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Ética, economia e subsistência humana através do mercado
Ética, economía y subsistencia humana a través del mercado
Ethics, economics and the human subsistence through trade
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 18, núm. 2, 2021
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 18, núm. 2, 2021

Recepção: 27 Fevereiro 2020

Aprovação: 08 Maio 2021


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: Este trabalho discute a relação entre ética, economia e subsistência humana, que, nas sociedades urbanas, ocorre através do mercado. O interesse é compreender o modo como a vida econômica das sociedades ocidentalizadas foi criada e investigar uma possível alternativa. O artigo inicia com uma análise crítica da significação que o comércio assume nessas sociedades e segue com a revisão de algumas concepções éticas elaboradas por economistas. No final, apresenta uma proposta ética radical acompanhada da revisão do conceito de revolução, ambas elaboradas na esteira do pensamento de Emmanuel Levinas.

Palavras-chave: Comércio, Moral, Emmanuel Levinas, Karl Polanyi, Norbert Elias.

Resumen: Este texto analiza la relación entre la ética, la economía y la subsistencia humana, que, en las sociedades urbanas, se da a través del mercado. Su interés es comprender cómo se ha creado la vida económica de las sociedades occidentalizadas e investigar una posible alternativa. Para ello, se parte de un análisis crítico del significado que el comercio asume en estas sociedades y se prosigue con la revisión de algunas concepciones éticas desarrolladas por los economistas. Al final, se presenta una propuesta ética radical acompañada de la revisión del concepto de revolución, ambas elaboradas a raíz del pensamiento de Emmanuel Levinas.

Palabras clave: Comercio, Moral, Emmanuel Levinas, Karl Polanyi, Norbert Elias.

Abstract: This work reflects on the relation between ethics, economics and the human subsistence, which in urban societies occurs through trade. The interest is to understand how the economic life of westernized societies was created and to investigate a possible alternative. In order to do so, it starts with a critical analysis of the significance that trade assumes in these societies and continues with the review of some ethical conceptions developed by economists. In the end, it presents a radical ethical proposal accompanied by the revision of the concept of revolution, both elaborated in the wake of Emmanuel Levinas' thinking.

Keywords: Trade, Moral, Emmanuel Levinas, Karl Polanyi, Norbert Elias.

Introdução

Neste trabalho, discutimos a relação entre ética, economia e subsistência humana, que, nas sociedades urbanas, passa sempre pela compra e venda de mercadorias. Inicialmente, fazemos uma análise crítica da significação que o comércio assume nas sociedades ocidentalizadas; em seguida, uma revisão de algumas propostas éticas elaboradas por economistas.

A reconstrução histórica do significado do comércio e das trocas é importante porque ainda vivemos em sociedades onde a ubiquidade dos mercados condiciona a estruturação de todas as relações e instituições humanas. A subsistência humana depende agora de um mecanismo recente de funcionamento dos mercados que se destacou e subsumiu as demais dimensões do humano ao econômico. Por isso, estamos de acordo com Karl Polanyi (2001), quando afirma que o esforço por separar o trabalho das outras dimensões da vida e sujeitá-lo às leis do mercado substituiu a socialização pela atomização, como modelos de organização social.

A subsistência nas economias modernas passa, portanto, pelo comércio: se não vender seu trabalho ou não comprar os alimentos, não há sobrevivência possível para maior parte das pessoas (os trabalhadores). Fazer uma análise da significação histórica do comércio é interessante porque nos permite colocar esse fenômeno em perspectiva, além de manifestar sua contingencialidade.

Por exemplo, os valores éticos que o ato de trocar incorpora contemporaneamente nas sociedades urbanas não são os mesmos cultivados pelas sociedades do passado e nem correspondem aos valores cultivados, ainda hoje, pelos povos tradicionais. O próprio arcabouço conceitual utilizado para estudar o comércio mudou desde que a Economia se tornou uma ramificação independente da Filosofia e passou a ser praticada, de forma crítica ou acrítica, por tradições ético-epistêmicas concorrentes. Daí a relevância de nos aproximarmos das propostas de economistas acerca da eticidade, do conteúdo moral que essas propostas carregam e de suas implicações para o futuro do planeta.

Não se trata de buscar regras formais de conduta ou de embrenhar-se pela casuística, e sim de revisitar os fundamentos daquilo que socialmente se tornou importante. Por isso, julgamos oportuna a reflexão ética de Emmanuel Levinas — apresentada mais adiante neste trabalho —, pois ela não está interessada na distinção entre bom e mau ou em criar hierarquia de bens, ela “(...) não pode ser culto ou uma ordem ou ‘escala’ de valores porque é resposta e responsabilidade sem medidas diante do outro e ao outro” (SUSIN, 1984, p. 258, grifo do autor no original).

Na história do pensamento ocidental, as discussões acerca do ser têm ocupado um lugar central. Na elaboração de sistemas e teorias, a ontologia ou a epistemologia invariavelmente ocupam a posição de filosofia primeira: ponto de partida ou fundamento. Na tradição fenomenológica heideggeriana, na qual Levinas está inserido, ocorre uma inversão (revolução) importante quando a transcendência passa a ser vista como dimensão horizontal, em vez de vertical, da existência (BARTKY, 1979).

Dessa forma, uma leitura relacional e meditativa ocupa o espaço de uma leitura aristocrática e calculista. A primeira dá origem à valorização dos aspectos qualitativos, estéticos e místicos; a segunda, à economia e ao planejamento quantitativo. A leitura calculista está ligada ao desenvolvimento da tecnologia e a seu escopo de controle sobre os fenômenos internos e externos ao humano, ao tipo de empresa que começa a ser gestada no espírito empreendedor dos comerciantes da Idade Média, como veremos a seguir.

Valores nos mercados ocidentalizados

O comércio é um dos tipos de troca que os seres humanos realizam desde os mais remotos registros, por isso não devem surpreender os esforços que se multiplicam no sentido de ressignificá-lo: comércio justo, slow food, quilômetro zero, renda de cidadania etc. Por outro lado, há também esforços cujo propósito é mais amplo e visam ressignificar não só o comércio, mas a própria produção e a vida econômica como um todo: permacultura, economia circular, economia solidária etc.

Uma característica importante das mercadorias atualmente é a sua linearidade, ou seja: compramos algo novo, utilizamos e dispensamos (lixo ou então “caridade” com os mais pobres). Outro ponto que merece destaque é a ideia de realização e riqueza através da propriedade e do acúmulo de bens e recursos, sendo apenas através do consumo que as pessoas se sentem vivas e existem (BAUDRILLARD, 2003). A sofisticação das estratégias comerciais explora justamente esses valores, a fim de ampliar a lucratividade, e, por isso, existe a compreensão da importância de se assumir uma nova ética para refazer as bases das trocas e sua relação com o ecossistema.

Nesse contexto é que aparecem os esforços em prol da precificação dos “serviços” da natureza e dos recursos naturais. Entendemos, ao contrário, que a formação de uma nova ética, uma nova relação com o meio ambiente, não deve permitir a pergunta sobre os preços de todas as formas de vida: elas possuem valor, inegavelmente, mas não deveriam entrar na dinâmica do mercado. Ocorre uma convergência com a crítica de Karl Polanyi (2001), para quem, o mecanismo de oferta-procura-preço está na base do moinho satânico que põe em risco a existência da própria humanidade. O mercado, com esse tipo de funcionamento, é uma ameaça a toda sociedade.

Quando o planeta e o trabalho humano se tornam mercadorias no interior desse mecanismo, os limites aos interesses individuais começam a desaparecer. A qualidade perde importância diante da quantidade, e o ecossistema (Urihi, Pachamama)[1] pode ser comprado e vendido em alqueires de terra; a vida das pessoas (contada em horas de trabalho) é comprada por preços (salários) indignos. Por exemplo: 80,4% dos trabalhadores brasileiros, que compreendem a baixa classe média, a massa trabalhadora e os miseráveis, gastam suas vidas em empregos e trabalhos que mal lhes permitem sobreviver, com rendas inferiores a R$ 1.697,00 mensais per capita, como aparece no quadro abaixo[2]




Esses dados são resultado da clivagem social que o mercado que compra e vende tempo de vida humana, sob a forma de trabalho, pode gerar. Na sociedade brasileira, por exemplo, existe a percepção de que um dos principais problemas é a violência, mas certamente a violência de que fala o grupo do topo dos rendimentos não é igual à violência de que fala a base: há diferenças entre temer um sequestro e temer não ter o dinheiro para pagar o pedágio[3] na rua da própria casa; entre temer perder investimentos na bolsa de valores e temer o final do mês, porque o salário (mínimo) recebido não será suficiente; ou, ainda, entre temer a demora da polícia e temer a própria polícia.

A significação social do mercado acompanha de perto a significação do trabalho na história ocidental: uma tarefa para escravos e estrangeiros no período helênico, ofícios característicos de judeus e servos no medieval, apenas uma atividade entre outras na contemporaneidade. Hannah Arendt (2008) destaca que Platão recomendou a fundação de novas cidades-estado longe do mar, para que Atenas não recebesse influência dessa atividade suspeita, o comércio, não obstante ser ela a responsável por boa parte de sua riqueza.

O historiador Jaques Le Goff (1979) assinala a dificuldade em poder identificar se é o comércio que gera a expansão das cidades, ou se são estas que permitem a expansão do primeiro. O mesmo historiador destaca a dimensão exterior dessa dinâmica mercantil, pois ela afeta principalmente uma pequena minoria, deixando de lado a maioria de pequenos artesãos e mercadores que ignoram a busca de crescimento e prosperidade através da troca. De qualquer modo, Le Goff enfatiza que, nas sociedades cristãs medievais, o comércio era acompanhado pelo sentido de reciprocidade e não pelo de usura ou busca do lucro: esse era um dos motivos pelos quais os judeus e os comerciantes, que visavam ao lucro, eram vistos com suspeita pela Igreja.

Nesse mesmo sentido, vemos, em Norbert Elias (1993), que a expansão do comércio nos séculos X e XI ensejou o aparecimento da necessidade de sincronização e previsão das condutas humanas em escalas inauditas. A vida nas cidades era acompanhada da inibição e do controle das paixões, pela imposição de um “ritmo” novo de vida: horários marcados, duração das jornadas e cronometragem das atividades. Os indivíduos precisavam subordinar momentaneamente suas inclinações a esses objetivos maiores, representados pela sincronização e previsão das condutas. Há uma dupla dimensão nesse esforço por subordinação que ajudará a compor o superego — uma horizontal e outra vertical —, assim como há múltiplas velocidades nas mudanças entre os setores agrário e urbano. Passam a conviver os indivíduos que se veem forçados ao trabalho por subsistência material e os indivíduos que se veem forçados ao trabalho por subsistência simbólica (seu status social é sua justificação e significado), ou seja, o prestígio e sua conservação é o que dá sentido ao esforço das classes que vivem acima do nível de subsistência.

Nos mercados medievais, os produtores exibiam seus produtos para a venda, sua produção era seu orgulho. No período moderno, os vendedores profissionais vão ao mercado oferecer mercadorias, sua venda é acompanhada de um sentimento de vaidade. O homo faber atribui valor à sua atividade e às atividades dos demais membros da sociedade. A sociedade laboral atribui ao trabalho um preço de mercado (o salário) que não o diferencia qualitativamente de uma máquina: não há perda qualitativa em esta última substituir o primeiro. Ocorre, desse modo, uma degradação na relação com o próprio trabalho e seus resultados: a obra não diz nada com respeito a seus autores, não pode ser encarada como o fruto ou o espelho de personalidades vivas.

As mudanças inauguradas com a modernidade afetam aquilo que Norbert Elias (1994) chama de “as três coordenadas básicas da vida humana”: a formação e o posicionamento do indivíduo dentro da estrutura social, a própria estrutura social e a relação dos seres humanos sociais com os acontecimentos do mundo não humano. A partir daí, os indivíduos podem conhecer e transformar o mundo com base em seu próprio esforço e capacidades, sem recorrer ou depender de uma autoridade. Essas mudanças ocorreram de forma integrada à crescente comercialização, a formação dos Estados, ascensão da burguesia e capacidade de os seres humanos afetarem o meio ambiente (a parte não humana da natureza).

O comércio também está ligado ao surgimento do Estado como empresário, já que, no século XVI, os reis se endividaram com a finalidade de financiar as navegações comerciais, que não encontraram outros financiadores dispostos a assumir os riscos envolvidos na empresa. Sem mencionar as corridas imperialistas, há ainda o fato de que “Part of the mercantilist project was to create colonies, where independent economic development was effectively stifled since manufacture was allowed only in the home country”(SWEDBERG, 2005, p. 238). As expansões imperialistas foram acompanhadas pela expansão do comércio, e definir uma relação de causalidade entre esses fenômenos não é tarefa trivial.

Nesse contexto, merece destaque o processo de transformação de valores que pode ser representado pela transmutação da usura em uma virtude. A opulência tornou-se sinal da graça divina, e os ricos passaram a ser vistos como portadores de virtudes e exemplos a serem seguidos. O trabalho deve gerar riqueza para ser sinal de virtude, e, já na aurora da modernidade, o comércio tem o potencial de trazer grandes lucros.

Esse é também um dos frutos que estão prefigurados na solução cartesiana ao problema do conhecimento. A redução das relações dos homens com o meio ambiente a um conjunto de equações matemáticas elude e dissolve as relações reais e complexas, permeadas pelo imaginário e por sensações. Dessa forma, a ciência moderna começa a produzir o mundo objetivo sobre o qual os novos sábios e alquimistas se debruçarão: nenhum deus ou anjo maligno pode mudar o fato de que dois e dois são quatro. Os cientistas modernos produziram as condições que tornaram possíveis a dupla alienação que precisa ser enfrentada para a realização de qualquer mudança — a fuga da Terra para o Universo e a fuga do mundo para dentro de si mesmo (ARENDT, 2008).

Hirschman desenvolve a tese de que as atividades comerciais ampliam seu espaço na sociedade entre o final da Idade Média e o século XVIII, e seu efeito é assimilado de forma ambígua pela sociedade e sua intelectualidade. Parte disso é devido ao modo como as relações comerciais passaram a ser encaradas. Elas adoçavam os contatos entre pessoas de diferentes nações, como Montesquieu no Espírito das Leis (citado por Hirschman) assevera: “O comércio (...) dá polimento aos costumes bárbaros e abranda-os (adoucit), como podemos ver todos os dias” (HIRSCHMAN, 1979, p. 51). No século XVIII, tornou-se comum a expressão “cultivado”, em oposição a “bárbaro”, na Inglaterra e na Escócia; o comerciante endinheirado tornou-se o portador da “etiqueta”, que permitia travar relações nos mais diferentes lugares: “O Comércio tende a desgastar aqueles preconceitos que perpetuam as distinções e a animosidade entre as nações. Ele abranda e dá polimento às maneiras dos homens” (HIRSCHMAN, 1979, p. 52).

Comércio, nesse período, para além de troca comercial, era sinônimo de conversa animada e intercâmbio social agradável, carregando consigo o significado positivo de polidez e comportamentos agradáveis. A imagem do comerciante como polido e pacífico passou a conviver com a prática violenta e arriscada da escravização de humanos, que movimentava a riqueza na época. De qualquer modo, o comerciante não era visto como um nobre em busca da honrada glória, e sim como um avarento em busca do vil metal. Não obstante isso, os comerciantes e demais burgueses em ascensão precisavam construir uma narrativa que os distinguisse dos pobres, e essa foi elaborada com base na moralidade.

Ocorreu, então, uma grande transformação (POLANYI, 2011). Terra e trabalho transformaram-se em mercadorias e passaram a ser compradas e vendidas, obedecendo ao mecanismo de oferta e procura. Recordemos: terra é outro nome para natureza, e trabalho é outro nome para ser humano. Ambos passaram a servir a um mecanismo que (idealmente) trabalha apenas seguindo os incentivos de fome (de um lado) e desejo de lucro (de outro): “O mecanismo de mercado criou a ilusão de que o determinismo econômico é uma lei geral de toda sociedade humana” (POLANYI, 2012, p. 55).

O domínio do meio ambiente, sua alteração para servir aos propósitos monetários de facilitação do comércio e a modificação do terreno para torná-lo útil passaram a ser vistos como a medida mesma do avanço e do progresso. Hobsbawm (1995) cita o lema dos homens de negócio do século XIX: “onde tem lama, tem grana” — um lema ainda válido para atividades cujo labor contribui para a manutenção do crescimento econômico em seus respectivos estados (custe o que custar). Nesse ponto, a convergência com a análise crítica de David Harvey (2001) é esclarecedora, pois explicita a subsunção das regiões à busca por lucro, sua transformação e adequação às iniciativas e aos interesses de cunho econômico.

Jean Baudrillard, em sua argumentação, ajuda a compreender a importante mudança que representou a passagem do consumo racional para o consumo irracional na segunda metade do século XX. O consumo racional do carro é feito para facilitar o deslocamento ou permitir a realização dele em regiões de transporte coletivo inexistente ou precário. O consumo contemporâneo do automóvel está associado ao status que determinadas marcas e modelos conferem ao usuário: qual a racionalidade em conduzir uma caminhonete com tração nas quatro rodas em uma área urbana? Qual a racionalidade em exigir uma dedicação de 40 horas semanais ou mais a uma pessoa e pagar a ela, no final do mês, um salário que sabemos insuficiente às suas necessidades?

O comércio e a economia precisam ser reconhecidos como integrantes da sociedade, e esta deve ser entendida como parte do meio ambiente. Para ser coerente com isso, o comércio deve estar a serviço do acesso aos bens e serviços, a serviço da vida, como as diferentes culturas fizeram e fazem nas diferentes experiências históricas (BELSHAW, 1968; GEORGESCU-ROEGEN, 2003).

A mercadoria, como expõe Polanyi (1957), não é o objeto de troca da Antiguidade e nem está identificada mais com seu produtor (uma dimensão da transformação da qualidade em quantidade). Na contemporaneidade, são trocadas coisas por seus equivalentes mensuráveis, e, por isso, há um esforço para que tudo possa ser quantificado e comparado.

O comércio, hoje, na sociedade do consumo, é produto de uma determinada concepção de mercado com seu ethos específico. Desse modo, apesar de a análise das mutações do sentido do comércio e do mercado ajudar a entender melhor a sociedade, não basta o consumo consciente para que a difícil equação entre comércio e ecossistema (com o ser humano dentro dele) seja resolvida. Ações como reduzir o nível de consumo de energia em nossas casas, optar por orgânicos e viajar menos certamente diminuirão o impacto sobre o meio ambiente das pessoas que puderem se permitir essa escolha, mas essas são mudanças incrementais e não radicais (estruturais), evidentemente.

As mudanças estruturais, independentemente da forma como ocorram, transformam consigo o referencial axiológico de onde acontecem. As propostas sociais e teóricas, por isso, tornam-se mais transparentes quando explicitam o referencial ético que lhes serve de fundamento e/ou que almejam fomentar. Em busca dessa explicitação, na próxima seção, investigamos a forma como o pensamento econômico aborda a questão dos valores, em uma revisão histórica do tema.

Ética e economia

No passado, a economia era vista como parte da Ética. Aristóteles relaciona essas dimensões na Ética a Nicômaco e na Política. Além disso, a história do pensamento econômico é povoada por outros tratamentos próximos a esse, e isso ocorre em diferentes trabalhos, como os de Tomás de Aquino, John Stuart Mill, Thorstein Veblen e Adam Smith, por exemplo.

Os trabalhos econômicos da Antiguidade estão preocupados com a gestão dos recursos materiais que permitem a vida e longe de separar essa dimensão das demais dimensões da existência. Dessa forma, para nos atermos ao pensamento econômico enquanto ciência (ou técnica), iniciamos com o debate realizado no âmbito do liberalismo do século XVIII, que buscava resolver o problema moral da conciliação entre interesses privados e coletivos.

O período sistemático

O debate mencionado era uma questão filosófica, que, no ambiente escocês, gerou a aporia que apresenta os benefícios públicos como derivados de vícios privados, recebendo mais tarde uma solução inusitada (a mão invisível) do estudioso de questões morais Adam Smith. A mão invisível é um mecanismo que transforma vícios (paixões) em virtudes (interesses) e tem um local específico de realização, o mercado (no singular), que, após Smith, passou a ser encarado como realidade ontológica com leis próprias. As leis do mercado, seguindo essa leitura, perpassam a história e tornam-se um dos grandes interesses da ciência neófita (a Economia) que reconhece no filósofo escocês o seu patrono.

Vale destacar que as interpretações sobre a moral nas obras de Smith (1952; 1982) foram, em muitos casos, adaptadas aos valores dos liberalismos praticados nos séculos posteriores a seu aparecimento. Nas obras An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations e The theory of moral sentiments, o filósofo apresenta a moralidade como conjunto de valores sociais que controlam o egoísmo dos homens.

As atividades humanas voltadas à busca dos interesses individuais são sempre mediadas por regras morais que estão consolidadas no Direito e na Política. Mercado, propriedade e capital são o fruto de relações sociais complexas que só podem ser bem entendidas quando inseridas no todo maior de um sistema de pensamento. Na obra smithiana, encontram-se ecos do pensamento estoico, em seu projeto de desvendar as leis universais do econômico, da mesma forma que o materialismo epicurista se fazia presente na defesa do utilitarismo.

Outro defensor do utilitarismo, John Stuart Mill (1882), trata a Economia no livro VI, dentro de On The Logic Of The Moral Sciences, e, por esse motivo, sem a possibilidade de se furtar ao embate com os questionamentos daí decorrentes: para o filósofo, as ações humanas possuem uma natureza social e psicológica que os métodos positivistas não podem deluzir.

Liberdade, moralidade e necessidade são elementos constitutivos das ciências morais, e a capacidade de autoconstrução (modificação do próprio caráter) é uma peça chave desse esquema, gerando indeterminação. Apesar de combinar influências smithianas com as de outras correntes, Mill realiza sua própria síntese e proposta econômica.

O utilitarismo que ele advoga teria uma validade universal, e seu critério de validação lógico é a felicidade como fim ao qual todos almejam. Esse fim é buscado através das preferências individuais, que se expressam nas escolhas feitas no mercado (mas não apenas nele).

O equilíbrio do mercado torna-se uma peça fundamental na análise econômica posterior, e seu ferramental, importado da mecânica newtoniana, confere o rigor (e a gravidade performática) que os praticantes da economia incorporam como seus: o Produto Interno Bruto (PIB) é uma função, o resultado, de uma combinação de insumos, considerando uma determinada tecnologia. Somente esse produto é o resultado, não a poluição, o desgaste da saúde dos trabalhadores ou a instrumentalização do mundo — esses são os “benefícios públicos” gerados pelo livre fluxo dos vícios privados.

Com o avanço do processo civilizador, a vida em sociedade passa a ser encarada como um estuário onde se encontram os diversos veios (ou esferas) que a compõem: público, privado, jurídico, econômico, cultural etc. Cada uma dessas esferas possui grupos de especialistas que obtêm prestígio pelo cultivo de valores ligados àquilo que passa a ser chamado de neutralidade científica, e, a partir daí, a moral passa a ser tratada como um assunto de foro íntimo, da esfera privada.

O período da esfera econômica

Keynes também entendia que a Economia é uma ciência moral, embora argumentasse, para além disso, que a moral predominante na cultura capitalista não é a correta[4]. O amor pelo dinheiro faz com que as pessoas busquem sempre possuir mais bens que os demais, o que é contrário à boa ética (que gera a “boa vida”). A boa vida é uma condição que torna as pessoas melhores e, por conseguinte, o mundo melhor. Por isso, a forma como os países medem e comparam seu desempenho, através da magnitude do PIB, não representa as reais condições da população. Ademais, esse estalão é inadequado, porque estimula a competição internacional, tomando por base o acúmulo quantitativo, sem estimular a paz e a boa convivência.

A boa vida é alcançada através do cultivo de tudo aquilo que é bom em si mesmo, ou seja, dos estados mentais. As ações não são boas em si, são consideradas boas à medida que contribuem para alcançar os bens eticamente valiosos: “estar enamorado, experimentar emociones estéticas y la persecución del conocimiento” — vemos aí traços do pensamento ético de G. E. Moore (SKIDELSKY, 2009, p.163).

Seguindo essa mesma linha, Keynes entendia que as pessoas racionais são capazes de perceber o que é bom, já que aquilo que é bom é também verdadeiro. Quando as pessoas buscam o que é bom, chegam à verdade, e a verdade é entendida como sendo uma realidade objetiva à qual se pode acessar pelo uso das faculdades humanas.

É nesse sentido que, na ética keynesiana, o egoísmo é um valor superior ao altruísmo, ao mesmo tempo que se compreende que a liberdade política e econômica são meios adequados para garantir os interesses individuais. Tais preceitos estão associados a uma economia voltada à produção, cujo limite é a satisfação das necessidades (o suficiente para uma boa vida), e não a uma economia voltada ao dinheiro (cujo limite não existe). Daí a necessidade de uma educação voltada ao liberalismo e que estimule o amor à bondade acima do amor ao dinheiro.

Por esse motivo, deve ser a Ética (ciência da moral) a conduzir o estabelecimento das regras e dos valores sociais. Os três conceitos que guiam a proposta keynesiana são eficiência, justiça social e liberdade individual. As pessoas precisam aprender a buscar aquilo que é bom, apesar de que nem tudo que é bom seja também prazeroso. Ao afirmar isso, Keynes rejeita a moral utilitarista então vigente, segundo a qual o fim último das ações individuais deveria ser a busca do prazer (SKIDELSKY, 2009).

Para Keynes, as recessões profundas (crises) sempre podem ocorrer quando os mercados são deixados sem regulação. Então, para um cientista moral, como ele se posicionava, não é possível que as Ciências Econômicas tratem como acessórios os temas que são centrais para o bem-estar geral. Uma economia com leis que regulem a estrutura de endividamento, em que os impostos sejam orientados para a distribuição de renda e os setores estratégicos sejam socializados, tende a se aproximar mais do pleno emprego sustentável e reduzir a instabilidade e a inflação — agravadas desde a década de 1960 (MINSKY, 1986). O progresso econômico é o meio para proporcionar a todos o acesso a uma vida com dignidade e liberdade.

Por outro lado, os trabalhos identificados com o pensamento pós-keynesiano que elaboram suas teorias econômicas tendo Keynes como referência partem do pluralismo metodológico e desenvolvem o entendimento de que um conjunto unificado de valores e normas não seria viável. A epistemologia pluralista defende as diferentes metodologias e fomenta a convivência entre opiniões divergentes, sem a intenção de homogeneizá-las ao final. Diferentes metodologias geram diferentes éticas (DOW, 2013).

De acordo com a linha desenvolvida a partir da noção de sistema aberto, os valores estão nos fundamentos das próprias ciências. Eles são pervasivos à ontologia, à escolha do método, a políticas sugeridas e também aos temas de estudo (DOW, 2010). Além disso, não se podem restringir as motivações dos agentes a uma perspectiva moldada pelo utilitarismo; as convenções sociais e as diferentes tradições culturais carregam outros valores que não os utilitaristas.

Desse modo, as discussões sobre ética e valores não podem ser reduzidas a questões de risco moral, que aparecem quando os agentes se comportam oportunisticamente. As instituições sociais são criadas com base em hábitos e regras que se espera que sejam considerados pelos participantes. Os incentivos para observar essas convenções são encontrados em diferentes fontes que não o autointeresse.

Crescimento econômico, pleno emprego e produtividade não são fins em si mesmos, mas também não são os males da civilização. Eles são meios necessários para que as sociedades alcancem um razoável nível de vida, onde condições materiais sejam favoráveis. É uma postura pragmática, onde há uma clara distinção entre benefícios públicos e benefícios privados (CHICK, 2012).

Outro economista, Amartya Sen (1991), optou por relacionar Ética e Economia a fim de destacar o enriquecimento que a segunda pode auferir ao se deixar interpelar pela primeira, sem deixar de sinalizar que o inverso também é verdadeiro. Ao distinguir economia do bem-estar de economia preditiva (e descritiva), ele aponta o empobrecimento sofrido por esta última ao se distanciar das considerações sobre os valores envolvidos no comportamento humano e da compreensão das questões morais presentes na vida social. Tampouco a utilização parcimoniosa do raciocínio utilitarista é capaz de suprir a carência das considerações sobre essa esfera nas teorizações econômicas, dadas as evidências que apontam para outras possibilidades de raciocínio ético e os limites que devem ser postos à compreensão do autointeresse (uma problemática abordada por Adam Smith, que, no mais das vezes, não recebeu uma interpretação adequada dos continuadores de sua obra).

Nesse mesmo sentido, vale recordar que a economia do bem-estar foi influenciada pelos desenvolvimentos da economia preditiva, mas o inverso não ocorreu. Esta última, a também chamada abordagem da economia baseada na engenharia, foi construída sem fazer as considerações necessárias para compreender as implicações morais de seus corolários para as pessoas e suas comunidades.

A proposta de Sen (1999) avança quando ele relaciona desenvolvimento com liberdade, colocando essa como condição e finalidade do avanço nas sociedades. A revisão dos valores ancorados sobre a noção de Homo economicus leva-o a propor outra forma para se pensar a organização social. Nesse ponto, ocorre uma convergência entre Sen e a proposta mais recente de Samuel Bowles (2016), a qual é também um alerta acerca dos efeitos deletérios de organizações baseadas apenas em incentivos e nos modelos de escolha individual.

Os incentivos, ao invés de estimularem a colaboração e os valores socializantes, podem comprometer e agir como forças ftárticas sobre os vínculos e as tendências cooperativas. Com diversos exemplos e argumentação bem estruturada, Bowles demonstra que até mesmo a honestidade e a confiança podem ser desestimuladas por políticas e estratégias (públicas e privadas) que optem por tratar as pessoas como se elas fossem indivíduos hiper-racionais autointeressados.

Responsabilização: para além das esferas

Atualmente, é incomum ouvir questionamentos sobre os valores que os planejadores de políticas econômicas incorporam em seus modelos, entretanto, variações da resposta de Milton Friedmann (EMMETT, 2010) aparecem com frequência: não importa se os economistas servem a regimes de terror ou a valores antidemocráticos, eles são como médicos que atendem o paciente (não importa quem ele seja). Ou os fins ainda justificam os meios, ou o mito da neutralidade da ciência continua a ecoar.

As grandes tragédias, como o nazismo, os genocídios e a instrumentalização da natureza, não são perpetradas por pessoas más, egoístas e mal-intencionadas, como se pensa habitualmente. As grandes tragédias são perpetradas na banalidade do dia a dia, por cidadãos comuns, pessoas normais e bem-intencionadas, que apenas cumprem religiosa e acriticamente seus deveres — como a conhecida investigação de Hannah Arendt revelou (ARENDT, 2003).

De qualquer modo, uma lição que se pode tirar da histórica relação entre ética e economia é a de que não basta realizar estudos “técnicos” e depois (não) se perguntar sobre possíveis juízos de valores ali implicados, ou, em outros termos, torcer para que engenheiros e desenvolvimentistas dialoguem. Há um paradigma que impede a superação dessa dicotomia, há um excesso, um transbordamento de valores da modernidade (expresso na cisão entre subjetividade e natureza) presente no discurso econômico (LATOUR, 2013; ADORNO; HORKHEIMER, 1986).

A proposta de uma ética como mero apêndice de leituras (científicas e/ou religiosas) da realidade revelou-se insuficiente, quando não enganadora, na história da modernidade na parte ocidentalizada do planeta. Essa tradição quis conciliar os inconciliáveis e fazer aceitar o inaceitável: hoje, teoriza-se o que deveria ser abominado, justifica-se a hecatombe ecológica, a fome e a guerra.

Diante disso, é necessário recordar que o ser humano se constrói desde o nicho ecológico que ocupa, e essa construção é sempre relacional, intra e interespécies. Sendo relacional, é também ética, por definição, e toda ação humana é ecológica ao mesmo tempo em que é não neutra: não podemos fingir uma não responsabilidade em relação ao ecossistema. “Racionalidade significa relacionar-se com a realidade” (SOUZA, 2016, p. 182) e daí deriva para as ciências, como para toda forma de conhecer e agir humanos, o desafio da ética como fundamento.

Uma proposta ética radical

A proposta do pensamento de Levinas é também uma crítica à forma ocidental de pensar, e essa crítica refere-se à convergência que existe entre diferentes tradições éticas, no sentido da totalidade do sujeito (self, si mesmo), com a consequente subsunção e/ou eliminação do outro. A alternativa a essa postura é a abertura receptiva a esse outro, que se apresenta materialmente diante do sujeito e que possui também ele uma face, um olhar. O face a face, o encontro entre o sujeito e o outro precede qualquer discurso ou linguagem e é nele que a argumentação levinasiana irá deter-se.

O outro torna-se o ponto de interesse de Levinas, ao invés do sujeito (si mesmo), e, por isso, a ética, o contato entre o sujeito e o outro, tornam-se filosofia primeira: a condição que precede qualquer outra área do discurso (LEVINAS, 1991; 1998). Como se dá esse encontro? Há o cultivo do mal, ou a busca do bem? É uma relação de exploração? Essas são algumas das questões que essa perspectiva nos exige confrontar, é uma filosofia da alteridade que quer entender nossa relação com o outro (com tudo aquilo que me excede).

O outro é irredutível, pois jamais o sujeito poderá assimilá-lo ou entendê-lo totalmente, e é por isso que há um paradoxo da alteridade: quanto mais o sujeito quer compreender ou assimilar o outro, mais sua diferença, sua alteridade, é eliminada, subsumida. Dessa forma, a totalidade representa a expansão de si mesmo, das próprias ideias e convicções, tornando-as universais e não deixando espaço à diferença. A totalidade opõe-se ao infinito, porque este é a representação daquilo que o sujeito (si mesmo) não consegue abarcar, não consegue subsumir (LEVINAS, 1971).

O olhar do outro constitui a experiência imediata da alteridade, onde o sujeito obtém as primeiras impressões do não-si-mesmo e pode perceber algo parecido a si e ao mesmo tempo diferente. O olhar do outro aponta para o mistério de uma existência, uma experiência distinta daquela do sujeito, da qual, esse sujeito não conseguirá se apropriar. Por isso, é uma realidade que o excede.

O outro pode ser bem representado pelas figuras da debilidade, como o órfão, o miserável e o estrangeiro. Figuras que são carentes de elementos fundamentais ao seu empoderamento: os pais, os recursos materiais e a pátria. E isso é assim representado porque é sempre o sujeito quem exerce o poder, ao dizer “o que é” o outro e ao nomeá-lo como órfão, miserável e estrangeiro. O outro é sempre débil, e é dessa debilidade que nasce a responsabilidade dos sujeitos, uma responsabilidade infinita, que pode ser expressa em duas opções radicais, destruir ou libertar, que estão disponíveis aos sujeitos.

A abertura ao outro é o caminho a ser seguido que tem o potencial de interromper o processo totalizador. A ética como filosofia primeira não é fundada sobre a racionalização, ela é precognitiva, é uma descrição da responsabilidade que é sentida antes mesmo da realização de escolhas ou julgamentos. A ética como filosofia primeira é revolucionária: “True revolution is not a heroic action, it is a passive disposition, it is not the exercise of the free self, vis-a-vis the other, but rather the inescapable protention of an immemorial memory”(ULATE; SOUZA, 2018).

Aos sujeitos que escolhem a não destruição da diferença, abre-se um novo horizonte, que é tipificado pela hospitalidade e pela carícia. Essas categorias denotam a convivência e o acolhimento à alteridade, quando o sujeito abre mão das formas de subsunção como são a compreensão racional e a exigência de que o outro se adapte. Por isso, a própria noção de revolução precisa ser “subvertida” para que seja ética: “The true revolutionary community is a meeting of peace”(ULATE; SOUZA, 2018, p. 84).

Daí a proposta de Ricardo Timm de Souza (2004; 2016), nessa mesma linha levinasiana, de estabelecer uma reflexão que coloca a ética como ponto de partida para qualquer outra elaboração humana, inclusive a ciência. Todo pensamento é fruto de relações, porque o próprio ser humano é relação, e é isso que o constitui e se manifesta na linguagem, e pensamento é linguagem.

A proposta de ética como fundamento procura partir da relação entre os seres na tarefa de construção crítica de uma proposta filosófica. No princípio, não está apenas a palavra e nem apenas o mistério, está a presença do outro que exige de mim o reconhecimento (o respeito) que se efetiva na relação dialética entre enunciação (linguagem) e contemplação (silêncio).

Essa enunciação (que também pode ser chamada de epifania) é tomada no sentido (benjaminiano) de ser a essência linguística das coisas, já que a língua comunica justamente a essência espiritual que lhe corresponde. Daí decorre a necessidade lógica de ela ser comunicável — comunicável da forma que uma pessoa se comunica com outra pessoa ou até mesmo com uma pedra, mas isso também é válido para a forma espiritual com que os seres humanos são capazes de estabelecer relações.

As relações acontecem no encontro das temporalidades, na contingência da existência real daqueles que se encontram e se colocam à disposição para o estabelecimento de relação comunicativa disposta à aventura da mútua compreensão. Não há uma esfera ética do humano, há, se quisermos, uma esfera humana, que é também, e ao mesmo tempo, uma esfera ética — o ser humano é ético por antonomásia.

A relação dialética do encontro ocorre na concretude da vida humana, na presença crua e incontornável de olhares e odores que interpelam os sujeitos e põem em xeque os conceitos abstratos e universalizantes que, eventualmente, eram referência e davam a sensação de segurança a seu modo habitual de vida. O outro é sempre mistério, e todo mistério fascina ao mesmo tempo que assusta. Os esforços em reduzir esse estranhamento a uma imagem ou ídolo apenas escamoteiam o “problema” ao afastarem a realidade mesma por um artifício (esquizofrênico).

Considerações finais

O problema da relação instrumental com o mundo, que envolve toda ação humana na modernidade, seguindo o pensamento arendtiano, foi materializado nos campos de concentração, e Eichmann é seu representante emblemático (ARENDT, 2003). O desenraizamento e o estranhamento em relação ao ecossistema, o isolamento desse habitat comum e humano, estão na base de onde brota o totalitarismo. Na sociedade de massas, os indivíduos já não assumem responsabilidades em relação ao meio ambiente ou em relação aos outros seres humanos, e parecem inaptos para julgar e distinguir. Mais do que isso, as pessoas tornam-se meio e passam a agir como meio, obedientes, supérfluas e bem-comportadas; abrem mão de serem fins em si mesmas, capazes de pensar, julgar e se comprometer.

Essa capitulação é bem o contrário da responsabilização sem limites que a ética como fundamento aponta. Os mecanismos de redução do outro ao si mesmo, dominação e conquista, são consequências do excesso de ser que acompanha a formação da civilização ocidental, por isso a objeção de Levinas (1998), parafraseando Shakespeare: ser ou não ser, talvez não seja essa a questão.

A responsabilidade como ponto de partida para a ação política e os fazeres científicos transforma-os em serviço cujo centro gravitacional é constituído pelos “órfãos” (os 80% dos trabalhadores pobres e miseráveis no Brasil, por exemplo). A irresponsabilidade de “deixar isso ao mercado” choca-se com a necessidade de se construir instituições adequadas que gerem ambientes saudáveis, onde a vida, sobretudo a dos indesejados e invisíveis, venha antes. Está claro que ocorre uma ruptura, que não é mais possível conciliação com essa dinâmica de amortecimento das sensibilidades, com o desengajamento e a recusa à ação.

No final de A Era dos Extremos, o historiador inglês Eric Hobsbawm expressa sua opinião de que a solução para os impasses entre economia, sociedade e meio ambiente deve vir da política. O fato é que a integridade da vida humana está ameaçada pela forma como organizamos as sociedades nos últimos séculos, e a mentalidade de mercado parece não perceber aí senão novas oportunidades. O problema da economia não é a falta de ética, ela está sempre presente, seja como projeto de controle e dominação da natureza, ou como indiferença travestida de neutralidade. A resposta à crise ecológica e à diminuição de postos de trabalho exige uma ação mais global que local, e radical, ao mesmo tempo que realista: as soluções de mercado não são nem uma, nem outra coisa.

Se concordamos com a necessidade de soluções políticas, precisamos recordar que soluções políticas são soluções éticas, e as soluções éticas (acompanhando Levinas) sempre são gestadas na intimidade. Já seu acontecer, como todo acontecer humanizante, é sempre já e ainda não.

Referências

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Notas

[1] Expressões nas línguas ianomâmi e quíchua, respectivamente, para designar a Terra-Floresta e Mãe Terra.
[2] Quadro “Estrutura social dos ocupados”, elaborado pelo professor Waldir José de Quadros. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/590032-e-assustadora-a-bomba-relogio-que-temos-pela-frente-80-dos-trabalhadores-brasileiros-sao-pobres-e-vivem-com-renda-de-ate-1-700-reais-entrevista-especial-com-waldir-quadros.
[3] Em regiões dominadas por facções criminosas no Brasil, é comum a cobrança de uma taxa de circulação dos moradores, o pedágio.
[4] Uma ciência moral utiliza introspecção e juízos de valor, diferentemente do projeto das ciências naturais com seu escopo de objetividade.

Autor notes

1 Doutorando em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. Pesquisador do Grupo de Estudos em Economia Política e Desenvolvimento – GEPODE, Universidade Federal da Bahia, Brasil.

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