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?Doenças da civilização: você pode curá-las??: representações sobre cidade, natureza e saúde entre classes médias urbanas1
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 16, núm. 1, 2019
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 16, núm. 1, 2019

Resumo: A partir do século XVIII, os assim considerados ?efeitos perversos da civilização urbana? passam a ser foco de investimentos curativos e tratamentos de várias espécies; com freqüência, a cura para tais males está na natureza, seja este termo ligado ao meio ambiente, seja ligado a um contato mais íntimo com uma suposta ?natureza humana?, um ?estilo de vida saudável?. A partir do livro ?Doenças da civilização ? você pode curá-las?, do Dr. Boris Sokoloff, publicado em 1952, no qual o médico lança mão de argumentos que mostravam a importância de um certo retorno à natureza e de uma higiene cotidiana para que se atinja uma ?saúde positiva?, buscamos refletir sobre como a idéia de ?males? ou ?doenças da civilização? é atualizada nas produções discursivas a respeito de doenças, tomando como exemplo etnográfico o material publicitário de laboratórios farmacêuticos a respeito da depressão. ?Estilo de vida?, ?qualidade de vida? e ?saúde? são categorias das quais se lança mão com freqüência em um contexto no qual o cotidiano vem sendo amplamente medicalizado.

Palavras-chave: natureza, doenças da civilização, cidade, classes médias, Boris Sokoloff.

Resumen: A partir del siglo XVIII, los considerados "efectos perversos de la civilización urbana" pasan a ser foco de inversiones curativas de varias especies; a menudo, la cura para tales males está en la naturaleza, sea el medio ambiente, sea un contacto más íntimo con una supuesta "naturaleza humana", un "estilo de vida sano". A partir del libro "Enfermedades de la civilización - usted puede sanarlas", de Boris Sokoloff, publicado en 1952, que argumenta por la importancia de un cierto retorno a la naturaleza para que se alcance una "salud positiva", buscamos reflexionar sobre cómo la idea de "enfermedades de la civilización" es actualizada en las producciones discursivas acerca de enfermedades, tomando como ejemplo etnográfico material publicitario de laboratorios farmacéuticos sobre la depresión. "Calidad de vida" y "salud" son categorías usadas con frecuencia en un contexto en el cual el cotidiano viene siendo ampliamente medicalizado.

Palabras clave: naturaleza, enfermedades de la civilización, ciudad, clases medias, Boris Sokoloff.

Abstract: From the eighteenth century, the so-called ?perverse effects of urban civilization? became the focus of different curative investments; frequently, the cure for such evils is attached to nature, whether it is linked to the environment, or to a closer contact with a supposed "human nature," a "healthy lifestyle." From Boris Sokoloff's book "The civilized diseases - you can heal them", published in 1952, which argues the importance of a certain return to nature in order to achieve "positive health", we seek to reflect on how the idea of "civilized diseases" is updated in the discursive productions about diseases, taking as an ethnographic example some advertising material from pharmaceutical laboratories about depression. "Quality of life" and "health" are categories frequently used in a context in which daily life has been widely medicalized.

Keywords: nature, modern civilization diseases, city, middle class, Boris Sokoloff.

Introdução

Neste trabalho, pretendemos mostrar reverberações no discurso sobre doenças e saúde nos séculos XX-XXI da ideia de que uma série de males físicos e psicológicos estaria ligada ao contexto da vida nas cidades, sendo consideradas ?efeitos perversos da civilização urbana? sobre a saúde; processos de cura, por sua vez, podem remeter (i) a uma aproximação do ser humano com a ?natureza? ? entendida como meio ambiente natural, fora das cidades, a praia ou as montanhas; (ii) a uma espécie de higiene cotidiana, a um cuidado de si tanto em termos físicos quanto em termos morais; e/ou (iii) ao tratamento com medicamentos. Os três tópicos ligados à cura não são mutuamente excludentes; como veremos, em diferentes momentos históricos, o discurso biomédico pode combinar esses enfoques terapêuticos, apesar de priorizar um ou outro deles.

Vamos analisar, a seguir, um livro encontrado não em contexto de pesquisa, mas casualmente, na biblioteca do avô do primeiro autor[4]: a obra chama-se ?Doenças da civilização: você pode curá-las?, autoria do Dr. Boris Sokoloff, editado no Brasil em 1952 pela Editora O Cruzeiro e originalmente publicado em inglês, pela editora Howell, Soskin em 1944. O texto de Sokoloff relaciona uma série de males físicos e psicológicos ao estilo de vida ?civilizado?: seriam os hábitos irregulares de alimentação e sono, a ingestão insuficiente de vitaminas em sua versão considerada natural - ou seja, nos alimentos pouco ou não cozidos ou fritos - e a fadiga excessiva que abririam caminho para as ?doenças da civilização?, que poderiam ser evitadas com uma ?norma de vida? mais adequada. O esforço aqui consiste em perceber como o autor define essa ?norma de vida? e o que podemos apreender a partir daí a respeito da relação entre as noções de saúde, natureza e estilo de vida. Sublinhe-se que, entre as chamadas ?doenças da civilização?, Sokoloff coloca males tão variados quanto aqueles que atacam o sistema nervoso, estômago, intestino, fígado, sangue, coração, olhos e glândulas, além de discorrer sobre doenças específicas como artrite, tuberculose, câncer, diabetes e hipertensão.

Dando um salto histórico, vamos explorar como, no final do século XX e início do século XXI, o discurso dos laboratórios farmacêuticos a respeito da depressão e dos medicamentos antidepressivos negam ou reafirmam essa conexão entre, por um lado, vida urbana, estilo de vida e doenças, e, por outro, contato com a natureza, estilo de vida, cura e saúde. ?Estilo de vida?, ?qualidade de vida? e ?saúde? são categorias das quais se lança mão com frequência em um contexto no qual o cotidiano vem sendo amplamente medicalizado.

Cidades e doenças

As cidades e a forma como a vida foi organizada nelas no Ocidente são parte importante do nosso imaginário a respeito de doenças. Longe de querermos aqui fazer um longo apanhado sobre o tema, lembramos apenas alguns termos que vieram a designar certos males físicos no período pós-Revolução Industrial. Claudio Bertolli Filho afirma que a tuberculose foi definida já na entrada do século XX como ?moléstia social?, ficando situada, juntamente com a sífilis e o alcoolismo, como um ?dos principais conjuntos desafiadores da ordem social, inerente ao contexto das revoluções burguesas? (2001, p.13). Roy Porter (2004, p.31) lembra que se chamava ?doenças da imundície? ao tifo e ao cólera, numa referência às cidades apinhadas e sujas. A ideia da cidade como um espaço pouco saudável aparece também em Alain Corbin (1989); segundo ele, do século XVII em diante, o tema da ?patologia urbana? vai oferecer combustível para diversos autores, especialmente na Inglaterra. Corbin fala do desgosto com a cidade ? tema sobre o qual voltaremos mais adiante ? como sensação intimamente ligada à construção do desejo pela beira-mar na segunda metade do século XVIII. Para os três historiadores, há indícios da percepção de que cidades, por motivos diferentes, fazem adoecer.

Se a insalubridade urbana é considerada a grande causa de disseminação de doenças no caso dos males mais ligados às classes populares, as ?doenças da riqueza? ? Porter coloca entre elas a obesidade, a hipertensão, o diabetes e as doenças coronarianas ? teriam se disseminado conforme parece se disseminar o estilo de vida ocidental. Na riqueza ou na pobreza, as cidades parecem ser campo fértil para a disseminação de doenças, tanto quanto para o surgimento de novos males, como ainda para o diagnóstico de males que, segundo o discurso biomédico, já existiam, mas não tinham sido ainda corretamente identificados. Novas taxonomias nomeiam, ao que parece, antigas condições, desconfortos, manias; antigas taxonomias passam a cobrir um espectro mais amplo de diagnósticos, com a doença, os doentes e a indicação do uso de medicamentos mudando de perfil. A cidade e o ritmo de vida que nela se leva, definitivamente, não faria bem à saúde, segundo crenças que parecem ganhar força com as revoluções burguesas e chegam até nossos dias.

Boris Sokoloff e o ?artificialismo da vida civilizada?

O Dr. Boris Sokoloff é apresentado na orelha do livro da edição brasileira de ?Doenças da Civilização? como ?famoso médico internacionalmente conhecido?, sem que se forneça maior informação sobre a sua biografia (a orelha é assinada, tão somente, pelas Edições O Cruzeiro). Em uma breve pesquisa à Internet, descobrimos que a sua obra talvez merecesse apresentação mais cuidadosa: Sokoloff era doutor em medicina e filosofia, filiado à Florida Southern College, tendo previamente trabalhado no Instituto Pasteur em Paris; mais tarde, teria trabalhado junto às Universidades de Washington e Columbia, em pesquisas sobre câncer e outras patologias; ele é autor de mais de 20 livros, cujas temáticas ? ao julgar pelos títulos, trata-se de uma obra bastante heterogênea ? passam pela divulgação de pesquisas com vitaminas, pela história da penicilina, vitalidade na meia idade, serotonina, a busca pela felicidade, um estudo psiquiátrico sobre o ciúme, Augusto Comte e romances; por último, encontramos referência à sua origem russa: ele teria tido um importante papel em eventos que levaram à revolução bolchevique. Encontramos também referências a obras publicadas entre o final dos anos 20 e os anos 60, além de edições posteriores de collected essays.

O livro do qual falamos aqui está voltado para um público mais amplo do que o especializado na área biomédica. ?Doenças da civilização?, conclui o texto da orelha do livro, ?é um livro para se ler e guardar. Em casa, no escritório, nas estações de veraneio ou em viagem, ele poderá ser útil a qualquer instante, como preciosa fonte de informações para os nossos males?. O perfil do texto, de divulgação científica, mas de linguagem acessível ao público leigo, explica o porquê da sua impressão por uma editora não especializada em assuntos biomédicos.

O ?artificialismo da vida civilizada? é apresentado na introdução do livro em oposição ao instinto da raça humana. Nos últimos séculos, a humanidade iria ?de mal a pior?, adquirindo ?péssimos hábitos, os quais, substituindo o instinto, contribuíram, grandemente, para as doenças? (p.12). Teríamos deixado de ouvir ?a frágil voz do nosso amigo ? o instinto, que nos foi dado, pela natureza, para nos guiar através da vida? (Sokoloff, 1952, p. 12). A ciência médica teria um papel essencial na recuperação do equilíbrio perdido entre tais opostos: nas últimas duas ou três décadas (lembremos que a edição original é de 1944), a medicina teria dado um grande salto na descoberta de causas e curas para a maioria das ?doenças da civilização?.

O par natural-instinto/artificial-civilização é colocado a conversar sem que fique claramente explicitado a que se referem os termos. O instinto seria uma característica perdida, que vigorava ?quando a civilização ainda estava na sua infância? (1952, p. 12); ao que parece, o ?instinto? seria algo vivido em um estado de contato mais íntimo com a natureza, com certeza, no passado; isso vale tanto para uma espécie de natureza dentro de nós ? o ?instinto nosso amigo? ? quanto no que se refere à alimentação, em um momento onde ingeríamos alimentos em seu estado natural, sem cozê-los ou fritálos. O homem pré-histórico, afirma ? sem justificar as afirmativas ? Sokoloff, ?não foi afetado pelo diabetes, pela anemia perniciosa ou pela artrite; não conheceu a asma, a pneumonia, a gonorréia, a demência precoce e centenas de outras enfermidades. (...) Pode ter tido câncer, porém, mais frequentemente, morria das feridas recebidas em luta contra seus inimigos? (1952, p. 11). ?Vida civilizada?, por sua vez, é usado no sentido de vida moderna, industrializada, mas não fica claramente explicitada a conexão, que acreditamos haver no texto, entre esta categoria e o ambiente urbano.

?Paladar degenerado? e a busca por uma ?saúde positiva?

O objetivo do livro, portanto, é esclarecer o público sobre as ?doenças da civilização?, suas causas e sintomas. O primeiro tema abordado por Sokoloff continua frequentando as páginas de reportagens que versam sobre saúde ainda hoje nos veículos de comunicação de massa, talvez com um vocabulário um pouco diferente: a relação entre longevidade, predisposições hereditárias, ciclo de vida e ?saúde positiva?. O autor faz referência ao ?index hereditário?, uma forma ultrapassada de calcular a longevidade de um sujeito, baseada na idade dos pais. Dr. Wendell Holmes, 100 anos antes da publicação do livro de Sokoloff, teria assim respondido à pergunta sobre como atingir vida longa: ?Alguns anos antes do seu nascimento, você deveria escolher um casal de pais pertencentes a famílias de vida longa. Procurar, especialmente, uma mãe oriunda de uma raça em que os octogenários constituíssem um fenômeno comum.? (1952, p. 14). Para Sokoloff, esse cálculo é simplista e superficial; não há destino biológico no sentido de sintomas específicos da velhice, de decadência inevitável. Uma alimentação adequada seria uma grande arma para que as pessoas não somente vivam mais, mas preservem a sua validez, produtividade, eficiência e felicidade. Mas, nesse ponto, voltamos à oposição entre ?instinto? e ?civilização?:

nossos ancestrais se deixavam guiar pelo instinto. Escolhiam os alimentos que lhes eram predestinados ao consumo, e aos quais, caso não alterados pela cocção, os supriam de todas as vitaminas de que necessitavam. Mas a civilização trouxe consigo muitas modalidades de adulteração de alimentos. (...) A arte culinária, hoje em dia, se esforça mais para satisfazer nosso paladar degenerado, do que para preservar as vitaminas e outros elementos essenciais. (1952, p. 42)

Por ?paladar degenerado?, entenda-se as consequências no nosso paladar dos maus hábitos da ?vida civilizada?: apesar de saborosos, nossos alimentos seriam pobres em vitaminas, destruídas pela fritura ou pela fervura. Além disso, a alimentação errônea em sucessivas gerações teria comprometido a nossa ?natural capacidade de utilização das vitaminas ingeridas às refeições? (1952, p. 42). Em um suposto momento no qual mandava o ?instinto?, o corpo sabia o que comer, e a arte culinária da civilização teria deixado isso de lado. No entanto, a oposição se complica, pois, ao tratar da alimentação de crianças, afirma que as mães ?que julgam que seus filhos devam comer tanto quanto lhes apeteça, pagarão, trinta anos depois, ou mais tarde, um preço alto por êsse êrro? (1952, p. 12). Pela lógica da oposição, um suposto instinto poderia estar mais presente nas crianças, menos influenciadas pelo artificialismo da ?civilização?, mas o texto afirma a necessidade de aplicar a essas uma série de regras alimentares, a partir do conhecimento das vitaminas e das pretensas problemáticas do excesso de calorias.

Apesar do intervalo de tempo, a perspectiva médico-terapêutica de Sokoloff remete a uma questão destacada por Flandrin (1998), quando ele analisa a evolução do gosto e a modificação dos hábitos alimentares na Europa: algumas transformações levam Flandrin a crer que, a partir do século XVI, passa a ser mais importante diversificar os pratos e satisfazer o apetite do que se alimentar. Em termos de calorias, diz Sokoloff, nossa alimentação moderna seria suficiente; o problema estaria na qualidade da alimentação, insuficiente em vitaminas, causa primeira das chamadas ?doenças da civilização?.

O regime alimentar, como prescrito por Sokoloff, lembra também a lógica da medicina baseada na teoria humoral. Seria um erro prescrever, segundo o médico, o mesmo regime alimentar a duas crianças de temperamentos opostos, como ele explica a seguir:

Suponhamos que temos dois rapazes na família. Ambos são aparentemente sadios, e o médico nada lhes encontra de anormal. Contudo, um é calmo, tímido, insociável. O outro tem muita vivacidade, é ativo e barulhento. Em têrmos de psicologia, nós os chamaríamos introvertido e extrovertido. Muitos pais experimentariam, talvez, reeducá-los, mas apenas alguns deles compreenderiam que a alimentação que ambos êsses rapazes estão fazendo tem considerável influência em sua conduta, e que é um erro fundamental dar-lhes o mesmo alimento. (1952, p. 23)

Em um texto atribuído a Pólibo, discípulo e genro de Hipócrates , afirma-se que ?o médico deve pôr-se em oposição às constituições das doenças, às características físicas, às estações e às idades, e relaxar o que estiver tenso, e retesar o que estiver relaxado? (Cairus, 2005, p. 46). Ora, a atitude correta, prescrita por Sokoloff, seria a individualização da alimentação: o primeiro deveria seguir uma dieta rica em proteínas, o segundo em hidrocarbonados. Curiosamente, Sokoloff inicia o exemplo afirmando que os dois supostos irmãos são sadios. A prescrição dietética, se lembrarmos disso, ganha não somente ares de medicina preventiva, mas mostra uma conexão entre dieta, saúde e conduta social ou moral. Afinal, por que características como introversão e extroversão, timidez e vivacidade, deveriam ser equilibradas ou corrigidas por alimentos que suscitariam o seu contrário?

Ao tratar do que seria considerado excesso de peso, Sokoloff afirma que, assim como a obesidade, esses males seriam ?devidos à ?preguiça? do organismo? (1952, p. 45) e, em tais corpos, as células se tornariam ?insuficientemente ativas? (p. 46). A confusão entre característica física e conduta moral, nesse caso, reaparece: o ?maquinismo orgânico? interno funcionaria de acordo com o que comumente se compreende da conduta do indivíduo gordo (como ?preguiça?, ?desleixo?, ?falta de força de vontade?).

Sokoloff também apresenta que estaria sendo elaborada uma ?dieta de emagrecimento rica de proteínas?, que promoveria a perda de peso. A justificativa da importância de tais estudos, creditados a um grupo de médicos em ?um hospital em

Nova York?, é notável: ?Êles deram corpo à verdade biológica de que somente uma dieta que dinamizasse o maquinismo orgânico e que, além disso, se fizesse agradável ao paladar, poderia ser considerada racional e científica.? (1952, p. 45). Haveria, portanto, uma ?verdade biológica?, aquela conhecida e defendida pelo autor, a ser sustentada pela ciência.

Estes não são os únicos momentos nos quais o texto de Sokoloff parece ligar as ?doenças da civilização? a questões de ordem físico-moral (Duarte, 1994). Isso fica mais claro no capítulo sobre as doenças do sistema nervoso.

Estômago, cérebro, as ?doenças do sistema nervoso? e a cura na natureza

Sokoloff afirma que o estômago está em uma relação direta com as emoções, respondendo a diferentes estímulos, e que as doenças relacionadas a esse órgão são reflexo de outras perturbações, sendo o estado deste ?a melhor indicação das suas condições de saúde? (1952, p. 49).

Como exemplo de pessoa sadia e com funcionamento gástrico normal, o autor escolhe um fazendeiro que vive ?longe da tensão nervosa da vida na cidade? (p. 50), reforçando a oposição entre natureza e cidade. Já para falar de como as emoções afetam o estômago, o autor escolhe uma paciente que parecia ?sadia e forte?, mas que relata incômodos estomacais e confessa estar sofrendo por amor e ciúmes, afirmando serem os sentimentos causa de suas dores.

O estômago, portanto, aparece como órgão hipersensível às tensões da vida na cidade, apresentando situações do cotidiano de um indivíduo nessas circunstâncias:

Mesmo o indivíduo cujos nervos parecem em bom estado, estão, constantemente, sujeitos a secreção anormal. Imaginemos que V. está muito ocupado, em seu escritório, atormentado por problemas. Come um lanche pesado. Pode estar certo que a sua secreção ácida não será normal. Ou você discute com sua espôsa, durante o jantar: isto leva seu estômago a secretar quantidade dupla de ácido. Ou então, se durante o jantar você está pensando no preço-teto que complica seu negócio, não se deve surpreender se as glândulas do seu estômago se tornam hiperativas e derramam excessiva quantidade de ácido no alimento que você ingeriu. (1952, p. 52)

Mas, se por um lado a vida do fazendeiro distante da cidade permitiria um funcionamento gástrico melhor, uma perturbação da sensibilidade do estômago é apontada justamente como reação do ?homem primitivo?[5] que continua conosco: seria trazida ?das florestas em que viveram nossos antepassados? (1952, p. 53). Comparandonos com gatos e cachorros, que possuem reações de luta ou fuga como pêlos arrepiando e pupilas dilatando, ou com o tal ?homem primitivo?, que precisava perceber a chegada de um inimigo, Sokoloff afirma que as tais reações emocionais que se refletem no estômago do ?homem civilizado? são uma ?insuficiente adaptação às condições da vida civilizada?.

Para Sokoloff, o cérebro é o grande campo de batalha entre o homem primitivo e o civilizado. Seria o cérebro, mais especificamente o lóbulo central, o ?órgão da civilização?; a evolução do córtex cerebral foi a responsável pela vitória do homem sobre o mundo orgânico e inorgânico, sobre a ?natureza lá fora? e sobre a ?natureza selvagem cá dentro?. É o lóbulo central ?que inventa os aeroplanos, que idealiza os arranha-céus, que constrói barcos e navios, que escreve novelas, forma linguagens e cria filosofias? (1952, p. 230). No que se refere aos males do sistema nervoso, o passado teria nos deixado uma herança perniciosa, segundo o autor. Os ?reflexos atávicos? ou ?primitivos? que subsistem no homem moderno como herança do homem primitivo interfeririam em nossa função cerebral, produzindo um excesso de ?excitações elétricas?. Reflexos considerados por ele inúteis, como as perturbações no estômago, mas que subsistem no homem moderno, seriam a causa de doenças e emoções:

O mêdo, a inquietação e a cólera, muitas vezes infundadas ou provocadas por uma irritação insignificante, são parte destes complexos ?atávicos? que interferem na função cerebral (...) São eles a causa real dos conflitos mentais, das neuroses e das psicoses. São eles que produzem o esgotamento nervoso, a histeria e a neurastenia. É através deles que se produz a confusão mental e a tempestade elétrica devasta a mente perturbada. (p. 230)

O fisicalismo (Duarte, 1999) da análise de Sokoloff a respeito das doenças do sistema nervoso não soa tão estranho se pensarmos na forma como os laboratórios farmacêuticos e a farmacologia tratam a depressão hoje, explicando a doença como um desequilíbrio nas concentrações de algumas substâncias no cérebro. Bezerra Jr. faz uma crítica do que ele chama a dissolução do paradigma dualista, que concebia a experiência humana como comportando uma dupla dimensão, a saber, biológica/orgânica e psicológica/moral; hoje para ele, estaríamos assistindo ?a adoção de uma perspectiva monista caracterizada por um fisicalismo de corte especial, francamente reducionista? (2000, p. 161). Este mais genérico fisicalismo apresenta aqui uma versão particular, na qual o cérebro é cercado por possibilidade e expectativas, que podemos chamar de um cerebralismo (Azize, 2008; 2010).

Se, no caso da discussão sobre uma alimentação adequada, um passado recente aparece como um momento de maior equilíbrio e saúde, no caso das doenças nervosas um passado distante e algumas sobrevivências biológicas são a causa de desequilíbrios. O homem moderno estaria em uma encruzilhada cujos caminhos podem levar a doenças: ele ?pertence, de um lado, à civilização, com seu pensamento ordenado e perfeito controle das emoções; e de outro lado, está ainda prêso à selvageria do passado, com seu violento ódio, suas crises súbitas de medo e sua incessante inquietação? (Sokoloff, 1952, p. 230-31). É natural e comum, para Sokoloff, que essa convivência leve a situações disruptivas, neuroses e outros males.

O sistema nervoso seria um lugar de equilíbrio fino entre dois processos fundamentais: a excitação e a inibição; o ?cérebro normal? é aquele que guarda um ?perfeito equilíbrio? entre os dois processos, enquanto as desordens mentais teriam uma origem fisiológica comum, o excesso ou redução de inibição.

A boa saúde do sistema nervoso, nessa perspectiva, passa pelo equilíbrio do que há de ?selvagem? no ser humano. O homem civilizado saudável apaziguou os ?reflexos atávicos? que estão latentes em si mesmo. Interessante lembrar aqui a reflexão de Thomas (1988) sobre como teria se delineado o conceito de ?animalidade?, especialmente na Inglaterra, a partir de 1500. As idéias de Bacon e Descartes, entre outros, lembra Thomas, dão ao homem preeminência sobre a natureza e negam uma alma aos animais. O autor mostra ainda o quanto adjetivos como animalesco ou bestial entram para a cultura européia para designar comportamentos inadequados entre os seres humanos. Mas, ?foi enquanto um comentário implícito sobre a natureza humana que se delineou o conceito de animalidade? (ibidem, p. 48). Distinguir-se das bestas, diria Thomas (para fins de análise teórica), ou da humanidade selvagem, diria Sokoloff (para fins de prescrição médica), passa pela moderação do corpo.

Desejos artificiais da vida civilizada

Para fins do debate sobre a ideia de natureza enquanto espaço de cura, está neste capítulo sobre as doenças do sistema nervoso um dos casos-exemplo mais interessantes entre os apresentados por Sokoloff: o de um paciente neurastênico. O neurastênico seria um tipo ?sempre cansado?, a quem qualquer esforço fatiga, ?meio deprimido e (que) revela, com frequência, o desejo de morrer, mas raramente atenta contra a própria vida?[6] (1952, p. 234).

A principal marca do neurastênico seriam os distúrbios sexuais: seriam eles masturbadores crônicos ? hábito considerado por ele uma ?causa subjacente da enfermidade? ?, que apresentam freqüentes poluções noturnas, ejaculação precoce e que temem o fracasso no coito. O Dr. Sokoloff relata um caso clássico, ?típico a este respeito?, tratado por ele mesmo, de um artista de 27 anos, ?de pescoço comprido e mãos femininas? ? ligando novamente características corporais a tendências a um determinado temperamento. Masturbador quase diário desde os 12 anos de idade, K.

N. teria deixado o assim chamado ?vício? quando conheceu a mulher com quem viria a se casar; mas a ejaculação precoce fez com que o ?comércio sexual? e o casamento fossem fracassados. K. N. ficou deprimido, passou a trabalhar irregularmente e ficava todas as noites vagando pelas ruas; queixava-se, ainda, de doenças inexistentes.

Seguem as indicações sugeridas por Sokoloff:

Discutindo o problema com ambos, aconselhei sua espôsa a primeiro melhorar o seu estado físico. Sugeri trabalhos leves de jardinagem, nados diários no mar (êles moravam na Riviera Francesa) e duas horas diárias de banho de sol. Sua dieta foi grandemente enriquecida de proteínas, para restaurar a função das glândulas sexuais. Com o auxílio da sua espôsa, o tratamento surtiu efeito. Depois de haver recuperado as forças físicas, a espôsa usou de tato e paciência e foi bem sucedida na cura daquela impotência neurastênica. (1952, p.235)

No processo de tratamento definido pelo médico, ouvimos ecos de uma volta à natureza como lugar de cura, na indicação terapêutica de um contato com a terra, o sol e o mar. O contato com esses elementos, ao que parece, concorrem para o tratamento não somente do mal físico ? a neurastenia ?, mas também de questões morais, que atravessam o relato do caso-exemplo. No histórico do paciente, a masturbação durante a juventude e um algo de feminino na vida adulta fazem parte da dinâmica da doença; atentemos às ?mãos femininas?, treinadas diariamente no ?vício? masturbatório da juventude, e também à inapetência para o comércio sexual regular com a esposa. Impõe-se a K. N. um controle mais refinado da sexualidade: ?os exercícios físicos, os banhos de sol, as injeções de córtex de supra-renal, juntamente com a regularização da vida sexual, podem levar à cura? (1952, p.234). A ?regularização da vida sexual?, lembremos, precisou do ?tato? e ?paciência? da esposa, porto-seguro essencial na condução do tratamento, para o reequilíbrio das funções regulares do marido.

O relato do caso de K. N. poderia estar nas páginas da História da Sexualidade I, como um exemplo da parte que toca o discurso biomédico no controle da sexualidade burguesa. A sexualidade de K. N. é posta a falar pelo próprio doente e por sua esposa; para a cura adequada, para usar os termos de Foucault, eles devem confessar a um interlocutor qualificado. Sokoloff, na introdução do seu livro, já sublinha a importância de uma ?íntima cooperação de parte do paciente? (1952, p. 13) para que o tratamento adequado seja colocado em prática. Lembremos que, em Foucault, a sexualidade não é entendida como uma esfera de resistência do sujeito, mas ?como um ponto de passagem particularmente denso pelas relações de poder? (Foucault, 1977, p. 98). A sexualidade é obrigada a uma existência discursiva dentro de uma esfera de poder.

Especialmente a partir do século XVIII, o autor distingue ?quatro grandes conjuntos estratégicos, que desenvolvem dispositivos de saber e poder a respeito do sexo? (ibidem, p. 99). Um desses dispositivos é a atenção ao jovem masturbador ou a pedagogização do sexo da criança; ela teria sido apontada por Foucault como um dos itens preferenciais no que toca o controle medicalizado da sexualidade burguesa. Na infância, o sexo seria visto ao mesmo tempo como ?natural? e ?contra a natureza?; os médicos, assim como os pais e professores deveriam estar atentos a essa prática que traz riscos individuais e coletivos, físicos e morais. K. N., mesmo depois de casado, sofrerá as conseqüências do seu ?vício? juvenil.

Outro desses dispositivos, visíveis no relato de Sokoloff, é a socialização das condutas de procriação, dirigido ao casal malthusiano. O ?vício? diário de solteiro tem como espelho no futuro a sexualidade fracassada e irregular do casal; no relato não consta a existência, a falta ou o desejo por filhos, mas o mecanismo de controle da sexualidade do casal está no ar.

Um terceiro dispositivo pode ser analisado no papel da mulher de K. N. na sua cura. É o ?tato? dela que reequilibra o que é relatado como uma sexualidade frágil do casal, culpa da ejaculação precoce. Foucault afirma que faz parte do dispositivo da histerização do corpo da mulher colocá-lo em ?comunicação orgânica (...) com o espaço familiar (do qual deve ser elemento substancial e funcional)? (ibidem, p. 99). Cabe a ela auxiliar K.

N., inclusive no que se refere à estratégia de cura baseada no contato com a natureza. É com o seu auxílio que o neurastênico recupera as forças no mar, ao sol e no contato com a terra. Schiebinger (1993), ao se perguntar sobre as origens sociais do termo ?mamífero? na classificação de Linneu, levanta a hipótese de que uma característica feminina é escolhida para designar a união dos humanos com a natureza, com os outros animais, enquanto que a razão, uma ?tradicional característica masculina? (Schiebinger, 1993, p. 55), é a marca da separação.

A estratégia de cura prescrita pelo Dr. Sokoloff a K. N. merece ainda mais algumas observações, em diálogo com a análise que Corbin (1989) faz sobre as origens do prazer de estar à beira-mar e da moda do banho de mar. Segundo Corbin, o desejo pelas praias de mar emerge a partir da metade do século XVIII, como parte da terapêutica de cura da melancolia e do spleen. Desde a primeira metade dos setecentos, acredita-se nas propriedades benéficas do banho de água fria; o banho no mar frio, diz Corbin, é a continuação de um processo. Dataria de 1748 a primeira descrição de uma cura marinha; espera-se da água fria e especificamente do banho de mar o aumento de vigor, tonificação, controle de ansiedade, atenuação da irritação nervosa, além de cura para a impotência e problemas de fertilidade.

Gostaríamos de destacar um duplo eixo de convergência: a (i) cura no encontro com a natureza e o (ii) afastamento de um espaço urbano que faz adoecer, onde vigoram maus hábitos ligados à elite burguesa, configurando um tratamento de ordem físico/moral.

Atentemos ao remetimento de um neurastênico a um contato mais próximo com a natureza e com o mar; mas não simplesmente de um neurastênico: de um masturbador compulsivo na adolescência, adulto com ejaculação precoce, de hábitos sexuais irregulares. Corbin sublinha que a relação terapêutica com o mar é um tratamento físico/moral, que deve curar males do corpo, mas também as novas ansiedades urbanas, os maus hábitos burgueses. ?O curista, lembra Corbin, longe dos miasmas da cidade (...) dispensa facilmente os prazeres ilícitos, abandona facilmente sua vida irregular. A praia, dirá o doutor Le Coeur, é o lugar do ?retorno a ocupações inocentes??. (Corbin, 1989, p. 84)

Lembremos também que K. N., o neurastênico, é um artista. Difícil acreditar que seja mera coincidência a escolha dos casos-tipo apresentados por Sokoloff. No capítulo ?doenças do sangue?, sub-item ?anemia perniciosa?, mais um artista, ?pianista de fama internacional?, é citado no livro. A explicação para essa recorrência é dada pelo próprio médico:

Quando sobrevém a anemia perniciosa? Quais os tipos de indivíduos mais sensíveis a esse estado mórbido? Certamente não será o indivíduo atlético e grande comedor. É o indivíduo nervoso, atormentado, de temperamento artístico, a vítima habitual desta doença; é o que não come em horas certas, que se alimenta às pressas, dorme mal, e não leva em conta o seu estado de fadiga. É a fadiga, constante ou excessiva, que prepara aos poucos o terreno para a débâcle do sistema destinado à formação do sangue. (1952, p. 126)

Em outro momento, Sokoloff afirma que ?os intelectuais, mais do que a gente simples do povo, são vítimas preferidas das neuroses? (1952, p. 12). Artistas, intelectuais, burgueses, a elite urbana, em termos gerais - apontam Sokoloff em sua prática médica e Corbin em sua análise - correm o risco da falta de vigor, vigor este que sobra às classes populares. A vida irregular a qual Corbin se refere está ligada a hábitos da elite da sociedade, que

teme seus desejos artificiais, seus langores, suas neuroses. As paixões e excitações que lhe são próprias ameaçam-na de morte social, por não saber participar dos ritmos da natureza. (...) espera-se do mar que acalme as ansiedades da elite, que restabeleça a harmonia do corpo e da alma, que estanque a perda de energia vital de uma classe social que se sente particularmente ameaçada em suas crianças, suas raparigas, suas mulheres, seus pensadores. Espera-se dele que corrija os males da civilização urbana, os efeitos perversos do conforto... (Corbin, 1989, p. 73-74)

Tanto para os médicos do século XVIII como no livro de Sokoloff, para os ?males da civilização? que venha o encontro com a natureza; seja ela entendida como o meio ambiente natural, como a ?natureza lá fora?, como uma ?alimentação natural? ou ainda o encontro com hábitos das classes populares, mais próximos à natureza.

Vejamos agora como esse remetimento à ?natureza? encontra eco e representações no discurso que atravessa a divulgação da depressão (parente próximo da melancolia e do spleen) no tempo contemporâneo.

Depressão, antidepressivos e imagens da natureza

É possível que, com o desenvolvimento de medicamentos considerados cada vez mais competentes na cura ou controle das ?doenças do estilo de vida? ou ?da civilização?, o deslocamento em direção à natureza como estratégia de cura venha sendo colocado cada vez mais de lado. Estando a ?doença? mapeada e o corpo humano cada vez mais escaneado por novas técnicas de diagnóstico e visualização, o tratamento químico pontual passa a substituir a indicação de deslocamento dos doentes para espaços ?naturais?; a cura está cada vez mais nas pílulas, e cada vez menos nas ondas do mar, nas montanhas ou em qualquer outro tratamento não-medicamentoso.

Em relação aos discursos médicos dos séculos anteriores, discutidos acima, o material publicitário sobre depressão dos laboratórios farmacêuticos apresenta uma sensível diferença. Se lá, o ambiente urbano e os maus hábitos da elite são vistos como causas explícitas ou implícitas dos males ligados ao sistema nervoso, aqui o esforço é justamente o de desconstruir limites, geográficos, temporais, culturais e de classe social para a doença. Em uma campanha de informes publicitários do Laboratório Wyeth, fabricante do antidepressivo Effexor, vemos o esforço para negar a ligação entre vida urbana e a incidência da doença:/

A depressão já é conhecida e suficientemente definida há muitos séculos, e em todas as culturas e países. Desse modo, não se pode encará-la como uma doença moderna, ou uma doença típica das grandes cidades.

Diagnosticar com precisão e tratar adequadamente um estado depressivo são procedimentos fundamentais para evitar riscos decorrentes da doença, e devolver ao paciente uma boa qualidade de vida (...) À volta de um paciente deve haver a compreensão de que a depressão não é preguiça, nem falta de caráter ou de vontade. Não adianta pedir ao paciente que reaja, pois ele precisa de medicamentos.[7]

Os trechos acima podem ser considerados paradigmáticos, visto que o material publicitário dos laboratórios para a divulgação dos sintomas e tratamento da depressão apresentam estratégias bastante semelhantes. Como se pode ver, o tratamento que se prescreve aqui segue outro paradigma, ao que parece, sem conexões com a ?natureza?. Mas isso não significa que a associação entre ?natureza? e cura esteja de todo perdida no tempo, deixada de lado com as novas descobertas bioquímicas do final do século XX - início do século XXI. O material publicitário dos laboratórios farmacêuticos que produzem e comercializam medicamentos antidepressivos, ao qual o público leigo tem acesso fácil ? e incentivado ? nas salas de espera de consultórios médicos, traz um bom exemplo de ecos dessa ligação. É verdade que os textos destes folhetos concentram-se na divulgação da depressão como ?uma condição médica real?, comparável a outros males cuja existência, cientificidade e exatidão do diagnóstico e tratamento são colocados com menor frequência em xeque, como as doenças cardiovasculares e o colesterol alto, asma ou dor de cabeça; é verdade também que estes folhetos trazem um discurso de desculpabilização do indivíduo, deixando o desequilíbrio químico como única causa do desconforto, como podemos ver no trecho a seguir:

Como eu cheguei a este ponto?

O paciente com depressão também se questiona sobre o motivo de estar sofrendo essas mudanças. Mas não é sua culpa. Acredita-se que a depressão seja uma condição médica causada por alterações de substâncias químicas no cérebro e por todo o corpo.[8]

Mas também é verdade que os textos não contam toda a história. Se atentarmos aos temas gráficos de algumas peças publicitárias de diferentes laboratórios ? como a Lilly, fabricante dos antidepressivos Prozac e Cymbalta, a Roche, fabricante dos antidepressivos Ixel e Aurorix e o Lundbeck, fabricante do antidepressivo Cipramil ? tanto as fotos quanto as cores escolhidas fazem lembrar algo das indicações curativas que remetem ao contato com a ?natureza?. Na capa de um folheto do laboratório Lilly, logo abaixo da chamada ?Você sabe reconhecer os sintomas da depressão??, uma mulher por volta dos seus 30 anos, toda vestida com roupas brancas, aparece no meio de um campo de trigo, com um rosto tranquilo, parcialmente iluminado pelo sol. Outro folheto, do laboratório Lundbeck ? cuja logomarca, vale dizer, traz uma estrela-do-mar ?, com a chamada de capa ?O que é depressão??, tem como tema gráfico um girassol. Ambas as peças apresentam uma linguagem voltada ao público leigo, informando sobre sintomas e a forma adequada de tratamento.

Um anúncio, publicado na contra-capa da revista Diálogo Médico, publicada pelo laboratório Roche e voltada para os médicos[9], traz a chamada ?Aguarde o novo antidepressivo da Roche? (que viria a ser o medicamento Ixel) e tem como tema gráfico uma gaivota estilizada. Essas três peças, de diferentes laboratórios, têm uma coisa em comum: a predominância das cores azul e branco ? que podem nos remeter aos limites entre mar e areia, mas por certo estão culturalmente relacionados a ideias como calma e paz.

Se os textos dessas peças sublinham a ideia de que a depressão é um desequilíbrio químico que deve ser tratada com medicamentos, as imagens mostram uma possibilidade de homeostase, uma esperança de felicidade, reequilíbrio e cura usando como ícones a terra, o mar, as plantas e o céu azul. A ?natureza lá fora? continua, de certa forma, a ocupar um lugar de representação de paz e equilíbrio. A ?natureza? volta à cena como espaço, ao menos em caráter simbólico, onde o humano pode recobrar a sua saúde.

Há uma dimensão especular que nos parece bastante evidente neste material, que relaciona um (re)equilíbrio interno do sujeito à imagem de ambientes naturais, apesar da intervenção química em jogo. Natureza e artifício são valores que não se excluem neste sistema de representação. Esperamos ter demonstrado com este material heterogêneo e nos permitindo uma análise com largos saltos históricos que a natureza insiste como um valor positivo de longo prazo, do qual a indústria farmacêutica pode lançar mão em suas estratégias de marketing.

Referências

AZIZE, Rogerio Lopes. Uma Neuro-Weltanschauung? Fisicalismo e subjetividade na divulgação de doenças e medicamentos do cérebro. Mana. Rio de Janeiro, v.14, n.1, p. 7-30, 2008.

AZIZE, Rogerio Lopes. O cérebro como órgão pessoal: uma antropologia de discursos neurocientíficos. Trabalho, Educação, Saúde. Rio de Janeiro, v. 8 n. 3, p. 563574, 2010.

BEZERRA JR., Benilton. Naturalismo como anti-reducionismo: notas sobre cérebro, mente e subjetividade. Cadernos IPUB. VI: 158-177, 2000.

BERTOLLI FILHO, Cláudio. História social da tuberculose e do tuberculoso: 19001950. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.

CAIRUS, Henrique F. Da natureza do homem. In CAIRUS, Henrique F.; RIBEIRO JR., Wilson A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a doença. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005, p. 39- 59.

CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

DUARTE, Luiz Fernando Dias. O Império dos Sentidos: sensibilidade, sensualidade e sexualidade na cultura ocidental moderna. In Sexualidade: o olhar das Ciências Sociais, org. Heilborn, M. L., pp. 21-30. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1999.

DUARTE, Luiz Fernando Dias. A outra saúde: mental, psicosocial, físico-moral? In ALVES, P. C.; MINAYO, M. C. (orgs.) Saúde e Doença - um Olhar Antropológico. Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 1994.

FLANDRIN, Jean-Louis e MASSIMO, Montanari. (orgs.). História da alimentação.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro:

PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record, 2004.

SCHIEBINGER, Londa L. Why mammals are called mammals. In SCHIEBINGER, Londa L. Nature's Body: gender in the making of modern science. Boston: Beacon, 1993.

SCHAMA, Simon. 1995. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SOKOLOFF, Boris. Doenças da civilização: você pode curá-las. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1952.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e os animais, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Notas

[1] Versões prévias deste artigo foram apresentadas na VI RAM ? Reunião de Antropologia do MERCOSUL, que aconteceu em Montevidéu, 2005; e na IX ABANNE - Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste, realizada igualmente em 2005, em Manaus. A versão aqui apresentada é ampliada e se beneficiou destes debates.
[2] Professor Adjunto no Instituto de Medicina Social. Membro do Laboratório de Estudos Sociais dos Usos de Substâncias (LESUS) Universidade Estadual do Rio de Janeiro ? Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1876-8507.
[3] Mestranda em Saúde Coletiva. Universidade Estadual do Rio de Janeiro ? Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: < klimeckbeatriz@gmail.com >. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2076-3705.
[4] Não havia outras obras da mesma linha em sua biblioteca. Ele era advogado e não mostrava particular interesse por discussões do gênero, o que aponta para uma obra de divulgação a um público amplo, leigo no tema.
[5] O autor usa indiscriminadamente as expressões ?homem primitivo?, ?homem das cavernas? ou ainda ?homem selvagem? como o pólo oposto do ?homem civilizado?.
[6] A expressão ?meio deprimido? mostra que não é apenas uma característica da transição do século XX para o século XXI uma certa ambigüidade no lidar com o diagnóstico da depressão. O que viria a ser, exatamente, alguém ?meio deprimido??
[7] Trechos de anúncios publicados no Caderno Folha Equilíbrio, do Jornal Folha de São Paulo, entre agosto e setembro de 2001.
[8] Folheto do laboratório Boehringer Ingelheim / Lilly, com chamada de capa ?Você sabe reconhecer os sintomas da depressão??.
[9] Voltada para médicos, mas eventualmente disponível em salas de espera de consultórios à disposição da leitura dos pacientes, onde o autor principal a encontrou.


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