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OS QUE FICAM. NOTAS ETNOGRÁFICAS SOBRE RITMOS, MOVIMENTOS E ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA NO MUNICÍPIO DE SERRANÓPOLIS DE MINAS
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 15, núm. 2, 2018
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidad: Semestral
vol. 15, núm. 2, 2018

Recepción: 28 Noviembre 2018

Aprobación: 30 Noviembre 2018

Resumen: Los elementos a ser presentados en el texto fueron extraídos de cuadernos etnográficos de un trabajo de campo en el marco de una pesquisa de doctorado en antropología sobre el tema de la agroecología en la región del Norte de Minas Gerais. Aquellos no tienen otra pretensión sino de traer el punto de vista de un francés que pudo vivir varias estancias de algunas semanas en el municipio de Serranópolis de Minas. Son impresiones al margen del corazón de la investigación, anotaciones periféricas, pero que participan de una composition de lieu, etapa indispensable de toda relación etnográfica. Así, el artículo trae informaciones sobre los ritmos cotidianos, semanales y anuales del lugar, dictados tanto por la escuela y por las migraciones estacionales tanto como por las fiestas religiosas tradicionales. Se destaca también el impacto de las distancias y de los medios de transporte en la organización de la vida de las personas que viven en las comunidades rurales más alejadas del centro del municipio. En fin, se pretende demostrar que para conseguir quedarse en un lugar alejado de los grandes centros urbanos como es el caso de Serranópolis, es necesario desarrollar estrategias de supervivencia y de ayuda mutua, además de las necesarias políticas públicas.

Palabras clave: movimientos, colectivos rurales, cotidianos, ritmos, redes de ayuda mutua.

Resumo: Os elementos a serem apresentados ao longo do texto foram extraídos dos cadernos etnográficos de um trabalho de campo no quadro de uma pesquisa de doutorado em antropologia sobre o tema da agroecologia na região do Norte de Minas. Eles não têm outra pretensão além de trazer o ponto de vista de um francês que teve a sorte de vivenciar várias estadias de algumas semanas no município de Serranópolis de Minas. São impressões as margens do coração da pesquisa, anotações periféricas, porém, que participam de uma composition de lieu, etapa indispensável de toda relação etnográfica. Assim, o artigo traz informações sobre os ritmos cotidianos, semanais e anuais do lugar, ditados tanto pela escola como pelas migrações sazonais e as festas religiosas tradicionais. Se destaca também o impacto das distâncias e dos meios de transporte na organização da vida das pessoas que vivem nas comunidades rurais mais afastadas do centro do município. Enfim, se pretende demostrar que para conseguir ficar em um lugar afastado dos grandes centros urbanos como é o caso de Serranópolis, é preciso desenvolver estratégias de sobrevivência e de ajuda mútua, além das indispensáveis políticas públicas.

Palavras-chave: movimentos, coletivos rurais, cotidiano, ritmos, redes de ajuda mútua.

Abstract: The elements that I will present throughout the text were excerpted from my own ethnographic notebooks collected during my field work of my PhD research in anthropology about agroecology in the North of Minas Gerais. I have no other pretension than to present the point of view of a Frenchman who had the good fortune to experience several stays of a few weeks in the town of Serranópolis de Minas. These impressions are on the edges of the heart of this research, peripheral observations that nevertheless participate in a composition de lieu, indispensable stage of any ethnographic relation. Thus, the article provides information about daily, weekly and annual rhythms of the place, dictated by the school as well as the seasonal migrations and the traditional religious celebrations. It also highlights the impact of distances and the availability of means of transport for the daily organization of the people living in the rural communities further away from downtown. Finally, I intend to illustrate that for them to be able to stay throughout the year in a place far from the big urban centers, they need develop strategies of survival and mutual aid, beyond the support of the indispensable public policies. Keywords:movements, rural collectives, daily life, rhythms, support networks

Para os membros da ADISSER

Introdução

Conheci Serranópolis de Minas em 2017 através das atividades de promoção da agroecologia organizadas pelo Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA-NM [2]). Desde à sua criação há mais de trinte anos, essa organização voltada às comunidades rurais do Norte de Minas, tem uma atuação forte na região da caatinga, contando dentro dos seus sócios e quadros, com agricultores familiares de Porteirinha e Serranópolis. Nos últimos anos, com as políticas públicas de Assistência Técnica e

Extensão Rural (ATER) sobre Agroecologia, vários técnicos de campo do CAA-NM se instalaram em Serranópolis para atender as demandas das famílias e incentivar projetos agroecológicos. Eu acompanhei eles no contexto do meu doutorado em antropologia sobre as práticas agroecológicas e o papel dos agrônomos e técnicos desse centro para a difusão delas. E foi assim que eu participei em 2017 da construção de um banco de sementes crioulas a fim de resgatar a diversidade de espécies nativas de milho, feijão e outros cultivos. Mas com o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, os recursos públicos dedicados a esse tipo de projetos foram congelados, fazendo com que os técnicos tivessem que deixar o CAA-NM. A partir de lá, resolvi prosseguir a minha investigação acompanhando os agricultores que eu tinha conhecido e que tentavam colocar na prática essas práticas agroecológicas. Fiquei hospedado na casa de um casal de produtores familiares instalados no Rancho Jatobá, onde foi construído esse banco de sementes, que também é casa de homeopatia rural, e que passou a ser o meu quarto. Foi através da grande gentileza deles, dos seus quatro filhos e dos amigos, que eu fui introduzido progressivamente dentro de uma rede de sociabilidade e pude acompanhálos em suas atividades diárias. Assim o meu observatório ficou situado a uns 500 metros da pequena cidade de Serranópolis, onde se encontram os comércios, os serviços administrativos, a escola, as igrejas, etc . Esse mirante privilegiado e um pouco afastado recebe os rumores e ruídos da vida social do município. Nos primeiros passos desse campo etnográfico, tentei compreender a realidade das pessoas observadas, estimulando a minha própria curiosidade com perguntas tais como: o que elas estão fazendo? Do que que elas estão falando? Quais são os momentos e lugares que ritmam o dia, a semana, o ano? Através dessas indagações que foi possível organizar a matéria bruta de dados aqui apresentados, seguindo uma lógica bem subjetiva, destacando alguns elementos que uma outra pessoa talvez não teria valorizado. Peço que o leitor perdoe o aspecto ainda aproximativo dos fatos expostos e a ordem surpreendente dos temas enfatizados, que deixam de lado, com certeza, muitos aspectos essenciais da realidade cotidiana desse município. Para as pessoas que conheci, morar em Serranópolis hoje, tanto na cidade como na zona rural, longe dos grandes centros urbanos, requer determinadas estratégias de sobrevivência, que o presente artigo quer apresentar, depois de ter colocado algumas dimensões essenciais do dia-a-dia.


Figura 1
A Serra Geral vista do Rancho Jatobá
Sébastien Carcelle

Ritmos

O município de Serranópolis de Minas, criado em 1995, se estende por dezenas de quilômetros ao pé da Serra Geral, única cordilheira do Brasil que se ergue no meio do sertão norte mineiro. Ele fica a uns duzentos quilômetros de Montes Claros, em direção a Bahia, e faz limite com os municípios de Porteirinha, Rio Pardo de Minas e Riacho dos Machados. Do outro lado da Serra estão os Gerais, um mundo totalmente diferente do ambiente natural do Cerrado marcado pela produção agrícola de alimentos, especialmente a goma de mandioca, principal fonte de renda das famílias. Lá, apesar dos imensos plantios de eucaliptos, e graças aos esforços de retomada das terras e de proteção das nascentes, florescem ainda muitas minas de água. Aqui, na área onde me encontro, é Caatinga, uma região seca e desértica, mesmo recebendo as águas da serra por várias cachoeiras como a do Talhado. Dedicada a monocultura de algodão até os anos 1990, quando ainda era município de Porteirinha, a região é hoje quase exclusivamente voltada à criação extensiva de gado de corte e de leite para produção de queijos e requeijões. Metade dos 4.000 habitantes de Serranópolis vive na pequena cidade, e a outra metade vive nas comunidades rurais de Barreiro Vermelho, do Touro, dos Gerais, dos Campos e do Brutía, sendo as duas últimas reconhecidas como comunidades quilombolas. Com uma densidade populacional [3] de 8 hab./km 2, assim que nos afastamos desse pequeno centro urbano, se veem apenas extensões montanhosas que permanecem em um tom marrom claro em boa parte do ano, onde apenas as manchas verdes lembram a presença de cultivos, o que demonstra que existem formas de acesso às águas. No tempo da chuva, a caatinga muda radicalmente e se pinta de verde, renovando esse ambiente semiárido.

Todos os anos, mais de 600 homens deixam o município para trabalhar, por períodos de três a seis meses, nas gigantescas plantações de algodão do Mato Grosso do Sul ou para a colheita do café no sul de Minas. Essas migrações sazonais, fonte de renda essencial do município, se repercutem consideravelmente no dia-a-dia, marcado pela saída e chegada dos ônibus que levam os trabalhadores, através de redes de trabalho organizadas pela própria prefeitura. Assim como em uma cidade portuária, a sociabilidade em Serranópolis de Minas é afetada por essas ausências prolongadas, a espera interminável por retornos, a tristeza das separações e uma vida noturna bastante agitada. Nos últimos tempos, as conversas giraram em torno de casais em ruptura por casos de amores estabelecidos pelas mulheres durante a ausência dos maridos, assunto que ainda é tabu em uma sociedade rural tradicional.

Contudo, os tempos de maior presença de homens e jovens representam momentos mais intensos, como no mês de agosto depois da colheita do café, e se destacam dos meses de menor presença. As festas religiosas também pontuam a vida social anual, tal como as festas juninas, celebrações que ocorrem no mês de junho e combinam religiosidade popular, e música tradicional local como os cânticos de roda ou as folias de reis. Para honrar os santos do calendário, as famílias que tem mais condições costumam, a cada ano, ?levantar uma bandeira? com a efígie de um padroeiro por elas escolhido, Santo Antônio dia 13, São João Batista dia 24, ou para São Pedro e São Paulo no dia 29. Nessa ocasião se junta parentes e amigos para rezar, comer e dançar. O coração da cerimônia, que acontece a noite, reside na ?entrega? da bandeira na casa da família, entrando em uma procissão com instrumentos e foguetes, debaixo de céu estrelado, levada pelos ?ladrões? disfarçados. De fato, no ano anterior, no meio da noite da mesma festa, alguém tinha conseguido subutilizar, em segredo, o objeto devocional que estava exposto encima de um mastro, significando assim a intenção de ajudar na organização da próxima festa. Durante o ano, os rumores a respeito de quem roubou a bandeira alimentam as conversas e especulações. A identidade dos ?ladrões? é revelada, muitas vezes através da encenação de um falso processo, antes da bandeira ser levantada no mastro... para depois ser roubada mais uma vez! Ainda hoje, aproximadamente cinco famílias conseguem manter vivo o costume que vem sendo praticado há mais de vinte anos. No final dessas festas, o observador pode ficar um pouco surpreso quando, acabado o tradicional forró, começa a ouvir de repente trechos de música funk paulista, demostrando o impacto das formas culturas contemporâneas urbanas sobre a juventude [4].

Durante o ano existem outros momentos religiosos importantes onde sempre se pode encontrar esses mesmos elementos, sendo estes as missas, procissões, terços e músicas tradicionais do sertão. Nos meses de setembro até novembro, muitas pessoas fazem uma peregrinação coletiva até o santuário de Bom Jesus da Lapa, localizado no Sul da Bahia, cuja distância dura uma noite de viajem. As famílias se organizam para viajar de ônibus e conseguir uma estadia barata de dois dias.

No decorrer da semana, os serviços religiosos, as atividades pastorais na igreja católica ou os cultos das três igrejas evangélicas são as principais atividades possíveis. Outras alternativas são beber cervejas nos botecos da cidade ouvindo o som da música estilo ?sertanejo universitário? ou assistir uma pequena tela, colocada na tomada de uma van estacionada na praça da igreja, transmitindo os jogos de futebol. Nos Domingos de manhã, o mercado se torna a principal atração, com a pequena feira onde se encontra, além dos vendedores ambulantes oferecendo produtos milagrosos para lavar roupa, algumas tendas que vendem frutas e legumes da produção local. É habitual ir e comer um caldo ou um prato de feijão tropeiro e, geralmente, o consumo de cerveja começa cedo e se estende ao longo de um dia tranquilo passado com familiares.


Figura 2
O mercado de Serrano?polis de Minas
Sébastien Carcelle

No decorrer da semana, as famílias devem lidar com o ritmo da escola estadual, que acolhe os alunos em três turmas: pela manhã, das 7:00 às 11:30; a tarde, das 13:00 às 17:30 e, por fim; as aulas do período noturno. Geralmente, são os alunos e os pais que escolhem o horário que se adequa melhor à organização de cada família e aos meios de transporte de cada um, considerando especialmente os horários dos ônibus escolares. Assim, alunos do ensino médio que vem das comunidades rurais como do Touro ou de Campos, são necessariamente da turma da manhã e, por isso, precisam acordar de madrugada para pegarem o ônibus escolar e chegarem a tempo para o início das aulas. Desde cedo esses adolescentes aprendem a lidar com essas distâncias e a achar um ritmo para lidar com o cansaço dos transportes nas estradas degradadas.

A movimentação gerada no início da manhã na pequena praça central da igreja pela chegada dos alunos até a escola é acompanhada pela saída do ônibus para Porteirinha. Localizada a uns 18 km de distância, essa cidade é o principal lugar para fazer compras de comida por exemplo, que são mais baratas que em Serranópolis, ou agendar um atendimento no dentista, numa clínica ou no hospital. O ônibus retorna por volta do meio dia, enquanto outro serviço similar é feito à tarde. Alguns táxis saem bem cedo a cada dia, trazendo correio, fazendo entregas de queijos ou levando pessoas que vão a uma consulta ou tomam o ônibus de Porteirinha para Montes Claros. Enfim, como muita gente não tem carro, tem uma esquina na mesma praça onde se pode pegar carona, caso não sejam pertencentes de grupos políticos inimigos. De fato, as pessoas que tem carro costumam comprar material de construção ou produtos agropecuários para o gado em Porteirinha, onde acham uma diversidade maior com preço menor.


Figura 3
A praça da igreja de Serrano?polis de Minas
Sébastien Carcelle

Figura 3 ? A praça da igreja de Serrano?polis de Minas Autor: Sébastien Carcelle

Movimentos

Como já vimos a respeito das migrações sazonais, os ritmos da comunidade têm tudo a ver com os movimentos. No final da tarde, quando o sol se faz menos quente por volta das 17 horas, a estrada de terra que passa em frente ao rancho onde fico hospedado se enche de mulheres que costumam sair para fazer caminhadas juntas. Elas se encontram com o fluxo de homens voltando de moto dos sítios próximos, trazendo o leite das vacas ordenhadas para as poucas fábricas de queijos ainda ativas. Com esse leite se produz também os famosos requeijões, tão populares na região, que são exportados até os mercados informais de familiares mineiros morando à distância nos subúrbios de São Paulo.

Ainda se pode encontrar pessoas andando a cavalo voltando da roça. Mas nos últimos quinze anos, em decorrência das políticas públicas, incluindo a criação da Bolsa Família e a aposentadoria para os trabalhadores rurais, a moto se consolidou como principal meio de transporte financeiramente acessível, mesmo que os acidentes sejam frequentes. Assim, esses movimentos de vai-e-vem regulam e ritmam a vida no município de Serranópolis. Algumas das comunidades rurais ficam muito longe da cidade, sendo essas distâncias acentuadas pelas estradas de terra. Este é notavelmente o caso das duas comunidades quilombolas de Brutia e Campos, localizadas nas extremidades norte e sul do território do município: demora mais que uma hora de ônibus para chegar lá. Não só os adolescentes que realizam o trajeto todos os dias até escola municipal conhecem bem esses deslocamentos difíceis. Esse é também o caso dos agricultores que não têm moto ou carro, quando precisam participar de uma reunião, por exemplo no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha. Para duas horas de reuniões, se gasta quase um dia inteiro. Na prática da pessoa que pega essas estradas, a impressão física é de passar de um mundo para outro entre esferas sucessivas bem separadas: a comunidade rural, o centro de Serranópolis, Porteirinha, Janaúba, Montes Claros... até Belo Horizonte. Esses mundos ligados, parecem pérolas distanciadas no fio de um colar.

A razão de se movimentar até esses outros mundos é muitas vezes relacionada à saúde das pessoas. Prestando atenção aos serviços de saúde, se pode ler as diferentes políticas públicas locais, regionais e nacionais do país nos últimos anos. De fato, quando alguém precisa de um tratamento intenso ou que requer hospitalização, o modo é ser levado ao hospital de Porteirinha por uma ambulância paga pelo prefeito, seus vereadores ou um deputado estadual ou federal que recebeu votos na região e busca garantir sua base eleitoral. Para pedidos comuns, um novo posto de saúde acaba de ser construído nos arredores da cidade, onde vários profissionais recebem pacientes: enfermeiras, um ginecologista que atende uma vez por semana, e um generalista cubano auxiliado por estudantes estagiários de medicina. Vale destacar que sem o programa ?Mais médicos?, o convênio com Cuba, não seria possível disponibilizar um médico e superar as deficiências críticas do Brasil em termos de cobertura de saúde em áreas rurais. Nos horários de atendimento, a sala de espera do posto fica lotada, pois é onde são realizados os programas preventivos e de vacinação de âmbito regional e nacional. Em ambos os casos, essas estruturas ou soluções de atendimento são permitidas por financiamento público, mas onde o doador está claramente presente. De fato, o sistema político brasileiro confia a cada deputado estadual uma quantia de 2 milhões de reais por ano para que este possa distribuir em emendas públicas como quiser. Para um deputado federal, esse valor aumenta para 15 milhões ao ano. É preciso abrir essa caixa de Pandora, para entender ao mesmo tempo de onde vem o dinheiro público, mas também em que bases clientelistas repousa todo o dispositivo eleitoral. Por isso, a vida política ocupa um espaço central nas conversas e nas preocupações, especialmente ?nos tempos de política? [5], como as pessoas costumam falar, quer dizer, momentos de eleições. Existem muitas brigas e debates entre pessoas e grupos políticos dentro da pequena prefeitura, seja debates sobre o financiamento de tal projeto, a ampliação da igreja, a mudança dos horários do ônibus que trazem as pessoas para a feira no domingo, etc.

Estratégias de sobrevivência

Segundo dados estatísticos oficiais, Serranópolis aparece entre os municípios mais pobres do Estado de Minas Gerais. Um dos critérios envolvidos nessa avaliação é a falta de um sistema de esgoto e tratamento de água, que ainda causam muitas doenças. Apesar do afastamento dos grandes centros urbanos, a pobreza carrega sua parcela de violência, assaltos à mão armada, roubos e também tráfico de drogas que causam mortes entre os jovens a cada ano. Há também, de maneiras mais ou menos explícitas, formas de prostituição. Com aproximadamente 2.000 habitantes a cidade de Serranópolis tem seu gradiente sociológico em termos de riqueza, com casas mais simples nas partes mais periféricas. Tem um loteamento social de umas trinta casas padronizadas, fruto do programa ?Minha Casa Minha Vida?. Para muitos moradores de Serranópolis, viver significa lutar pela sobrevivência.

Mesmo assim, e apesar das importantes migrações sazonais, tem pessoas que preferem ficar. Mas para aqueles que permanecem o ano todo em Serranópolis, é preciso procurar fontes de renda diversificadas. De acordo com o último censo, a taxa da população ativa é de 5%, e a percentagem de receitas externas é de 96,5% [6]. Segundo as pessoas entrevistadas, sem as políticas sociais dos quinze últimos anos, poucas pessoas teriam conseguido permanecer. O salário referente a um dia de serviço é de R$40 à R$50, que significa muito pouco. Os homens são capazes de realizar vários tipos de trabalho, para além das tarefas da roça, tais como pedreiro, bombeiro ou eletricista. Em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha (STR), o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) administra vários cursos de capacitação nesses diversos campos ao longo do ano.

No lugar onde eu fiquei hospedado houve durante o ano aproximadamente quinze eventos que reuniram centenas de pessoas: festa junina, réveillon, rodeio, alem de leilões para ajudar as famílias que precisam. Um campo de futebol gramado foi recém-inaugurado no rancho para organizar torneios e jogos de futebol. A realização deste projeto, que o dono do sítio financiou através de um empréstimo bancário, permitiu gerar trabalho diário para 2 ou 3 pessoas durante várias semanas, outra forma de permitir que um coletivo mantenha a vida em seu lugar. A imagem de um hectare de grama verde e macia no meio de tons ocres é a mais linda ilustração desse esforço de resistência dos que conseguem ficar, em um contexto hostil, o que implica num certo senso de bricolagem. A rede de canos disposta para regar as porções de terra, de acordo com a hora do dia, e as fontes de água disponíveis, expressa perfeitamente essa sagacidade do meu anfitrião. Isso nos leva ao último ponto que eu pretendo abordar, a gestão da água.

No quadro ecológico, geográfico e sociológico que acabamos de pintar, marcado pelas secas e pelas migrações sazonais, aqueles que conseguem permanecer no lugar o ano todo, fazem-no também graças as estratégias de ajuda mútua e solidariedade. Este é o caso do grupo de produtores que eu acompanho na minha pesquisa de campo. Na década de 1990, além do sindicato dos trabalhadores rurais existente em Porteirinha, eles criaram uma associação, a Agência para o Desenvolvimento Integrado e Sustentável da Serra Geral (ADISSER). Essa ferramenta legal permitiu que os sócios elaborassem projetos direcionados às autoridades públicas e comprassem equipamentos, como um carro ou um trator, que compartilham para os diversos serviços do dia-a-dia. A principal atividade dessa associação nos últimos anos foi montar projetos relacionados à captação de água para abastecer famílias que precisam.

Essa rede de ajuda mútua se revela também no acesso aos serviços de saúde, pois há uma rede de estruturas paralelas para oferecer hospedagem e transporte aos moradores. Na cidade de Serranópolis, como em muitos outros municípios, tem uma casa disponibilizada pela prefeitura para os hóspedes que vêm das comunidades mais afastadas, especialmente mulheres grávidas e pessoas idosas. Geralmente, as pessoas vêm dormir antes ou depois de viajar para cidades maiores porque não conseguem fazer a viajem até suas casas em um dia só. Têm ônibus que saem para Montes Claros de madrugada três vezes na semana, e os outros dias vão até Janáuba. Da mesma forma, em Montes Claros, os municípios do Norte de Minas têm lares desse tipo, para receber famílias e pessoas que precisam ficar lá alguns dias. Além disso, para pagar despesas importantes de saúde que as famílias não podem suportar sozinhas, esse mesmo grupo e as pessoas com quem eles estão articulados organizam regularmente leilões. Em geral, sempre se encontram os seguintes elementos: chá de amendoim, caldo, canjica para a refeição e forró para dançar.

Na região semiárida da caatinga que já anuncia as paisagens do nordeste e interior da Bahia vizinha, a questão da água é central, assim como a luta contra a seca que decorre da sua ausência. Um fato é claro, sem acesso a uma fonte de água, é impossível ter produção agrícola e, portanto, ficar. Em Serranópolis, uma barragem de retenção localizada na chegada da cachoeira, ao pé da Serra, levou à criação de um lago de retenção, que é a principal fonte de abastecimento de água potável para o município de Porteirinha, a mais de 30 km de distância, mas sem abastecer Serranópolis. No entanto, várias famílias que moram próximas dessa cachoeira instalaram seu próprio sistema de captação de água que a transportam para sua propriedade através de quilômetros de tubos de plástico. A leitura de um trabalho de pesquisa em andamento sobre os usos da água dos Gerais vizinhos esclareceu-me sobre o caráter tradicional da complexidade das redes de água, fruto do uso dos bens comuns acumulados ao longo das décadas [7]. Com a crescente escassez de água devido à chegada de grandes plantações de eucalipto em áreas de captação de água da chuva, mas também sob a influência das alterações climáticas, as estratégias têm evoluído, novas formas de regulação social seguiram, com o aumento de conflitos específicos entre vizinhança, mas a complexidade permaneceu como uma constante.

Conclusão: a ética dos que ficam

Fechando esse breve esboço etnográfico do município de Serranópolis de Minas, o observador não pode deixar de lado o aspecto mais subjetivo da própria impressão que essa convivência gerou nele. Refletindo sobre a vida das pessoas encontradas, um nobre sentimento me atravessou com frequência, e com certeza isso deve transparecer nessa descrição. Por um lado, eu senti muito prazer em morar num lugar tão lindo, frente a Serra Geral, e hospitaleiro, marcado pela simplicidade das relações entre pessoas queridas e profundamente boas. Por outro lado, me tocou a coragem e o ?preço? que essas mesmas pessoas têm que pagar para conseguir ficar nesse lugar sem desistir de tentar melhorar suas condições de vida. Isso me fez lembrar várias leituras do campo da filosofia moral e política que falam da ?vida boa? que tomavam de repente uma atualidade nova para mim. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles fala da eudaimonia ? o que seria hoje o ?bem viver? - e da importância da amizade para construir uma sociedade justa. Enxergando o espaço das conversas políticas na vida cotidiana das pessoas encontradas, fiquei admirativo dessa paixão pelo bem comum cheia de sagacidade e pragmatismo. Mas esse ardor se entende melhor quando se percebe que não tem outra solução para sobreviver a não ser procurar recursos públicos, arrumar projetos, articular redes, de outra maneira ser empreendedor. Isto ressoa com outra obra, do teólogo alemão, resistente político ao nazismo, assassinado no campo de concentração, Dietrich Bonhoeffer sobre ?a coragem de viver? e o sentido da comunidade. Homem de cultura, ele herda da tradição filosófica ocidental, e em particular da relação entre amizade e politica no pensamento aristotélico, no sentido de valorizar as conversas infinitas sobre a construção da sociedade. Outra pensadora alemã teve a mesma inspiração no mesmo tempo de resistência a um regime militar totalitário, a Hanna Arendt. O preço pagado para morar o ano todo em um lugar rico por ser lindo e saudável como esse, mesmo que seja carente em muitos outros aspectos, é de partilhar essa vida comunitária, e viver muitos deslocamentos até cidades maiores para conquistar recursos, saúde, educação e cultura. Toda a vida é um constrangimento com o seu próprio lugar de moradia, sonhando que se poderia ficar em outro espaço, sobretudo quando tem que se deslocar por um tempo breve ou longo. As pessoas das grandes cidades que ficam na espera de poder curtir a natureza e a roça nos feriados e fins de semana vivem outro tipo de constrangimento simétrico. Morar nessa zona rural faz nascer a vontade de permanecer com os que ficam para desfrutar dessa vida simples e boa, partilhada com coletivos de ajuda mútua, e motiva acreditar que vale muito mais para uma criança crescer nesse universo do que dentro de um bairro carente das periferias de São Paulo ou Belo Horizonte. No entanto, ficar não teria sido possível sem os avanços das políticas públicas dos quinze últimos anos que, mesmo carregando algumas contradições, permitiram superar a hostilidade natural das condições de vida dos mais humildes nessa zona semiárida da caatinga.

Agradecimientos

Agradeço a Izadora Acypreste (PPGAS/UFSCAR) e a Pedro Henrique Mourthé (PPGAS/UFSCAR) pelo convite para publicar essas notas etnográficas e também pelas suas leituras atentas e sugestões.

Bibliografia

ARENDT, Hanna. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: MundoCristão, 2007.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A comunidade tradicional. In: COSTA, João Batista de Almeida; OLIVEIRA, Cláudia, Luz de (Orgs). Cerrado, Gerais, Sertão: comunidades tradicionais nos sertões roseanos. São Paulo: Intermeios; Belo Horizonte: Fapemig; Montes Claros: Unimontes, 2012, p. 367-380.

BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Paulo: Mundocristão, 2016.

Notas

[2] Doutorando do Laboratoire d'anthropologie sociale, Collège de France, EHESS, CNRS, Université de recherche PSL, 75005 Paris, France.
[3] Ver o site: www.caa.org.br.
[4] Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Serran%C3%B3polis_de_Minas (consultado em 28 de novembro de 2018).
[5] A presença desses tipos de elementos culturais faz com que seja difícil encaixar a realidade social de Serranópolis nos critérios selecionados por Carlos Rodrigues Brandão para definir uma comunidade tradicional norte-mineira (BRANDÃO, 2012).
[6] Sobre ?o tempo da política?, existe uma vasta produção feita pelo NUAP ? Núcleo de Antropologia da Política do Museu Nacional/UFRJ. Ver o site: http://nuap.etc.br/
[7] Fonte: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/serranopolis-de-minas/panorama (consultado em 28 de novembro de 2018)
[8] Trabalho de qualificação de doutorado de antropologia pelo CPDA/UFRRJ de Dayana Martins: Territorialidades das Águas, Saberes Tradicionais e Conflitos na Serra do Espinhaço, 2017.


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