicação, voltado para os contatos diversificados, ou seja, a partir de um conjunto de sinais positivos que compõe a imagem, também desenraizada do concreto da vida social, do cidadão urbano. (SIGAUD, 1988:99-100)[15]

O I Fórum Regional de Sustentabilidade, Inovação e Desenvolvimento na Mineração, ocorrido em 27 de novembro de 2020 (https://www.youtube.com/watch?v=If_Dh-8eLtE, acesso em 08 de julho de 2020)[16], é a expressão acabada dessa forma do mesmo racismo ambiental expressa pela linguagem gestora que, no debate próprio da ecologia política, articula-se na forma da Grande Divisão. Na mesma instituição, a Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), as atividades em que as populações do semiárido têm lugar são aquelas que discutem geração de renda, pobreza, cultura popular, consciência negra ou outras formas derivadas de domesticação para o trabalho na medida em que seus espaços de deliberação são exclusivos dos espaços normativos. Sua participação, salvo exceções que passam pela peneira do Exame Nacional do Ensino Médio, se dá na condição de índices e objetos de políticas públicas. Alguém poderia objetar esta afirmação dizendo que a UNIVASF é inclusiva, mas quando as comunidades atingidas por mineração são impedidas de participar de um Fórum que decide o futuro não somente de suas vidas, mas de sua paisagem nutriz, sua presença é barrada. De novo. Sem justificativas. Se a inclusão é seletiva, então precisamos começar a conversar sobre democracia desde o princípio. Isso porque inclusão seletiva é seleção, o que implica em tornar claro quanto a quem seleciona, para qual finalidade. Caso contrário, corre o risco de transformar-se em alistamento, ou seja, confecção de listas (FRANCESCO, 2020).

Câmaras técnicas são exatamente um dos domínios onde o discurso técnico enuncia a Natureza somente para fazer calar. Nos termos de Hardt & Negri (2016; 2018) e, de outra forma, por Villela (2020), é a expressão acabada da expropriação do comum, que acontece especialmente na configuração do público que discutimos aqui. E com isso estou afirmando que não existe a apreciação de um futuro gestado em comum, mas sim pelo corpo de especialistas que delibera sobre o que é efetivamente o comum - o país, a nação, a economia ou outra abstração técnica qualquer, como desenvolvimento e mineração sustentável - sem deixarem as questões da política participarem. A rapidez com que a política é convertida em técnica por especialistas é vertiginosa. Mas prossigamos.

Latour afirma que a Ciência, essa que encastela em uma noção impoluta de Natureza, só consegue se manter a partir da manutenção do divórcio absoluto entre epistemologia e ontologia. É bem verdade que ele o faz abusando da alegoria da Caverna de Platão e, também, abusando do medo de uma guerra civil que orienta a imposição de um Estado ou de um ordenamento (nomos) transcendente. Mas a transformação da Natureza em um domínio técnico de gestão permite a enunciação da acusação definitiva da superstição, da crença, da mera ideologia. Uma vez na disposição de um argumento científico, o passo seguinte está em afirmar que a dissenção é falsa e, portanto, mera representação compreendida como crença, ficção ou algo que afirme um significado equivalente. Mas não seria o papel da Ciência mostrar que a divisão não se sustenta em sua prática efetiva, na capacidade de ir e vir, ou seja, de criar registros estabilizados por móveis-imóveis que permitem não somente micro-comparações mas também acumular dados em arquivos de forma a poder desfazer-se de hipóteses que não conseguem mais comunicar-se com os arquivos produzidos (LATOUR, 2001)? Aparentemente, não. E este é o problema. Este é o papel das ciências porque a Ciência, enquanto domínio, cumpre seu papel fronteiriço. Faz-se preciso, então, tirar a epistemologia da inocência e de sua pressuposição de que a liberdade, premissa fundamental da noção liberal de cátedra, é sinônimo de isolamento (VILLELA, 2020)[17].

O repertório do debate técnico e político que se fundamenta nesta distinção fundamental entre quem pode e quem não pode falar a respeito do que é real culmina em uma estrutura política, em uma liturgia que institui um bi-cameralismo evidente. Uma câmara abriga os ignorantes acorrentados na sua própria ignorância. A outra câmara é a reunião de tudo aquilo que não é humano, e que somente uma classe de humanos, os plenamente humanos, têm acesso para consultar e comunicar seus resultados para a câmara humana, operando assim como lobbystas.

Toda a astúcia do modelo está no papel desempenhado por este bem pequeno número de pessoas, únicas capazes de fazer a ligação entre as duas assembleias e de converter a autoridade de uma na da outra. Apesar do fascínio exercido pelas Ideias - aí compreendido entre aqueles que pretendem denunciar o idealismo da solução platônica - não se trata, de forma alguma, de opor o mundo das sombras àquele da realidade, mas de repartir os poderes, inventando, ao mesmo tempo, uma certa definição da Ciência e uma certa definição da política. (LATOUR, 2004:33)

Eis um modelo muito bem acabado de uma democracia impossível e, mais do que isso, de uma das instituições construídas para impedir que a democracia aconteça. Até porque, democracia não é e não pode ser um sistema gerado e concebido pelo corpo especialista (NEGRI, 2001). Aqui vemos como o oikós se relaciona com dois planos possíveis da palavra, seja por meio do ordenamento que preexiste à divisão entre acorrentados e transeuntes (cientistas), seja por meio da palavra que traduz o que não é humano para a linguagem política considerada possível, que não é outra coisa senão uma mistura de edição da ontologia em representação - cognitiva e política. Há um conjunto de humanos existentes para exercitar a inação, o que explica bastante bem o escândalo lógico de Bartleby, livro-conto de Herman Melville. Afinal, é a personagem insurgente que faz da inação o oposto da paciência (AGAMBEN, 2015).

O caminho que tomamos para recuperarmos o projeto de uma ecologia política segundo a remissão a Bruno Latour encontra obstáculos férteis no caminho. São esses obstáculos, obstáculos na caminhada, que nos obrigam tanto a deliberar a respeito de resoluções dos problemas reais e efetivamente urgentes que não estejam imediatamente sujeitos às confiscações (VILLELA, 2020), quanto a nos envolvermos com quem mais estiver implicado nessa relação de resolução e caminhada. Isso faz da distinção entre Ciência e Política uma distinção forçada, policial, miliciana, colonial, na medida em que o percurso do vai-e-vem científico (em letras minúsculas) deve reconhecer a existência e a proliferação de vozes a respeito da diversidade de relações que tramam o universo de tudo aquilo que é objetivo, que nada tem a ver com qualquer pressuposto de neutralidade axiológica. Se o que é objetivo resulta de uma vida pública bem cultivada, o bom cultivo do público advém de uma composição progressiva do mundo comum (LATOUR, 2004:39). Ora, se estamos diante de uma forma catastrófica de gestão do que é público, ou seja, que compreende a produção social da catástrofe como uma dimensão fatal da gestão (STENGERS, 2015), não é possível dizer algo diferente com relação àquilo que é privado (HARDT & NEGRI, 2016; 2018).

É por meio deste caminho que Latour sugere, compreendendo o fator medial da sociotécnica como mediadora das informações públicas a respeito do mundo das coisas reais, um complexo que se reforça em contextos de grande intensidade de exploração ambiental. É assim que uma crise ecológica é, antes, uma crise de objetividade. O raciocínio segue a premissa de que a falsa distinção entre domínios da realidade compromete a capacidade humana de solucionar problemas de escala, ou seja, da manipulação e dos impactos infinitamente pequenos e infinitamente grandes de sua interferência nas políticas da vida, da saúde e do cuidado[18]. Assim, a urgência de politizar a ciência, ou de trazer a ciência a público, cria um curto-circuito que mostra, por fim, que os dois domínios jamais estiveram em campos distintos, apesar do esforço e produção da divulgação científica ,que promete fazer de tudo, menos contribuir para pesquisas comunitárias. Este estado de relações parece surpreender todo tipo de pesquisadores e gestores do conhecimento universitário, que se veem obrigados a movimentos interessantes, como a construção de candidaturas partidárias-científicas ao legislativo, como as de Tatiana Roque e de Valter Neves, docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Estadual de Paulista (USP), no Brasil. Esse estado de confusão aparece também na enunciação de toda sorte de soluções científicas que respondem uma equação cujos interesses em nada tem a ver com a pesquisa meticulosa, esta dedicada à elucidação de contraditórios e a melhor e mais completa descrição dos cenários que porventura tenham emergido na forma das Zonas Críticas, ou seja, de impasses de grande impacto ambiental.

Assim, uma crise ecológica emerge nos momentos em que política e ciência advogam pela maior autonomia de seus respectivos campos, exatamente quando ambos os campos falham na manutenção da distinção, o que culmina em um esforço meramente litúrgico, de uma liturgia vazia, mera formalidade. A liturgia do poder não se mostra menos importante por isso, muito pelo contrário. Ela ajuda a definir a crise ecológica justamente como crise de objetividade, como falha em contribuir para o cultivo do que é público. A crise ecológica é uma crise de objetividade porque, afirma Latour, desordena o nomos científico em sua relação com o político e vice-versa. Desta forma, o esforço da ecologia política está em encontrar meios de articular, publicamente, de forma clara e compreensível, a seguinte mensagem: afinal de contas, vocês esperavam o quê? Mas a coisa não acaba aí, porque existem outras formas de tentar isolar a Natureza dos assuntos humanos.

Em uma versão alternativa de ecologia política, vemos o movimento de proteger a natureza da humanidade, colocá-la em abrigo (LATOUR, 2004:45), repetindo o mesmo equívoco de situar a liberdade no isolamento, estabelecendo os pactos de governança socioambiental tão comuns aos Parques Nacionais, como o da Serra da Capivara em São Raimundo Nonato (PI)[19]. Esta governança recai, estranhamente, nos mesmos braços e mãos que voltam a situar o problema no mesmíssimo lugar que impede que experts possam entrar em acordo (FRANCESCO, 2020). Esta ecologia política de gestão pretende ir buscar seus modelos científicos nas hierarquias regradas por elos cibernéticos ordenados, mas coloca sempre em evidência montagens surpreendentes, heterárquicas, conseguindo falar de um Todo sem conseguir demonstrar o todo na cadeia de decisões que ela mesma mobiliza (LATOUR, 2004:46). A relação parte-todo aparece sempre em metonímia, do tipo a barragem sendo enunciada como Brasil, sem que a conexão seja rastreável de fato, o que acaba sendo reduzido a uma lógica tributária. É sempre a contribuição a ser oferecida ao todo que respeita muito mais uma lógica sacrificial do que um acordo efetivamente republicano. Vale dizer que o fundamento deste mecanismo centralista é justamente o absolutismo que me referi mais acima.

O que desaparece é exatamente a distinção entre ação e agência que comporia toda a cadeia de conversações, mas não compõe porque elas nunca aconteceram. Ou seja, não é somente o sentido da ação que implica uma sociologia, mas também o modo de expressão e os meios de sua disseminação para além do conteúdo semântico da expressão. O controle da voz desta ecologia política, que insiste na separação dos domínios científico e político, não tem nenhum correlato real com a linguagem segundo sua pragmática[20]. E ela só pode fazê-lo desta forma porque ela sabe, ainda que não saiba dizer o que é que sabe.

A ecologia política em favor da qual Latour advoga, e com a qual converso aqui, é fundamentalmente ignorante. Esta ignorância sobre a totalidade é justamente o que a salva, pois ela não pode jamais ordenar, em uma hierarquia única, os pequenos humanos e as grandes camadas de ozônio, ou os pequenos elefantes e as médias avestruzes (LATOUR, 2004:48). É a capacidade da diversidade de existências afetarem umas as outras é o que comporia este perfil multitudinário de ecologia política, que não desfruta de objetos limpos ou purificados, mas de redes de agenciamentos e actantes produzindo efeitos, mostrando que um rio, uma árvore, uma roça podem ser, perfeitamente e sem contradição, alguém. O que diremos de jagunços, quilombolas, geraizeiros. E barranqueiros. Não nos esqueçamos dos barranqueiros.

O melhor meio, para nós, de caracterizar as crises ecológicas é reconhecer, em muitos objetos limpos, a proliferação destes vínculos de risco. Suas características são inteiramente diferentes das dos anteriores; é o que explica o motivo por que se fala de crise a cada vez que eles irrompem. Contrariamente a seus predecessores, eles não têm contornos nítidos, essências bem definidas, nada de separação traçada entre um núcleo duro e seu entorno. É por causa deste traço que eles tomam o aspecto de seres desordenados, formando raízes e entrelaçamentos. (LATOUR, 2004:51)

Ao invés de falar de Natureza, descrever objetos cabeludos, ou seja, incertos, estranhos e sempre surpreendentes por sua capacidade de futuro com os quais as coalizões cooperativas têm que lidar. Este passo em particular é aquele que, talvez, cause maior estranhamento na proposta latouriana de uma ecologia política, mesmo depois de 20 anos. O acesso renovado aos seus textos segue promovendo reações, frequentemente silenciosas, que rejeitam ou fazem vistas grossas à dificuldade de absorver a noção de Fim da Natureza. No entanto, o potencial polêmico desaparece, ou ao menos desloca seu grau de interesse, na medida em que levamos em consideração o que a discussão mobiliza no plano dos enunciados.

Evocar o fim da Natureza implica em desarticular a posição privilegiada de enunciação que permite aos lobbystas do natural em exercerem a monocultura das entidades que não são humanas de forma a realizarem o trânsito, o transporte e o tráfico para os coletivos humanos que afirmam que a humanidade é um critério suficiente para refletirmos qualquer uma das suas instituições. Daí a ênfase na ontologia e, mais adiante, em uma metafísica que se oriente pelo comum por vir. Se o comum não é um dado que unifica desde já, o esforço da ecologia política está em criar meios de comunicação em que esse futuro comum seja construído exatamente para que ele possa vir a ser efetivamente real e coletivo enquanto algo comum que é, convém lembrar, sempre provisório, instável e incerto. Mas o ponto de partida é conseguir lidar com o regime de compossibilidades. E isto seria impossível com um conceito de Natureza que unifica desde o ponto de partida.

Compreendemos, neste momento, porque a ecologia política não saberia conservar a natureza: se chamamos natureza ao termo que permite recapitular em uma só série ordenada a hierarquia os seres, a ecologia política se manifesta sempre, na prática, pela destruição a ideia de natureza. Um caramujo pode interromper uma barragem; um Gulf Stream pode repentinamente faltar; um monte de escórias pode tornar-se reserva biológica; uma minhoca, transformar a terra da Amazônia em pedra. Nada mais pode organizar os seres por ordem de importância. Quando os ecologistas mais frenéticos gritam, agitando-se: "A natureza vai morrer", eles não sabem em que ponto têm razão. Graças a Deus a natureza vai morrer. Sim, o grande Pan está morto! Depois da morte de Deus e da morte do homem, será preciso que a natureza, ela também, acabe por ceder. Já era tempo: logo mais não se poderá fazer política totalmente. (LATOUR, 2004:54)

Evocados de uma só vez o pós-secular de Nietzsche e o pós-humano de Foucault, prosseguem os esforços em desmobilizar as metafísicas absolutistas em favor de um horizonte incerto, frágil e, exatamente por causa disso, democrático. Afinal, democracia é, no mínimo, o exercício da multiplicação dos vínculos de risco (LATOUR, 2004:56; WHITEHEAD, 1993[21]). O que me parece ser importante a esta altura é que Latour combate os abusos da metaforização de elementos naturais que promovem sua captura e domesticação por uma concepção de política que vai afirmar, por meio de metáforas, o que seria a Natureza, o direito natural, nossa relação com as abelhas e formigas como se formigas e abelhas não fossem várias, não fossem espécies distintas, não existisse manejo, convivência e, como mais recentemente posto, co-evolução. O que é necessário dizer é que a Fábula das Abelhas tem muito a aprender, tanto com a etologia (FRISCH, 1971) quanto com as discussões quilombolas de Ana Mumbuca (MUMBUCA, 2020[22]). E é na relação com as abelhas que, talvez, tenhamos distinções mais claras sobre os afazeres de política e de reconhecimento do que quando reduzimos o escopo da conversa exclusivamente ao plano dos afazeres humanos e suas distinções naturais, ainda que metaforicamente, o que reitera o repertório lógico e semântico escravocrata do racismo ambiental. O que interessa é tratar da expansão dos coletivos de deliberação que não somente restrinjam-se à humanidade ao considerar nos processos deliberativos como, também, não fazer dos processos deliberativos os gestos absolutistas de uma elite técnica que faz do silêncio e a da ausência dos coletivos a recriação de obstáculos que produzem um comportamento servil. Se não ficou claro, afirma-se mais explicitamente que o objetivo é complicar tanto quanto possível a formação do mundo comum (LATOUR, 2004:74[23]), de forma que a pesquisa científica e mesmo o desdobramento da rede de saberes deixem de ser solução para o que quer que seja, permanecendo sempre parte do problema em questão, seja este o problema que for. Ou bem o trabalho já está terminado, ou bem ele está por fazer (LATOUR, 2004:87). E a democracia é, enfim, o gesto futuro que carrega consigo uma condição única para sua existência, que é a do acontecimento. E aqui chegamos a uma fórmula fundamental cuja obviedade choca o raciocínio dos mais habilidosos dos políticos e democratas das nossas universidades: se a democracia não acontece, então não é democracia.

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Anexo

CARTA DO III SEMINÁRIO DOS POVOS INDÍGENAS, QUILOMBOLAS E DE TERREIRO EM DEFESA DA VIDA NOS TERRITÓRIOS TRADICIONAIS HISTORICAMENTE OCUPADOS 22 de novembro, 2019, Petrolina, PE




Nós, os Povos Indígenas, as Comunidades Quilombolas e os Povos de Terreiro do Semiárido presentes no III Seminário dos Povos Indígenas, Comunidades Quilombolas e Povos de Terreiro realizado na 8º edição do Semiárido Show em 22 de novembro de 2019, entendemos que nossos diversos modos de viver são constantemente desafiados por um sistema político e econômico destrutivo e opressor, e por causa da grandeza dos desafios impostos, se faz urgente uma articulação ampla e unida a partir das singularidades, das particularidades de cada povo que deve buscar em sua organização os meios para a defesa do modo de vida que lhes é comum a partir do conflito posto pelas práticas de destruição que lhes ameaçam.

Sabendo que o momento atual se constitui de impasses e refluxos muito preocupantes no que diz respeito às conquistas das últimas três décadas, nos diversos níveis municipal, estadual e federal, há um chamado que parte dos movimentos dos Povos Indígenas, das Comunidades Quilombolas e dos Povos de Terreiro. Esse chamado diz que nós precisamos nos conhecer e nos reconhecermos para que a trama dos nossos direitos e territórios possa tomar lugar, agindo em favor de um país onde caibam todos nós - o que é o exato oposto do que toma forma a partir das forças do atual governo e dos grupos de interesse que o suportam. O chamado é por união e por conhecimento, especialmente no sentido de que nós compartilhemos nossas estratégias de resistência e afirmação da nossa identidade étnica racial.

O trauma da dilapidação das formas culturais, econômicas e linguísticas das populações indígenas, quilombolas e de terreiro constituiu um processo de apagamento da vida cultural deixando como herança, frequentemente, palavras soltas ao invés de linguagem, pedaços de terra ao invés de territórios, momentos de vida ao invés de uma vida inteira. E então, saber falar a própria língua é um ensinamento histórico de estratégia que foi secularmente oprimido pelo colonizador e que precisa mais urgentemente ser revitalizado para reconquistar a integridade da vida comunitária. E uma vida inteira se constitui da diversidade da própria vida que tem como desafio combater sua invisibilidade, frequentemente rompida e interrompida nas formas da violência contra os viventes, contra os ancestrais, contra os mais velhos, contra os mais novos, contra as mulheres, homens e a natureza da diversidade sexual de cada comunidade. E é esta violência que reconhece a diversidade da qual falamos quando toma forma na exata medida em que a opressão é dirigida não contra todos, mas contra as singularidades que se reuniram no III Seminário dos Povos Indígenas, Quilombolas e de Terreiro.

Discutir conjuntura, no presente momento, é muito difícil. É o momento delicado de levar para adiante o legado dos antepassados. A luta de uma melhor educação que custa a sair, uma melhor saúde que custa a sair, nos impondo tarefas sempre muito difíceis. A invasão e destruição de terreiros, quilombos e terras indígenas criam novas situações, sempre muito difíceis. É muito difícil lidar com a situação de desmonte das conquistas que começa a afirmar que não há terras para indígenas e negros e no desrespeito à complexidade dos terreiros e que tem no apoio de tamanha destruição a razão para o lamento de agora, após a eleição de um governo que se legitima junto a setores religiosos. Mas a hora é esta. Todos nós sabemos que as chacinas que acontecem todos os dias nas favelas nas capitais derruba quase sempre negros, e que as terras indígenas permitem quase tudo, menos o bem-viver, o que desdobra de uma arquitetura racista que impôs terra ao território. Ora, não basta morar ou estar. O que os poderes constituídos queriam deixar para as comunidades tradicionais era o aperto de uma terra acuada entre fazendeiros, o que restou da propriedade privada. No entanto, a luta pela terra até que vire território vai continuar para que seja atingido o momento de viver no espaço da convivência, o canto de encontro dos diversos modos de vida, onde se respeitam e preservam todos as formas de vida na Caatinga herdadas de nossos ancestrais.

Orientações:

  1. - Considerar estratégica a implantação de tecnologias sociais, principalmente com relação a melhorias no plano da segurança hídrica.

    - Fortalecer e enfatizar a visibilidade dos povos e comunidades tradicionais do semiárido.

    - Trabalhar no resgate, publicação e ensino das línguas e linguagens indígenas, quilombolas e dos povos de terreiro como forma de manutenção e preservação, estimulando o sentimento de pertença a uma forma diversa de existência.

    - Estimular e executar a titulação dos territórios em toda sua complexidade, com o respeito às distintas trajetórias de luta e o respeito à dinâmica dos povos tradicionais do semiárido.

    - Criar alternativas mais dinâmicas e viáveis para os processo de titulação de terras, considerando a autodemarcação.

    - Criação de instrumentos reguladores de políticas públicas específicas para cada povo e comunidade respeitando identidade, trajetória e modo de ocupação das diversas paisagens do semiárido.

    - Projetar, construir e consolidar os planos de educação contextualizada a serem executadas dentro dos espaços de seus territórios preservando espaço para a criação e a proteção das diversas formas de expressão de gênero e orientação sexual e afetiva. Os feminismos e mulherismos indígenas, negros e dos terreiros não comungam com nenhuma forma de violência opressora, independente de seu alvo. Os movimentos de mulheres indígenas, quilombolas e de terreiro abraçam os demais movimentos de mulheres, da mesma forma que as mulheres indígenas abraçavam as mulheres negras quando chegavam às aldeias indígenas. Esse sentimento das mulheres ancestrais ainda é atual de forma a exprimir as formas do feminino na construção dos espaços de aliança e resistência, e é preciso renovar o compromisso com a ideia de que o território também se exprime no corpo na medida em que o corpo é também território na mesma medida em que território é vida.

Assinam essa carta as lideranças dos estados do Piauí, Bahia e Pernambuco presentes no III Seminário do Povos Indígenas, Comunidades Quilombolas e Povos de Terreiros:

Indígenas - Pernambuco

  1. Truká – Cabrobó

    Pankararu, Pankararu Opará, Pankararu Angico, Entre Serra – Jatobá/ Petrolândia /Tacaratu

    Kambiwá –Ibimirim

    Pankará – Itacuruba

    Funiô – Águas Belas

    Atikum – Serra Umã

    Kiriri Chocó - Alagoas

Indígenas – Bahia

  1. Tuxí – Abaré

    Kiriri – Banzaê

    Kaimbé – Euclides da Cunha

    Pataxó – Porto Seguro

Indígenas - Piauí

  1. Kariri da Serra Grande – Queimada Nova

Quilombolas - Bahia

  1. Alagadiço, Rodeadoro – Juazeiro

    Tijuaçu , Quebra Facão, Olaria, Alto Bonito, Lajinha, Queimada Grande e Cariacá – Senhor do Bonfim

    São Tomé- Campo Formoso

    Gavião e Cajá – Filadélfia

Quilombolas – Piauí

  1. Ponta do Morro , Atrás da Serra , Campo Alegre, Chapada, Lagoa Grande – Santa Cruz

    Custaneira, Mutamba, Canabrava dos Amaros – Paquetá

    Baixão, Laranjo- Betânia

    Belmonte dos Cupiras, Veredão – Simões

    Angical, Tanque de Cima – Acauã

    Sombrinho, Angical, Mocambo, Tapuio, Volta do Riacho, Sumidouro – Queimada Nova

    Quilombo Lagoas – São Raimundo Nonato

Quilombolas – Pernambuco

  1. Borda do Lago – Petrolândia

    Negros de Gilú e Ingazeira – Itacuruba

    Cruz dos Riachos, Santana e Jatobá II- Cabrobó

    Caatinguinha, Mata de São José, Remanso e Vitorino – Orocó

    Inhanhum, Cupira, Saruê, Noza de Gilú- Santa Maria da Boa Vista

    Catolé dos Índios Pretos – Serra Talhada

    Feijão e Posse, Pau de Leite, Araçá, Tamboril, Juazeiro Grande, Serra do Talhado- Mirandiba

    Araçá, Boa Vista – Afrânio

Terreiros – Bahia

  1. Ilê Axé Omyn Dêwý , Ilê Axé OmynKayOdé, Abassý D’Oyágnãn, Unzó Congo Mutalengunzo - Juazeiro

Terreiros – Pernambuco

  1. Terreiro Tenda de Ogum – Santa Maria da Boa Vista

Terreiros - Piauí

  1. Casa de Guerreiro Caboclo de Oxóssi – Paquetá

Notas

[1] O Quilombo Lagoas é localizado entre seis municípios do sudeste piauiense, com território de 62. 365, 6 hectares. O território é dividido em 12 núcleos com 118 comunidades entrecruzadas por corpos d'água intermitentes, entre riachos e lagoas. No presente momento completam-se 10 anos de espera pela titulação do território pela Presidência da República. Informações sumárias sobre o Quilombo Lagoas podem ser encontradas em DUTRA (2016). Informações mais completas podem ser encontradas em MATTOS & RODRIGUES (2010) e em MATTOS (2013).
[2] Trata-se do Fórum Permanente de Cartografia Quilombola, projeto PIBEX-UNIVASF.
[3] Assinaram o termo o Presidente da CBPM, Antônio Carlos Marcial Tram, o Diretor de Operações da Mineração Caraíba S.A. , Manuel Valério de Brito, a Profa. Dra. Lúcia Marisy Souza Ribeiro de Oliveira (UNIVASF) e o Reitor Pro-Tempore (interventor federal): Prof. Dr. Paulo César Fagundes Neves.
[4] Uma avaliação da complexidade dos episódios relativos ao norte da Bahia pode ser encontrado no canal de Confiscações e Lutas Anti-Confiscatórias, organizada por Adalton Marques e Jorge Mattar Villela: https://www.youtube.com/watch?v=vcTQvO0wjW0, acesso em 30 de junho. Vale mencionar que o município de Caraíba, no sul da Bahia, também está entre os municípios atingidos, ainda que não esteja na região do médio São Francisco.
[5] Sobre as condições a partir das quais este artigo foi escrito, vide FREIRE (2020a; 2020b) e SANSÃO (2021). Sobre a Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco, é importante enfatizar sua constituição multicampi. No presente momento, a UNIVASF tem campus nos municípios de Petrolina (PE; sede); Juazeiro (BA); Bonfim (BA); Paulo Afonso (BA); São Raimundo Nonato (PI); e Salgueiro (PE). A diferença das instalações físicas é evidente e gradativa, de acordo com o afastamento progressivo do centro administrativo, culminando também na estrutura dos Colegiados. Por exemplo, o Colegiado de Antropologia conta com somente 7 docentes contratados como efetivos, sem nunca ter efetivado sua contratação prevista no Programa Pedagógico do Curso, ou seja, 9 vagas.
[6] Esta afirmação jamais teria vindo à luz sem a leitura, ainda que incompleta, de MARQUES (2018).
[7] A presença de Paul Gilroy e de Achille Mbembe em um argumento que busca fundamentar um programa da ecologia política não deveria assustar ou causar qualquer estranhamento a uma leitora ou um leitor mais atentos. É ele mesmo, Paul Gilroy, quem define seu lugar nos estudos culturais como uma história dinâmica relativa aos ecologies of belonging com uma evocação expressiva do conceito de rizoma de Deleuze & Guattari (GILROY, 2012:13,80). Por sua vez, MBEMBE (2018) promove uma ampliação conceitual significativa da raça como conceito futuro dessa ecologia ampliada, reformulando parte daquilo que Gilroy apresenta como uma reintrodução da negritude étnica ao trânsito transatlântico complexo e as contradições das ambições da negritude com as agendas nacionalistas e, por conseguinte, estatais. Neste último caso, mais especificamente, vide MBEMBE (2019).
[8] Convém enfatizar a leitura do capítulo 5 a respeito da eugenia bovina como parte da amplitude do debate racial em caráter transespecífico.
[9] Se a remissão à escravidão, no parágrafo acima, parecer um abuso interpretativo de minha parte, convém então recuperar uma das remissões que Latour faz ao Mito da Caverna de Platão: De um lado, o vozerio das ficções, de outro, o silêncio da realidade. A sutileza desta organização repousa inteiramente no poder dado àqueles que podem passar de uma a outra câmara. Alguns expertos, selecionados com o maior cuidado e capazes de fazer a ligação entre os dois conjuntos, teriam, quanto a eles, o poder de falar - uma vez que são humanos - de dizer a verdade - posto que eles escapam do mundo social graças à ascese do conhecimento - e, enfim, de pôr ordem na assembleia dos humanos, fechando-lhes o bico - pois estes podem retornar à câmara baixa a fim de reconduzir os escravos que jazem agrilhoados no grande salão." (LATOUR, 2004:33-34). Por sua vez, o tema da Grande Divisão está expresso claramente no debate sobre as insuficiências dos projetos Iluministas da modernidade exatamente pela dificuldade bicameral que as versões mais otimistas de crítica oferecem por não conseguirem assimilar a potência do tema da escravidão e suas variações, transformações e coalizões cooperativas. No caso, convém recuperar aqui como Paul Gilroy, ao comentar a Patricia Hill Collins, discute a assimetria que impera em modelos de Grande Divisão que contrapõem esferas de dominação e sujeição (GILROY, 2015:119-122). Assim como Latour, Gilroy advoga, exatamente aí, em favor de coletivos ampliados para deliberarem as dimensões comuns dos coletivos negros e feministas organizados sem, com isso, partirem do pressuposto essencialista que identifica a priori o ponto de chegada em si mesmo, o que cumpriria aqui um modelo causal-linear de epistemologia histórica que ambos rejeitam, cada um a sua forma.
[14] Importante destacar que Ciência e Política, redigidas com inicial em caixa alta, indica um domínio, não sendo qualquer forma de substantivismo.
[15] Convém registrar que tenho minhas dúvidas se a noção barranqueiro é meramente ideológica e não fruto de uma forma de conhecimento real, empírico e concreto produzido pelas práticas de sujeição e exploração desta mesma população. Ou seja, com amplo suporte na realidade social, o que não significa dizer, com isso, que o que o conceito significa seja absolutamente verdadeiro.
[16] Convém notar que o chat da transmissão, único canal existente para o registro da participação popular e para a exposição de uma crítica institucional, foi desativado entre meu último acesso, no dia 15 de dezembro de 2020, e meu acesso mais recente, no dia 08 de julho de 2021.
[17] "A dupla ruptura da Caverna não se funda em nenhuma pesquisa empírica, sobre algum fato de observação, ela é até contrária ao senso comum, à prática cotidiana de todos os sábios; e se ela jamais existiu, vinte e cinco séculos de ciências, de laboratórios, e de instituições de sábios, desde há muito tempo a apagaram. Nada adianta, a polícia epistemológica anulará sempre este conhecimento ordinário, criando esta dupla ruptura entre os elementos que tudo religa, e peneirando aqueles que a põem em dúvida como relativistas, sofistas e imorais, que desejam arruinar todas as nossas oportunidades de aceder à realidade exterior e, assim, de reformar, por efeito reflexo, a sociedade."(LATOUR, 2004:32)
[18] Aqui convém levar em conta a fórmula cuidado com que Jorge Vilella recupera de Diferença e Repetição de Deleuze (VILLELA, 2020:296).
[20] Uma causa infinitesimal pode produzir grandes efeitos; um ator insignificante torna-se central; um cataclisma imenso desaparece como que por encanto; um ser monstruoso se domestica sem esforço. Com a ecologia política, estamos sempre presos no contrapé, agarrados tanto pela robustez os ecossistemas, como por sua fragilidade. (LATOUR, 2004:53)
[21] Devemos compreender, no entanto, que, quando se fala em situação, algum tipo específico se encontra em discussão e pode se dar que o raciocínio não se aplique à situação de algum outro tipo. Na totalidade dos casos, todavia, uso o termo situação para expressar uma relação entre objetos e eventos, e não entre objetos e elementos abstrativos. Existe uma relação derivativa entre os objetos e elementos espaciais, à qual denomino relação de locação; e quando se verifica essa locação, digo que o objeto está localizado no elemento abstrativo. Nesse sentido, um objeto pode estar localizado em um momento do tempo, em um volume do espaço, uma área, uma linha ou um ponto. Haverá um tipo peculiar de localização correspondente a cada tipo de situação, sendo ela, em cada caso, derivativa da correspondente relação de situação, de uma forma que passo agora a explicar." (WHITEHEAD, 1993:189).
[22] A renovação do interesse de Latour pela antropologia comparada, que justifica o lugar de destaque a pesquisadoras contracoloniais como Ana Mumbuca, tem a ver com um elemento fundamental: a de que as culturas não-ocidentais não teriam na natureza um conceito de tipo Natureza como critério de exclusão: "As culturas não ocidentais não estão jamais interessadas pela natureza; elas não a utilizaram jamais como categoria; elas jamais encontraram seu uso. Foram os Ocidentais, ao contrário, que transformaram a natureza em um grande negócio, em uma imensa cenografia política, em uma formidável gigantomaquia moral, e que têm constantemente engajado a natureza na definição de sua ordem social. (LATOUR, 2004:81).
[23] Diante desta situação bem conhecida, que concerne tão bem à discussão do aquecimento global, quanto ao papel das minhocas amazonenses, ao desaparecimento dos batráquios ou ao tema do sangue contaminado, duas atitudes são possíveis: esperar que um suplemento de ciências venha pôr fim às incertezas; ou, considerar a incerteza como o ingrediente inevitável das crises ecológicas e sanitárias. A segunda tem a vantagem de substituir o indiscutível pelo discutível, e de unir duas noções de ciência, a da objetiva e a da controvérsia: quanto mais realidades, mais disputas. (LATOUR, 2004:122-123)

Autor notes

i LaMPDA-CANT-UNIVASF/São Raimundo Nonato-PI. E-mail: bernardo.curvelano@univasf.edu.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3982-263X
ii Vice-presidente da Associação Territorial do Quilombo Lagoas, Calango/ Quilombo Lagoas-PI.E-mail:quilombolagoas@gmail.com
iii Filósofo-UFPI/coordenador do MAM Piauí/Lagoa da Firmeza, Quilombo Lagoas-PI. E-mail: antunessalvador35@gmail.com
iv Lagoa das Emas, Quilombo Lagoas-PI. E-mail:quilombolagoas@gmail.com

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