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LUGARES DE VIDA: COLETIVOS RURAIS, COTIDIANO E MOVIMENTOS
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 15, núm. 2, 2018
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 15, núm. 2, 2018

Apresentação

Este dossiê, organizado no âmbito da Revista Argumentos, periódico do Departamento de Política e Ciências Sociais da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), é um desdobramento das discussões realizadas no grupo de trabalho ?Lugares de Vida: coletivos rurais, cotidiano e movimentos?, coordenado por Cláudia Luz de Oliveira, Izadora Pereira Acypreste e Pedro Henrique Mourthé de Araújo Costa.

O GT ocorreu em meio às atividades do ?V Encontro das Ciências Sociais no Norte de Minas?, em julho de 2018 na cidade de Montes Claros (MG). Ao longo de três dias de ricos debates e reflexões, o GT reuniu trabalhos de pesquisadores em diferentes estágios de formação, cujas etnografias e dados de campo permitiram diálogos em torno de temas como territorialidades, cotidiano, festas, movimentos, luta, liderança, projetos de desenvolvimento, transformações locais e estratégias de resistência[4].

O conjunto de trabalho a seguir é formado por alguns dos artigos apresentados naquela ocasião, bem como por textos de autores que foram convidados para compor o dossiê. Todos os trabalhos buscaram refletir sobre as múltiplas dimensões da vida de coletivos que habitam o universo rural e, em um dos textos, podemos acompanhar este debate no universo indígena.

Além de atentarem-se para aspectos cotidianos da vida destes coletivos, seus modos de habitar e produzir territorialidades específicas, suas formas de trabalho, coleta, criação, cultivo, memórias, temporalidades, religiosidades, festas e também os deslocamentos constantes para as localidades vizinhas, distritos e sedes municipais, alguns dos trabalhos também descrevem os efeitos e transformações causadas pelos grandes empreendimentos ? hidrelétricas, mineradoras ? e pelas políticas ambientais no modo de vida destes coletivos e nos seus engajamentos com diversos seres, sejam eles humanos ou não humanos ? pessoas, animais, plantas, águas, entidades, objetos. Se por um lado estes processos resultam em constantes movimentações, motivadas pelas lutas, participação política ou pela busca de novas estratégias de sobrevivência, por outro, também incentivam as articulações entre os diversos coletivos e suas redes, como uma forma de potencializar estas lutas, tanto aquelas que ocorrem para além dos seus lugares de vida [5], quanto as resistências cotidianas, através do resgate, reelaboração e continuidade de práticas e conhecimentos tradicionais.

O primeiro artigo, de autoria de Gabriel Bertolo, apresenta observações retiradas do seu material de campo, que vem sendo realizado entre músicos e artesãos do fandango caiçara de Cananéia (SP), município do Litoral Sul Paulista. O autor inicia seu texto lançando cinco proposições que são as bases do caminho pelo qual percorrerá seu argumento. Em suas palavras, tais ?proposições precedentes servem como uma introdução a uma exploração, a um exercício do pensamento a ser realizado?. Elaborada de maneira bastante criativa, a proposta apresentada pelo autor é refletir sobre como o fandango caiçara é, ele mesmo, produtor de territórios. O ?truque?, como argumenta Gabriel, é avançar com uma teoria caiçara capaz de evidenciar que o ritmo cultural vinculado ao fandango constitui uma atmosfera, que por sua vez, produz o território. As músicas do fandango além de trazerem os aspectos e acontecimentos vividos no dia a dia dos caiçaras em seus territórios, também levam as questões políticas enfrentadas por estes coletivos no que tange às diversas dificuldades criadas pela ?turma da força verde? para o acesso e prática da pesca, do cerco, da roça e da caça. Os fandangueiros cantam em diversos espaços e suas músicas ?se propagam pelo ar?. O afeto existente nas canções, e também necessário para a sua transmissão, exige uma atmosfera adequada para que o público seja captado por este afeto. O texto de Gabriel Bertolo torna evidente que a terra não é o limite do território, pois, segundo o autor, existe uma atmosfera por onde o território e a cultura caiçara circulam de maneira política por meio da música.

O segundo artigo é escrito em co-autoria por um antropólogo e um advogado, que é também liderança indígena do povo Tuxá. As práticas científicas, um dos temas abordados no trabalho, são objeto de reflexão logo no início do texto, quando Gustavo Moreira Ramos explicita os motivos do convite realizado a Antônio Fernandes de Jesus Vieira, Dinaman Tuxá, para a publicação em co-autoria. O texto aborda a participação de lideranças indígenas deste povo no Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF). Acompanhando o trabalho de duas lideranças no comitê, o antropólogo reúne elementos no intuito de elaborar uma ?crítica indígena? capaz de jogar luz ao modo como seus próprios interlocutores avaliam ?suas relações com o Estado e com os brancos e a partir da qual produzem suas estratégias de ação na relação com esses?. Além de apresentar aos leitores a dinâmica de funcionamento do comitê, os segmentos que o compõem e as estratégias acionadas pelas lideranças indígenas neste espaço institucional, o artigo também narra os efeitos e transformações no modo de vida e nas relações sociais dos Tuxá, causados pela remoção compulsória em virtude da construção da hidrelétrica de Itaparica. O trabalho também traz contribuições ao tratar do tema das retomadas, mostrando que para os Tuxá estas ações significam retomar seus modos de vida e suas formas de se relacionarem com o rio, com a terra e com os outros seres que compõem seu mundo. Tal discussão vai na esteira de outras etnografias que têm procurado pensar estas ações para além de uma definição instrumental. Este tema também está relacionado com a ideia da ?convergência de lutas?, já que ao tomarem o comitê como um espaço de resistência, as lideranças indígenas nos ensinam que diferentemente da concepção disjuntiva do poder estatal, a luta pelo território é indissociável da luta pela água.

Sébastien Carcelle, autor do terceiro artigo, traz uma reflexão etnográfica sobre os ritmos, movimentos e estratégias adotadas pelos moradores das comunidades rurais de Serranópolis de Minas, município localizado ao pé da Serra Geral, Norte de Minas Gerais. Fruto de anotações dos cadernos de campo de uma pesquisa em andamento sobre o tema da agroecologia na região, o autor nos apresenta ?o ponto de vista de um francês? acerca das sociabilidades e dinâmicas locais, olhando atentamente para os que saem, mas também para os que ficam. Foi seguindo as atividades diárias de agricultores familiares que Sébastien pode captar, de maneira sensível, a rotina de movimentações realizadas pelos seus interlocutores. Deslocamentos que ocorrem em diferentes escalas e temporalidades, podendo ser diários, semanais, mensais ou até anuais. Segundo Sébastien, ?os movimentos de vai-e-vem regulam e ritmam a vida no município de Serranópolis?. Todavia, mais do que apenas descrever tais movimentações, o autor traz elementos interessantes sobre como as pessoas se movimentam, quais meios de transporte utilizam e apresenta a centralidade das redes de ajuda constituídas tanto pelas pessoas, instituições e pelo poder público municipal, evidenciando como estas redes são fundamentais para garantirem o suporte aos moradores locais e atravessam diferentes dimensões da vida dos habitantes de Serranópolis. O texto também vem acompanhado por belos desenhos de autoria do próprio pesquisador, retratando alguns dos locais onde sua etnografia vem sendo realizada.

Pedro de Carvalho Costa produz uma discussão a partir da sua pesquisa na comunidade rural de André do Mato Dentro, pertencente ao município de Santa Bárbara (MG). A comunidade tem sido alvo de intensos conflitos devido aos interesses das mineradoras, que vêm empregando consideráveis esforços para a apropriação da grande concentração de minério de ferro existente na região. Como reflexo das investidas destes empreendimentos, as famílias que vivem em André do Mato Dentro procuram minimizar este avanço das mineradoras em seu território por meio da multiplicação de práticas sustentáveis como o extrativismo e a composição de sistemas agroflorestais. Entre estas práticas, o autor dedica especial atenção à extração do musgo (Syrrhopodon sp) que é feita na Serra do Gandarela e no Morro Vermelho, locais cuja formação geológico-geomorfológica rica em minério de ferro fornece condições para ocorrência de colônias da briófita. Os habitantes da comunidade pesquisada por Pedro nos mostram que a intensificação das práticas agroecológicas pode ser uma estratégia de resistência aos avanços dos grandes empreendimentos em seu território.

No último artigo do dossiê, Carolina Cadima Fernandes Nazareth apresenta sua pesquisa etnográfica realizada junto aos habitantes do distrito de Cruzeiro dos Peixotos, pertencente ao município de Uberlândia, localizado na mesorregião do Triângulo Mineiro. A discussão realizada gira em torno da vida dos moradores do distrito no que se refere aos seus fluxos cotidianos para outros distritos e também para a cidade de Uberlândia, seja para atividades de trabalho ou para acessar outros serviços disponíveis apenas na cidade. Tal dinâmica lança algumas questões que a autora procura perseguir ao longo do seu texto, que são as fronteiras estabelecidas para a definição do que é o rural e do que é o urbano. As categorias e discussões mobilizadas por prefeituras e instituições para a definição do rural são contrapostas às próprias definições dos habitantes de Cruzeiros dos Peixotos para definir o lugar em que vivem e os lugares para onde se movimentam. A interessante reflexão de Carolina nos conduz a pensar que as respostas para estas questões levantadas só podem ser alcançadas por meio da etnografia, pois as explicações dos moradores do distrito são capazes de limpar as rígidas fronteiras pré-estabelecidas pelos ?de fora? sobre o rural-urbano e abrir caminho para novas formulações.

Além destes artigos, o dossiê também conta com uma resenha do livro de Antônio Bispo dos Santos (2015), ?Colonização, Quilombos, Modos e Significações?, elaborada por Breno Trindade da Silva. Ao resenhar a obra de um intelectual e ativista da causa quilombola, Breno contribui para os debates que envolvem estas populações, colocando em evidência um livro que trata de temas centrais aos quilombolas, povos indígenas e populações tradicionais.

O ensaio fotográfico de Elisa Cotta de Araújo finaliza o dossiê de forma belíssima, ao compor uma intertextualidade de narrativas visuais e escritas sobre os lugares de vida das Apanhadoras e Apanhadores de Flores Sempre-Vivas. Ao descrever a sua experiência como fotógrafa e antropóloga na produção das imagens aqui apresentadas, a autora desvela as sutilezas do compartilhamento de vivências, visões de mundo, afinidades e afetividades entre a equipe do projeto Imagens Humanas, composta por ela e pelos fotógrafos João Roberto Ripper e Valda Nogueira, e as Apanhadoras/es das comunidades de Mata dos Crioulos, Vargem do Inhaí, Raiz, Galheiros e Macacos, situadas na porção meridional da Serra do Espinhaço em Minas Gerais. As imagens no trabalho de Elisa são uma forma de linguagem potente para revelar as complexas interações entre Apanhadoras/es, serras, campos e flores, assim como para revelar as ameaças à manutenção desse modo de vida. O interessante é perceber como o processo de produção e as fotografias capturadas no âmbito do projeto se colocam como suporte para as movimentações e lutas dessas comunidades tradicionais por reconhecimento e direitos.

Antes de encerrarmos esta apresentação, vale ainda realizarmos um esforço de pensarmos algumas conexões entre os trabalhos e as discussões suscitadas por estes. Todos os textos, de uma forma ou outra, abordam os temas do cotidiano e dos movimentos. Tanto o trabalho de Sébastien quanto o de Carolina, nos mostram que viver em uma comunidade ou em um distrito, envolve movimentar-se constantemente da roça para a cidade e vice-versa. São idas cotidianas para as escolas, sedes municipais, para realizar compras e a comercialização de produtos, tratamentos médicos, acesso a serviços bancários, entre outros. Além disso, são comuns os deslocamentos realizados para a participação nas reuniões dos sindicatos ou dos comitês, como é o caso da ?peregrinação? vivenciada pelas lideranças Tuxá, apresentada por Gustavo e Dinaman, que precisam repetir regularmente um longo trajeto que envolve deslocamentos por entre estradas e águas em meio a luta indígena. Como observou atentamente Sébastien a respeito do tema, ?a impressão física é de passar de um mundo para outro entre esferas sucessivas bem separadas?, desde a comunidade ou distritos, até a sede municipal e em direção a outros centros urbanos. Ainda segundo o autor ?esses mundos ligados, parecem pérolas distanciadas no fio de um colar?. Transitar entre estes mundos, a nosso ver, também está relacionado com a capacidade de lidar com distintas temporalidades, aspecto este que fica evidente no trabalho de Gabriel, quando o autor discorre sobre a ?ambientação atmosférica-cultural?, descrevendo como os fandangueiros precisam adequar de maneira apropriada o ambiente no qual o fandango será apresentado, o que involve a atenção dispensada a equalização, iluminação e ao posicionamento dos músicos de modo que a atenção do público seja captada e o discurso sobre os direitos caiçaras seja ?espalhado?. Algo também abordado no trabalho junto aos indígenas do povo Tuxá, que nos mostra como as lideranças, além de se deslocarem fisicamente de suas aldeias, também precisam realizar um movimento que implica em mudanças nas suas próprias estratégias, lançando mão das práticas científicas para fazerem convergir as lutas relacionadas à questão da demarcação da terra e os usos da água nos espaços institucionais do CBHSF.

Por fim, um outro tema que perpassa todos os trabalhos são as estratégias, mobilizações e resistências presentes nos universos estudados. Em cada contexto etnográfico estas ocorrem de maneiras específicas, porém, um aspecto em comum entre as situações apresentadas pelos autores é que tais estratégias são acionadas pelo direito dos coletivos viverem e pensarem sobre seus lugares de vida, como uma forma destes povos defenderem ?ativamente esses mundos em seus próprios termos? (ESCOBAR, 2015, p.12).

A esse respeito, o trabalho com os habitantes de André do Mato Dentro deixa claro que a atividade de coleta do musgo, bem como outras práticas agroecológicas, constituiem um modo próprio dos moradores daquela comunidade resisterem aos interesses das mineradoras. É extremamente interessante o fato de que o musgo é coletado exatamente nos lugares cuja formação geológica-morfológica é rica em minério de ferro, e por isso mesmo, é local de interesse das mineradoras. Nesse sentido, o texto nos ajuda a enxergar que a resistência se faz conjuntamente ao musgo neste caso específico, mas também, como podemos ver no caso Tuxá, com os encantados e outros elementos, ou, no caso dos caiçaras, com os instrumentos com os quais eles produzem sua estética-política. Estas experiências reforçam a ideia de que os engajamentos em defesa dos territórios e comunidades, são tecidos também em conjunto com outros seres e objetos, por meio de relações que não são apenas instrumentais, mas também afetivas.

Embora tenhamos elaborado breves apresentações do conjunto de trabalhos, elas não dispensam, de maneira alguma, a leitura completa das interessantes discussões desenvolvidas pelos autores ao longo de seus textos.

Bibliografia

ESCOBAR, Arturo. Territórios de diferença: a ontologia política dos ?direitos ao território?. Climacom cultura científica ? Pesquisa, Jornalismo e Arte, v.2, ano 2, 2015.

GODOI, Emilia Pietrafesa de. Mobilidades, encantamentos e pertença: o mundo ainda está rogando porque ainda não acabou. Revista de Antropologia, v. 57, p. 143170, 2014.

INGOLD, Tim. The Perception of the Environment. Essays in livelihood, dwelling and skill. London: Routledge, 2000.

________. Being alive: essays on movement, knowledge and description. London: Routledge, 2011.



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